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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 19

melgaçodomonteàribeira, 24.10.20

 

Na parte traseira do prédio do Manolo, deslizava um caminho recentemente cimentado que perecia num exíguo largo salvaguardado por umas alminhas cujo santo desvanecera sem ninguém já saber quando. Dali até ao rio, através de uma calçada de extensas pedras puídas pelo homem e pela natureza, atingia-se o que, desde sempre, fora um embarcadouro: o Porto de Bergote. Ao lado, o regato Trancoso e o rio Minho acoplavam-se, formando ângulos rectos entre os dois países.

Para descarregar as caixas de bananas ao abrigo de olhares barulhentos, o Manolo fizera instalar uma grande porta de ferro basculante do lado direito do rés-do-chão, lado que ficava a uma vintena de metros da estrada principal. Os camiões Pegaso dos anos 60 chegavam lastrados, desciam com a máxima prudência o caminho de marcha atrás e adrentavam metade do veículo nos enormes os fundos. Foi o que se verificou nesse dia a meio da tarde: o camião foi aliviado num ápice das cinco toneladas de bananas vindas de Vigo.

Embora houvesse contrabando nos dois sentidos, o fluxo foi sempre superior no sentido Portugal-Espanha, mas havia uns anos que Espanha ganhava terreno. Toneladas de peixe, gambas e camarão entravam diariamente em Portugal cursando os dois rios; manadas de gado bovino, do vitelo à vaca, assim como automóveis roubados em França atravessavam a raia seca na região de Castro Laboreiro.

Depois de enterrado o fascismo, o governo português estava – mais uma vez – ante uma complicada e embaraçadora penúria de divisas. Vitais para as imprescindíveis importações, decidiu, pois, anexar determinadas mercadorias às já catalogadas – consideradas acessórias – como produtos de luxo e taxá-las como tal. Entre os produtos dispensáveis, figurava, pois, a banana; os portugueses teriam de se consolar com a magra colheita das da Madeira e dos Açores, cuja inflação, forçosamente, disparou. Esta anódina medida foi o suficiente para desencadear, imediatamente, um sulfuroso contrabando do exótico fruto de Espanha para Portugal.

A banana vinha das ilhas Canárias, territórios insulares espanhóis, e entrava pelo porto de Vigo. Dali, era encaminhada pelos grossistas em camiões de média tonelagem e distribuída pelos passadouros. Entre a Frieira e Caminha, galgava o Minho em batelas; da foz do Trancoso até A-Da-Velha, galgava o insignificante regato às costas de carregadores. Em Cristóval, decorrente do trajecto, havia quem utilizasse uma mula.

Nestes dois cursos de água desproporcionados, que formavam fronteiras naturais, havia séculos que o contrabando estava programado; era uma componente social e económica inata. As redes, as zonas e a logística utilizadas eram, na generalidade, as mesmas, fosse qual fosse o produto contrabandeado. Apenas comutavam os contrabandistas.

Correntemente, por razões organizacionais e securitárias, as bananas eram  levadas ao lombo na mesma noite da Frieira para Cevide por jovens musculosos e de uma resistência inoxidável, de onde saíam nessa noite ou no dia seguinte para vários pontos do país.

Porém, havia uns dias que um sério obstáculo perdurava. Para o Manolo e os seus associados era insolucionável, fazendo com que, do lado espanhol, a garantia de protecção  fosse ambígua. A solução do óbice só podia vir de Portugal. A  transferência  das dez toneladas de bananas para território português naquela noite era incerta.

O nervosismo e a contrariedade que nos dias crónicos de manivérsia se apossavam  do Manolo eram perceptíveis pelos íntimos.

Apenas dois guardas civis do posto de Puente Barjas, província de Ourense, os que vigiavam o tramo do rio Trancoso, não se deixavam estipendiar. O tenente andaluz que os comandava havia pouco tinha, como estes seus subordinados conscienciosos, inconcussos, uma profunda lealdade ao cargo; como eles, lutava, para não sucumbir à sedutora e dificilmente reprimível atracção da opulência que o dinheiro lhe permitiria; como eles, resistia ferronha e obstinadamente a todas as proposições de cooperação, por mais estimulantes que fossem; como eles, batalhava para proteger a sua probidade, a sua honra.

No entanto, os dois guardas civis não representavam um estorvo significativo para os passadores. Com resguardo, eram obliquamente quadrilhados em permanência pelos pervertidos que lhes desmanchavam uniformemente qualquer intento íntegro de neutralizar ou, ainda que fosse, contrariar os contrabandistas.

Era uma postura clássica e característica, tanto do comandante como dos guardas civis. Os recém-chegados necessitavam de uma etapa para se adaptarem, apesar de haver sempre um ou outro renitente.

Por este motivo, quando havia um imperativo que realmente necessitasse a esterilização do tenente, recorriam a intermediários, pessoas influentes, o escol da região que, directa ou indirectamente, estavam conectados com os chefes das redes. Estas benemerências convidavam amigavelmente o oficial subalterno para jantar um dia preciso num restaurante gastronómico arredado da raia, com o único intuito de o terem localizado enquanto que a mercadoria mudava de país. Era um convite que o tenente não podia recusar devido ao influente peso dos requerentes no microcosmo local. A categoria da guloseima também simbolizava um opimo engodo. Ninguém tinha quaisquer dúvidas de que brevemente o oficial teria duas contas bancárias, sendo uma bastante mais choruda do que a outra, como todos os que o tinham precedido. Eram trabalhados pouco a pouco e, inconscientemente, findavam por colaborar com os candongueiros. Até àquele dia, não houve excepções.

Todavia, não eram apenas os guardas civis que fiscalizavam a zona do regato que comiam. Do outro lado da ponte, os que dependiam do posto de Crecente, província de Pontevedra, vigiavam a faixa internacional do rio Minho até ao limite de Arbo; rapidamente se aperceberam do vaivém dos Pegasos e do trabalho de  formiga entre a loja do Manolo e a casa do Nelo, em Cevide. Exigiram, pois, parte do bolo para continuarem a ignorar o atacadista de frutas, assim como o destinatário, o Manolo.

Todos os veículos que transportassem qualquer tipo de mercadorias e fossem vistoriados a uma demarcada distância da fronteira, o condutor – segundo a lei – era obrigado a certificar a procedência e a comunicar o nome e morada do destinatário, apresentando a factura atinente; por sua vez, o receptor, estando situado no interior do espaço contíguo à linha fronteiriça, tinha a imposiçao de anunciar às autoridades fronteiriças locais a veniaga com antecedência, quando esta ultrapassava uma quota definida.

 

Continua.