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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 24

melgaçodomonteàribeira, 31.12.20

Os diabos dos guardas civis não demonstravam vontade nenhuma em mexer, e isso abespinhava-as. Portanto, àquela hora da tarde, os raios de sol abrasavam as placas esverdeadas da casota onde descansavam. A atmosfera interna, indubitavelmente irrespirável e perspirante, convinha-lhes, pelo visto.

Mas havia dias assim, que eram embirrentos, impedientes. Tinham, provavelmente, adivinhado a intenção das duas mulheres. As urdiduras dos guardas eram-lhes familiares e havia dias que adoravam contrariá-las, aborrecê-las. Era, para os detentores da autoridade, um modo de lhes notificar a hegemonia de que eram senhores e à qual tinham de se arriar.

Para as pessoas como elas que tinham de ir com frequência à outra riba fazer umas lidas, a vista do jipe, em parte, tranquilizava-as. A sua ausência decuplaria a ambiguidade e a desconfiança; os carabineiros podiam aparecer de repente ou, emboscados em qualquer lado, vigiar a ponte e a estação com binóculos.

Languidamente, taramelavam, palratório decerto asséptico, que, em essência, não diferiria dos que tinham diariamente em qualquer outro lugar e situação.

Tiveram de pacientar mais cinco minutos, antes de ouvirem ronronar o motor do potente Land-Rover Santana. Ainda houve uns instantes de suspense acerca do destino dos guardas civis. Tremulavam, ou simulavam. Às vezes, vinham ao café do Manolo dar uma vista de olhos e beber algo, embora não fizesse parte da circunscrição deles. Finalmente, deram meia volta e desapareceram na curva.

A Otília e a Maruja, a mulher do Virgílio, permaneceram amouchadas nos degraus. Com o tempo, descobriram que a impaciência era capaz de originar surpresas amargas. Dali, o troço final da estrada estrangulada que conduzia à estação era claramente visível. Perscrutaram-no demoradamente. Não, os guardas civis não tomaram a direcção da estação, de outro modo já tinham divisado o jipe. Levantaram-se e prepararam-se para atravessar a ponte.

Colaboravam, havia bastante tempo, com o Firmo, o chefe da estação de ferrocarril –caminho de ferro –, personagem poderosa e respeitada pelos aldeões. Alto, fortinho, o passo do homem seguro de si, era a calma personificada. Moinante desconforme, sempre bem disposto, era dotado de um humor fino, inaudito.

Entre dois comboios, abandonava o seu cubículo duas vezes por semana. Ia ao bar do Manolo na companhia do seu amigo Bárcia, um sexagenário tão forte como ele. Ex-membro da Benemérita, havia anos que fora ejectado da instituição por corrupção quando prestava serviço no porto da Corunha. Desde aí, explorava um modesto restaurante em Arbo, sua terra natal, o Casa Bárcia. Sita junto da estação ferroviária, a casa tinha como especialidades angulas al ajillo (meixão) e lampreia do rio Minho. Era o sósia de Clark Gable.

Além da amizade que os associava, deslocava-se igualmente à Frieira por causa dos atributos da carne do Celso.

O Firmo era sempre o primeiro a transpor a porta do bar. Fosse quem fosse que estivesse presente, nasalava acentuada e invariavelmente o mesmo enunciado:

— A ver, põe-nos dois vermutes num pronto e com carinho !

Enquanto bebiam dois ou três cada, entretinham-se soltando meia dúzia de palavras vãs. Pagavam por turno e, quando o Manolo estava presente, como despedida, o Firmo resmungava:

— Cada vez tenho menos ganas de vir beber um aperitivo a este bar. Somos mais mal recebidos do que um cigano, joder!

Eram homens de poucas palavras, que se apreciavam admiravelmente, e que sabiam mais coisas do que na realidade desejariam.

O Firmo residia em Ribadavia. Como chefe de estação, tinha uma situação vantajosa. No entanto, quando se tratava de ganhar umas pesetas suplementares fazendo um jeito aos amigos, ou simplesmente aos amigos dos amigos, aceitava com grande alegria. Certos dias, finalizado o dia de labor, quando subia para o ferrobus das seis da tarde para volver ao lar, carregava uma caixa de papelão de considerável tamanho bem encordoada. O conteúdo não era novidade para os habitantes dos dois lugares.

A Otília e a Maruja, como os antepassados e todas as velhotas das aldeias mais ou menos da mesma idade, tinham um abdómen desenvolvido. Depois dos numerosos partos, não usaram – não fazia parte dos seus costumes – os artifícios das citadinas para o ventre reassumir a planura anterior.

O Firmo teve, pois, a brilhante ideia de fazer dessa especificidade um recurso e de tirar proveito dele, tanto para si como para as mulheres. Por meio delas, o chefe da estação abastecia em café Sical alguns amigos e quase metade dos proprietários dos cafés de Ribadávia, a vila que fora capital da Galiza.

Alternativamente, e mais do que uma vez por dia, a Otília, a Maruja e outras mais convergiam para a estação com dois quilos de café dissimulado no baixo ventre. O Firmo nunca fora molestado pelas autoridades. Esta imunidade era legitimada pela sua posição.

Os guardas civis e as famílias beneficiavam de um desconto de sessenta e cinco por cento no preço dos bilhetes da RENFE, qualquer que fosse o destino em Espanha; o Firmo recompensava-lhes o privilégio acordado com uns bilhetes especiais que os dispensava dos trinta e cinco por cento restantes. A colaboração fazia o bem-estar de todos.

O chefe da estação também ajudava as pessoas que ansiavam visitar os seus parentes dispersados pela Europa, adquirindo-lhes na agência Wasteels de Ribadávia os notórios bilhetes BIGT – bilhete internacional de grupo para trabalhadores.

Criadas por um belga no início dos anos cinquenta, estas agências destinavam-se exclusivamente aos emigrantes e dominavam o mercado dos bilhetes a baixo custo. Graças aos seus preços imbatíveis – menos 30% –, a Wasteels facilitava a centenas de milhares de imigrados pela europa ocidental e central a viagem aos países atinentes. Contudo, para aceder a estes títulos de transporte era indispensável fundamentar o estado de emigrante.

Com o Firmo, a agência era pouco ou nada formalista. Permitia mesmo encarecer ficticiamente de cinco por cento o preço dos bilhetes, suplemento reavido pelo chefe de estação quando entregava o bilhete ao pedidor.  

Este favor que fazia aos parentes dos emigrantes – evitava-lhes a perda de tempo, o sumpto da ida e volta a Ribadávia e concedia-lhes o desconto a que não tinham direito – era-lhe amplamente agradecido.

 

Continua.

 

 

UM GRANDE ABRAÇO A TODOS OS QUE ME VISITAM

E

2021 SEM OS BICHOS

 

 

MELGAÇO, VIAGEM PELA RAIA

melgaçodomonteàribeira, 24.12.20

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 rio trancoso

MEMÓRIAS DE TRANSGREÇÃO

Preservam-se memórias de outros tempos em pequenos museus – em Melgaço, Vilardevós (Ourense), Ciudad Rodrigo (Salamanca), Oliva de la Frontera (Badajoz) e Santana de Cambas (Mértola). Frente à escassez de um produto ou a grandes diferenças de preços ou de carga fiscal, sempre houve quem abrisse caminho entre giestas e estevas, rochas ou tufos, regatos ou rios.

Na freguesia de Cristóval, em Melgaço, perto do marco de fronteira número 1, Lurdes Durães podia ficar dias inteiros a contar estórias. A mulher, de ágil memória nos seus 73 anos, costuma dizer que nasceu no meio do contrabando: “Depois da guerra civil, aos espanhóis fazia falta, sabão, unto, toucinho e outras coisas de comer.” O pai dela “tinha um comerciozito a dois ou três quilómetros” A mãe dela via espanhóis a entrar e a sair de uma loja ao lado de casa. Saltavam as pedras do rio Trancoso e subiam pelos terrenos dos avós de Lurdes. Era ela ainda bebé quando a mãe arrumou a mobília num canto da sala, de uma tábua fez um balcão, mandou vir “unto, toucinho, sabão – as coisas que os espanhóis vinham buscar” – e pôs-se a vender.

A ninguém causava remorso o contrabando. Aquilo até podia ser crime, mas não seria pecado, dizia-se em Melgaço. Quem era o lesado? O Estado. O que era o Estado? Ali não se via Estado a não ser na sua forma repressiva. Estava Lurdes casada havia um mês quando o marido lhe disse:

- Temos de ir a Ourense!

- Agora, nesta hora, que estou a fazer o comer?

- Já vimos! Vamos e vimos depressa.

Puxou-a da cozinha para a sala, para que ninguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, nem visse o que tinha para lhe mostrar.

- Tens de levar este ouro.

- Como vou levar isso tudo?

- Ao pescoço.

Eram muitos fios de ouro. Tantos que Lurdes não sabe. Anuiu, um tanto assustada. Colocou” para aí 20 ou 30 fios” ao pescoço e meteu os restantes na carteira. Estava uma verdadeira minhota. Dir-se-ia prontinha para ir às festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo.

- E se nos prendem? – perguntou.

- Não! O ouro é teu. Ninguém te pode proibir de o levar. Podem assaltar a casa. Andas sempre com ele.

“Eram as nossas desculpas”, conta ela, sentada na cozinha da casa que ainda agora habita. O apurado conhecimento do terreno e o suborno pago aos guardas não explicam tudo. Toda a gente se conhecia. No contrabando andavam familiares, amigos ou vizinhos dos guardas. Nas décadas de 1960 e 70, alguns, como Lurdes e o marido, até misturavam contrabando com auxílio à emigração clandestina. “Tínhamos esconderijo no carro e levávamos uns quilinhos de café.”

O 25 de Abril de 1974 não acabou com o contrabando. Lurdes e o marido ainda fizeram muito negócio depois da Revolução. Levavam louça, cerâmica. Traziam televisores, aparelhagens. Tanto susto apanhou. Tantas vezes se sentiu à beirinha do fim. E, mesmo assim, tem pena que tudo tenha acabado. “Devia voltar outra vez. As aldeias estão a ficar sem gente. A gente das cidades não quer vir para as aldeias. O que vem fazer? Os nossos novos têm de emigrar ou de ir para as cidades…”

 

Ana Cristina Pereira (texto)

Adriano Miranda (fotografia)

 

Jornal Público (Online)

15 de Junho 

 

 

 

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 23

melgaçodomonteàribeira, 19.12.20

 

Era evidente que ninguém poderia desarraigar a exploração dos pobres, a voracidade dos grandes, nem os maus tratamentos e as atrocidades com que estes contêm a fúria dos indigentes e dos justos. Ninguém mudaria o ser humano, mas obcecava-o o múnus imperioso de defender acções nobres e valores sem os quais o homem deixa de ser homem, e a vida societal se torna insuportável. Envolver-se-ia com os que faziam tudo para salvar o mundo. Não queria nem podia deixar que prosseguissem a sua transfiguração, o que, com o tempo, acarretaria a sua destruição.

A irmã do Padre, a Fátima, era uma moça bonita, bem feita, mas atrevidamente ególatra. Ela e o rapaz alimentavam, porém, uma carasterística semelhante: uma ociosidade inata. As esperanças da rapariga eram bastante mais determinadas. Vivia para ela, para a sua imagem, para que olhassem para ela, para se ver no olhar dos outros.  As raras moedas que a mãe lhe dava, ou que ocasionalmente tinha o ensejo de lhe surripilhar, utilizava-as na aquisição de produtos de beleza corriqueiros, na compra de fotonovelas e de revistas glamour. Era neste universo constelado que se projectava. Via-se, oniricamente, no lugar das vedetas fotogénicas rodeadas por belos e ricos homens, que desencantava naquelas páginas.

Dera os primeiros traços de lápis de maquilhagem, de modo esquemático, com quatorze anos apenas, alcançando sem delonga um nível de competência que, confrontado com o que se via naqueles lugares, animara em algumas adultas uma emulação explícita.

O pai, quando o álcool o submergia e lhe fazia surgir os sentimentos antagónicos que por ela fora condensando, injuriava-a e taxava-a de macaca.

A falta de meios, que a moça deplorava melancolicamente, não a deixavam granjear os trajes e a parafernália atinente, capital para se exibir como gostaria, pondo em evidência e valorizando o escultural corpo que ela acatava como um inestimável património.

Revoltada contra a mesquinheza, o hilotismo e a ataraxia vanguardista dos pais – outra afinidade com o irmão –, o seu fomento monomaníaco eram os rapazes que manobrava com um menoscabo e uma faculdade inerentes. Dos múltiplos jovens que a requestavam incessantemente, apenas seleccionava os mais abastados, os que tinham a capacidade de lhe saciar os desejos pelo medíocre e desfasado fausto que ali podia obter. Em troca, brindava-os com uns abreviados momentos de luxúria onanista. Os mancebos, lenificados, honravam-lhe as exigências.

Enfastiado de a ver preguiçar desinteressadamente, o Manel ordenou-lhe que se empenhasse em lograr um lugar de doméstica, cargo inesgotável e sensivelmente bem remunerado. A discussão depravou em conflito e, desde então, rejeitavam-se. Esse incidente impeliu a mãe, vigilante e contemporizadora, que já reparara na vida estéril e nos sonhos da filha, a pôr-se do seu lado. Sem negligenciar a delicadeza e as incertezas dos seus anseios, meditou maduramente na heurística mais eficiente para que a rapariga desfruísse das suas aspirações meretrícias.

A Gracinda sabia que uma mulher bonita, bem feita e creditada de uma galante eloquência predispunha das potencialidades indefectíveis para deslumbrar um homem opulento ou aburguesado, respirar e florescer pacientemente às expensas do seu rendimento ou da sua fortuna. Compreendera, graças ao seu empirismo, que o amor e a moralidade não eram mais do que um derivativo de luxo ao qual só os ricos concediam, e que só os louvavam depois de os terem pisado em nome da cobiça.

Por ter um precedente na família, depreendera que a probabilidade de a filha um dia rastrear um tecnocrata e conquistar um futuro irreprochável não era de desprezar. Fora a façanha cumprida por uma tia sua que, depois de se encabrestar alguns anos a uma vida dúbia em Lisboa, triunfara desposando um misterioso desconhecido com uma atribuição de relevo na companhia Electricidade de Portugal.

Para isso, a jovem filha, inábil, precisava de alguém imbuído do apurado savoir-faire basilar a uma fêmea; de alguém que lhe professasse e incutisse as técnicas lúbricas, os gestos, a desteridade, as maneiras; ou seja, o conjunto dos conhecimentos libidinosos determinantes que metamorfoseiam uma mulher atraente e irresistível numa decocção adictiva pela qual nenhum homem se embaraça em vender a alma ao diabo.

Explicou meticulosamente à filha a estratégia que urdira e, um dia, pediu-lhe que a acompanhasse. Recomendá-la-ia ao Dom Gulian, popularizado por Capitão, pessoa endinheirada, a quem fazia umas horas de limpeza por semana. Já lhe tinha tocado no assuntos do jeito mais subtil e aceitável. Era o homem idóneo para educá-la na arte da sedução, a constituinte crucial. Capitão de fragata reformado depois de quarenta anos de serviço, levava uma vida fosca desde que a esposa, a Dona Carmen, mulher de uma pulcritude inefável, fora levada repentinamente por uma doença insanável. Havia cinco anos. 

A Deolinda sabia que os marinheiros sulcavam o mundo e tinham uma mulher em todos os portos onde atracavam; eram, pois, homens exercitados. Para muitos destes marujos, que engelhavam durante meses rodeados de tocos sem verem uma fenda no horizonte, o sexo assumia um estatuto de destreza admirável; para os oficiais, era óbvio que se reduzia a uma arte. Como capitão e com a sua classe de pessoa estudada, a Gracinda estava persuadida de que o Don Gulian se apropriava das mulheres mais garbosas e versadas dos bordéis que, sem dúvida, visitara.                     

Não foi preciso porfiar com a filha para que subscrevesse a sua proposta. A moça faria tudo para conseguir os meios com que incrementar os seus fantasmas.

 

As duas velhotas estavam sentadas nos degraus de acesso a um dos passeios laterais da ponte. Exacerbadas, já não sabiam quanto tempo havia que esperavam. As suas nádegas, apesar de carnudas, lamuriavam-se do peso egrégio que sustentavam, forçando-as frequentemente a modificar de posição. Um lenço preto na cabeça abrigava-as dos raios solares, tórridos àquela hora da tarde.

Aparentemente remansadas, conversavam. Porém, apenas iludiam os cândidos: espiavam os guardas civis estacionados na outra extremidade da pontede. Como dois tralhotos, não arredavam a vista do jipe, com discrição, ao mesmo tempo que palravam. Eram mulheres de muita experiência neste exercício. A vista e a audição, os dois sentidos imperativos requeridos para estas azáfamas, tinham-nos em alerta contínua.

 

Continua.

 

 

 

 

 

JEAN-LOUP PASSEK 1936-2016

melgaçodomonteàribeira, 12.12.20

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MORREU JEAN-LOUP PASSEK, O CINÉFILO FRANCÊS EM QUE BATIA UM CORAÇÃO PORTUGUÊS

 

EM 2005, INAUGUROU EM MELGAÇO UM MUSEU DO CINEMA RECHEADO COM O ACERVO RECOLHIDO AO LONGO DA VIDA. NASCIDO EM FRANÇA, CINÉFILO CURIOSO, DESENVOLVEU ACTIVIDADE NO FESTIVAL DE CANNES, NO DE LA ROCHELLE E NO CENTRO POMPIDOU. DIZIA TER “ESPÍRITO ESLAVO, NACIONALIDADE FRANCESA E CORAÇÃO PORTUGUÊS”.

 

Mário Lopes

5/12/2016

 

Começou a chegar até nós quando, no início dos anos 1970, animado pelo espírito do cinema-verité registava um conjunto de obras para a ampliação do metro de Paris. Os operários que ali filmou eram portugueses, e Jean-Loup Passek cimentou com alguns deles uma amizade que o levaria, anos depois, quando já tinha duas casas em Portugal, em que se refugiava durante parte considerável do seu tempo, a afirmar ter “espírito eslavo, nacionalidade francesa e coração português”.

Em 2005, este historiador, crítico, programador e colecionador de cinema, com percurso ligado ao Festival de Cannes e ao La Rochelle, ao Centro Pompidou e ao prestigiado Dictionnaire du Cinéma das edições Larousse viu inaugurado o Museu de Cinema de Melgaço, a vila do Alto Minho onde tinha residência (a sua outra casa portuguesa encontrava-se em Pataias, Nazaré). Ali depositou o seu valioso acervo de memorabilia cinéfila, recolhida ao longo de toda a vida.

Jean-Loup Passek, morreu na madrugada deste domingo, aos 80 anos, revelou ao PÚBLICO fonte familiar. Em Setembro, a Cinemateca prestou-lhe homenagem com a programação de um ciclo de filmes e com uma exposição de cartazes do cinema clássico francês e da escola gráfica da Polónia, país de onde a sua família era originária (ou melhor, “de origem polaca ou russa conforme as vicissitudes da história” dizia). Na sessão inaugural, a 9 de Setembro, em que não pode marcar presença por motivos de saúde, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Cultural do Governo de Portugal.

No texto de apresentação do ciclo – que contou com a presença, em Lisboa, do seu amigo de muitas décadas Marin Karmitz -, destacava-se a existência no seu trajecto de “uma óbvia coerência e duas ou três linhas de força”. São elas: “dar a ver, dar a conhecer, contra cânones estabelecidos, gavetas ou fronteiras históricas”. Foi o que fez, por exemplo, no Centro Pampidou, onde ocupou o cargo de Conselheiro de Cinema entre 1978 e 2001, sendo responsável por grandes retrospectivas de cinematografias menos conhecidas, como as do cinema checo, húngaro, turco, grego, indiano, chinês ou português.

A primeira homenagem em França a Manoel de Oliveira, em 1975, foi da sua responsabilidade, e a única retrospectiva de António Campos fora de Portugal aconteceu igualmente por sua iniciativa. Homenagem e retrospectiva surgiram no festival de La Rochelle, de que foi director em 1973 e 2001 (enquanto isso, coordenou a categoria Caméra d’Or do festival de Cannes, que distingue primeiras obras).

Nascido em 1936, em Boulogne-sur-Seine, Jean-Loup Passek licenciou-se em História e Geografia na Sorbonne, em Paris. A ligação afectiva e profissional ao cinema ficou garantida quando preferiu assistir a Citizen Kane, de Orson Welles, em vez de marcar presença nas provas do concurso de professorado. A aproximação a Portugal chegou, por sua vez, através da relação estabelecida com a comunidade imigrante portuguesa em Paris, junto da qual criou amizades que se mantiveram para o resto da vida.

Em 2005, quando da inauguração do Museu de Cinema de Melgaço, dizia ao PÚBLICO: “Estou contente. É um verdadeiro milagre que o museu tenha podido nascer aqui, em Melgaço. Ninguém me propôs nada de concreto em França. Gastei o meu dinheiro a comprar isto tudo, e não queria que a colecção ficasse em França. Sinto-me um pouco egoísta. Para mim, Portugal é que é importante”, destacou, referindo que toda a sua vida foi gerida “por sentimentos”. E por um olhar sempre interessado no que o mundo guardava para mostrar. Como afirmou certo dia, “sou pela curiosidade total”.

Reagindo à notícia da sua morte, a Câmara Municipal de Melgaço lamentou, em comunicado, o desaparecimento de “um amigo da terra”. “É indiscutível a amizade que nos unirá para sempre. Jean-Loup Passek será para toda a eternidade lembrado como um grande Amigo de Melgaço”, refere a autarquia.

Também o Ministro da Cultura prestou o “devido reconhecimento” ao trabalho da divulgação do cinema, e em particular do cinema português, realizado pelo historiador e crítico francês. Em comunicado enviado à Agência Lusa, Luís Filipe Castro Mendes sublinhou não esquecer “a generosidade de Jean-Loup Passek e a responsabilidade que representa o legado” de um homem cujo amor por Portugal “nos fez herdeiros do seu acervo, colecção que esteve na base da criação do Museu de Cinema de Melgaço”.

O funeral de Jean-Loup Passek realiza-se na sexta-feira de manhã, às 10.30, da Igreja de Saint-Germain-des-Prés para o cemitério do Pére Lachaise, em Paris.

 

Publicado em: Público de 5 de Dezembro de 2016

 

publico.pt

 

 

 

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 22

melgaçodomonteàribeira, 05.12.20

 

O Manel e a Deolinda viveram perto de seis meses na raia, o que, graças à ajuda de fronteiriços com os quais tinham tecido vínculos de cordialidade, lhes deu tempo para coordenarem a mudança de margem com fiabilidade. Em outubro, mês da festa da Virgem do Rosário na Notária, uma aldeia a meio caminho entre Puente Barjas e a Frieira, e que, em parte, se enxergava de S. Gregório, deram o salto.

Como era natural, foi dos lugares arraianos que saíram ilegalmente os primeiros emigrantes. Em S. Gregório, a família que não tivesse um familiar expatriado era insólita. Por esta razão, o emblemático sofrimento – tanto físico como moral – dos inumeráveis desgraçados que, com regularidade, viam desfilar no lugar, recordava-lhes o suplício afrontado por parentes ou amigos e exortava-os à benignidade. Precavidos por preceito, o olhar dos raianos era intenso, perfurante, mas lotado da mais casta complacência.

As singelas particularidades apelativas dos raianos faziam-lhes refulgir a  imediação,  a proximidade, diferenciando-os dos outros; faziam deles uma população delirante que descurava as portas e não fazia distinção entre o dentro e o fora. Para este povo inconformista, a fronteira era uma mera barreira diáfana, um garante das identidades, um espaço onde se esbarrava com a alteridade; era uma aldraba que encorajava à partilha, à hospitalidade, ao cosmopolitismo; era um traço de união espaçando pessoas que coabitavam em terras unidas pelo mesmo ar, pelos mesmos cursos de água, e que se singularizavam instintivamente entre si.

As fronteiras, inobstante preconceitos fanados, não desirmanavam; acicatavam as pessoas à coexistência, a descortinar-se. A raia constituía um território arrebatador onde o estrangeiro era sempre o vizinho.

O Manel e a Deolinda tinham dois filhos: uma rapariga com pouco mais de dezanove anos e um rapaz mais novo doze meses. Do rapaz, o Manel procurara fazer um padre. Afirmava que estes auferiam de um emprego decente, cómodo e bem retribuído; que usufruíam de um alojamento honorável e que mulheres não lhes faltavam. Isto, sem referir a categórica preeminência da qual não se privavam para tirar partido da sociedade. Mencionava, ainda, que, no fim da vida, eram amimalhados em estruturas com os convenientes serviços canónicos que lhes favorizavam uma cessação adequada, etérea, estritamente divina.

Não obstante a virulenta hostilidade do rapaz, o Manel, consciente de lhe lavrar o futuro, ficando ao mesmo tempo com menos um estômago a providenciar, deliberou interná-lo no Seminario Mayor Divino Maestro, em Orense. Tinha doze anos e não findara os estudos primários! A estadia durou perto de quatro longos anos – para o rapaz – ao cabo dos quais, para grande consternação dos pais, foi expulso. Os motivos eram lacónicos: incompatibilidade com a instrução religiosa, ou seja, falta de vocação, diversos percalços, pugnacidade, encadeamento de escapadas e, o mais grave, amedrontara seriamente os seus preceptores avivando um incêndio no enorme dormitório do seminário.

Era tido por pacóvio, faccioso e, coisa que nunca ofuscura, revelava uma índole infusa pelos estupefacientes. Chamava-se António, mas a alcunha de Padre colou-se-lhe logicamente à pele.

As grandes orelhas – proeminente herança do genitor – retinham-lhe diante dos olhos uns óculos cujas lentes esverdeadas e espessas, incrustadas numa grosseira armação preta de plástico, lhe imprimiam um equívoco ar de pateta. Inalteravelmente vestido de negro, a única repercussão que a instituição religiosa operara sobre o adolescente, vagueava por ali, sozinho, ou na companhia do único amigo, um moço da sua idade sobrenomeado Chino. Recalcitrante declarado contra os regimes instituídos, a coercividade, o arbitrário e a ascendência, era, segundo toda aparência, um absoluto iconoclasta. No seu imo, enraizara uma insubmissão surda.

Desde que, para seu grande refolgo, fora compelido a abdicar da carreira espiritual, despendia grande parte dos dias deambulando como um eremita pelas bordas do rio e do regato. Era o seu domínio, a sua religiosidade, o seu paraíso. Tudo lhe estimulava o congénito desvelo juvenil: as desconcertantes configurações dos rochedos, autênticas obras de arte; os troncos e os montes de detritos caseiros que se sucediam sem interrupção nos dias de chuvadas, vindos sabe-se lá de onde e que ali encalhavam caoticamente; e os sorvedouros do rio e o tumulto do regato que o alienavam misticamente. Estas enternecedoras bagatelas agregava-as com a amorável errância, indiferença e a beatitude que a ganza lhe facultava. Ao inverso da maioria dos habitantes – que a sofriam –, a solidão, sua companheira, fazia-o devanear.

Como outros rapazes que abominavam a escolaridade, boicotara, pontualmente e com a conivente acatalepsia dos desmazelados pais, as aulas. Este desdém – uma revelação precoce – incentivara-lhe a descoberta de lugares esconsos e ideais para fantasiar e planar; deslindara-lhe as importantes exuberâncias prolíficas que povoavam essas paragens semi-selvagens.

Trabalho, como a gente o concebia, era uma palavra que desestimava, que execrava. «Andar a efectuar tarefas desagradáveis às ordens de outros e a sacrificar-me a uma vida desastrosa como a que toda a gente aqui levou e leva ? Não, não quero passar ao lado da vida.» Tinha o desígnio resoluto de ser o protagonista do seu porvir longe daquela gente, ainda que fosse como um pedinte repelente.  

Enquanto o não pudesse arrostar, contrafazia-o, o que desatava o motejo da gente, dominantemente insciente.

Apesar do seu embrião contestatário, aquiescia episodicamente em trabalhar como servente nas obras ou em dar uma mão a um vendedor de mobílias da Notária quando este tinha de proceder a entregas. Estes miúdos serviços contribuíam para  a sua independência, para participar moderadamente nas despesas da casa – o que lhe preservava a paz social – e financiar a sua amatividade pelo haxixe.

Aguardava, fleumaticamente, pela mili – serviço militar –, o que ocorreria quando completasse os vinte anos. Depois, a pé e à boleia, peregrinaria pela terra onde viera ao mundo, pelo seu país, pelo seu Reino. Aplicar-se-ia para se embeber prontamente e com ardor dos fantásticos contrastes que faziam da Espanha – que tanto o cativava – um mosaico flavescente de etnias, culturas, línguas, tradições, crenças e panoramas matizados. Sem deslembrar, todavia, o que verdadeiramente o trabalhava: as entranhadas posições anticonformistas.

Continua.

 

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CASTRO LABOREIRO - 4/12/20 - 1º nevão  foto JN