FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 28
Retribuídos à unidade, cada homem tentava suportar o maior número de caixas. A cada viagem, a carga era de quatro, ou seja, pouco menos de cinquenta quilos. Alguns, desalentados, sustinham um fardo de cinco caixas durante as duas excursões iniciais. Submetiam-se a um desempenho titânico que os obrigava a singrar de noite por uma caleja e caminhos medonhos, cravejados de múltiplos perigos. Vergados pelo peso, restringidos pela reduzida largura dos carreiros, saltando muretes e com os olhos no chão – apenas discernível – para esquivarem qualquer tropeço no solo irregular, percorriam mais de seiscentos metros, ida e volta; o que perfazia perto de seis quilómetros, dos quais metade com uma carga de perto de cinquenta quilos às costas! Dois ou três, os mais atléticos, desafiavam os limites completando uma dúzia de viagens.
Havia manhãs que, na subida da encosta, se viam bananas no chão. Contra o fim, um ou outro carregador, já esgotado, deixava cair uma caixa; por muita que fosse a sua solicitude, a escuridão não lhe consentia recuperar a plenitude do carregamento. As perdas eram fracas, comparativamente aos frutuosos ganhos resultantes do tráfico.
Estas caixas estropiadas, e mais uma ou duas cargas, eram outorgadas aos guardas portugueses e galegos com regularidade para provarem a conscienciosidade da obrigação de que estavam providos. Do lado galego eram adjudicadas por uma côdea pelo gerente do economato – espécie de cooperativa – do Pueblado, em Puente Barjas, regalia do pessoal da FENOSA que velava pelo bom andamento da barragem.
O Nelo e o Zeca traspassavam o regato a diário repetidas vezes, tanto por razões profissionais como para comprar algo ou, simplesmente, para desfrutar de um breve lapso de inadvertência junto dos amigos galegos. Consumiam os dias por ambos flancos do Trancoso. Viviam no limiar de dois mundos que julgavam propriedade deles.
Às vezes, falavam, não sem um grão de escárnio, da percepção e do receio que os forasteiros tinham da fronteira.
Devido à delimitação, coexistiam, irrefutavelmente, numa área neutra que lhes era intrínseca. O Trancoso, muito mais permeável que o Minho, apesar de fixar uma demarcação territorial, não refreava o trânsito de pessoas, de veniaga nem a materialização das ideologias, das sensibilidades e da comunhão entre povos que, apesar de fendidos, conservavam – além de bens – raízes entrelaçadas de ambas partes da arraia.
Uns minutos depois das dezassete espanolas, quando o Nelo entrou na loja, o Manolo e a mulher atendiam dois casais de visitantes portugueses. Uma parte do balcão estava repleta de caixas de doces, de latas de conservas, de especiarias e de pastas de chocolate.
O ar descontraído e lépido que o seu rosto espelhava, aprazeu logo ao dono da loja e especialmente à mulher, vítima colateral das suas noites de insónia e de pesadelos.
Na mão direita, trazia um saco plástico esverdeado. Discretamente, trocaram um olhar entendedor.
Os clientes presentes reconsideravam no que ainda tencionavam escolher, passeando vagarosamente o olhar cintilante pelas estantes metálicas. O Nelo julgou o momento tempestivo para abordar o patrão da loja.
— Manolo, posso-te deixar este saquito que é para a Marisa da estação? Disse-me que, se tivesse tempo, ainda o vinha buscar hoje, senão, amanhã de manhã. Não te importas de me fazer o favor ? – indagou inocentemente.
— De modo nenhum, homem. Não é favor nenhum – saiu de trás do balcão e pegou-lhe no saco.
Era o cenário consignado para quando estavam perante desconhecidos. Deixou a esposa ocupar-se dos turistas e encaminhou-se para a cozinha, contígua, com o precioso saco.
A loja nunca fora o seu hobby. Aturar gente que não tinha qualquer ideia do que queria, que ignorava o que lhe fazia falta, que gastava compulsivamente para edulcorar o frenesim, era um verdadeiro suplício para ele. A mulher já lhe chamara a atenção, observando que estavam ali para vender e, quanto mais, melhor.
Apartou a cortina que separava a cozinha do bar e informou a empregada:
— Rosa, se alguém me quer ver, não estou disponível.
— Está bem, Manolo.
Para a Rosa, estas palvras eram sinal de petate.
Instalou-se diante da pequena mesa da cozinha. Do interior do saco plástico, exumou duas caixas de sapatos. Livrou-as dos sólidos elásticos que retinham as tampas e abriu-as. Os seus olhos brilharam de regosijo ao contemplar o tão ambicionado recheio: maços compactos de notas de mil pesetas, o montante das duas derradeiras, operações ou seja, dez toneladas de bananas que já enfeitavam os mostruários de muitas frutarias portuguesas! Perfeitamente colocados, os maços acaparavam a superfície global das caixas, como se tivessem sido feitas à medida das notas de mil.
Entusiasmado, ficou estático uns segundos, encarando o dinheiro, como o sequioso que, por fim, desmascara a gota de água que o vai hidratar. A reacção foi imediata, apoderando-se dele uma agradável sensação de serenidade. Sacudiu a cabeça energicamente, como quem quer alijar-se de vez das arduidades que até ali o importunaram, e suspirou vigorosamente. Era outro homem. Impregnou o indicador direito numa esponja humidificada com água, e, escrupolosamente, empreendeu a contagem.
Havia raras niquices, como esta, em que se verificavam uns atrasos passageiros de maior ou menor amplidão nos emolumentos, mas para o Manolo era sempre um calvário.
Os mais ofensivos e acérrimos, além dos mais glutões, eram, incontestavelmente, os guardas civis do posto de Puente Barjas, que inspeccionavam o Trancoso. À mais pequena demora nas gratificações, rosnavam e até espavoriam audaciosamente o Manolo. O que, em parte, lhe simplificava grandemente a tarefa era o facto de o grossista de frutas viguês, que fornia a banana, ser possessão de dois primos da sua esposa.
Continua.
foto: rui manuel fonseca/global imagens
“SINTO-ME UM CONTRABANDISTA”. MÉDICO ESPANHOL ATRAVESSA
FRONTEIRA CLANDESTINA PARA IR TRABALHAR
Ana Peixoto Fernandes
NAPOLEÓN SANCHEZ, MÉDICO CIRURGIÃO, RESIDENTE EM CELANOVA, NA GALIZA, A 40 QUILÓMETROS DA FRONTEIRA COM PORTUGAL, ATRAVESSA A PÉ, DE FORMA CLANDESTINA, TODOS OS DIAS DE MANHÃ, UMA PEQUENA PASSAGEM SOBRE O RIO TRANCOSO PARA IR TRABALHAR EM MELGAÇO.
Com a fronteira principal de S. Gregório-Ponte Barxas encerrada devido à pandemia, a estreita travessia metálica, escondida no meio da vegetação, na aldeia de Cristóval, é uma escapatória para evitar percursos longos. Por ali passavam noutros tempos contrabandistas e gente que ia a salto para França.
Foi “apanhado” pelo JN quando regressava a Espanha, pela velha ponte “dos moinhos do Araújo”. Trazia na mão um saco de pão comprado em Melgaço, como é hábito de muitos galegos. E assumiu, descontraído, que arrisca pelos trilhos do contrabando para poupar “uma hora e meia a mais de percurso”. “Venho todos os dias às seis da manhã, desde que fecharam a fronteira. Trago um carro até aqui, atravesso e tenho outro carro do outro lado”, descreve quem se diz sentir “praticamente um contrabandista”. “Voltamos à época antiga”, lamenta.
O médico, que trabalha há 20 anos em Melgaço, considera “ilógico” ter de fazer o percurso de Celanova até à ponte Tui-Valença para atravessar pelo único ponto autorizado de passagem 24 horas. “São mais 60 a 80 quilómetros. Trabalho (de tarde) em Espanha. Tenho de saltar a fronteira”, justifica. “Nós trabalhadores transfronteiriços, não fazemos nenhuma ilegalidade. Em teoria pode haver consequências, mas o que é que vamos fazer?”
Quem também não teme passar “a salto” é o presidente da junta de Cristóval, David Barbeitos, que critica o encerramento da primeira fronteira no extremo Norte de Portugal. “Aqui as pessoas passam a pé e eu próprio as levo ao sítio onde podem passar. Há muita gente que tem de passar para trabalhar”.
“Que abram a fronteira de S. Gregório-Ponte Barxas. Deixem-nos transitar. Parece que temos aqui um muro de Berlim”, acrescentou David Barbeitos.
Jornal de Notícias
23/02/2021