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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 32

melgaçodomonteàribeira, 24.04.21

Assim, uma noite, puseram em prática um jeu de rôle: no bar, a Maribel interpretava o seu papel; na garagem, o Nelo, o do Manolo; e o Zeca, o de carregador. O Manolo implementou várias viagens com a sua carrinha Citroën 2CV, a velocidades discordantes. A cada volta a Maribel ia retardando o alerta. Ao cabo de três quartos de hora, deduziram que era razoável dar sinal quando os veículos alcançassem a casa do Pepe. O risco de a mulher se equivocar era nulo: naquele ponto, a estrada fazia uma curva de cento e oitenta graus e o feixe de luz devinha frontal. Tinham tempo para aviar dois, três ou, talvez, quatro carregadores, extinguir a electricidade e aferrolhar a porta.

Para muitos, o tempo era dinheiro; para o Manolo e os sócios também era prudência.

O que o obsidiava era a imprevisível aparição do jipe do tenente do posto de Puente Barjas.

A Otília e a mãe habitavam por cima do forno – assim designavam a padaria – e dormiam no mesmo quarto, mas em leitos individuais. Nos dias álgidos e húmidos de inverno, o calor proveniente do rés-do-chão chegava para terem uma temperatura pontual na casa: um calor conforme durante as horas mais frescas da noite e um calor ameno no restante do dia. No verão, residiam numa estufa.

Desde que ficara acamada, a provecta mulher via o tempo dissipar-se na solidão mais completa, dormitando de modo intermitente. A Otília, embora tomasse conta dela com a maior idoneidade, sentia-se incapaz de lhe fazer companhia duravelmente. Era como uma corrente de ar, um sopro. Exceptuando as situações inquietantes em que a sua presença era indispensável, pouco parava na casa.

Durante o dia, o apito revelador da carrinha do peixe – de segunda a sexta –, assim como o das locomotivas, que, consuetudinariamente, lhe provinham do outro lado do rio, representavam as referências predominantes da mãe. Se, por qualquer motivo, um comboio estivesse fora da hora, enquanto não distinguisse o seu rangido, não amortecia.

Estes factores ambientais enquadravam o seu inflexível relógio circadiano e serviam de charneira entre o pôr do sol e a noite; com esta derradeira é que verdadeiramente começava o dia para ela. Só ela lhe oferecia a presença efectiva e afectiva da filha, as suas palavras e a sua orelha.

Mas tão ponderoso como a convivência da filha, era o alvoroço da padaria, pelo qual se regia. Acostumara-se aos seus ruídos específicos, familiares havia muito: ao seu cheiro, ao gemido reiterativo da amassadeira, ao chiar e ao bater da porta do forno; ao provecto e enfarinhado transístor, que tanto brotava uma música incompreensível como uma palração anfigúrica, ao gargalhadear ruidoso causado pelos chistes dos dois trabalhadores, vindos indistintamente de baixo... Fizera do forno o seu segundo marco, o seu sol nocturno. Ao genuíno, havia muito que não o avistava, ressentindo apenas, ao fim da tarde, o calor da sua radiação anemizada através da janela.

A sonoridade flácida que derivava de baixo e atingia os seus ouvidos ainda eficazes, divergia demasiado da do seu tempo. A imaginação, artífice sem tabiques dos resquícios e das pegadas memoriais, tem um enorme potencial para ajustar desejos ou instantes memoráveis, por muito disformes que sejam; a Concepción, invocando os retalhos mais salientes e deslumbrantes da sua vida, projectava-se mais de meio século atrás. Ainda que se desdiga, o passado é sempre o mais atractivo, o mais inebriante, mormente quando o futuro pssou a ser o presente. Ainda não se deslembrara de que a padaria fora a obra do marido e dela.

Estas conjunturas, talvez imperceptíveis para os que mais sofriam de derrelicção, formavam uma milagrosa revivificação. Graças a elas, ainda discernia o frágil fio de vida que, dia-a-dia, irreparavelmente, se ia constringindo nas suas entranhas, mas ao qual se agarrava com um entusiasmo implacável, raivoso. Esta atmosfera folclórica ritmava e revigorava as noitadas da sua vegetativa cenestesia; fazia com que adormecesse a altas horas da madrugada.

Como neste mundo para dar o merecido valor a algo é imprescindível vivenciar a sua adversidade, o domingo era uma execração inequívoca para ela. Privada do cláxon infatigável da carrinha do peixe e do tumulto do forno, tinha de se confortar com o silvo dos poucos comboios que nesse dia circulavam, e postulava a Virgen para que a têmpera aleatória da filha mostrasse a boa cara. 

Se nenhuma das doenças que a carcomiam intimamente a entravasse, tagarelava obstinadamente todos os dias com ela. Velha, doente, num grau héctico crítico, a voz não denunciava a sua natureza nem a longeva idade.

A Otília, bem disposta na maior parte das vezes, narrava-lhe, com prazer e minúcia, o desenvolvimento dos acontecimentos polimorfos em andamento e as novas do dia; quando fatigada ou cateada, egoistamente, repudiava-a. Quando se dava o caso, a desditosa anciã, cujo mental por momentos oscilava, monologava, encarnando as duas figuras.

Fosse como fosse, as suas pálpebras poucas vezes se juntavam antes de identificar a frequência das colisões da porta do forno, sinal de que o Fernando enfornava as primeiras barras de pan – cacetes.

Naquela noite, a Otília descreveu explicitamente à mãe a preocupação que se apossara dela e lhe inquietava o pobre espírito. Crescera nela a apreensão pela rica casinha, na qual ambas tinham nascido e, decisivamente, expirariam.

— Ó mulher – questionou a Concepción –, como podes crer que nos vai botar a casa abaixo com paus? É impossível!

Conversaram, conversaram, sem interrupção. Às vezes, cada qual por seu lado, expressavam-se numa total simultaneidade.

A Otília não se achava ingénua ao ponto de acreditar que o choque das ripas, uma vez por outra, findasse por lhe deitar a casa abaixo. A verdade é que já havia muitos anos que, diariamente, rachavam a lenha ali. Já não se recordava, mas afigurava-se-lhe que os sarrafos nunca tinham sido dilacerados noutro lado.

A tarde foi correndo e a Otília não cessou de magicar. Contra o fim, não contendo mais a florescente exaltação, prospectou minuciosamente a parede da casa e ratificou a existência de umas fissuras esparsas. «Pequenas, é certo, mas é assim que tudo começa», pensou, atribulada, relembrando as palavras do Manolo. A pancada das ripas talvez não lhe derrubasse a casa, mas não tinha a menor dúvida de que lha danificava pouco a pouco.

 

Continua.

 

MELGAÇO, EMIGRAÇÃO CLANDESTINA 2

melgaçodomonteàribeira, 17.04.21

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s. gregório  foto jornal público

 

A PEQUENA RAQUELINDA

 

Entre 1960 e 1974, um milhão e meio de portugueses, um sexto da população residente, saiu de Portugal. O movimento de saídas chegou a ultrapassar os cem mil anuais – em 1969, 1970 e 1971. A França registou a entrada de 293.758. Regularizou a presença de outros  325.974.

Esvaziavam-se povoações no Minho, em Trás-os-Montes, na Beira Alta, nas ilhas. “As redes ganharam ainda mais espaço nas aldeias, alargaram-se ainda mais da fronteira para o interior”, narra Marta Nunes Silva no livro Os trilhos da Emigração – Redes Clandestinas de Penedono a França, lançado em 2011. Nem só os homens aproveitavam a geografia de Melgaço para ganhar algum. (…) Perto do marco de fronteira nº 1, lá onde o rio Trancoso encontra o rio Minho e Portugal começa, labutava a Requelinda Pereira, pequena, franzina, de sobrancelhas arqueadas, um nariz que é uma graça.

Sempre andou na lida, sempre foi “governadeira”. Nem agora, aos 81 anos, quase confinada a casa, tira a bata. Instalou-se ali, no lugar de Cevide, para melhor fazer o seu contrabando. Aos sete anos, já ia com os irmãos à vila buscar uma barra de sabão para passar aos galegos. Trazia-a às costas, “toda contente”, numa “mochilinha” que lhe fizera a “mãezinha”. Com isso, já “ganhava um pouquinho”.

“Viciei-me nisso”, diz a mulher, já curvada, desdentada, no seu português cantado. Parece-lhe que passou “de tudo quanto havia” de cá para lá, de lá para cá, conforme as necessidades de um lado ou de outro. E, um dia, era já uma “adultona”, pôs-se a passar gente.

Não era uma originalidade. Na raia luso-espanhola, muitas redes de emigração clandestina eram extensões de redes de contrabando, Quem passava azeite, café, amêndoa, não podia passar gente? Eram os mesmos caminhos, os mesmos códigos, a mesma necessidade de escapar às autoridades, como observa o sociólogo Albertino Gonçalves, investigador da Universidade do Minho com várias publicações sobre a matéria. Dali até saíra volfrâmio com destino à Alemanha nazi.

Raquelinda não era de medo, era de antecipar manhas alheias. Comprou uma pistola de pequeno porte e elevada potência. Uma 6.35 mm. “Gostava muito dela”. Não a largava. “Havia que ter respeito. Aqueles homens todos sem a gente conhecer… Alguns eram maus.” “A gente não lhes podia confessar medo.

Iam os moços à frente, por ali abaixo. O que ela queria era que “fossem direitinhos, como as ovelhas quando se botam num rebanhinho”. Tinham de ir por carreiros, tantas vezes estreitos, por vezes íngremes. “Tinham de passar por onde calhava”. Lembra-se de os ouvir resmungar: “Isto é que é o caminho?” Empunhava a pistola, se necessário fosse. Dizia-lhes: “Vamos! É por aqui. Vamos!”

Parece fácil agora que, ali, no lugar de Cevide, a fronteira é uma ponte e a casa da Guarda Fiscal é uma casa de férias. Quando o rio Trancoso ia minguado, dava para saltar de penedo em penedo. Quando engrossava, era o diabo. Impunha-se andar pela margem acima. O que lhe valia era que não faltava para onde. Melgaço tem 39 quilómetros de fronteira fluvial, 22 quilómetros de fronteira seca.

Um padre de Braga enviava-lhe homens. Por vezes até lhos trazia. A notícia propagava-se de boca em boca: “Aí a Raquelinda põe na França.”  E lá lhe apareciam mais homens, jovens, pouco escolarizados, sobretudo nortenhos. “Havia camionetas e comboio de Monção para baixo.”

Andava a “adoçar o bico aos polícias”, para que eles não a tivessem no seu ponto de mira, e mesmo assim arriscava-se a ser fechada numa cela, sem ver sol nem lua. Uma vez, um dos homens “perdeu-se do rebanho” ou arrependeu-se de o seguir e quis voltar para casa, já nem sabe. Em vez de se sumir no campo de milho, entregou-se à Guarda Fiscal. “Paguei-as todas eu!” Sentou-se com as duas ajudantes no banco dos réus. “Tivemos uma querela com os juízes. Tivemos toda a noite no tribunal. Nós chorávamos. Nós fazíamos tudo para que nos dessem a mínima pena.

Cumpriu 23 meses de prisão e pagou 18 contos de multa. Esteve primeiro na cadeia de Monção. “Havia lá cada rato! Grandes, com o rabo comprido! Ai! Quem estava lá tinha-lhes medo. “Pediu transferência para Melgaço. Sempre ficava melhor. Os “paizinhos” iam visitá-la com o “filhinho” dela, ainda pequeno.

Não dava para enriquecer. “Era uma vida triste e alegre, de ganhar dinheiro mas também de o perder. Era um jogo”, resume. “Pagavam conforme podiam, coitados. Alguns eram pobres, não podiam pagar. Alguns iam pedir emprestado e depois pagavam juros. E, pronto, fiquei sem muito dinheiro porque não mo deram. Foram-se embora! O que quiseram foi apanhar-se na França. Depois, adeus.”

A reacção das autoridades ao auxílio à emigração clandestina era mais severa do que ao contrabando. Dizia-se que fazer contrabando “era crime mas não era pecado”. Na imprensa, sujeita à censura prévia, os passadores eram tomados por mafiosos. O regime usava-os como bodes expiatórios do êxodo. Tentava, escreve Victor Pereira, “preservar, a qualquer preço, a imagem de Épinal do povo bom e inocente”.

A Raquelinda não picavam os remorsos, como as pulgas. “A gente ia por aí acima de cara Castro (Laboreiro), a gente via essas casas de palha por cima. Plantava fogo às vezes naquelas casas. Era uma desgraça. Ardia gente e tudo! Depois começaram a ir para França. Toda a gentinha a mandar um dinheirinho para cá. E toda a gente a governar-se bem. Começaram a fazer casas. Agora quem vai de cara a Castro (Laboreiro) vê cada casa… cada casa importante. Tudo à conta do emigrante, dos aventureiros que fomos nós, que nos arriscámos a ir para a prisão!”

Quando saiu da prisão, falou com o espanhol a quem antes entregava os homens para que os guiasse até outro, que os haveria de ajudar a saltar a fronteira franco-espanhola. Pediu-lhe: “Põe-me na França lá donde (estão) uns parentes meus.” E ele levou-a – e às duas ajudantes – de carro. Sorte a dela que já decorria 1965. Até então, poucas mulheres se tinham atrevido a ir “a salto”. Ir “a salto” implicava passar muito tempo com desconhecidos, em idade viril, em casebres e camiões. O povo falava muito. Mulheres houve que perderam “a honra” pelo caminho.

Naquele ano, os espanhóis acordaram com os franceses a facilitar a entrada e estadia dos portugueses em Espanha e a sua passagem para França. Em Espanha, bastava-lhes apresentar um documento de identificação para receberem um salvo-conduto que lhes permitia permanecer no país 30 dias. Com isso, podiam ir até à fronteira franco-espanhola: os agentes franceses atribuir-lhes-iam um certificado de controlo, que teriam de apresentar para regularizar a sua situação.

Queixavam-se os espanhóis de gastos com detidos portugueses que Portugal pouco pedia. E estavam cansados os franceses do estado deplorável em que chegavam os portugueses. A uns e a outros parecia ajuizado diminuir a necessidade de passadores em Espanha e dispensá-los na fronteira com a França. Na gare de Hendaia (Irún) instalou-se um centro de acolhimento de migrantes.

Portugal reagiu. Em 1966, intensificou a pena de auxílio à emigração clandestina. O que antes ia até dois anos de prisão passou a ir de dois a oito.

Vida mais arriscada para engajadores, transportadores e passadores. Viagens mais cómodas para clandestinos, que passaram a usar mais o comboio, a camioneta e o carro. Um incentivo ao reagrupamento familiar e à emigração de mulheres solteiras, como Raquelinda.

A presença das mulheres intensificou-se. Essa tendência foi em crescendo até 1968, ano em que saíram mais mulheres com documentos em ordem do que homens.

 

www.publico.pt

 13 de Abril de 2014

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 31

melgaçodomonteàribeira, 10.04.21

Preferiu vilipendiar o rapaz. Molhou o bico na tigela. Ao reparar no Nelo, rememorou-se de um acontecimento insólito. Interpelou-o.

— Nelo, sabes com quem embati anteontem no meu campo junto do regato? Essa pessoa disse-me que estava à tua espera. Admito que fiquei abismado. Tem-me saído da cabeça, mas agora quero saber se não me mentiu.

— Que estava à minha espera para quê?

O Virgílio sorria. O episódio ia interessá-los.

— O indivíduo afirmou-me que adquirira um televisor em São Gregório e que vigilava a tua vinda.

— Ah! – quase clamou o Nelo, arrebatado – Não vos relatara essa! – adiu, dirigindo-se ao Zeca e ao Manolo – Foi o Barqueiro, esse filho da mãe!

— O Barqueiro? – redisseram, cépticos, os dois homens.

— Foi o Barqueiro, sim senhor! – certificou o Nelo, triunfante, desnudando o incisivo de ouro – Quem havia de dizer, heim?

O espanto do Manolo e do Zeca era eloquente.

— Como lidara com o bicho – prosseguiu o Virgílio –, quando me disse isso, pensei que se estava a armar em malandro. Mas não, falou como se fosse coisa costumeira nele e normal para mim.

A alcunha de Barqueiro herdara-a do pai, bateleiro entre Arbo e o cais de S. Marcos, no Peso. Depois do serviço militar cumprido, concorreu para a Guarda Civil e foi seleccionado. Com menos de trinta anos fora enviado para o posto de Crecente, cujos membros vigiavam os camiões de bananas.

Incorruptível resoluto, durante os dezoito meses que ali policiou intricou, com tendencioso alento, o trabalho aos contrabandistas e aos colegas da Benemérita. No dia que foi transferido para o Ferrol, os colegas e os passadores da zona experimentaram um tremendo sentimento de alívio.

— Quando a Teté – Teresa, mulher do João-João – me disse para quem era o televisor, pensei que estava a brincar comigo – esclareceu o Nelo –, mas não. Ainda ponderei se devia levar-lha, mas... Já me olvidara desse traste, carambas!

— O cabrón! – bradou o Manolo – Nem os pés aqui pôs o malandro! O que nos fez sofrer esse gaxo! Quantas vezes me apeteceu dar-lhe uma paliza – tareia!

— E digo-vos mais: tenho a certeza de que o televisor não era para um amigo, mas para ele. O tipo rebaixou-se o menos que pôde. Mas também lhe mamei duzentas pesetas por ser ele. Quando lhas pedi, retrucou-me que a Teté lhe dissera que já.... Não o deixei ir mais além e intimidei-o, dizendo-lhe que, se quisesse levar a televisão, tinha de me cagar duzentas pesetas. Tirou imediatamente duas notas do bolso. Foi para lhe fazer pagar uma ínfima parte das que nos fez passar enquanto aqui esteve.

— Como é que um sacana destes muda ao cabo de tantos anos? – admirou-se o Zeca.

—  Zeca, custou-lhe, mas aprendeu. Foi o que viu aqui e no porto do Ferrol que o revirou. Ainda não notaste que, com o tempo, até os mais renitentes persuado? Sou um género de missionário do contrabando, pá – respondeu-lhe o Nelo.

Esgargalharam-se, radiantes.

Naquela noite, quando o Manolo trancou as portas da loja e do café, já decorriam uns minutos das vinte e duas e trinta.

Orientou-se para a ponte e fincou-se uns minutos no guarda-corpo. A barragem, sublimemente ilumidada, sobressaía da obscuridade envolvente. Alçou os olhos e dissecou os contornos imprecisos da igreja de San Miguel de Desteriz, sobranceira à represa. Rogava a ajuda do santo. Este ritual imarcescível predispunha-o para o trabalho perigoso e opressivo que o esperava.

Deu meia volta e, cautelosamente, desceu as escadas que conduziam à ala direita do andar inferior, onde se encontravam os quartos de dormir, mas não parou; contornou a casa e introduziu-se na garagem por uma pequena porta lateral.

Estava, realmente, uma noite propiciatória para contrabandear. O luar, frouxo, idealizava as circunstâncias para os rapazes evoluirem furtivamente, e era suficiente para se guiarem; o estrépido do caudal do regato e do rio, mais protuberante à noite, cobriria o bulício abafado da marcha, do estalido dos galhos pisados, das colisões fortuitas e das imprecações.

As dez toneladas de bananas não tardariam em falar português.

No exíguo eucaliptal diante do caminho de acesso à garagem, o Zeca e os carregadores, electrizados, mas animosos, expectavam. O Nelo já tinha posicionado sobre o regato a escada e, por cima desta, a tábua larga do mesmo cumprimento, unindo a sua leira à do Virgílio. Os carregadores podiam passar facilmente, com toda confiança e seguridade.

A Maribel não abandonara o café, mergulhado na opacidade; abancara diante da vidraça, ao lado da primeira das duas janelas do lado direito do bar. Para amenizar a nervosidade, a sobreexcitação, esparralhara um montão de saquinhas de pipocas por cima da mesa. Com o usitado cabo de enxada entre as pernas, estava pronta para seroar.

Dali, entre as trevas circundantes, vislumbrava a luz dos faróis dos veículos que desciam para a Frieira. Desde que um transpunha o café do Julian, uns metros antes da curva onde se situava a loja do Abel, os raios luminosos brilhavam com intensidade. Esbordoando com pujança duas vezes no solo de lajes com o cabo de madeira, alertava os que por baixo se apressavam. Neste caso, o Zeca partia instantaneamente para o eucaliptal avisar e imobilizar os carregadores que viessem à carga; o Manolo apagava a luz e entrincheirava-se com quem lá se encontrasse. Só depois de novo sinal, três pancadas leves, o Manolo desaferrolhava a porta, imitava um miado e o trabalho retomava o seu curso expedito.

Para a Maribel diferenciar um automóvel, tinha que este chegar à altura do comércio, o que quebrava significativamente a cadência durante as transferências. Visto o tempo ser uma componente fulcral do petate, o Manolo matutou seriamente no problema. Para ele, só se podia ganhar uns minutos na recta que principiava diante da loja do Abel – depois da Maribel ver a luz pela primeira vez – e finalizava cerca de quatrocentos metros mais abaixo, junto da casa do Pepe. Para desenvencilhar o inconveniente, chegou à conclusão de que era preferível fazer uns testes.

 

Continua.

 

 

MELGAÇO, EMIGRAÇÃO CLANDESTINA I

melgaçodomonteàribeira, 03.04.21

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d.raquelinda  foto jornal público

 

PASSADORAS DE HOMENS E OUTRAS AVENTUREIRAS

 

Ana Cristina Pereira (texto)

Adriano Miranda (fotografia)

 

Jornal Público Online

13 de Abril de 2014

 

Entre 1960 e 1974, um milhão e meio de portugueses, um sexto da população residente, saiu de Portugal.

 

Já lá vão mais de 50 anos e a irmã mais velha de José Gonçalves ainda fica levada do diabo quando lhe falam nisso. “Foi embora sem dizer nada aos pais! A minha mãezinha berrava muito! Ai, o que me havia de fazer o desgraçado!” Estaria preso? Estaria morto? Só pedia “que a bênção de Deus o cobrisse”.

Em Castro Laboreiro, na serra da Peneda, qualquer família que se prezasse tinha casa de Verão e casa de Inverno. Os pais já tinham ido para a casa nas brandas, nome dado aos lugares que pontuam o planalto. José ficara com uma irmã e uma sobrinha nas inverneiras, os lugares que polvilham o vale, de clima menos inclemente. A menina carecia de leite e lá estavam as cabras e as ovelhas.

A casa resiste. Paredes de cantaria a fazer dois pisos. Por cima, gente; por baixo, gado e alfaias agrícolas. Andava por ali quando deu de caras com dona Prazeres. Capucha de burel enfiada na cabeça, tamancos toscos seguros aos pés por correias, vinha perguntar-lhe se sempre queria ir para França, como lhe confidenciara.

Homens robustos, tantos deles de mãos ásperas, passavam há muito por Melgaço. Mais a partir de 1961, com a eclosão da guerra em Angola que se haveria de estender a todas as colónias. Obter um passaporte de emigrante era difícil. A maior parte avançava com passaporte de turista, passaporte falso ou “passaporte de coelho”, isto é, sem documentos, “a salto”.

José tinha 16 anos “mal feitos”. Não queria ir para a guerra. Não era homem de guerras. Nem queria fazer vida de enxada na mão. Tinha braços rijos e alma escorreita. Sabia bem o que faziam os iguais a ele. Ali, em Castro Laboreiro, cobriam-se de preto as mulheres de todos os que abalavam.

Deteve-se na ponte da Varziela, estrutura medieval, de granito, com um arco em forma de cavalete, a pensar se haveria de falar com os pais, como combinara com dona Prazeres. O velho ia dar-lhe um não. Por vontade dele, esperaria pela carta de chamada de um primo, mas José não queria ir para o pé desse, conhecido por “morto de fome”, queria o outro, o que havia pouco ali estivera de férias.

Decidiu partir sem uma palavra. Passou pela mercearia da vila. Pediu um par de calças, uns quantos lenços, uns cigarritos para pôr na conta do velho. À hora combinada, estava junto de dona Prazeres. “Vais sempre a andar 200 metros à minha frente por causa da Guarda Fiscal”, ordenou-lhe ela. Nem só ela se arriscava. Dois meses depois do ataque da União das Populações de Angola, que desencadeou a guerra colonial, emigrar sem permissão tornara-se crime punível com dois anos de prisão. Na casa isolada na montanha a que ela o conduzia, cinco homens aguardavam passador espanhol.

 

MIGALHAS DE PÃO COM CHOCOLATE

 

Que estirada comprida aquela! Um mês lhe tomou. Fevereiro de 1962, um frio danado. Caminhavam tanto que até se aqueciam. Dá-lhe que dá-lhe. Só souberam o que era carro para lá de Ourense. Nem sabe dizer o nome dos lugares pelos quais passaram. Atravessaram baldios, campos de cultivo, vinhas com arames aguçados. Ficou com as calças num trapo. E habituado estava ele a andar com o gado na serra. Saltava como um cabrito. Podiam ficar dias, escondidos, à espera do momento certo para voltar a andar. Furavam a noite. Luziam-lhes os olhos. Dormiam em palheiros ou em currais. Deitavam-se uns colados aos outros. Mal se esticavam irrompiam em roncos.

O grupo ia engrossando. Antes de chegar aos Pirenéus, José alcançou o alfaiate que saíra da sua terra 15 dias antes. “Ia estafadinho. Era um fracote.” Inquietou-se com aquele pobre de Cristo. “Eu ouvira dizer que muitos passadores atiravam aos corgos, ao rio, a um buraco qualquer quem não chegava a reagir de andar. Ia sempre atrás dele. Vinha o passador, chicoteava-me para passar para a frente. Nunca o deixei. Levava umas chicotadas, ia para a frente, mas voltava para trás.”

Entrando em França, arrumaram-se 73 ou 75 homens num camião. No semi-reboque, bidões faziam de retrete. Naquele aperto fétido, fungavam alguns machos, tantos já maridos, por vezes pais. “Coragem”, eis a palavra que ainda agora lhe ocorre. Era para tirar o ventre de misérias que caminhavam em direcção ao desconhecido, sem saber francês, de mãos a abanar, com uma morada no bolso.

Para prevenir mal trato e abandono, muitos tinham deixado parte do dinheiro da viagem em casa de pessoas de confiança. Ela entregaria as notas ao engajador depois de receber uma carta ou parte de uma fotografia rasgada. José nem isso. O pai, que dona Prazeres tão bem conhecia, que lhe pagasse.

Mandou notícias mal se juntou ao primo. Contou aos pais que levara muito tempo no caminho, comendo apenas “migalhas de pão com chocolate”. Passara fome. “Vira-me aflito para fazer do corpo.” Perante tal relato, em vez de 8500 escudos ajustados com dona Prazeres, o pai entregou-lhe 8 mil. “Não faças isso, esse é o ganhinho dela”, pediu-lhe a mãe. Tinha razão, era a sua parte. O dinheiro teria de se dividir por todos os que guiaram o moço até Versalhes. Sem o marido saber, a mãe pagou os 500 escudos à angariadora, mulher sem homem, com filhos.

 

www.publico.pt

13 de Abril de 2014