Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 30

melgaçodomonteàribeira, 27.03.21

Na soleira da porta apareceu a silhueta do Virgílio. Ficou uns segundos a estudar a sala e os ocupantes, seus conhecidos.  Achegou-se ao balcão e pediu um branco à Rosa. A rapariga, nas últimas semanas, andava ligeiramente desnorteada: apaixonara-se por um dos carregadores, um belo e robusto rapaz dos que jogavam à sueca.

O Virgílio, pouco mais de sessenta anos, embora pequeno, era um homem com estigmas de ter sido musculoso; construíra-se amanhando inesgotavelmente as courelas que possuía diante da casa e vogando para superar a corrente do rio. O tom acinzentado do rosto era o fruto do amor extremo que nutria pela tigela de blanco. Homem caloroso, amável e divertido, comprazia-se na companhia de toda a gente. Quando se tratava de galhofa, acrescentava com irremissibilidade uma camada hilária, atentando cuidadosamente aos confins e às pessoas.

Empurrado pelas lastimosas singularidades dos tempos a renunciar à sua região de nascença, um lugar do concelho de Monção, expusera-se, como muitos antes dele, e permutara de país. Os portugueses – como todos os povos em geral –, evidenciavam um afecto divino à terra mãe; sensatamente, quando tinham de abdicar dela sem paradeiro certo, muitos permaneciam o mais cerca da pátria, desde que desencantassem um contexto que conviesse e recoltassem uns tostões.

«Eu – lembrava o Virgílio –, depois de saltar o regato, entrei na primeira casa que vi. Calhou ser uma loja, e então perguntei se lhes fazia falta alguém para trabalhar. Redarguiram-me que talvez; ali empaquei. Mais tarde, casei-me com a filha do proprietário da loja.» Assim resumia o princípio da sua vida, brincando. Todo ele era um mar de morosidade. Aquela parcela fremente da vida inserira-se alegremente no seu âmago.

Naquele tempo, não tendo sido eregida a ponte que agora cangava os dois limbos das aldeias, os destemidos, quando necessitavam de ir apanhar o comboio ou visitar parentes, gozavam dos préstimos de bateleiros; os hidrófobos utilizavam a ponte férrea que se situava a cerca de quinze quilómetros dali, entre Cortegada e Filgueira. As povoações da Frieira e de Filgueira eram os pontos de partida e de chegada dos emigrantes galegos da zona, assim como dos portugueses do concelho de Melgaço.

Havia, também, que ter em conta os laços atávicos que ligavam aquele segmento da Galiza e todo o extremo norte de Portugal. Uma multidão inverificável de pessoas das duas nacionalidades – com predominância de portugueses na Galiza – , reunidas pelo matrimónio, estavam disseminadas pelas duas regiões, o que comportava, durante o ano, algumas viagens nos dois sentidos.

Na Frieira, a batela era muito requisitada. O barqueiro e a respectiva batela estavam no embarcadouro duma ou outra orla, atentos à aparição de usuários. Mediante o pago de umas módicas pesetas, as pessoas eram transladadas de margem em poucos minutos. A embarcação também dava para despachar toda classe de produtos e de mercadorias.

O sogro do Virgílio era dos poucos que tinham uma concessão para explorar a batela determinados dias por mês. Com efeito, este cobiçado recurso era repartido por mais do que um. Foi dos que vogaram escabrosamente durante anos, arrostando muitas vezes os limites do bom senso para favorecer a vida a milhares de almas. Foi, pois, com coerência que, uns dez anos depois de ter casado com a sua filha primogénita, o Virgílio, encantado, substituiu o idoso sogro já extenuado como marinheiro de água doce.

Apesar do trabalho das jeiras, cansativo, e do da batela, temerário, era feliz. O batel assegurava-lhe um apreciável dinheirinho que se adicionava ao encaixado na modesta tienda, assunto da sua esposa.

Foi, indubitavelmente, o único habitante da aldeia para quem a notícia da construção da ponte foi uma tragédia. A inauguração assinou a morte da mercearia, da batela e das receitas imanentes. O caminho do Porto de Bergote – que ainda não fora cimentado – foi rapidamente esquecido; caminho que, desde sempre, fora o passadouro imperioso para quem tivesse de atrevessar o rio; caminho que fora uma fonte de clientela para a sua modesta loja, sita a dois passos do embarcadouro. Tornou-se, exclusivamente, um caminho frequentado por alguns pescadores e, à noite, pelos contrabandistas. Junto da moderna ponte, a loja do Santiago açambarcara a globalidade da freguesia.

Presentemente, o Virgílio permitia aos carregadores do Manolo a travessia das suas leiras que confinavam com o regato. Corredor recatado, encurtava-lhes sensivelmente o percurso, poupando-lhes um tempo relevante. Como não podia deixar de ser, este obséquio era-lhe generosamente ressarcido pelos cessionários.

— Ó minha Rozinha, parece-me que andas um pouco distraída – queixou-se.

— Ai que tonta! Esqueci-me de ti, Virgílio.

O ambiente era de festa. Estalaram os clamores dos jogadores de sueca. O Virgílio abeirou-se da mesa.

— Que mal jogas, pá! – lamentou-se um deles.

— Esse não conhece as cartas – subscreveu o Virgílio só para avivar.

O rapaz em causa não gostou nada do comentário e, com ar sobranceiro, contestou:

— Você que sabe, Virgílio? No seu tempo ainda não se jogava à sueca! 

Se havia um comportamento pelo qual o Virgílio tinha uma feroz aversão e o revoltava, era este: a rejeição, o desprezo que os jovens têm pela geração anterior, concebendo-a sempre como obsoleta e papalva, comparada à deles.

«Este paduano – parvo em jargão castrejo – não sabe que a vida de todo ente é compartimentada.», pensou com consternação. «Cada qual muda várias vezes de carruagem; passando da infância para a adolescência, a juventude, a idade adulta e a velhice, o comboio acarreta-nos para o mesmo fim. Não entende que a nova geração é, em grande parte, esculturada, doutrinada e inspirada, ainda que de modo inconsciente, pela precedente, como os artistas são influenciados pelos precursores. Julgam que a juventude é imorredoura!», insurgia-se às vezes. «Não imaginam que, por muito distintas que as gerações sejam, muitos jovens ouvirão, mais tarde, da boca dos filhos, as mesmas objecções que hoje fazem aos idosos. É na velhice que todas as gerações se encontram. A única disparidade entre um velho e um novo é que o velho já foi novo, enquanto que o novo não sabe se algum dia será velho.»

 

Continua.

 

 

JÁ LÁ VAI UM ANO

 

 

UM CAPITÃO NEM TESO NEM VALENTE

melgaçodomonteàribeira, 20.03.21

13 a2 -Penso..JPG

penso

MARIA CAETANA ALVES DE MAGALHÃES

Filha de D. Maria Lina Alves de Magalhães e de Domingos Alves, Nº 14 do Costado Magalhães da Casa do Crasto casou na igreja da freguesia natal, Penso, em 25 de Janeiro de 1808 com Domingos Joaquim Esteves Cordeiro, filho legítimo de Domingos Esteves Cordeiro e Francisca Domingas Esteves Cordeiro, da Casa do Paranhão, e neto paterno de António Domingues e Cecília Cordeiro, da referida Casa do Paranhão e todos da freguesia de Penso.

Domingos Joaquim Esteves Cordeiro seguiu a carreira das armas e uns documentos o mostram tenente e outros o apresentam como capitão das milícias.

Assim foi e ao último posto ascendeu entre Abril de 1819 e Fevereiro de 1920. Atravessou, pois, o período das Invasões Francesas, mas desse tempo não nos restam memórias da sua vida ou pelo menos ninguém as viu.

Na época das lutas liberais, porém, como militar não foi teso nem valente, pois não soube resistir à impressão dolorosa causada pela morte do sobrinho Agostinho José de Magalhães, assassinado pela tropa do 18 no monte do Crasto, triste episódio daquelas lutas ocorrido em 23 de Março de 1837, segundo memória deixada pelo coadjutor da freguesia P.e Manuel José Esteves Cordeiro.

E o não saber resistir a essa impressão levou-o a fugir da tropa e a refugiar-se com frequência em uma mina de água, colhendo uma ética como prémio desse louco proceder. E ético e cego faleceu na sua casa do Paranhão no dia 29 de Abril de 1858: a esposa pouco mais aturou neste vale de lágrimas, porquanto curtida de dores e amarguras finou-se em 11 de Junho de 1861.

 

O MEU LIVRO DAS GERAÇÕES MELGACENSES

Volume II

Augusto César Esteves

Edição da Nora do Autor

Melgaço

1991

pp. 119-120

video de filipe gaspar

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 29

melgaçodomonteàribeira, 13.03.21

 

Era um sossego indefinido ter com que pagar aqueles incomplacentes, insaciáveis da Benemérita. Acalmá-los-ia mais uns tempos. O contacto do posto de Puente Barjas, exagitado havia uns dias, compareceria, sem dúvida, ao anoitecer, a fim de reivindicar a gratificação de todos os colaboradores. Nos períodos ordinários, era ele que o prevenia com antecedência se podiam trabalhar. A luz verde para aquela noite estava subordinada aos pagamentos em suspenso.

Sendo as bananas vendidas no mercado português, e, por conseguinte, saldadas em escudos, a complexidade traduzia-se na conversão em pesetas da substancial quantia necessária para solver os honorários do ramo espanhol da associação: o abastecedor da fazenda, os guardas civis e o Manolo.

Mesmo este, apesar das somas serem incomparáveis, defrontava-se, por vezes, com algumas contrariedades para cambiar os escudos que os clientes portugueses despendiam no seu minimercado.

A palpável rareza da moeda espanhola – e de outras nacionalidades – em Portugal era causada por uma balança comercial extremamente deficitária. As interrogações do pós-25 de Abril, a independência das colónias, o regresso dos portugueses nelas implantados e o rebuliço político-financeiro tiveram como repercussão, entre outras, a descida evolutiva do escudo e uma viva redução da tradicional frequentação de turistas estrangeiros, indústria que, havia muito, representava a fonte dominante de divisas.

À vista da conjunção destes factores, o Estado, a fim de asseverar as incontornáveis e férteis importações – além dos créditos dos organismos internacionais –, fazia tudo para monopolizar as moedas dos países preponderantes – repatriadas pela diáspora – que os bancos detinham, jungindo os portugueses que aspiravam sair do país, fosse qual fosse o intuito, a drásticas restrições.

Os contrabandistas recolhiam o grosso dos fundos nas lojas que fervilhavam em algumas vilas da margem portuguesa do rio Minho – entre São Gregório e Caminha – nas quais muitos turistas espanhóis se desfaziam das tão aneladas pesetas quotidianamente. Valença, nesse campo, excelia.

Estes mercadores, além do provento da venda, ainda lucravam com o câmbio. Quando os nossos vizinhos faziam compras nas suas lojas, liquidavam com pesetas; cupidamente, os lojistas menosprezavam o seu valor oficial e convertiam o importe das aquisições em sua vantagem, aumentando o valor oficial do escudo em relação à moeda espanhola; granjeavam, deste modo, mais pesetas. Quando as vendiam aos contrabandistas ou a quem tivesse de se distanciar da raia – onde o escudo não era aceite – faziam exactamente o cálculo inverso: desvalorizavam a peseta para obterem mais escudos.

Inevitavelmente, o mercado negro eclodiu. Muitos emigrantes, em vez de trocarem as economias nos bancos, vendiam-nas a alguns particulares que tinham vestido o capote de agiotas e, obviamente, lhes ofereciam melhores condições.

O Manolo findou o cômputo. A importância, como sempre, estava correcta, mas, como diz o refrão, «as boas contas fazem os bons amigos». Ergueu-se e foi à loja. Refluiu com três grandes envelopes. Tirou um papel do bolso das calças, desdobrou-o e pô-lo por cima da mesa. Nele estava orçado e apontado o quinhão relativo a cada um: a sua alíquota – que englobava o dinheiro avançado para pagar aos carregadores as duas últimas transferências –, a do Zeca, a dos guardas civis e a dos fornecedores. Recheou os três invólucros de molhos de notas, depositou-os com o dinheiro remanescente nas caixas e fechou-as à chave no baixo do armário castanho que mobilava a cozinha. O espectro e a obsessão, que havia quase duas semanas o minavam, seriam sub-rogados pelo contentamento, pela consolação e a afoiteza de que tanto carecia.

Afastou a cortina que o cortava do bar e foi encostar-se à máquina de café, diante do Nelo e do Zeca. Estes, como estipulava o protocolo, aguardavam que ele revisasse e homologasse a respeitável cifra que lhe fora confiada. Saboreavam o segundo botellin – cerveja mini –, dialogando e afinando em voz baixa, os detalhes do traslado que, enfim, se realizaria naquela noite.

A uma das mesas, quatro dos carregadores invariáveis jogavam à sueca. De pé,  outros dois curtiam o espectáculo. Todos faziam por vir cedo a fim de serem os primeiros a iniciar o trabalho e ter, dessa forma, a probabilidade de efectuar mais viagens do que os outros.

O Zeca procurava de modo incessante mobilizar o maior número de homens que podia. Para os contrabandistas, um número superior de elementos era vantajoso: pelo mesmo preço, a mercadoria mudava de terra com maior rapidez, sendo menor a ameaça de uma emboscada. Em contrapartida, para os carregadores, a ganância diminuía significativamente, visto consumarem menos viagens.

Para escambar de país cinco toneladas de bananas, a equipa usual compunha-se de cerca de doze indivíduos, não resistindo alguns a dez viagens. O Zeca percorrera os lugares dos Casais, São Gregório, Cristóval e Paços para recrutar uma enxurrada de carregadores, já que para as dez toneladas daquela noite era capital o dobro de homens.

As rodadas de cervejas sucediam-se a bom ritmo. Os portadores eram, em maioria, bebedores eméritos, de tal modo que não apreendiam como, certos dias, efectivavam a dezena ou a dúzia de viagens. O Manolo bem intentava moderá-los, mas as tentativas revelavam-se infrutíferas. Um deles, o Lapa, que bebia somente aguardente, de manhã à noite, era o mais impressionante. Pequeno, escanifrado, cambaleava, mas, quando se aproximava a hora, confirmava, sem hesitar, que a ilusão é bem uma caricatura da realidade. Com sarcasmo, dizia que era o peso do frete que o mantinha firme.

O que ganhavam em poucas horas dilapidavam-no em bebidas e sandes durante os dias que precediam a próxima noite de carradas.

Os outros, mais aforradores e comedidos, acercavam-se pouco antes da hora concertada. Dois dos que carregavam regularmente tinham completado os estudos secundários. Filhos de famílias humildes, a enxada, como aos outros, consolidara os bíceps braquiais, enrijecido o dorso, a resistência. Na impossibilidade de conseguirem um emprego na região – e dificilmente fora –, tinham de sujeitar-se àquele expediente desgastante e perigoso para usufruir de uma indepêndência minimal.

 

Continua.

 

 

GUERRA CIVIL DE ESPANHA - REFUGIADOS EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.21

81-Portelinha-116.JPG

 

BREVE ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O NÚCLEO FAMILIAR TRADICIONAL DE CASTRO LABOREIRO

 

DEPOIMENTOS SOBRE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA (1936-1939)

 

19/08/2014, Rodeiro

Houve um “casal” (não de matrimónio) que se refugiou no Rodeiro, numa casa que hoje se encontra em ruínas, ao lado de uma outra com uma “alminha” numa das paredes exteriores, no caminho que vai para o forno comunitário, em direcção às cascatas. Este senhor conta que a Guarda sabia da localização deste casal e um dia, a cavalo, dois guardas pararam em frente a esta casa e perguntaram pelo paradeiro destes refugiados. Como a resposta dos habitantes foi muda ou incerta, os dois guardas ataram as mãos de uma senhora de idade com uma corda e lentamente puxaram-na para que viesse a pé atrás dos cavalos, e os “refugiados” vendo isto expuseram-se. A verdade é que uns dos guardas enamorou-se pela rapariga refugiada e casou com ela. Ainda hoje estão casados e por vezes visitam o Rodeiro.

 

10/09/2014, Portelinha

A D. Maria José Fernandes, falecida, habitante de Portelinha, guardou um segredo no tempo da Guerra Civil Espanhola. Houve um médico galego que se refugiou em Castro Laboreiro nessa altura. O local de seu refúgio foi o moinho das Coriscadas, que pertencia à sua irmã, “que morreu com 96 anos”. Os familiares deste médico levavam-lhe comida e livros. “Durante o dia saía, e à noite pernoitava no moinho”. Mas este médico foi encontrado pelas autoridades e levado novamente para Espanha. “O montão de livros que ele deixou lá!”

 

Diana Carvalho

Mestranda em História e Património

ABELTERIVM

Volume III

Maio 2017