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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

AO NELO, IN MEMORIAM III

melgaçodomonteàribeira, 31.10.20

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Chegaram a França de noite, seguindo a linha de comboio de longe, por sorte ainda tinham as lanternas. Pararam debaixo de um viaduto para passarem a noite, aconchegaram-se uns nos outros. Antes de adormecerem, a conversa girou entre as saudades de casa, maldições aos passadores gatunos, a bela panela de sopa com que o senhor Xosé lhes aquecera o corpo e a alma antes de correr com eles, o que fazer nos dias seguintes, como chegar a Paris. Já era dia alto quando se fizeram ao caminho, esperando encontrar indicações na estrada, uma venda para comprar pão. O mais afoito era o Alberto e foi ele que se aventurou a ir às compras. Voltou com uma peça para cada um, era a ração do dia. Caminhavam depressa, sempre em direção a Bordeaux. Estavam exaustos e deram com uma estação de comboio. Tentavam apanhá-lo? Era um risco, mas se tivessem sorte… valia a pena esperar pela noite e entretanto dois deles podiam ir ver se arranjavam comida. O Zé e o Nelo ofereceram-se. Fartaram-se de andar e não lhes ocorria nenhuma ideia. Sentaram-se à entrada de um portão, desanimados, passado pouco tempo surgiu um homem e um cão, que começou a rosnar-lhes. Não entendiam o que o homem lhes dizia, mas entenderam que deviam sair dali. O Nelo falou com o cão, os animais eram todos seus amigos, aquele começou a ladrar-lhe, parecia que os estava a expulsar. E eles obedeceram. Pararam num estaminé, vários camiões à porta. Entraram e vinte olhos em cima deles. Entender o que lhes diziam, nem patavina. Queriam comer e disseram com gestos o que a língua não conseguia, apontando para as sandes que estavam à vista, pediram cinco, os dedos de uma mão. As pesetas que puseram em cima do balcão não pareciam interessar ao dono do café, acabando por retirar as que quis, os rapazes não controlavam nada. A cena continuou, cada vez mais insólita, com um homenzarrão a dirigir-se-lhes, só entendiam Paris, saiu com eles, mostrou-lhes um camião, Paris, Paris e mais nada. Largaram-no e desataram a fugir, de volta para os companheiros. O Nelo e o Zé atropelavam-se a contar o episódio, se calhar estava a oferecer-se para os levar, intuía o Alberto. Voltaram ao café, o camião tinha partido.

Andaram nestas andanças por mais uns dias, a dormir onde calhava, alimentados a pão e água e umas maças que tinham ficado como refugo nas árvores, a fugir de cães que lhes ladravam como se fossem salteadores, a ver portas que se lhes fechavam na cara. Pareciam maltrapilhos quando se abeiraram da grande cidade. Para se protegerem da chuva que os trespassava até aos ossos escolheram um abrigo de autocarros e aí se deixaram ficar, famintos, sem dinheiro, sujos e rotos, metiam nojo aos cães, na expressão do Nelo. Foi aí que até a comida que a mãe dava aos porcos lhe acudiu à ideia para matar a fome. Já nem falavam uns com os outros, todo o diálogo era interior, solitário, repleto de saudades e lágrimas escondidas, todos se sentiam no maior desamparo, nenhum queria ser o primeiro a dar parte de fraco.

Durante a noite, o Tono começou a tossir sem parar, a dizer coisas estranhas. O Berto pôs-lhe a mão na testa, ardia em febre. Tremia como varas verdes, doía-lhe muito o peito, tinha dificuldade em respirar. Tinham de fazer algo. Até ali, tinham procurado afastar-se da polícia, mas, no estado a que tinham chegado, mais pobres do que os pobres que andavam a pedir de porta em porta na terra deles, com o Tono incapaz de se mexer, a delirar, parecia que tinha gatos no peito, deviam entregar-se, que fosse o que Deus quisesse.

Na esquadra da polícia, tomaram banho, vestiram roupas lavadas, comeram até querer. Menos o Tono, que levaram de imediato para o hospital. Pareciam animais assustados, encolhidos, encostados uns aos outros, buscando algum conforto na proximidade física. Chegou um intérprete, explicaram que iam ter com familiares a Paris, tinham sido roubados, o Nelo desatou a chorar, incapaz de continuar. Tomaram-lhe o papel quase desfeito da mão, iam verificar, não se preocupassem, nada de mal lhes iria acontecer. Levaram-nos para uma camarata, deram-lhes cama para descansar, quando acordassem veriam tudo menos negro.

O tio Jaime confirmou que esperava os rapazes, partiria para Bordeaux tomar conta do caso na mesma tarde. No dia seguinte, apresentou-se na esquadra, identificou o sobrinho e os outros, responsabilizava-se por todos, pelo que estava no hospital também. Antes de partir, foram visitá-lo, o tio Jaime e o companheiro deram a morada, o nome do chefe, a empresa onde trabalhavam, quando o rapaz estivesse bem da pneumonia iriam busca-lo.

Três semanas de pesadelo, praticamente desde que saíram de casa até ao encontro com o tio Jaime, numa esquadra de polícia às portas de Bordeus, foi quanto durou a viagem dos jovens para a terra da promissão. Ainda não tinham entrado na idade adulta e já tinham provado até ao âmago a fome, o frio, o medo, a desconfiança. Ficavam vacinados contra a maldade dos homens, mas ganharam confiança na polícia e na bondade das instituições do país que os acolhia para lhes proporcionar uma vida melhor.

 

                                                                        Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

1 de Novembro de 2014

 

 

 

 

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 19

melgaçodomonteàribeira, 24.10.20

 

Na parte traseira do prédio do Manolo, deslizava um caminho recentemente cimentado que perecia num exíguo largo salvaguardado por umas alminhas cujo santo desvanecera sem ninguém já saber quando. Dali até ao rio, através de uma calçada de extensas pedras puídas pelo homem e pela natureza, atingia-se o que, desde sempre, fora um embarcadouro: o Porto de Bergote. Ao lado, o regato Trancoso e o rio Minho acoplavam-se, formando ângulos rectos entre os dois países.

Para descarregar as caixas de bananas ao abrigo de olhares barulhentos, o Manolo fizera instalar uma grande porta de ferro basculante do lado direito do rés-do-chão, lado que ficava a uma vintena de metros da estrada principal. Os camiões Pegaso dos anos 60 chegavam lastrados, desciam com a máxima prudência o caminho de marcha atrás e adrentavam metade do veículo nos enormes os fundos. Foi o que se verificou nesse dia a meio da tarde: o camião foi aliviado num ápice das cinco toneladas de bananas vindas de Vigo.

Embora houvesse contrabando nos dois sentidos, o fluxo foi sempre superior no sentido Portugal-Espanha, mas havia uns anos que Espanha ganhava terreno. Toneladas de peixe, gambas e camarão entravam diariamente em Portugal cursando os dois rios; manadas de gado bovino, do vitelo à vaca, assim como automóveis roubados em França atravessavam a raia seca na região de Castro Laboreiro.

Depois de enterrado o fascismo, o governo português estava – mais uma vez – ante uma complicada e embaraçadora penúria de divisas. Vitais para as imprescindíveis importações, decidiu, pois, anexar determinadas mercadorias às já catalogadas – consideradas acessórias – como produtos de luxo e taxá-las como tal. Entre os produtos dispensáveis, figurava, pois, a banana; os portugueses teriam de se consolar com a magra colheita das da Madeira e dos Açores, cuja inflação, forçosamente, disparou. Esta anódina medida foi o suficiente para desencadear, imediatamente, um sulfuroso contrabando do exótico fruto de Espanha para Portugal.

A banana vinha das ilhas Canárias, territórios insulares espanhóis, e entrava pelo porto de Vigo. Dali, era encaminhada pelos grossistas em camiões de média tonelagem e distribuída pelos passadouros. Entre a Frieira e Caminha, galgava o Minho em batelas; da foz do Trancoso até A-Da-Velha, galgava o insignificante regato às costas de carregadores. Em Cristóval, decorrente do trajecto, havia quem utilizasse uma mula.

Nestes dois cursos de água desproporcionados, que formavam fronteiras naturais, havia séculos que o contrabando estava programado; era uma componente social e económica inata. As redes, as zonas e a logística utilizadas eram, na generalidade, as mesmas, fosse qual fosse o produto contrabandeado. Apenas comutavam os contrabandistas.

Correntemente, por razões organizacionais e securitárias, as bananas eram  levadas ao lombo na mesma noite da Frieira para Cevide por jovens musculosos e de uma resistência inoxidável, de onde saíam nessa noite ou no dia seguinte para vários pontos do país.

Porém, havia uns dias que um sério obstáculo perdurava. Para o Manolo e os seus associados era insolucionável, fazendo com que, do lado espanhol, a garantia de protecção  fosse ambígua. A solução do óbice só podia vir de Portugal. A  transferência  das dez toneladas de bananas para território português naquela noite era incerta.

O nervosismo e a contrariedade que nos dias crónicos de manivérsia se apossavam  do Manolo eram perceptíveis pelos íntimos.

Apenas dois guardas civis do posto de Puente Barjas, província de Ourense, os que vigiavam o tramo do rio Trancoso, não se deixavam estipendiar. O tenente andaluz que os comandava havia pouco tinha, como estes seus subordinados conscienciosos, inconcussos, uma profunda lealdade ao cargo; como eles, lutava, para não sucumbir à sedutora e dificilmente reprimível atracção da opulência que o dinheiro lhe permitiria; como eles, resistia ferronha e obstinadamente a todas as proposições de cooperação, por mais estimulantes que fossem; como eles, batalhava para proteger a sua probidade, a sua honra.

No entanto, os dois guardas civis não representavam um estorvo significativo para os passadores. Com resguardo, eram obliquamente quadrilhados em permanência pelos pervertidos que lhes desmanchavam uniformemente qualquer intento íntegro de neutralizar ou, ainda que fosse, contrariar os contrabandistas.

Era uma postura clássica e característica, tanto do comandante como dos guardas civis. Os recém-chegados necessitavam de uma etapa para se adaptarem, apesar de haver sempre um ou outro renitente.

Por este motivo, quando havia um imperativo que realmente necessitasse a esterilização do tenente, recorriam a intermediários, pessoas influentes, o escol da região que, directa ou indirectamente, estavam conectados com os chefes das redes. Estas benemerências convidavam amigavelmente o oficial subalterno para jantar um dia preciso num restaurante gastronómico arredado da raia, com o único intuito de o terem localizado enquanto que a mercadoria mudava de país. Era um convite que o tenente não podia recusar devido ao influente peso dos requerentes no microcosmo local. A categoria da guloseima também simbolizava um opimo engodo. Ninguém tinha quaisquer dúvidas de que brevemente o oficial teria duas contas bancárias, sendo uma bastante mais choruda do que a outra, como todos os que o tinham precedido. Eram trabalhados pouco a pouco e, inconscientemente, findavam por colaborar com os candongueiros. Até àquele dia, não houve excepções.

Todavia, não eram apenas os guardas civis que fiscalizavam a zona do regato que comiam. Do outro lado da ponte, os que dependiam do posto de Crecente, província de Pontevedra, vigiavam a faixa internacional do rio Minho até ao limite de Arbo; rapidamente se aperceberam do vaivém dos Pegasos e do trabalho de  formiga entre a loja do Manolo e a casa do Nelo, em Cevide. Exigiram, pois, parte do bolo para continuarem a ignorar o atacadista de frutas, assim como o destinatário, o Manolo.

Todos os veículos que transportassem qualquer tipo de mercadorias e fossem vistoriados a uma demarcada distância da fronteira, o condutor – segundo a lei – era obrigado a certificar a procedência e a comunicar o nome e morada do destinatário, apresentando a factura atinente; por sua vez, o receptor, estando situado no interior do espaço contíguo à linha fronteiriça, tinha a imposiçao de anunciar às autoridades fronteiriças locais a veniaga com antecedência, quando esta ultrapassava uma quota definida.

 

Continua.

 

 

 

AO NELO, IN MEMORIAM II

melgaçodomonteàribeira, 17.10.20

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Estava um frio de rachar, que nem sentiam devido ao ritmo acelerado da marcha. O dia avançava, as nuvens prometiam borrasca e o caminho de ferro nem vê-lo. Deixaram os caminhos batidos, meteram por atalhos, saltaram muros, afastando-se das aldeias e das casas isoladas que iam aparecendo com regularidade. O Paco sempre à frente, os rapazes seguindo-o e sentindo que não era por ali, que algo não estava a correr como devia, demoraram a interroga-lo. Já faltava pouco, era só mais uma carvalheira, depois de um ribeiro onde havia um moinho. Este veio ao encontro deles, mesmo a tempo de os abrigar de um temporal medonho. Ficariam ali, não poderiam continuar debaixo de tanta chuva, não conseguiriam apanhar o comboio, ele ia procurar comida, voltava logo. Cansados, estendidos como puderam na exiguidade do espaço, caíram nos braços de Morfeu. O primeiro a acordar foi o Nelo. Estava tão escuro que não enxergava nada, abriu a porta para confirmar que era noite cerrada e continuava a chover. Acordou os outros, perguntou as horas ao Berto, o único que tinha relógio, herdado do avô paterno. Era quase meia noite. O filho da mãe do Paco não tinha voltado, tê-los-ia abandonado? Cheios de fome, partilharam os restos que encontraram no fundo dos sacos, as castanhas, nada de substancial. O medo tomava conta de todos, primeiro e durante um certo tempo em silêncio, depois à mistura com pragas e pedidos de ajuda a Deus, Nosso Senhor, à Senhora de Fátima. Tinham de esperar pela manhã, o melhor era continuarem a dormir, pelo menos descansavam e enganavam a fome. O Nelo não conseguia, só pensava em ser apanhado pela guarda, recambiado para Portugal e acabar por ir parar à Angola.

Raiava o dia quando ouviram passos. Devia ser o Paco, o magano tinha passado a noite no bem bom. Abriram a porta de rompante e deram de caras com um estranho, velhote, magricelas, um bigode que lhe tapava metade da cara, carregando um saco. O espanto foi de parte a parte, mas foi o idoso que falou, queria saber quem eram, o que faziam no seu moinho. Incrédulos, os rapazes ficaram sem voz. À insistência do mais velho respondeu o Alberto, que se tinham abrigado da chuva, esperavam um companheiro para partir, para lhes ensinar o caminho, era o Paco, tê-lo-ia visto? Pacos havia muitos na Galiza, era o nome do caudilho. Eram portugueses, a caminho de França? Não havia nenhum lugar ali perto, só duas casas, a dele e a da sua mãe, o tal Paco, se é que existia, abandonara-os. Havia muitos Pacos a enganar pobres como eles. Depois de pôr o milho a moer, punha-os no caminho para o comboio. Contaram-lhe do assalto, estavam sem dinheiro para comprar comida, tinham fome, mas não podiam voltar para trás. Por mais fortes que quisessem parecer, não podiam evitar as lágrimas.

O velho, de seu nome Antenor Cardeu, podiam tratá-lo por Cardeu, condoeu-se dos rapazes. Não havia perigo de serem apanhados por aquelas bandas, mas sem bilhetes nem dinheiro para o comboio não via como seguiriam viagem. Serviu-os de pão à descrição e preparou-lhes água de unto com ovos, até parecia que estavam em casa. Podiam aceitar ou não, era com eles, mas perto havia uma serração, seguramente arranjariam lá trabalho. Não sabiam como agradecer, seguiram para o “pueblo”. O Alberto não se queria expor, tinha algum dinheiro escondido, mas não dava para todos, queria seguir, mas não se queria sozinho. Ficava escondido, à espera de informações, se arranjassem uns dias de trabalho para ganharem para a passagem, ele juntava-se a eles depois, mas que estivessem atentos a ver se havia guardas por perto, e queriam ser pagos no fim de cada dia, era melhor não confiar nos galegos.

Trabalho para quatro ou cinco? Claro que sim, sobretudo se de braços fortes para arrastar os toros de árvore, para os descascar, para empilhar as achas. Acertaram-se, não queriam saber de horários, quanto mais trabalhassem, melhor. A madeireira ficava junto da linha do comboio, muita da madeira saía dali pelos carris. Os rapazes concertaram-se para se esconderem no meio da lenha e viajarem escondidos, era só estudarem os horários e o destino dos comboios. Quase não comiam para poupar dinheiro, dormiam nos fundos da serração, o capataz tinha bom coração, não fez perguntas quando apareceu o quinto elemento, deu-lhes uns cobertores velhos para se taparem. Uma noite apareceu lá, com um caldeirão de caldo, para aquecerem o bandulho. O Nelo ainda se lembra de tudo o que tinha aquela sopa, que lhe soube pela vida, melhor do que o que a sua mãe fazia e com que os tinha criado a ele e aos irmãos. O senhor Xosé disse-lhes que tinham de partir logo, havia uns bufos por ali, ouvira uns zunzuns, os passadores estavam de olho aberto, o patrão não queria problemas, se os encontrassem sobrava para todos, incluso para ele. Com o coração nas mãos, agradeceram e despediram-se, os poucos pesos que tinham ganho dariam para comer uns dias.

Arriscaram num comboio de mercadorias, passava devagar, muito lento, não custou nada saltar para cima. Levá-los-ia até à Hendaia, mas tinham de sair antes da fronteira e atravessar a pé. Do lado de lá havia menos perigo de serem presos, os franceses eram menos maus que os castelhanos. Estes conselhos ou instruções, vejam-se como se quiser, saíram da boca de Xosé, desejava-lhes boa sorte, na França talvez encontrassem algum trabalho no campo, deviam sair das grandes estradas, não dar nas vistas. “Adiós, coño”, já estava a ficar sentimental.

 

(continua)

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 18

melgaçodomonteàribeira, 10.10.20

 

Por detrás do telheiro onde o Fernando habitualmente fendia a lenha, espraiava-se um descampado no qual meia dúzia de virtuosos do anzol aparcavam os automóveis. Ali principiava o caminho que os pescadores seguiam para alcançar o lado esquerdo da represa. Com o tempo, a água das comportas fora puxando rochedos e criara uma lagoa diante do imponente paredão no qual repousava o local de controlo. Naquele sítio, pescavam-se os melhores arquétipos de salmões e todos queriam implantar-se lá.

Os profissionais e os amadores, em maioria, faziam a viagem por este fenomenal  peixe, mas alguns faziam-na pela truta arco-íris do regato, sápida, combatente e, para muitos, tão aprazível e difícil de pescar como o salmão.

O Capador, o Zafra e o Eduardo eram os mais fiéis. O primeiro, cuja alcunha era o breviário da sua insólita profissão, vinha dos lados da Corunha; o segundo, o Zafra, depois de uma estada na Venezuela, fundara um comércio de electrodomésticos em Ribadávia; o terceiro, o Eduardo, da mesma vila, era representante-distribuidor de bebidas.

Havia anos que, do princípio de Março até ao fim de Maio, período autorizado para a pesca do salmão, se concentravam os três na Frieira aos sábados de manhã, antes de o Manolo abrir as portas. Pescavam até até ao fim da tarde, obtemperando à paixão que os inflamava. Acampavam, naturalmente, do lado esquerdo da barragem na penha mais bem situada.

Por volta das três da tarde almoçavam no bar do Manolo. Todas as semanas, ritualmente, comiam uns bistés – bifes – do talho do Celso, bem sangrentos, e batatas fritas de pacote. Satisfeitos, tomavam café e degustavam um maravilhoso conhaque Carlos I. Havia muito que o Eduardo trazia uma garrafa e, quando via que continha a espessura de um dedo, renovava-a. Recobravam em seguida o lugar junto do rio onde tinham deixado as canas armadas e entaladas entre os penedos.

Porém, o rei do salmão era o Adriano, o irmão da Otília, que vivia numa casa próxima da dela. Sem o menor complexo, reconhecia que, durante a Guerra Civil, ele e os moços da sua idade iam, em parte, aos serões das casas mais ricas da zona para matar a fome.

«Naquele tempo, não havia electricidade. », confiava o Adriano. « Então, trazíamos sempre um canivete bem afiado no bolso e se houvesse chouriços dependurados, à mínima oportunidade, zás! Quantas vezes tive de amparar um chouriço entalado entre as calças e a camisa!»

Desses tempos todos se rememoravam, mas como a vergonha é um complexo narcísico, poucos falavam deles. Em geral, os sarões eram realizados na casa dos pais de uma  ou mais chavalas – moças –, na cozinha, ao calor da lareira. Duas ou três velas e as labaredas ocasionadas pelas achas iluminavam toscamente o recinto. Ali se reuniam habitantes da aldeia e de outros lugares vizinhos: moços, moças, pais e/ou mães, tios e primos. O fundamento era aproveitar as infindáveis noites de inverno. As mulheres ensinavam às moças a tecer, a bordar e a coser; os anciãos contavam façanhas e legendas inverosímeis que cortavam o fôlego aos jovens. Um gaiteiro punha os jovens a dançar frequentemente. Mas estas reuniões também eram feitas com o intuito dos jovens se relacionarem, se prezarem e constituírem casais para ultimarem na igreja.

Aquando da construção da barragem, na metade dos fundos da casa, montou um bar. Num canto deste, além de louças típicas galegas, expunha, para venda, tudo o que fosse necessário ao mais profissional e difícil pescador. Findos os trabalhos da central hidroeléctrica, poucos anos demorou em fechar.

Possuidor de uma colecção de dezenas de canas, de carretos e de centenas de amostras e anzóis, para ele, a pesca era mais do que um eretismo: era um culto que se amplificara desde a adolescência e que vivia com mais intensidade cada dia que passava. Fusionara e conciliara a desmedida felicidade com que a pesca o facultava, e os úteis episódios monetários que o famigerado salmão do rio Minho lhe assegurava. Podia discorrer de pesca durante horas como outros o faziam de política ou de futebol.

Alegava, com uma petulante fatuidade, que era filho e herdeiro do rio; que o curso de água, por meio de frémitos voluptuosos ou de grunhidos tonitruantes, lhe cochichava as ocasiões oportunas para provocar, afrontar e derrotar o senhor do rio Minho: o portentoso e venerado salmão. Regra geral, aproveitava os dois lusco-fuscos, os períodos mais adequados do dia para pescar. Aproximava-se das grades da ponte, especulava o caudal e perscrutava com recolhimento o que o rio lhe sussurrava. Só depois é que tomava a decisão de baixar ou não. 

E, para arrematar o quadro vesano, proclamava sem pestanejar que, durante os frenéticos minutos de contenda para arrancar o salmão da água – que podiam ser da ordem das dezenas –, se extasiava tanto ou mais como quando copulava loucamente com a esposa. «Só me falta ejacular», frisava, dando uma gargalhada.

Durante o dia, se constatasse que uma variação súbita cerceava o zumbido ordinário da corrente do rio, sinal de que tinham fechado pelo menos cinco das sete comportas do dique – prática atípica –, saía pressurosamente da casa de cana na mão. O nível da água baixava de tal modo que os peixes presentes diante da represa se encontravam súbita e temporariamente amputados de liberdade num espaçoso tanque. Os escalos e as bogas – de longe os mais profusos – encantoados nas pedras, saltavam por falta de oxigénio. Nestes acasos, dirigia-se apressadamente para a margem direita do rio; menos pedregosa, oferecia uns meios formidáveis para pescar.

As chances de um salmão fazer parte dos aprisionados não eram elevadas, mas se se desse o caso, a probabilidade de capturar um era largamente plausível.

Fora visto com assiduidade provindo do rio esbaforido, mas embevecido e altivo, pavoneando elegantemente nos braços um enorme bebé, termo que utilizava quando evocava os salmões.

Alguns exemplares transcenderam o peso reverencioso de quinze quilos. Geralmente – salvo uma adventícia reservação para um casamento – vendia-os aos parcos restaurantes gastronómicos vigueses, aos dos hotéis de luxo, os únicos que podiam pagar o avultado preço que o quilograma valia.

Os amorosos deste desporto difuso que ali pescavam testemunhavam-lhe um respeito mítico; conceituavam-no como o melhor, o primado.

 

Continua.

 

AO NELO, IN MEMORIAN I

melgaçodomonteàribeira, 03.10.20

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 lançamento do livro de olinda de carvalho - e agora, luisa

A SALTO

Ao Nelo, in memoriam

 

Desde que se meteu ao caminho, naquela noite escura e fria de um outono invernoso, a sua vida tomaria um rumo que faria dele um homem diferente. Os seus companheiros tornar-se-iam irmãos, as vicissitudes por que passaram aproximaram-nos como se tivessem nascido do mesmo ventre, foi como se os filhos de sua mãe passassem de quatro para oito. A salto para França, em mil novecentos e sessenta e seis. Para fugir a uma servidão que podia mais do que a entrega sem restrições de alguns anos de vida, era um risco para a vida. Quando o edital com os nomes dos mancebos para ir à inspeção aparecia afixado na porta da igreja, era o momento de dar o salto. A decisão de deixar a terra e se recusar a cumprir o serviço militar nem foi sua, mas aceitou-a como natural, era comum à esmagadora maioria dos rapazes em idade de servir o país. Portugal do Minho a Timor era fácil de decorar mas difícil de entender por crianças que viviam livres, arriscar a vida por essa Pátria abstrata não estava no seu horizonte. Os que não conseguiam fugir a esse destino por meios legais, que os havia, arriscavam a fuga numa viagem clandestina que, muitas vezes, raiava os limites da sobrevivência. Pelo menos, esta foi a perceção que o Nelo passava, sempre que o assunto vinha à baila.

A despedida foi cheia de muitas lágrimas, muitas recomendações, muitas saudades antecipadas, que seria da sua mãe com mais um filho de abalada, sem mais dois braços fortes para a aliviar? Parecia ao Nelo que mais do que a partida da sua pessoa, era a falta do que ele deixaria de fazer que a mãe lamentava. E não se atrevia a deixar que uma lágrima sequer se soltasse, seria a nascente de um rio caudaloso que era preciso conter, um homem não chora.

Estava escuro como breu, mas não tanto como o seu coração, quando os companheiros passaram a busca-lo e só a fraca luz das lanternas os impedia de andar ao pontapé às pedras, de mergulhar o pé numa das inúmeras poças que havia pelo caminho. O percurso da primeira etapa era bem conhecido, estavam todos habituados a calcorreá-lo nas viagens de contrabando useiras para um e outro lado da fronteira. Não temiam os carabineiros nem a guarda-fiscal, a carga era leve e o tempo frio convidava os homens da lei a ficar no remanso do lar. O passador largou-os à entrada do lugar combinado, outro tomou a sua vez, galego este.

Até à noite do segundo dia foi sempre a andar, já não aguentavam os pés, o Zé da Eira tinha os seus cheios de bolhas, partira com umas botas novas, para aguentar bem o caminho, viravam-se os calcantes contra ele. O primeiro revés deu-se aí: a comida seria por conta deles. Não sabendo onde se aviar e não querendo expor-se para não se denunciarem, aceitaram o que Paco lhes arranjou pelo dinheiro que quis. Dormiram que nem anjinhos até meio da noite, era tempo de “toca a marchar”, até ao povoado onde iam apanhar o comboio eram muitas horas. Ainda o dia não clareava, o Paco a incitá-los a avançar, como se estivesse conduzindo gado, foram surpreendidos por três indivíduos da cara tapada. Queriam o dinheiro. Depressa. Que esperavam? Era um assalto, não queriam ferir ninguém, só os pesos e os francos. O Nelo foi agarrado por um braço, uma garra a convidar à obediência, resistir seria pior. O guia ficou mudo e quedo, não pertencia àquele filme, foi o primeiro a entregar a carteira. Só o Alberto resistiu, levou um murro no nariz, ficou a sangrar e viu os bolsos serem-lhe virados do avesso.

A voz segura do galego fê-los tomar consciência do que se passara, tinham de se apressar, o comboio não esperava. Não tinham sido alertados para possíveis assaltos, como fariam para prosseguir sem dinheiro? Tinha de fazer algo, o trato era conduzi-los a salvo até ao caminho de ferro, entrega-los ao outro passador, já se tinham sentido ludibriados com a comida, agora era o dinheiro, afinal para que é que servia? Eram jovens inexperientes, não eram parvos, queriam comida e era para já, senão… Senão o quê? Ele também perdera o seu dinheiro, estavam todos no mesmo barco, tinham de deixar aquele caminho. Seguiram com esforço, a barriga a dar horas, o farnel preparado pelas mães forneceu as últimas côdeas, nada capaz de matar a fome. À entrada do casario onde o passador resolveu parar para arranjar comida entregaram o corpo ao descanso, encostados a grossos troncos de castanheiros debaixo dos quais se puseram a apanhar castanhas. Eram grandes e boas, mas não aquilo por que a barriga ansiava. Pelo sim, pelo não, algumas foram parar às sacolas, ao fundo dos bolsos. Umas cabras pastavam perto e um teve a ideia de as mungir. Estava habituado a fazê-lo no monte, sempre que o farnel se mostrava insuficiente ou para presentear a tia Isalina com leite para umas sopas. Era com esta estratégia que a velha lhe guardava o gado e ele ia ver a Berta. Não o fez, porque o Paco voltou com pão, chouriço e latas de sardinhas.

 

(continua)