Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 18

melgaçodomonteàribeira, 10.10.20

 

Por detrás do telheiro onde o Fernando habitualmente fendia a lenha, espraiava-se um descampado no qual meia dúzia de virtuosos do anzol aparcavam os automóveis. Ali principiava o caminho que os pescadores seguiam para alcançar o lado esquerdo da represa. Com o tempo, a água das comportas fora puxando rochedos e criara uma lagoa diante do imponente paredão no qual repousava o local de controlo. Naquele sítio, pescavam-se os melhores arquétipos de salmões e todos queriam implantar-se lá.

Os profissionais e os amadores, em maioria, faziam a viagem por este fenomenal  peixe, mas alguns faziam-na pela truta arco-íris do regato, sápida, combatente e, para muitos, tão aprazível e difícil de pescar como o salmão.

O Capador, o Zafra e o Eduardo eram os mais fiéis. O primeiro, cuja alcunha era o breviário da sua insólita profissão, vinha dos lados da Corunha; o segundo, o Zafra, depois de uma estada na Venezuela, fundara um comércio de electrodomésticos em Ribadávia; o terceiro, o Eduardo, da mesma vila, era representante-distribuidor de bebidas.

Havia anos que, do princípio de Março até ao fim de Maio, período autorizado para a pesca do salmão, se concentravam os três na Frieira aos sábados de manhã, antes de o Manolo abrir as portas. Pescavam até até ao fim da tarde, obtemperando à paixão que os inflamava. Acampavam, naturalmente, do lado esquerdo da barragem na penha mais bem situada.

Por volta das três da tarde almoçavam no bar do Manolo. Todas as semanas, ritualmente, comiam uns bistés – bifes – do talho do Celso, bem sangrentos, e batatas fritas de pacote. Satisfeitos, tomavam café e degustavam um maravilhoso conhaque Carlos I. Havia muito que o Eduardo trazia uma garrafa e, quando via que continha a espessura de um dedo, renovava-a. Recobravam em seguida o lugar junto do rio onde tinham deixado as canas armadas e entaladas entre os penedos.

Porém, o rei do salmão era o Adriano, o irmão da Otília, que vivia numa casa próxima da dela. Sem o menor complexo, reconhecia que, durante a Guerra Civil, ele e os moços da sua idade iam, em parte, aos serões das casas mais ricas da zona para matar a fome.

«Naquele tempo, não havia electricidade. », confiava o Adriano. « Então, trazíamos sempre um canivete bem afiado no bolso e se houvesse chouriços dependurados, à mínima oportunidade, zás! Quantas vezes tive de amparar um chouriço entalado entre as calças e a camisa!»

Desses tempos todos se rememoravam, mas como a vergonha é um complexo narcísico, poucos falavam deles. Em geral, os sarões eram realizados na casa dos pais de uma  ou mais chavalas – moças –, na cozinha, ao calor da lareira. Duas ou três velas e as labaredas ocasionadas pelas achas iluminavam toscamente o recinto. Ali se reuniam habitantes da aldeia e de outros lugares vizinhos: moços, moças, pais e/ou mães, tios e primos. O fundamento era aproveitar as infindáveis noites de inverno. As mulheres ensinavam às moças a tecer, a bordar e a coser; os anciãos contavam façanhas e legendas inverosímeis que cortavam o fôlego aos jovens. Um gaiteiro punha os jovens a dançar frequentemente. Mas estas reuniões também eram feitas com o intuito dos jovens se relacionarem, se prezarem e constituírem casais para ultimarem na igreja.

Aquando da construção da barragem, na metade dos fundos da casa, montou um bar. Num canto deste, além de louças típicas galegas, expunha, para venda, tudo o que fosse necessário ao mais profissional e difícil pescador. Findos os trabalhos da central hidroeléctrica, poucos anos demorou em fechar.

Possuidor de uma colecção de dezenas de canas, de carretos e de centenas de amostras e anzóis, para ele, a pesca era mais do que um eretismo: era um culto que se amplificara desde a adolescência e que vivia com mais intensidade cada dia que passava. Fusionara e conciliara a desmedida felicidade com que a pesca o facultava, e os úteis episódios monetários que o famigerado salmão do rio Minho lhe assegurava. Podia discorrer de pesca durante horas como outros o faziam de política ou de futebol.

Alegava, com uma petulante fatuidade, que era filho e herdeiro do rio; que o curso de água, por meio de frémitos voluptuosos ou de grunhidos tonitruantes, lhe cochichava as ocasiões oportunas para provocar, afrontar e derrotar o senhor do rio Minho: o portentoso e venerado salmão. Regra geral, aproveitava os dois lusco-fuscos, os períodos mais adequados do dia para pescar. Aproximava-se das grades da ponte, especulava o caudal e perscrutava com recolhimento o que o rio lhe sussurrava. Só depois é que tomava a decisão de baixar ou não. 

E, para arrematar o quadro vesano, proclamava sem pestanejar que, durante os frenéticos minutos de contenda para arrancar o salmão da água – que podiam ser da ordem das dezenas –, se extasiava tanto ou mais como quando copulava loucamente com a esposa. «Só me falta ejacular», frisava, dando uma gargalhada.

Durante o dia, se constatasse que uma variação súbita cerceava o zumbido ordinário da corrente do rio, sinal de que tinham fechado pelo menos cinco das sete comportas do dique – prática atípica –, saía pressurosamente da casa de cana na mão. O nível da água baixava de tal modo que os peixes presentes diante da represa se encontravam súbita e temporariamente amputados de liberdade num espaçoso tanque. Os escalos e as bogas – de longe os mais profusos – encantoados nas pedras, saltavam por falta de oxigénio. Nestes acasos, dirigia-se apressadamente para a margem direita do rio; menos pedregosa, oferecia uns meios formidáveis para pescar.

As chances de um salmão fazer parte dos aprisionados não eram elevadas, mas se se desse o caso, a probabilidade de capturar um era largamente plausível.

Fora visto com assiduidade provindo do rio esbaforido, mas embevecido e altivo, pavoneando elegantemente nos braços um enorme bebé, termo que utilizava quando evocava os salmões.

Alguns exemplares transcenderam o peso reverencioso de quinze quilos. Geralmente – salvo uma adventícia reservação para um casamento – vendia-os aos parcos restaurantes gastronómicos vigueses, aos dos hotéis de luxo, os únicos que podiam pagar o avultado preço que o quilograma valia.

Os amorosos deste desporto difuso que ali pescavam testemunhavam-lhe um respeito mítico; conceituavam-no como o melhor, o primado.

 

Continua.