AO NELO, IN MEMORIAM II
Estava um frio de rachar, que nem sentiam devido ao ritmo acelerado da marcha. O dia avançava, as nuvens prometiam borrasca e o caminho de ferro nem vê-lo. Deixaram os caminhos batidos, meteram por atalhos, saltaram muros, afastando-se das aldeias e das casas isoladas que iam aparecendo com regularidade. O Paco sempre à frente, os rapazes seguindo-o e sentindo que não era por ali, que algo não estava a correr como devia, demoraram a interroga-lo. Já faltava pouco, era só mais uma carvalheira, depois de um ribeiro onde havia um moinho. Este veio ao encontro deles, mesmo a tempo de os abrigar de um temporal medonho. Ficariam ali, não poderiam continuar debaixo de tanta chuva, não conseguiriam apanhar o comboio, ele ia procurar comida, voltava logo. Cansados, estendidos como puderam na exiguidade do espaço, caíram nos braços de Morfeu. O primeiro a acordar foi o Nelo. Estava tão escuro que não enxergava nada, abriu a porta para confirmar que era noite cerrada e continuava a chover. Acordou os outros, perguntou as horas ao Berto, o único que tinha relógio, herdado do avô paterno. Era quase meia noite. O filho da mãe do Paco não tinha voltado, tê-los-ia abandonado? Cheios de fome, partilharam os restos que encontraram no fundo dos sacos, as castanhas, nada de substancial. O medo tomava conta de todos, primeiro e durante um certo tempo em silêncio, depois à mistura com pragas e pedidos de ajuda a Deus, Nosso Senhor, à Senhora de Fátima. Tinham de esperar pela manhã, o melhor era continuarem a dormir, pelo menos descansavam e enganavam a fome. O Nelo não conseguia, só pensava em ser apanhado pela guarda, recambiado para Portugal e acabar por ir parar à Angola.
Raiava o dia quando ouviram passos. Devia ser o Paco, o magano tinha passado a noite no bem bom. Abriram a porta de rompante e deram de caras com um estranho, velhote, magricelas, um bigode que lhe tapava metade da cara, carregando um saco. O espanto foi de parte a parte, mas foi o idoso que falou, queria saber quem eram, o que faziam no seu moinho. Incrédulos, os rapazes ficaram sem voz. À insistência do mais velho respondeu o Alberto, que se tinham abrigado da chuva, esperavam um companheiro para partir, para lhes ensinar o caminho, era o Paco, tê-lo-ia visto? Pacos havia muitos na Galiza, era o nome do caudilho. Eram portugueses, a caminho de França? Não havia nenhum lugar ali perto, só duas casas, a dele e a da sua mãe, o tal Paco, se é que existia, abandonara-os. Havia muitos Pacos a enganar pobres como eles. Depois de pôr o milho a moer, punha-os no caminho para o comboio. Contaram-lhe do assalto, estavam sem dinheiro para comprar comida, tinham fome, mas não podiam voltar para trás. Por mais fortes que quisessem parecer, não podiam evitar as lágrimas.
O velho, de seu nome Antenor Cardeu, podiam tratá-lo por Cardeu, condoeu-se dos rapazes. Não havia perigo de serem apanhados por aquelas bandas, mas sem bilhetes nem dinheiro para o comboio não via como seguiriam viagem. Serviu-os de pão à descrição e preparou-lhes água de unto com ovos, até parecia que estavam em casa. Podiam aceitar ou não, era com eles, mas perto havia uma serração, seguramente arranjariam lá trabalho. Não sabiam como agradecer, seguiram para o “pueblo”. O Alberto não se queria expor, tinha algum dinheiro escondido, mas não dava para todos, queria seguir, mas não se queria sozinho. Ficava escondido, à espera de informações, se arranjassem uns dias de trabalho para ganharem para a passagem, ele juntava-se a eles depois, mas que estivessem atentos a ver se havia guardas por perto, e queriam ser pagos no fim de cada dia, era melhor não confiar nos galegos.
Trabalho para quatro ou cinco? Claro que sim, sobretudo se de braços fortes para arrastar os toros de árvore, para os descascar, para empilhar as achas. Acertaram-se, não queriam saber de horários, quanto mais trabalhassem, melhor. A madeireira ficava junto da linha do comboio, muita da madeira saía dali pelos carris. Os rapazes concertaram-se para se esconderem no meio da lenha e viajarem escondidos, era só estudarem os horários e o destino dos comboios. Quase não comiam para poupar dinheiro, dormiam nos fundos da serração, o capataz tinha bom coração, não fez perguntas quando apareceu o quinto elemento, deu-lhes uns cobertores velhos para se taparem. Uma noite apareceu lá, com um caldeirão de caldo, para aquecerem o bandulho. O Nelo ainda se lembra de tudo o que tinha aquela sopa, que lhe soube pela vida, melhor do que o que a sua mãe fazia e com que os tinha criado a ele e aos irmãos. O senhor Xosé disse-lhes que tinham de partir logo, havia uns bufos por ali, ouvira uns zunzuns, os passadores estavam de olho aberto, o patrão não queria problemas, se os encontrassem sobrava para todos, incluso para ele. Com o coração nas mãos, agradeceram e despediram-se, os poucos pesos que tinham ganho dariam para comer uns dias.
Arriscaram num comboio de mercadorias, passava devagar, muito lento, não custou nada saltar para cima. Levá-los-ia até à Hendaia, mas tinham de sair antes da fronteira e atravessar a pé. Do lado de lá havia menos perigo de serem presos, os franceses eram menos maus que os castelhanos. Estes conselhos ou instruções, vejam-se como se quiser, saíram da boca de Xosé, desejava-lhes boa sorte, na França talvez encontrassem algum trabalho no campo, deviam sair das grandes estradas, não dar nas vistas. “Adiós, coño”, já estava a ficar sentimental.
(continua)