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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 28

melgaçodomonteàribeira, 27.02.21

Retribuídos à unidade, cada homem tentava suportar o maior número de caixas. A cada viagem, a carga era de quatro, ou seja, pouco menos de cinquenta quilos. Alguns, desalentados, sustinham um fardo de cinco caixas durante as duas excursões iniciais. Submetiam-se a um desempenho titânico que os obrigava a singrar de noite por uma caleja e caminhos medonhos, cravejados de múltiplos perigos. Vergados pelo peso, restringidos pela reduzida largura dos carreiros, saltando muretes e com os olhos no chão – apenas discernível – para esquivarem qualquer tropeço no solo irregular, percorriam mais de seiscentos metros, ida e volta; o que perfazia perto de seis quilómetros, dos quais metade com uma carga de perto de cinquenta quilos às costas!  Dois ou três, os mais atléticos, desafiavam os limites completando uma dúzia de viagens.

Havia manhãs que, na subida da encosta, se viam bananas no chão. Contra o fim, um ou outro carregador, já esgotado, deixava cair uma caixa; por muita que fosse a sua solicitude, a escuridão não lhe consentia recuperar a plenitude do carregamento. As perdas eram fracas, comparativamente aos frutuosos ganhos resultantes do tráfico.

Estas caixas estropiadas, e mais uma ou duas cargas, eram outorgadas aos guardas portugueses e galegos com regularidade para provarem a conscienciosidade da obrigação de que estavam providos. Do lado galego eram adjudicadas por uma côdea pelo gerente do economato – espécie de cooperativa – do Pueblado, em Puente Barjas, regalia do pessoal da FENOSA que velava pelo bom andamento da barragem.

O Nelo e o Zeca traspassavam o regato a diário repetidas vezes, tanto por razões profissionais como para comprar algo ou, simplesmente, para desfrutar de um breve lapso de inadvertência junto dos amigos galegos. Consumiam os dias por ambos flancos do Trancoso. Viviam no limiar de dois mundos que julgavam propriedade deles.

Às vezes, falavam, não sem um grão de escárnio, da percepção e do receio que os forasteiros tinham da fronteira.

Devido à delimitação, coexistiam, irrefutavelmente, numa área neutra que lhes era intrínseca. O Trancoso, muito mais permeável que o Minho, apesar de fixar uma demarcação territorial, não refreava o trânsito de pessoas, de veniaga nem a materialização das ideologias, das sensibilidades e da comunhão entre povos que, apesar de fendidos, conservavam – além de bens – raízes entrelaçadas de ambas partes da arraia.

Uns minutos depois das dezassete espanolas, quando o Nelo entrou na loja, o Manolo e a mulher atendiam dois casais de visitantes portugueses. Uma parte do balcão estava repleta de caixas de doces, de latas de conservas, de especiarias e de pastas de chocolate.

O ar descontraído e lépido que o seu rosto espelhava, aprazeu logo ao dono da loja e especialmente à mulher, vítima colateral das suas noites de insónia e de pesadelos.

Na mão direita, trazia um saco plástico esverdeado. Discretamente, trocaram um olhar entendedor.

Os clientes presentes reconsideravam no que ainda tencionavam escolher, passeando vagarosamente o olhar cintilante pelas estantes metálicas. O Nelo julgou o momento tempestivo para abordar o patrão da loja.

— Manolo, posso-te deixar este saquito que é para a Marisa da estação? Disse-me que, se tivesse tempo, ainda o vinha buscar hoje, senão, amanhã de manhã. Não te importas de me fazer o favor ? – indagou inocentemente.

— De modo nenhum, homem. Não é favor nenhum – saiu de trás do balcão e pegou-lhe no saco.

Era o cenário consignado para quando estavam perante desconhecidos. Deixou a esposa ocupar-se dos turistas e encaminhou-se para a cozinha, contígua, com o precioso saco.

A loja nunca fora o seu hobby. Aturar gente que não tinha qualquer ideia do que queria, que ignorava o que lhe fazia falta, que gastava compulsivamente para edulcorar o frenesim, era um verdadeiro suplício para ele. A mulher já lhe chamara a atenção, observando que estavam ali para vender e, quanto mais, melhor.

Apartou a cortina que separava a cozinha do bar e informou a empregada:

— Rosa, se alguém me quer ver, não estou disponível.

— Está bem, Manolo.

Para a Rosa, estas palvras eram sinal de petate.

Instalou-se diante da pequena mesa da cozinha. Do interior do saco plástico, exumou duas caixas de sapatos. Livrou-as dos sólidos elásticos que retinham as tampas e abriu-as. Os seus olhos brilharam de regosijo ao contemplar o tão ambicionado recheio: maços compactos de notas de mil pesetas, o montante das duas derradeiras, operações ou seja, dez toneladas de bananas que já enfeitavam os mostruários de muitas frutarias portuguesas! Perfeitamente colocados, os maços acaparavam a superfície global das caixas, como se tivessem sido feitas à medida das notas de mil.

Entusiasmado, ficou estático uns segundos, encarando o dinheiro, como o sequioso que, por fim, desmascara a gota de água que o vai hidratar. A reacção foi imediata, apoderando-se dele uma agradável sensação de serenidade. Sacudiu a cabeça energicamente, como quem quer alijar-se de vez das arduidades que até ali o importunaram, e suspirou vigorosamente. Era outro homem. Impregnou o indicador direito numa esponja humidificada com água, e, escrupolosamente, empreendeu a contagem.

Havia raras niquices, como esta, em que se verificavam uns atrasos passageiros de maior ou menor amplidão nos emolumentos, mas para o Manolo era sempre um calvário.

Os mais ofensivos e acérrimos, além dos mais glutões, eram, incontestavelmente, os guardas civis do posto de Puente Barjas, que inspeccionavam o Trancoso. À mais pequena demora nas gratificações, rosnavam e até espavoriam audaciosamente o Manolo. O que, em parte, lhe simplificava grandemente a tarefa era o facto de o grossista de frutas viguês, que fornia a banana, ser possessão de dois primos da sua esposa.

 

Continua.

 

 

 

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foto: rui manuel fonseca/global imagens

 

“SINTO-ME UM CONTRABANDISTA”. MÉDICO ESPANHOL ATRAVESSA

FRONTEIRA CLANDESTINA PARA IR TRABALHAR

 

Ana Peixoto Fernandes

 

NAPOLEÓN SANCHEZ, MÉDICO CIRURGIÃO, RESIDENTE EM CELANOVA, NA GALIZA, A 40 QUILÓMETROS DA FRONTEIRA COM PORTUGAL, ATRAVESSA A PÉ, DE FORMA CLANDESTINA, TODOS OS DIAS DE MANHÃ, UMA PEQUENA PASSAGEM SOBRE O RIO TRANCOSO PARA IR TRABALHAR EM MELGAÇO.

 

Com a fronteira principal de S. Gregório-Ponte Barxas encerrada devido à pandemia, a estreita travessia metálica, escondida no meio da vegetação, na aldeia de Cristóval, é uma escapatória para evitar percursos longos. Por ali passavam noutros tempos contrabandistas e gente que ia a salto para França.

Foi “apanhado” pelo JN quando regressava a Espanha, pela velha ponte “dos moinhos do Araújo”. Trazia na mão um saco de pão comprado em Melgaço, como é hábito de muitos galegos. E assumiu, descontraído, que arrisca pelos trilhos do contrabando para poupar “uma hora e meia a mais de percurso”. “Venho todos os dias às seis da manhã, desde que fecharam a fronteira. Trago um carro até aqui, atravesso e tenho outro carro do outro lado”, descreve quem se diz sentir “praticamente um contrabandista”. “Voltamos à época antiga”, lamenta.

O médico, que trabalha há 20 anos em Melgaço, considera “ilógico” ter de fazer o percurso de Celanova até à ponte Tui-Valença para atravessar pelo único ponto autorizado de passagem 24 horas. “São mais 60 a 80 quilómetros. Trabalho (de tarde) em Espanha. Tenho de saltar a fronteira”, justifica. “Nós trabalhadores transfronteiriços, não fazemos nenhuma ilegalidade. Em teoria pode haver consequências, mas o que é que vamos fazer?”

Quem também não teme passar “a salto” é o presidente da junta de Cristóval, David Barbeitos, que critica o encerramento da primeira fronteira no extremo Norte de Portugal. “Aqui as pessoas passam a pé e eu próprio as levo ao sítio onde podem passar. Há muita gente que tem de passar para trabalhar”.

“Que abram a fronteira de S. Gregório-Ponte Barxas. Deixem-nos transitar. Parece que temos aqui um muro de Berlim”, acrescentou David Barbeitos.

 

Jornal de Notícias

23/02/2021

MELGACENSES E O GENERAL NORTON DE MATOS

melgaçodomonteàribeira, 20.02.21

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Apresentação do autor

pelo Rotário

Ernesto Viriato dos Passos Ferreira da Silva

 

Meu caro Presidente

Minhas Senhoras

Senhores Visitantes e Convidados

Presados Companheiros

 

Grande satisfação a minha por mais este encontro à Mesa Rotária, em amigo convívio e ao serviço da comunidade, em homenagem a alguém que desde as últimas décadas do século passado até ao último momento da sua vida, se destacou como a mais extraordinária figura de militar, de patriota, e de administrador do Ultramar Português.

Lembrou-se o nosso ilustre Presidente de dedicar uma das habituais reuniões do Rotary Club do Porto à celebração e glorificação da memória  do General José Mendes Ribeiro NORTON DE MATOS, que desempenhou, nos últimos cincoenta anos da vida portuguesa, um papel preponderante no plano militar, diplomático e da administração pública ultramarina, com larga visão dos problemas nacionais; que serviu o seu País com extraordinária lucidez de espírito e previsão dos acontecimentos; com notável aprumo, inigualável garra e exaltado patriotismo, impondo em todas as conjunturas, a nacionais e estrangeiros, a sua alerta personalidade, serena e impassível, o seu carácter e forte querer, o seu civismo e arreigado amor pelos direitos e soberania de Portugal.

Acerca da notabilíssima administração da gigantesca figura do General NORTON DE MATOS, na mais portuguesa das nossas Províncias Ultramarinas – em ANGOLA – vai falar-vos o Dr. António Durães, um dos seus devotos admiradores e assíduo colaborador na portentosa obra realizada por aquele ilustre Colonialista, que franqueou o pórtico da História, como um dos grandes da nossa Pátria.

O Dr. António Durães, minhoto pelo nascimento e pelo coração, oriundo da Vila de Melgaço, que foi «sentinela do Alto Minho» e marcou o seu lugar nas lutas e fastos gloriosos da formação da nacionalidade, conta no seu activo mais de quarenta anos de África ao serviço da Nação.

Homem do seu tempo, trabalhador incansável, espírito esclarecido, de penetrante inteligência e vastíssima cultura, o Dr. António Durães evidenciou-se um português de raça, amante da sua Pátria e fanático colaborador da estruturação pacífica do continente negro, onde flutua gloriosamente a Bandeira de Portugal.

Tal é, queridos Companheiros, e meus Senhores, a envergadura do conferente que, na reunião de hoje, vai honrar a tribuna rotária.

Peço-lhe relevância para a modéstia desta apresentação que traduz, a par da minha admiração e amizade, o preito da mais sincera homenagem a sua Exma. Esposa, D. Maria Esménia Durães, sua fiel e carinhosa companheira nas plagas angolanas, a quem peço licença para beijar respeitosamente as mãos.

E para eles queridos Companheiros, peço a nossa usual saudação: uma vibrante salva de palmas.

 

Em 8 de Maio de 1967

 

ANGOLA E O GENERAL NORTON DE MATOS

(Subsídios para a História e para uma Biografia)

António Augusto Durães

Advogado

Edição do Autor

Maio de 1976

pp. 7-8

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 27

melgaçodomonteàribeira, 13.02.21

                                                                                                                           

Muitos naturais da raia, e que nela estanciavam, eram naturalmente atraídos por este tipo de vida, como os habitantes da costa eram geralmente arrastados pela vida do mar. Tivera e tinha o tráfico tão vivaz, tangível que finara por se arraigar nele e no seu dia-a-dia, da cabeça aos pés; foi-o incorporando até ficar submisso. Do nascer ao pôr-do-sol, tudo nele era contrabando. Transformara-se numa compulsão que o fazia subsistir mental, fisica e socialmente.

Na época em que o café Sical ainda primava na integralidade da raia lusa, o Nelo enfrentou sérias dificuldades financeiras depois de lhe assaltarem a garagem apinhada de café. O João-João, a quem o petate pertencia, exigiu-lhe o seu valor. Agravado, fez uma estadia em França a fim de reembolsar a dívida. Foram uns tempos atormentadores, pois estava afeito à atracção exercida pela peripécia e à predilecção descomedida pela euforia que o risco lhe desencadeava.

Cevide ficara sem alma. Sem ele não era nada. O Nelo simbolizava Cevide, era Cevide, era o fragmento imprescindível ao lugar.

Logo que amealhou o mandatório, regressou à terra. Foi com indescritível satisfacção que os habitantes das duas margens o viram de novo cavaloar jovialmente pelos campos que flanqueavam o rio Trancoso com matute  às costas, um olho aruspicino em cada um dos lados do regato.

Proporcionalmente, dizia que o contrabando já não era mais que um lazer, que uma brincadeira. As transacções organizadas e por atacado, como presentemente as da banana – embora fosse uma ocupação que não depreciava –, não era o petate que mais o satisfazia. O que mais afeiçoava, o que lhe enchia a espinha de dopamina e lhe proporcionava um gozo paroxísmico era o pessoal, aquele que lhe possibilitava brincar ao gato e ao rato com os guardas fiscais e os guardas civis. Prezava infringir e ludibriar as autoridades. Comummente, nesta categoria de contrabando, trazia a veniaga para a sua casa. Uma factura sumária, caso fosse fiscalizado pelo trajecto, comprovava a sua conformidade. Depois, era só espreitar o momento mais oportuno para ir ao outro lado.

Quando os guardas fiscais se achavam no largo de Cevide e o viam com mais um artigo qualquer às costas, diziam-lhe gracejando:

— A tua casa, Nelo, deve ser um museu!

E todos gargalhadeavam.                         

O cinzento da farda dos guardas portugueses e o verde escuro da dos espanhóis – as cores preeminentes do seu diário – faziam-no flipar: detestava os que as portavam, mas não duvidava que, sem eles, não haveria emoção nem felicidade. No dia mais do que verosímil em que este contrabando desvanecesse, o Nelo encarquilharia, murcharia e acabaria por exalar. Não teve tempo de ver o abandono que, pacatamente, se hospedava.

Viúvo, partilhava a vida com um filho deficiente motor, consequência de um acidente de moto quando tinha apenas vinte anos. O rapaz mitigava constantemente nele a angústia e a acrimónia que a sua condição lhe instilava, ocasionando-lhe imensas e reiteradas amarguras.

O contrabando, com as suas translações coercivas, compromissos e eventos, era concomitantemente aproveitado por ele como a exclusiva e cordial diversão que lhe afuguentava as pulsões e as mais  nefastas elucubrações. E, evidentemente, o café do Manolo era o local pertinente para se espairecer e, por vezes, entre amigos, desvencilhar o riso coibido, coisa que, com os anos, se desabituara de fazer.

Havia muito que o axiomático ofício social desempenhado pelos pequenos cafés – considerados populares – era manifesto e perpetuado. O do Manolo era uma ilustração palpável: tanto funcionava como fórum, confessionário, ringue, banco e, quando emergia uma alma caritativa com vocação e eupatia para escutar, servia de consultório de psicanálise ou psicoterapia.

As caixas de bananas eram encaminhadas da casa do Manolo para a garagem que abrangia a totalidade do rés-do-chão da casa do Nelo, em Cevide. Em geral, eram transportadas prudentemente o mais rápido possível naquela noite ou na seguinte para as variadas e remotas afectações a sul do país. Se por acaso surgisse um óbice, e o petate tivesse de continuar armazenado até que se apresentasse uma ocasião congruente, o resultado incorrido podia ser catastrófico.

O Nelo era o mandatário do promotor e coordenador das redes que actuavam no Trancoso, o Mário da Corga, de cujas encomendas estava pendente o resto da organização da Frieira. Conferia as caixas que levavam para a sua adega, registava quem as trasladava e encarregava-se da remuneração dos guardas fiscais, o reconhecimento pelos bons serviços prestados. O comandante dos agentes de fiscalização do concelho de Melgaço, um tenente da região, apodado Tampa de Mala, e tido como o maior papador com o qual os contrabandistas alguma vez negociaram, discutia pessoalmente o seu estipêndio com o capo. O que não o impediu de um dia vir com a esposa fornecer-se à loja do Manolo e arriscar um acréscimo, emitindo quando pagava: «Isto até devia ser uma dádiva, pois somos praticamente da mesma família, não é verdade ?» O Manolo, que já o vira em Cevide fazer o figurante, respondeu-lhe cruamente: «Que eu saiba, caballero, não tenho família em Portugal». Não reviu.

O Nelo tinha como cúmplice o Zeca, dos Casais. Mais ou menos da mesma idade, um pouco mais pequeno que ele, bigode à tasqueiro, tinha uma forte fama de mulherengo.

Como todos os jovens fronteiriços, a terra e o petate eram os seus singulares afazeres. Ambicioso, vendo que aquilo não era futuro para ele, logo que pôde deu o salto para França. Ao cabo de uma vintena de anos, serviu-se de um insignificante acidente do trabalho para voltar definitivamente à terra. As confortáveis economias que se constituíra e a ridícula pensão faziam dele um homem livre.  

Hoje em dia, o contrabando, além dos benefícios mais do que profícuos que lhe garantiam uma existência correctíssima, propiciava-lhe uma vida alegre, aventureira e enlevada, apesar da periculosidade; o antípode do que aguentara do outro lado dos Pirenéus. A despeito de experiente, não totalizava, todavia, o quarto das horas de serviço contabilizadas pelo Nelo.

Contava as caixas de bananas que saíam da garagem do Manolo – a quantidade arrolada ali tinha de coincidir com a das recepcionadas pelo Nelo –, incumbia-se de angariar os carregadores e do embolso correspondente, uma vez ultimada a transição.

 

Continua.

 

 

MELGAÇO, O POVO EM ARMAS

melgaçodomonteàribeira, 06.02.21

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LISBOA, 5 DE MARÇO

 

Temos folhas do Porto até o 1º do corrente, e cartas até á uma da tarde do dia 3.

Nunca a causa nacional apresentou um aspecto tão lisongeiro; nunca as esperanças de um proximo triunfo foram tão bem fundadas.

O enthusiasmo na cidade invicta não póde exceder-se. Reina a maior harmonia e intelligencia entre os membros da junta, e os cidadãos rivalisam no amor da patria. Eis-aqui o que extrahimos das folhas:

(…)

No dia 25 a maior parte das forças tanto de linha como dos corpos nacionaes, que estão n’aquella cidade, deram um passeio militar até o sitio do Monte Grande, quasi uma legua de distancia do Porto pela estrada de Lisboa. Formavam quatro brilhantes brigadas com a competente artilharia e cavallaria. Toda a força formou no Monte Grande, e ahi lhe passaram revista os dois illustres generaes Antas e Povoas, que ficaram extremamente agradados de comandarem tão boa gente, e tão prompta para tudo que seja mister a bem da causa nacional. O exercito popular tambem ía ufano de levar comsigo o honrado e habilissimo general visconde de Sá, que todos respeitam como elle merece.

Á frente da guarda nacional ía o seu comandante geral Marquez de Loulé.

Depois de passada revista tudo retrocedeu para os seus quarteis. Os generaes estiveram no Alto da Bandeira a vêr desfilar aquella divisão, que para se avaliar tanta gente tinha, basta notar se que gastou hora e meia em desfilar continuamente. E mais ficou na cidade a guarnição, que não é pequena, e contingentes de todos os corpos; e estão fóra em operações as columnas do barão do Almargem, e generaes Cesar, Bernardino e Guedes.

Não sabemos (diz o Nacional) se esta marcha foi preludio d’algumas operações militares que hajam de emprehender-se, nem pertendemos saber: confiamos plenamente nos generaes, que capitaneam as nossas grandes forças, e estamos seguros de que a victoria ha de ser por nós.

Á revista assistiram 25 batalhões, e ficaram ainda na cidade e suas avenidas dez corpos de diversas armas.

O coronel visconde d’Azenha partiu no dia 26 para o Minho, não só para inspeccionar os batalhões nacionaes, mas tambem para organisar novas forças, indo munido de plenos poderes conferidos pelo marechal do exercito conde das Antas.

No dia 10 sahiram de Valença 130 infantes cabralistas na direcção de Melgaço para baterem uma guerrilha. Não encontraram ninguem armado. Commetteram atrocidades, e matando uma mulher, fizeram com que o povo se armasse fazendo-os retirar para a villa de Monção no dia 13, aonde se conservaram n’esse mesmo dia, e em 14 e 15, a ponto de já não terem polvora, e os officiaes passaram a Salvaterra de Galliza pedindo polvora, que lhes foi fornecida pelas auctoridades hespanholas na quantia de dous mil cartuxos. O proprio governador de Salvaterra offereceu mandar soldados hespanhoes disfarçados. Veio infanteria 13 e 25 cavallos de Valença, mas a força popular que atacou Monção era tão consideravel que o regimento 13 e 25 cavallos não se atreveram a aproximar-se dos populares, e ficaram em Lapella.

A força cabralista sitiada em Monção passou no Minho para Salvaterra da Galliza, e atravessou meia legua armada pelo territorio hespanhol, sem opposição, ou com o consentimento das auctoridades d’aquelle paiz.

 

N.E. – (de 8 de Outubro até Junho de 1847) A Patuleia. Segunda fase das sublevações, iniciadas com o movimento Maria da Fonte, comandadas por setembristas, miguelistas e dissidentes cartistas, contra o ministério ilegítimo de inspiração cabralista, presidido pelo Duque de Saldanha e que beneficiou do apoio da rainha. Formam-se Juntas revolucionárias em diversos pontos do país que se revelam contra o governo da capital. Este, incapaz de dominar as forças revoltosas, solicita, ao abrigo da Quádrupla Aliança, a intervenção da Espanha, da Inglaterra e da França. A intervenção estrangeira vem decidir a contenda a favor da rainha e do poder cartista instituído.

História de Portugal em Datas

C.Leitores 1994

p. 218