FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 30
Na soleira da porta apareceu a silhueta do Virgílio. Ficou uns segundos a estudar a sala e os ocupantes, seus conhecidos. Achegou-se ao balcão e pediu um branco à Rosa. A rapariga, nas últimas semanas, andava ligeiramente desnorteada: apaixonara-se por um dos carregadores, um belo e robusto rapaz dos que jogavam à sueca.
O Virgílio, pouco mais de sessenta anos, embora pequeno, era um homem com estigmas de ter sido musculoso; construíra-se amanhando inesgotavelmente as courelas que possuía diante da casa e vogando para superar a corrente do rio. O tom acinzentado do rosto era o fruto do amor extremo que nutria pela tigela de blanco. Homem caloroso, amável e divertido, comprazia-se na companhia de toda a gente. Quando se tratava de galhofa, acrescentava com irremissibilidade uma camada hilária, atentando cuidadosamente aos confins e às pessoas.
Empurrado pelas lastimosas singularidades dos tempos a renunciar à sua região de nascença, um lugar do concelho de Monção, expusera-se, como muitos antes dele, e permutara de país. Os portugueses – como todos os povos em geral –, evidenciavam um afecto divino à terra mãe; sensatamente, quando tinham de abdicar dela sem paradeiro certo, muitos permaneciam o mais cerca da pátria, desde que desencantassem um contexto que conviesse e recoltassem uns tostões.
«Eu – lembrava o Virgílio –, depois de saltar o regato, entrei na primeira casa que vi. Calhou ser uma loja, e então perguntei se lhes fazia falta alguém para trabalhar. Redarguiram-me que talvez; ali empaquei. Mais tarde, casei-me com a filha do proprietário da loja.» Assim resumia o princípio da sua vida, brincando. Todo ele era um mar de morosidade. Aquela parcela fremente da vida inserira-se alegremente no seu âmago.
Naquele tempo, não tendo sido eregida a ponte que agora cangava os dois limbos das aldeias, os destemidos, quando necessitavam de ir apanhar o comboio ou visitar parentes, gozavam dos préstimos de bateleiros; os hidrófobos utilizavam a ponte férrea que se situava a cerca de quinze quilómetros dali, entre Cortegada e Filgueira. As povoações da Frieira e de Filgueira eram os pontos de partida e de chegada dos emigrantes galegos da zona, assim como dos portugueses do concelho de Melgaço.
Havia, também, que ter em conta os laços atávicos que ligavam aquele segmento da Galiza e todo o extremo norte de Portugal. Uma multidão inverificável de pessoas das duas nacionalidades – com predominância de portugueses na Galiza – , reunidas pelo matrimónio, estavam disseminadas pelas duas regiões, o que comportava, durante o ano, algumas viagens nos dois sentidos.
Na Frieira, a batela era muito requisitada. O barqueiro e a respectiva batela estavam no embarcadouro duma ou outra orla, atentos à aparição de usuários. Mediante o pago de umas módicas pesetas, as pessoas eram transladadas de margem em poucos minutos. A embarcação também dava para despachar toda classe de produtos e de mercadorias.
O sogro do Virgílio era dos poucos que tinham uma concessão para explorar a batela determinados dias por mês. Com efeito, este cobiçado recurso era repartido por mais do que um. Foi dos que vogaram escabrosamente durante anos, arrostando muitas vezes os limites do bom senso para favorecer a vida a milhares de almas. Foi, pois, com coerência que, uns dez anos depois de ter casado com a sua filha primogénita, o Virgílio, encantado, substituiu o idoso sogro já extenuado como marinheiro de água doce.
Apesar do trabalho das jeiras, cansativo, e do da batela, temerário, era feliz. O batel assegurava-lhe um apreciável dinheirinho que se adicionava ao encaixado na modesta tienda, assunto da sua esposa.
Foi, indubitavelmente, o único habitante da aldeia para quem a notícia da construção da ponte foi uma tragédia. A inauguração assinou a morte da mercearia, da batela e das receitas imanentes. O caminho do Porto de Bergote – que ainda não fora cimentado – foi rapidamente esquecido; caminho que, desde sempre, fora o passadouro imperioso para quem tivesse de atrevessar o rio; caminho que fora uma fonte de clientela para a sua modesta loja, sita a dois passos do embarcadouro. Tornou-se, exclusivamente, um caminho frequentado por alguns pescadores e, à noite, pelos contrabandistas. Junto da moderna ponte, a loja do Santiago açambarcara a globalidade da freguesia.
Presentemente, o Virgílio permitia aos carregadores do Manolo a travessia das suas leiras que confinavam com o regato. Corredor recatado, encurtava-lhes sensivelmente o percurso, poupando-lhes um tempo relevante. Como não podia deixar de ser, este obséquio era-lhe generosamente ressarcido pelos cessionários.
— Ó minha Rozinha, parece-me que andas um pouco distraída – queixou-se.
— Ai que tonta! Esqueci-me de ti, Virgílio.
O ambiente era de festa. Estalaram os clamores dos jogadores de sueca. O Virgílio abeirou-se da mesa.
— Que mal jogas, pá! – lamentou-se um deles.
— Esse não conhece as cartas – subscreveu o Virgílio só para avivar.
O rapaz em causa não gostou nada do comentário e, com ar sobranceiro, contestou:
— Você que sabe, Virgílio? No seu tempo ainda não se jogava à sueca!
Se havia um comportamento pelo qual o Virgílio tinha uma feroz aversão e o revoltava, era este: a rejeição, o desprezo que os jovens têm pela geração anterior, concebendo-a sempre como obsoleta e papalva, comparada à deles.
«Este paduano – parvo em jargão castrejo – não sabe que a vida de todo ente é compartimentada.», pensou com consternação. «Cada qual muda várias vezes de carruagem; passando da infância para a adolescência, a juventude, a idade adulta e a velhice, o comboio acarreta-nos para o mesmo fim. Não entende que a nova geração é, em grande parte, esculturada, doutrinada e inspirada, ainda que de modo inconsciente, pela precedente, como os artistas são influenciados pelos precursores. Julgam que a juventude é imorredoura!», insurgia-se às vezes. «Não imaginam que, por muito distintas que as gerações sejam, muitos jovens ouvirão, mais tarde, da boca dos filhos, as mesmas objecções que hoje fazem aos idosos. É na velhice que todas as gerações se encontram. A única disparidade entre um velho e um novo é que o velho já foi novo, enquanto que o novo não sabe se algum dia será velho.»
Continua.
JÁ LÁ VAI UM ANO