FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 26 PRO. DR. JOSÉ MARQUES
As mãos alapadas por debaixo do avental, como se segurassem a barriga, manifestavam a curiosidade no rosto. Pelos olhos meios cerrados, sinal de concentração, reflectiam velozmente.
— Foram os carabineiros! – desabafaram as duas conjuntamente.
Até mil novecentos e quarenta, ano em que se fez a sua integração na Guardia Civil, as fronteiras e as costas espanholas eram controladas por uma antiga corporação armada, denominada Cuerpo de Carabineros. Os anciãos, que têm uma relutância específica em prescindir dos hábitos, perseveravam e nomeavam os actuais guardas civis carabineiros.
Tácito até ali, foi o Sebastião que replicou um pouco inimistado, como se a acusação das duas mulheres fosse absurda, inútil:
— Quem queríeis que fosse? Ora esta!
— Santa Mãe! Temo o pior. Estas coisas põe-me fora de mim. – foi a vez da Tinita – E se soubessem o mal que me faz vê-los na igreja, minhas queridas!
Ninguém adiantou a mínima pressuposição, mas, mentalmente, imaginavam o que infalivelmente acontecera. Comovidos, o olhar inexpressivo, ficaram mudos uns segundos. Marcavam a solidariedade para com o malfadado estranho.
Talvez dentro de uns dias, de umas semanas ou de uns meses deparassem com mais um cadáver irreconhecível, a jusante do rio. O número destes clandestinos anónimos – oriundos das antigas colónias portuguesas, em geral –, impudentemente assassinados e atirados para as águas do troço internacianal do rio Minho, variava de ano para ano, tendo decrescido radicalmente desde a Revolução dos Cravos. Uns eram colhidos vários quilómetros depois da barragem, outros, pouco antes da foz do Minho; uns eram distinguidos a flutuar, outros, nos areais, restituídos à terra pelas águas do rio, tanto na margem portuguesa como na espanhola. Estes mártires da pobreza, antes de serem lançados ao rio, eram despojados de tudo: do parco dinheiro e ouro e de qualquer documento ou objecto que os pudesse identificar.
Como se nunca tivessem resfolgado, sonhado e existido, estes incógnitos banidos deixavam famílias num pirronismo demente, a vegetar, agarrando-se a um sebastianismo epocal.
Habitualmente em mau estado – segundo o tempo macerado na água –, eram sepultados na freguesia portuguesa ou galega onde tinham naufragado.
— O castigo é descomedido, desumano para quem quer ganhar a vida a fim de matar a fome aos seus – disse a Otília.
— Estas coisa são muito tristes, muito injustas – opinou a Maruja.
— Só Deus pode ser indulgente com estes renegados! – adjurou a Tinita.
Tinham matéria para conjecturar durante dias. Eram como eram, mas, nestes casos, falavam essencialmente para que a consciência não se silenciasse e não se acostumasse a estes episódios sinistros.
Para o Manolo, a noite transformou-se em martírio. Não cessou de dar voltas e mais voltas; foi uma noite em branco. Quando um automóvel abrandava diante da sua casa, sobressaltava, escutava e aprontava-se para que umas fortes pancadas fizessem abalar a porta. A efígie dos guardas civis esquadrinhando a garagem afligiu-o uma grande parte da noite. Por volta das quatro da manhã chegou a furgoneta do Fernando e só depois, já prostrado, dormiu um pouco.
Durante o dia, não pôde sofrear nem camuflar um irrequietismo silencioso que teimava em corroê-lo psiquicamente. Enquanto o impasse que o angustiava havia uns dias não fosse solucionado, não conheceria a impavidez, a confiança e o repouso que tanto almejava.
Às seis e meia da tarde, o Nelo e o Zeca, os seus sequazes do lado português, ainda não tinham dado sinal, o que ampliou particularmente a sua ansiedade. No negócio das bananas ou como homems tinha criado estreitas e sólidas relações com os dois, apesar de ser bastante mais novo.
O Nelo era de S. Gregório, mas vivia em Cevide, terra da esposa. Ainda moço, principiara a laborar como passador patenteado para o Relâmpago, o proprietário do comércio dominante em São Gregório, que aprovisionava o Branquinho de Sical e outras mercadorias. O café saía de noite da praia de Cevide na batela do Nelo, e viajava até à ourela galega do Minho, para debaixo da mansão da família Gomes, precisamente. O número de toneladas que assim transitaram morrera na memória. Actualmente, era uma neta, filha do Maia, e o marido, o João-João, que estavam à frente do estabelecimento e para os quais ainda fazia uns passes periodicamente.
De estatura média, cabelo castanho claro, embora o crânio já estivesse um pouco desprovido, tinha cinquenta anos passados, mas uma compleição viripotente e uma agilidade felina. Estes qualificativos não eram mais do que a decorrência das viagens incalculáveis que executara ao longo dos anos monte abaixo, de São Gregório à Frieira, com objectos de calibre diverso ao lombo – televisores, faqueiros, alambiques, esmagadoras...
Os comerciantes de S. Gregório faziam, digamos, dois tipos de contrabando. O primeiro consistia em pôr do lado de lá pelos criados – cada negociante tinha os seus –, a uma hora combinada com os clientes espanhóis, as compras sujeitas a direitos aduaneiros. A isenção do pagamento de tributo na alfânfega espanhola fazia com que qualquer objecto portugues fosse sempre rendoso para os nossos vizinhos. O segundo era planejado, encoberto, opaco e atingia dimensões extraordinárias. Como o que se contrabandeava dependia da demanda, as lojas de S. Gregório tinham anexos e aposentos unicamente acessíveis extrinsecamente, onde abundava tudo o que era proibido e reclamado pelos consumidores espanhóis.
Claro que, esporadicamente, as autoridades locais irrompiam numa ou noutra loja e vistoriavam-na de cima a baixo; simples inspecções infecundas. Os guardas fiscais e os funcionários da alfândega eram, em grande parte, nativos e todos os comerciantes tinham entre eles informadores. Mal o ruído de uma razia a um estabelecimento definido era percebido na aduana, o dono concernido era oficiosamente advertido e tudo o que fosse embaraçoso, removido sem demora.
O Nelo já era contrabandista quando veio ao mundo. «Não basta querê-lo para o ser», dizia. De facto, o homem dispunha das qualidades chave: era inteligente, astucioso, corajoso e engenhoso.
Continua.
MELGAÇO ESTÁ MAIS POBRE.
MORREU O PROF. DR. JOSÉ MARQUES.
12/08/1937
29/1/2021
DESCANSA EM PAZ, PROFESSOR