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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 26 PRO. DR. JOSÉ MARQUES

melgaçodomonteàribeira, 30.01.21

                                                                                                                    

As mãos alapadas por debaixo do avental, como se segurassem a barriga, manifestavam a curiosidade no rosto. Pelos olhos meios cerrados, sinal de concentração, reflectiam velozmente.

— Foram os carabineiros! – desabafaram as duas conjuntamente.

Até mil novecentos e quarenta, ano em que se fez a sua integração na Guardia Civil, as fronteiras e as costas espanholas eram controladas por uma antiga corporação armada, denominada Cuerpo de Carabineros. Os anciãos, que têm uma relutância específica  em prescindir dos hábitos, perseveravam e nomeavam os actuais guardas civis carabineiros.

Tácito até ali, foi o Sebastião que replicou um pouco inimistado, como se a acusação das duas mulheres fosse absurda, inútil:

— Quem queríeis que fosse? Ora esta!

— Santa Mãe! Temo o pior. Estas coisas põe-me fora de mim. – foi a vez da Tinita – E se soubessem o mal que me faz vê-los na igreja, minhas queridas!

Ninguém adiantou a mínima pressuposição, mas, mentalmente, imaginavam o que infalivelmente acontecera. Comovidos, o olhar inexpressivo, ficaram mudos uns segundos. Marcavam a solidariedade para com o malfadado estranho.

Talvez dentro de uns dias, de umas semanas ou de uns meses deparassem com mais um cadáver irreconhecível, a jusante do rio. O número destes clandestinos anónimos – oriundos das antigas colónias portuguesas, em geral –, impudentemente assassinados e atirados para as águas do troço internacianal do rio Minho, variava de ano para ano, tendo decrescido radicalmente desde a Revolução dos Cravos. Uns eram colhidos vários quilómetros depois da barragem, outros, pouco antes da foz do Minho; uns eram distinguidos a flutuar, outros, nos areais, restituídos à terra pelas águas do rio, tanto na margem portuguesa como na espanhola. Estes mártires da pobreza, antes de serem lançados ao rio, eram despojados de tudo: do parco dinheiro e ouro e de qualquer documento ou objecto que os pudesse identificar.

Como se nunca tivessem resfolgado, sonhado e existido, estes incógnitos banidos deixavam famílias num pirronismo demente, a vegetar, agarrando-se a um sebastianismo epocal. 

Habitualmente em mau estado – segundo o tempo macerado na água –, eram sepultados na freguesia portuguesa ou galega onde tinham naufragado.

— O castigo é descomedido, desumano para quem quer ganhar a vida a fim de matar a fome aos seus – disse a Otília.

— Estas coisa são muito tristes, muito injustas – opinou a Maruja.

— Só Deus pode ser indulgente com estes renegados! – adjurou a Tinita.

Tinham matéria para conjecturar durante dias. Eram como eram, mas, nestes casos, falavam essencialmente para que a consciência não se silenciasse e não se acostumasse a estes episódios sinistros.

 

 

Para o Manolo, a noite transformou-se em martírio. Não cessou de dar voltas e mais voltas; foi uma noite em branco. Quando um automóvel abrandava diante da sua casa, sobressaltava, escutava e aprontava-se para que umas fortes pancadas fizessem abalar a porta. A efígie dos guardas civis esquadrinhando a garagem afligiu-o uma grande parte da noite. Por volta das quatro da manhã chegou a furgoneta do Fernando e só depois, já prostrado, dormiu um pouco.

Durante o dia, não pôde sofrear nem camuflar um irrequietismo silencioso que teimava em corroê-lo psiquicamente. Enquanto o impasse que o angustiava havia uns dias não fosse solucionado, não conheceria a impavidez, a confiança e o repouso que tanto almejava.

Às seis e meia da tarde, o Nelo e o Zeca, os seus sequazes do lado português, ainda não tinham dado sinal, o que ampliou particularmente a sua ansiedade. No negócio das bananas ou como homems tinha criado estreitas e sólidas relações com os dois, apesar de ser bastante mais novo.

O Nelo era de S. Gregório, mas vivia em Cevide, terra da esposa. Ainda moço, principiara a laborar como passador patenteado para o Relâmpago, o proprietário do comércio dominante em São Gregório, que aprovisionava o Branquinho de Sical e outras mercadorias. O café saía de noite da praia de Cevide na batela do Nelo, e viajava até à ourela galega do Minho, para debaixo da mansão da família Gomes, precisamente. O número de toneladas que assim transitaram morrera na memória. Actualmente, era uma neta, filha do Maia, e o marido, o João-João, que estavam à frente do estabelecimento e para os quais ainda fazia uns passes periodicamente.

De estatura média, cabelo castanho claro, embora o crânio já estivesse um pouco desprovido, tinha cinquenta anos passados, mas uma compleição viripotente e uma agilidade felina. Estes qualificativos não eram mais do que a decorrência das viagens incalculáveis que executara ao longo dos anos monte abaixo, de São Gregório à Frieira, com objectos de calibre diverso ao lombo – televisores, faqueiros, alambiques, esmagadoras...

Os comerciantes de S. Gregório faziam, digamos, dois tipos de contrabando. O primeiro consistia em pôr do lado de lá  pelos criados – cada negociante tinha os seus –, a uma hora combinada com os clientes espanhóis, as compras sujeitas a direitos aduaneiros. A isenção do pagamento de tributo na alfânfega espanhola fazia com que qualquer objecto portugues fosse sempre rendoso para os nossos vizinhos. O segundo era planejado, encoberto, opaco e atingia dimensões extraordinárias. Como o que se contrabandeava dependia da demanda, as lojas de S. Gregório tinham anexos e aposentos unicamente acessíveis extrinsecamente, onde abundava tudo o que era proibido e reclamado pelos consumidores espanhóis.

Claro que, esporadicamente, as autoridades locais irrompiam numa ou noutra loja e vistoriavam-na de cima a baixo; simples inspecções infecundas. Os guardas fiscais e os funcionários da alfândega eram, em grande parte, nativos e todos os comerciantes tinham entre eles informadores. Mal o ruído de uma razia a um estabelecimento definido era percebido na aduana, o dono concernido era oficiosamente advertido e tudo o que fosse embaraçoso, removido sem demora.

O Nelo já era contrabandista quando veio ao mundo. «Não basta querê-lo para o ser», dizia. De facto, o homem dispunha das qualidades chave: era inteligente, astucioso, corajoso e engenhoso.

 

Continua.

 

 

MELGAÇO ESTÁ MAIS POBRE.

MORREU O PROF. DR. JOSÉ MARQUES.

12/08/1937

29/1/2021

DESCANSA EM PAZ, PROFESSOR

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FORNOS COMUNITÁRIOS EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 23.01.21

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foto de a voz de melgaço

OS FORNOS DE CASTRO LABOREIRO

Em todo este rol de documentação histórica, encontramos apenas três referências a fornos antes do século XX. Duas das referências de fornos de pão estão no fundo documental do Cartório Notarial de Castro Laboreiro (1777-1855). Uma no livro de 1823-1837, com a seguinte referência: “(…) aí tem (…) lamasqueira (…) que dá com o forno de pão” (…). A outra referência, no livro de 1843-1846, “(…) o forno velho, tojal (…) eira e palheiro, anta (…)”, cujas confrontações são a nascente com José Alves e a ponte com um caminho público. Se a palavra “lamasqueira”, da primeira referência, for de carácter toponímico, poderá querer aludir ao atual lugar da Ramisqueira. Se assim for, podemos confirmar que existe forno de pão nesse lugar. Este forno, segundo o sr. Eduardo Afonso, herdeiro e seu proprietário atual, sempre foi privado. Acrescentou que dele se serviam todos os vizinhos que no Inverno se mudavam para aquela inverneira, uma vez que um outro forno da Ramisqueira, dito de tradição comunitária, segundo o mesmo testemunho, tinha ruído ou fora demolido. Quando consultámos as matrizes prediais e urbanas na repartição de finanças de Melgaço, o forno da Ramisqueira que atualmente se pode ver, não está registado sob nenhuma tutela. Contudo o forna está implantado num terreno particular, que pertence ao sr. Eduardo Afonso e família.

O atual forno das Eiras pode ser aquele que é mencionado na segunda referência, pois é considerado antigo, não havendo, no enquanto, memória da sua construção. Está implantado entre vários terrenos particulares, e a sua entrada confronta a poente com um caminho público e a nascente confronta-se com a casa de um particular, correspondendo à descrição do “forno velho”. Porém, a população desta branda diz que o forno não tem proprietários, sendo, por isso, comunitário. Tudo parece indicar que assim é, sobretudo pelas suas dimensões, mas ficam por apurar alguns detalhes relativos aos antigos proprietários, que pudessem confirmar a antiga tutela do forno. Este também não se encontra inscrito nas matrizes prediais e urbanas consultadas. A terceira referência encontrada no século XIX, está num livro de atas de vereação da década de 40. No livro de atas de vereação da extinta Câmara Municipal de Castro Laboreiro de 1842 a 1849, está então uma referência ao forno do Lugar das Cainheiras, em 31 de Maio de 1844, a propósito da nomeação de um “goarda rural daquele lugar fazendo cumprir por todos os moradores daquele lugar”, a “vigilância e bom funcionamento”, “de todas as fontes, fornos, caminhos e mais obras públicas daquele lugar.” – este excerto demonstra que todos os elementos nomeados são de uso comum, aliás, “público”. Apesar do excerto da fonte nos indicar uma pluralidade de fornos, atualmente o lugar das Cainheiras dispõe apenas de um forno que se diz ser comunitário. Além da bibliografia e fontes mencionadas não foram encontradas mais referências a fornos anteriores aos finais do século XX que nos levassem a tirar conclusões determinantes relativamente à natureza administrativa dos fornos de pão de Castro Laboreiro que não fosse de ordem principalmente comunitária. Todavia existe uma panóplia de documentação medieval e moderna, que se encontra dispersa e por estudar, não havendo possibilidade nem habilidade até ao momento de a reunir e descodificar, mas onde se poderão encontrar informações específicas quanto ao passado tutelar destes bens de produção.

 

CASTRO LABOREIRO – DO PÃO DA TERRA AOS FORNOS COMUNITÁRIOS

Uma proposta de mediação patrimonial

Diana Alexandra Simões Carvalho

Dissertação do Mestrado em História e Património

Ramo de Mediação Patrimonial

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2017

pp. 60-61

 

video de diana carvalho

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 25

melgaçodomonteàribeira, 16.01.21

 

A Otília e a Maruja foram percorrendo a ponte pausadamente. Conversavam com animosidade, mas não desviavam os olhos da curva pela qual podia sobrevir a qualquer altura o jipe dos guardas civis. A juridisção deles incluía metade da ponte. Desceram a maciça escadaria metálica e, pachorrentamente, como se passeassem, calcorrearam o caminho paralelo à via férrea. Este atalho, lamacento quando chovia, terminava junto da passagem de nível, depois da estação. Exteriormente, nada denotava o refolho dos quilos de café. Visivelmente, eram as mesmas com ou sem eles.

Pousados no primeiro degrau dos três que contava a tienda, avistaram a Tinita e o marido, o Sebastião. Dum saco de lona, iam extraindo umas magníficas cebolas que entrançavam, formando grandes réstias.

A Tinita era uma septuagenária muito bondosa e devota. Era patroa de uma loja de roupas e de calçado. Como não puderam ter filhos, quatro anos atrás, optaram por adoptar a Lurdes, filha de um casal português que albergavam, o Manuel e a Augusta. A miúda ainda não  andava. A Tinita e o Sebastião cuidavam dela como se fosse uma princesa. Cada dia, enroupavam-na com novos indumentos. Olhavam para a garota como para uma deusa.

Pouco depois da adopção, a Augusta ficou novamente grávida. O segundo parto deu vida a outra menina, a quem puseram o nome de Maria. No sub-rés-do-chão, onde os alojavam – a antiga adega –, o solo era de terra, sem divisões, e os ratos, os ocupantes lídimos, flanavam indiferentemente. A pequena Maria foi crescendo e definhando no meio de tanta esterqueira, de tanta incúria, de tanta miséria, sem saber que a rapariga que vivia por cima era sua irmã. Na casa, as rixas sucediam-se diante da garota, a quem a míngua e a adiaforia esponjavam as lágrimas e o temor. Pétrea, apática a estes alaridos constantes, divertia-se com os ratos.

Quando se viam a distância, a Lurdes, ingenuamente, vexava-a dizendo-lhe que se vestia com farrapos, que não se lavava, que não tinha sapatos, que era muito magra... Intrincada diante de tanta pompa, a Maria não falava, interiorizava tudo. O olhar vítreo, fusco, cruciante, deprecava auxílio, bondade, amor, tudo o que a irmã tinha em demasia.

A Tinita obstou as duas crianças de conviverem, de se falarem, enterrando o elo de irmandade que as unia. A despeito de contundir princípios cristãos humanamente irremissíveis, assistia como o crente mais expurgado e com alegria à missa dominical na companhia da filha e do marido.

O Manuel, além de abécula, era um alcoólico incurável; a mulher e a filha assemelhavam-se a camponeses medievais. Apenas saíam da casa para ir à água ao lado oposto da casa.

A palermice não inibiu o pai das raparigas de desvendar na incapacidade da Tinita – e no desgosto que daí escoava – uma forma de a espoliar facilmente de umas pesetas, a fim de cevar a sua intemperança inveterada e fomentar as suas alienações iteradas. Oportunista, prestes a tudo, de vez em quando, chantageava-a, intimidando-a de desapossá-la da filha.

Figurava no rol das pessoas que não nasceram para beber. O álcool, verdadeira pernície, subjugava-o, enraivecia-o, desfigurava-o, conspurcava-o. Como todos os fracos, nos quais a dependência se refugia sem esforço, o seu amanhã era uma contingência. No início, bebia para se embriagar; depois, para se furtar à ressaca.

Fazia da vida das pessoas do lado direito do Minho um inferno. Quando o álcool o inundava, desassisava. Então, a altas horas da madrugada, ia para diante das casas dos habitantes, espertando-os com vitupérias, alusões paradoxais inimagináveis, passíveis de arrepiar o ser mais abjeto.

Uma noite, durante uma das suas alucinações etílicas, dando de conta que um comboio se acercava, pulou para a via-férrea gesticulando e rugindo. Foi arremessado violentamente pela locomotiva para a beira da via.

Apesar das inúmeras contusões e das fracturas suficientemente críticas, restabeleceu-se em poucas semanas. Não tardou em recomeçar os seus desvairos.

Nas aldeias, as pessoas ressentiam as depredações provocadas à volta delas pela calamidade que representava o álcool. A escassez e a dureza do trabalho, as circunstâncias de vida peníveis e desesperantes faziam delas pessoas complacentes.

Também lhe perdoavam porque quando estava num estado normal, não deixava de ser um indivíduo deferente e serviçal.

Tanto o Manuel como o Manel Grande – e muitos mais naquela parte da raia – vieram preencher o vazio deixado pelos galegos emigrados. Entre Cevide e Vila Real de Santo António eram milhares.

Como era de supor, as duas mulheres fizeram uma alta para parolar e, preventivamente, deitar uma olhada à ponte. Todas as precauções eram poucas para frustrar as astúcias dos guardas civis.

— Carambas, Tinita, que boas cebolas tivestes! E tantas! – constatou a Otília perplexa.

— Graças a Deus, mulher. Foi um ano bom – retorquiu a Tinita – Ides de passeio, não?

— Vamos à estação ver o Firmo – foi a vez da Maruja.

A Tinita, como os outros habitantes, estava a par do porquê destas visitas bisadas. Pousou as cebolas já trançadas no regaço. A sua cara reverberava intriga e suspeição. Depois de espreitar com fugacidade para um e outro lado do caminho, demandou em voz baixa:

— Quando vínheis pela ponte não apercebestes umas pingas de sangue no passeio, antes de chegar às escadas?

As duas mulheres, pasmadas pela nova, entreolharam-se e abanaram negativamente a cabeça.

— E não ouvistes uns tiros por volta das quatro da madrugada?

Cada vez mais confusas e alarmadas, deram, por sua vez, uma olhadela em redor e avizinharam-se mais da Tinita e do marido.

— Pois olhai, estava despertada quando senti dois tiros. Virei imediatamente a cara para o despertador, por isso vos digo que eram quatro da madrugada. De manha, já não me recordava. O Sebastião, como sabeis, vai lá acima regar mal o sol nasce e, quando veio, disse-me que havia pingas de sangue frescas antes das escadas. Foi então que os tiros ressoaram na minha cabeça. Fiz logo a ligação.

— Não nos digas, mulher! – exclamaram a Otília e a Maruja.

 

Continua.

 

 

SUSPENSAS MISSAS EM MELGAÇO DEVIDO AO AUMENTO DE CASOS DE COVID-19

 

 

 

EMIGRAÇÃO E CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 09.01.21

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A VIAGEM

Como excelente jornalista que era, o Sr. Rocha N. (1965) decide empreender a viagem até Paris com os emigrantes que partiam de Melgaço.

A empresa ‘Viagem Lugan’, sediada em Madrid, na rua Dr. Fleming – notem a ironia histórica – trabalha também em Ourense. Na referida cidade, executava o transporte dos emigrantes (documentados) para França. Partia primeiro de Ourense, deslocava-se até à vila de Melgaço e depois prosseguia viagem até Paris.

Anteriormente era o Sr. Peres – co-herói do livro escrito por Rocha – que conduzia os emigrantes até Ourense no seu velho chevrolet. Entretanto, um empreendedor melgacense tornou possível a partida directa de Melgaço, pelo preço de 650 escudos. “Foi, pois, a 11 de Maio de 1963 que se publicou a notícia sobre o estabelecimento da carreira entre Melgaço e Paris.” (Rocha, N., 1965, p.55)

O Sr. Rocha empreendeu a viagem como jornalista, concebendo um magnífico, senão exemplar, trabalho científico de campo.

Embarcou, em Melgaço, junto de mais 28 passageiros, dois deles clandestinos. O primeiro trajecto era de Melgaço a Ourense, a viagem desenrolou-se por más e péssimas estradas de montanha.

Os emigrantes dispunham para seu gáudio de um farnel: chouriço, frango, presunto e vinho verde. O vinho do Porto e o tabaco eram, por vezes, cobiçados e apreendidos pelas autoridades espanholas.

Na fronteira portuguesa, as autoridades não poupavam esforços para evitar o surto migratório e desconfiavam dos passaportes dos turistas, pois, estes eram usualmente usados para dar o salto. As artimanhas forjadas passavam, por exemplo, pelos passaportes falsos; a fotografia do titular era arrancada e substituída pela do emigrante clandestino.

Na cidade galega de Ourense, a camioneta portuguesa dava lugar a uma espanhola. Eram, então, verificados todos os passaportes:

“Nos primeiros tempos a camioneta seguia guardada por elementos da polícia espanhola, armados de metralhadoras, para impedirem o ingresso de clandestinos. Na verdade, durante a noite passavam a fronteira na clandestinidade e apanhavam depois a camioneta em território espanhol para seguirem destino a Paris.” (idem, 1965, p.67)

A viagem prosseguia o seu penoso trilho, dirigindo-se para França. Deveria para tal atravessar a fronteira em Dancharineia, nos Pirenéus, uma vez que a fronteira de Hendaye se encontrava misteriosamente encerrada aos emigrantes.

Em paisagem de alta montanha a camioneta, por vezes, não arrancava. Os passageiros eram, então, obrigados a empurrar o veículo.

A viagem decorria sem interrupções, não havia justificações para tal! Por vezes, alguns retardados acabavam abandonados em terras desconhecidas e demasiado distantes para as suas posses, aquando de simplesmente darem vazão às suas necessidades básicas. Usualmente, o emigrante apenas trazia consigo algum dinheiro e o contacto, o qual constituía a rede social de apoio – e muito receio e esperança.

Entre Melgaço e Paris, decorriam 96 horas de intensa e penosa viagem. O tratamento facultado pelos motoristas, os quais conduziam duas noites e dois dias sem dormir – algo heróico, mas homicida – era, no geral, desumano. Limitavam-se ao brusco: ‘Oh, tu!’, revelando o valor simbólico da carga que conduziam.

Para ter acesso ao trabalho, em França, era necessário dispor da famosa carta verde, a qual era fornecida pelas autoridades francesas, permitindo que os portugueses ali trabalhassem legalmente.

Como referimos acima, no interior da camioneta encontravam-se dois clandestinos, um deles logrou os seus objectivos, o outro, ou melhor, a outra foi prontamente retida, em Espanha.

 

Emigração & Contrabando

Joaquim de Castro e Abel Marques

Edição do Autor 2003

pp. 92,93

video de Município de Melgaço

 

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raposa em castro laboreiro - foto norberto esteves - notícias ao minuto