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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MIL E DUZENTAS MISSAS

melgaçodomonteàribeira, 28.07.20

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casa da serra - prado

DIOGO MANUEL DE SOUSA GOUVEIA E GAMA (P.e)

 

Nasceu em Prado aos 8 de Fevereiro de 1714 e como seguiu a carreira eclesiástica, seus pais lhe fizeram o património em 19 de Agosto de 1735. Dez anos depois saiu da casa paterna para a freguesia da Bela no termo de Monção, que paroquiou como vigário e como vigário também paroquiou depois a freguesia de Santiago de Penso. Pelo testemunho escrito a seu pedido a 7 de Maio de 1783 apura-se ter sido este padre o reformador da fortuna da Casa da Serra, pois com o dinheiro de seu bolso particular pagou as dívidas dos pais, readquiriu os bens alienados por seus antepassados em horas amargas, melhorou os bens vinculados fazendo o canastro de pedra, o lagar e a respectiva casa, tomou a iniciativa de comprar outros bens e de nenhum deles nem mesmo do seu património recebeu rendimentos tempo algum.

De resto tudo quanto conseguiu agenciar na vida, o deixou ao seu irmão morgado,

«atendendo ás muitas obrigaçoins que devia a seu irmão Luís Caetano de Sousa Gama Cappittão Mayor deste termo e affecto e amor que lhe tinha por aspirar sempre a honra que herdara de seus Pays e conserva-la, acção que elle testador sempre dezejou em toda a sua vida e por lhe pedir seu Pay e Senhor no ultimo da sua vida que o amparasse para que não deslustrasse o seu nascimento e como sempre lhe foi obediente e amigo leal comprazendo em tudo com a sua vontade...»

pois o instituiu seu herdeiro universal.

O P.e Diogo Manuel e outros colegas formaram certa mesa do Santuário da Senhora da Peneda e como depois julgaram má a sua administração, este mesário teve de pagar de seu bolso o correspondente à sua quota parte de prejuízos dados àquela confraria.

E como a doença o não deixou exercer a provedoria da Santa Casa nem fazer a função dos Passos, por indicação sua comprou-se uma túnica e o respectivo cordão para a imagem mais comovente da Misericórdia,

«cuja túnica e cordão será obrigado o seu irmão Luis Caetano de Souza e Gama e sua Irmã Donna Joanna e seu genro Caetano Joze de Abreu a levarem a dita túnica e cordão nesse mesmo dia e mandarem cantar huma missa ao Senhor dos Passos por alma delle testador».

Vê-se ainda no referido testamento: a alma deste padre foi sufragada com quatrocentas missas rezadas no convento de Pastoriza e mais oitocentas repartidas pelos padres do termo.

 

 

O MEU LIVRO DAS GERAÇÕES MELGACENSES

Volume I

Edição da Nora do Autor

Melgaço

1989

pp. 635-636

 

 

O DRAMA DE ALVAREDO ou O CRIME DE MELGAÇO II

melgaçodomonteàribeira, 25.07.20

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 alvaredo

(continuação)

Piedade adorava o seu Alfredo. Quando forem presos, há de jurar-lhe que nunca o abandonará. Mais novo quinze anos do que ela, era um rapaz destemido, habituado a abrir caboucos e muitas vezes obrigado a alargar o campo de ação pela força das circunstâncias, significando esta a falta de dinheiro, por dispêndio excessivo em jogo e vinho, embora deste último não haja notícia de exageros, apesar do tempo que passava nas tabernas, com os seus companheiros, alguns de anos, outros mais recentes. Eram eles: António Fernandes, de 29 e nove anos e de alcunha o Guerra, Santiago Rey y Lopez, de 37, António da Fonseca pinto, de 35, João Esteves, de 24, e Romão Lousada de 24 ou 25.

Alfredo Gomes, de 23 anos, nascido em Monção, não se saía mal, normalmente, quer dizer, nunca fora preso por roubar, tal como Maria da Piedade que não faria do roubo a sua ocupação principal, até ao malfadado dia em que um assalto deu para o torto e a polícia se revelou bastante eficiente. O namorado ganhara a sua coroa de glória num assalto na vizinha Espanha, do qual escapara por um triz, e isso dera-lhe confiança para continuar tivesse ou não trabalho na construção civil.

Ele e o Romão Louzada, um espanhol de Pontevedra, participaram, entre 1887 e 1889, num assalto a casa de um padre, no lado de lá da fronteira. Foram experimentar a ligação ferroviária à província de Salamanca, provavelmente, depois de trabalharem nas obras entre Barca de Alva e La Fregeneda, troço inaugurado em dezembro de 1887, mas quando apanharam o comboio já iam com o propósito do roubo. Eles e outros mais, desconhece-se quantos, uma vez que a coisa correu bem.

Assaltaram-lhe a casa à noite, a horas mortas. O padre espanhol ainda resistiu, não querendo dizer onde guardava o dinheiro. Mas não lhe serviu de nada, ao ver-se atado, deitado num colchão de palha a que os ladrões largaram fogo, logo se prontificou a revelar o esconderijo. Os meliantes extinguiram as chamas, agarraram no dinheiro e fugiram. O Romão, ligeiramente ferido, escondeu o roubo nas ceroulas e chegou bem a Lisboa, o Alfredo passou um momento de tensão quando, na estação da fronteira espanhola, o consideraram suspeito. Livrou-se, dizendo ser “limpiador do comboio e começando a fingir que o limpava”, contou “A Vanguarda”.

 

Deita-se fogo à casa e recebe-se o seguro

 

A dada altura, no mês de junho, João Esteves soube que uma sua tia de Monção, governanta em casa do reitor da freguesia de Troviscoso, recebera um conto de réis de herança, e desafiou os amigos cabouqueiros. “Não acham que seria um golpe real apanhar-mos aquele dinheiro? Alem disso o reitor também possui pé de meia. De uma cajadada matam-se dois coelhos. Que dizem?” Como o golpe de Salamanca dera uma boa maquia, Romão e Alfredo pensaram que não seria má ideia roubar outro sacerdote, já que estes possuíam sempre alguma riqueza. Doas depois, a 25 de junho, reuniram-se de novo, desta feita em casa de Alfredo e de Maria da Piedade, para acertar o que fazer.

Enquanto os homens andavam nesta combinação, Maria da Piedade engendrava outra maneira de ganhar não apenas uns cobres, mas uma boa maquia. Para isso, nada melhor do que fazer o que já ouvira que outros tinham feito com resultados positivos. Dirá depois que o espanhol Santiago é que a incentivou. “Podemos ganhar bastante com isso”, ter-lhe-á dito mais tarde. Pouco tempo depois, ela, que “nunca mais tinha pensado no assunto” desde que Alfredo recusara a ideia, correu a segurar a casa por 500$000 réis.

Escondendo de Alfredo aquilo que preparava, Maria da Piedade foi combinando com Santiago como iriam dar o golpe à companhia de seguros. Na madrugada de 26 de junho, estando já acertada a ida para norte, faltando apenas decidir o dia, os dois cúmplices mudaram todo o recheio para casa do espanhol. De seguida, esfarelaram um colchão, espalharam a palha pelo solo, regaram-na com aguardente e pegaram-lhe fogo. A casa, localizada ao lado da igreja, ardeu completamente. “Para se avaliar bem a força da amante do Alfredo, basta dizer que ela se dirigiu à esquadra próxima, e pediu a dois polícias que lhe servissem de testemunhas para receber o dinheiro do seguro!”, observou Luíz Silva.

 

(continua)

 

CASTRO LABOREIRO E O PNPG

melgaçodomonteàribeira, 21.07.20

 

CASTRO LABOREIRO FACE AO PARQUE NACIONAL

PENEDA-GERÊS

 

Castro Laboreiro é uma das regiões que mais confiadamente pode encarar o futuro. E não só pela emigração, como até agora. Os naturais de lá emigram, desde muito cedo, amealham fortuna e procuram instalar-se fora da terra natal, no concelho ou longe dele.

Com a transformação da serra em Parque nacional, o futuro virou permitindo aos naturais enriquecer ou, pelo menos, transformar-lhes radicalmente a vida.

Claro que os naturais não vêem o futuro pelos nossos olhos. Situados adentro do perímetro do Parque, sentem-se espartilhados nas disposições tomadas oficialmente: proibição de erguer casas com materiais que não sejam a madeira devidamente preparada e abate dos carvalhos.

Obras já em construção foram embargadas, porque usaram ferro em lugar de madeira, como estava ordenado. Em relação aos carvalhos a abater, os serviços oficiais dão-lhes pinheiro.

Enquanto isto, a transformação do Parque processa-se lentamente.

O turismo, que vai ser a sua maior receita ainda vem longe. Força é mentalizar os habitantes, levando-os a erguer as infra-estruturas: abastecimento de água ao domicílio, saneamento, entre outros. E uma bomba de gasolina. E um talho. E tanta coisa mais…

Sendo tão inteligentes e de grande iniciativa, como se não lembraram ainda os naturais destas coisas?

E ligação para Espanha, por estrada. E livre trânsito na fronteira, para as populações locais, de Espanha e de cá. E comércio livre, ao menos nos dias de feira.

Isolados, encostados ao muro da fronteira, se lhes não é permitido o livre trânsito, asfixiam. Vegetam. Isto deverá ser uma das primeiras coisas a pedir oficialmente.

Aliás, quando a floresta adensar, desconhecendo a fronteira, como vai ser possível impedir-lhe a passagem?

 

A VOZ DE MELGAÇO

MELGAÇO, 1 DE MAIO DE 1974

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FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 12

melgaçodomonteàribeira, 18.07.20

 

Já um pouco curvado para diante e arrastando os pés, o septuagenário desceu com cuidado o reduzido declive que havia entre a estrada e o prédio do Manolo.

Foi quando os dois agricultores, esgotados pela espera ilimitada, acharam que, no fim de contas, era melhor concluir a expectativa. Impulsivamente, abandonaram o bar, perseverando, todavia, com o maior alarido, em rejeitar-se a culpa do absentismo do taxista.

Um deles entrechocou-se com o senhor Ângelo, indelicadeza a que foi insensível. Penetrou no café e cumprimentou os presentes com a cortesia costumeira. Abeirou-se do balcão, deu aos ombros, puxou pelas golas e deu dois saltinhos, obviamente.

O Manolo acolheu-o com o entusiasmo usual.

— Senhor Ângelo, então que tal o tempo pela estação?

Não replicou. Com a característica equanimidade que toda a gente lhe reconhecia, exigiu:

— Po... po... põe... mum...mum... mum branco!

— Que diz, senhor Ângelo?

— Po... po... põe... mum...mum... mum branco!

— Quem foi para o campo?

— Na... não... bran... bran... branco! – repetiu, levemente incomodado.

— Que diz, senhor Ângelo? Não o ouço. Fale mais alto, carambas!

Impaciente, suspirou e sacudiu a cabeça com firmeza em sinal de agastamento e de lassidão. Arranjou o capote à pressa esticando as golas, deu os saltinhos e arremeteu de novo.

— Po... po... po... põe mum... mum... muuun bran... bran... branco! – empenhou-se, quezilado.

O gaguejo enfatizara-se com a aflição, e o seu rosto purpurara, tanta fora a instância.

Para reprimir o riso que estava prestes a deflagrar, o Fernando simulou contemplar o regato e o lugar de Cevide, do lado português, observáveis do janelo do fundo do salão do café. Era, também, para dar mais credibilidade à chocarrice.

— Ah! Um branco? – exclamou finalmente o Manolo – Já podia ter dito há mais tempo, senhor Ângelo! – e deu um dos seus singulares risos – Eu pensei que me dizia que andava manco, já viu? Ai meu Deus!

Agarrou na caneca e baixou-se diante do pipote de vinho branco que confinava com o de tinto.

Foi a altura apropriada para o padeiro delivrar a forte pressão que o sufocava e dar azo à pândega. Era a primeira vez que participava a uma brincadeira implicando o senhor Ângelo. Intrometeu-se amavelmente na conversa.

— Este, senhor Ângelo, já perdeu o juízo e agora está a ficar mouco. Mete pena! É tão novo!  Há quem diga que foi por isso que o correram da França. Não me estranharia nada.

O homem ignorou as suas palavras, como se fosse pusilânime. Nem um célere olhar de solicitude se dignou conceder ao panificador. Ergueu um braço e buliu duas vezes a mão entreaberta diante da testa, como quem quer dissuadir um insecto desenvolto e importuno. Era a sua modalidade. Desta forma, mostrava implicitamente – a quem tinha faculdade para tal – que interpretara o chiste, que este não o estimulava nada e, sobretudo, que não era nenhum títere. 

Para coroar o painel, e sem piar, acomodou o capote, desfraldou-lhe as lapelas e deu os saltinhos compatíveis.

No olhar irónico do dono do café reluzia um afecto real. Meneando a caneca como se fosse um ioiô, a fim de fazer espumar o líquido, encheu a tigela que pousara diante dele. Estava tão acostumado que, uma vez a tigela cheia, não ficava praticamente nada da quantidade de vinho retirada do pipote.

Deglutiu a primeira tigela de uma golada e a segunda de duas. Despejou o recheio do porta-moedas – que abria em forma de vulva – sobre o balcão, destacou umas quantas  moedas e saiu, silencioso, como se não tivesse estado no bar. Viria umas quatro vezes mais durante o dia.

O Fernado sentiu-se embasbacado. Intimamente, admitiu que o homem tinha a sua personalidade. Não era sem razão que todos o tratavam por senhor.

— Já viste, Fernando? Esta gente põe-me louco! – bradou o Manolo.

 

 

O Manco era seguramente a pessoa mais conhecida da Frieira, indubitavelmente a mais temida e, incontestavelmente, a mais amaldiçoada. Hercúleo e titânico – mais de um metro e oitenta e cinco e uns bons cento e dez quilos –, tinha uma força assombrosa e, ademais, um temperamento de suíno.

Ninguém sabia a razão por que tinha o cognome de manco pois, na realide, era maneta. Segundo rumores, o drama dera-se uma tarde, no centro da cidade de Orense, havia bastantes anos. O que ainda não era Manco estava na esquina de duas ruas à espera de uma oportunidade para atravessar com confiança. Subitamente, um velho camião atulhado de canos de cerâmica para o saneamento, vindo de uma transversal, largou parte da carga diante dele e doutros. Acordou no hospital. Os estragos foram plurais, mas o dano irreversível deu-se no braço esquerdo, triturado pelos tubos maciços. Do úmero, os médicos apenas foram susceptíveis de lhe preservar um toco com cerca de uma dezena de centímetros.

Desgraça que, pouco mais tarde, o não impossibilitava de manipular uma enxada ou uma pá e de trabalhar, ocasionalmente, como qualquer indivíduo consumado.

O traumatismo engendrado pela deficiência fora o inodoro fermento que fizera com que, passo a passo, medrasse nele um carácter irascível e provocador que, por vezes, alcançava proporções excessivas e preocupantes. A mínima adversidade era vista por ele como um opróbrio, uma vexação e mesmo como um insulto.

As pessoas, com os seus aforismos e as suas paródias ásperas, justificavam a sua força excepcional afirmando que a do braço perdido fora herdada pelo outro. O caso é que onde deitasse a mão nem Cristo lha abria, diziam.

Fumava como as primeiras locomotivas e bebia vinho branco como um tudesco. Quando estava de mala hóstia – mal disposto –, coisa mais amiudada do que o contrário, era mais idóneo evitá-lo ou abordá-lo apenas se o caso fosse francamente imperioso.

 

Continua.

 

 

 

 

O FORAL DE AFONSO HENRIQUES A CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 14.07.20

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cruzeiro de s. julião na antiga gafaria se s. gião

 

CAMINHOS E CASTELOS MEDIEVAIS

 

Violando a impraticabilidade desta barreira natural dos montes Laboreiro rasgaram-se caminhos de ligação, novelando ribanceiras, levantando pontes e fazendo calçadas, por onde circulam livremente pessoas, animais e produtos, mas que, em tempo de guerra, se podem revelar perigosas vias directas de penetração para a pesada estrutura de uma hoste medieval.

Começando pela zona ribeirinha, vindo da Galiza, entrava em Portugal pela Ponte Barjas o velho caminho que passava debaixo do alpendre da capela da Orada em direcção a Melgaço, seguindo depois pela margem esquerda do Minho para Monção e Valença. À margem deste caminho, documentando o trânsito considerável para a Galiza, já no tempo de Sancho II existia uma gafaria na quinta de S. Gião. O melhor testemunho autêntico dessa leprosaria medieval continua a ser a capela de S. Julião, construída, de acordo com as deduções de Luís de Magalhães Fernandes Pinto, no segundo terço do século XIII.

O castelo de Melgaço seria a principal sentinela avançada da segurança desta via, que penetrava no reino de Portugal a setentrião dos montes Laboreiro, coadjuvado pelas populações locais e pelo fronteiriço mosteiro de Fiães.

Do lado oposto, pelo sul, vinha de Galiza um velho caminho que entrava no reino de Portugal pelo Lindoso, em direcção ao centro da terra de Nóbrega. Aqui existia um vetusto castelo já referido em documento de 1059, do cartulário de Mumadona. Reconstruído no século XII por Honorigo Honorigues, que, na época de 1180, recebeu do rei de Portugal dois casais em Penelas (concelho de Ponte da Barca), por ter construído o castelo da Nóbrega à sua custa. Também os inquiridores de 1220 registaram que D. Afonso Henriques dera S. Martinho de Paço Vedro ao mesmo Honorigo Honorigues, “quia fecit illi castellum de Anovrega”.

Mas este castelo ficava bastante recuado da linha de fronteira, por isso, para cerrar essa débil passagem fronteiriça, foi necessário levantar o castelo de Lindoso, que se sabe já existir na segunda metade do século XIII e teria sido iniciado no ano de 1217, segundo Figueiredo da Guerra.

Enquanto não foi levantado este ouriço fronteiriço de Lindoso, esta zona seria um ponto vulnerável de penetração no reino de Portugal, não só em direcção ao Entre Cávado e Lima, como também ao próprio Entre Lima e Minho. Por isso não admira que fosse uma preocupação primordial do nosso primeiro monarca, impondo a sua guarda aos aguerridos montanheses de Castro Laboreiro. Esta preocupação agrava-se com a proximidade ameaçadora da fortaleza de Araújo.

Este caminho ligava directamente a Orense e, em determinada altura, bifurcava-se em direcção a Castro Laboreiro. Penso que pode ter sido este o imaginário rumo tomado por D. Sancho I, partindo do castelo de Castro Laboreiro, para ir atacar o castelo de Araújo, passando o Lima no afamado Porto de Araújo – isto para completar o raciocínio suspenso quando abordei a questão da estadia deste monarca em Castro Laboreiro. Seguindo a rota inversa – do castelo de Araújo em direcção a Castro Laboreiro – “marchando do nascente pela província de Trás-os-Montes”, também poder ser este o caminho de Afonso VII quando veio a Valdevez. Por ora não tenho qualquer fundamento documental para esta conjectura, pelo que continuarei a seguira do P. Bernardo Pintor e seus doutos argumentos.

Esta via rasgava o âmago dos montes Laboreiro, desde Milmanda e Celanova, passando por Castro Laboreiro, vinha ter ao Porto dos Asnos, seguindo pelo vale de Lamas de Mouro em direcção a Padrão de Sistelo, Porto do Cousso, em Cabreiro, passava o rio na ponte medieval desta freguesia de Cabreiro, até às Choças, no coração da terra medieva de Valdevez. Tudo leva a crer que teria sido esta a via calcorreada por Afonso VII de Castela, quando se deu o Bafordo de Valdevez. A tradicional passagem do imperador por Lamas de Mouro foi coligida por José Augusto Vieira. Padrão de Sistelo, à margem deste caminho, provavelmente por causa das invasões de Leão, uma vez que o próprio monarca adverte que se de novo houver guerra forte entre Portugal e Leão possam retirar-se com todos os seus pertences, regressando logo que a paz seja restaurada.

Os pontos mais vulneráveis deste caminho merecem a maior atenção do poder central, recaindo sobre os moradores locais a obrigação de os vigiarem. Assim os de Cabreiro “se guerra vem do regno de Leom, vam guardar o porto de Couso”, tal como os de Vilar, da mesma freguesia, “vam guardar o porto de Couso. Mas este ponto, como adverte Iria Gonçalves, era “já bastante internado e talvez a servir de reforço de vigia no caso de entrada de hostes pelo sopé do monte Laboreiro”.

Muito antes do Porto do Couço impunha-se a guarda do Porto dos Asnos, que, como já se disse, o P. Bernardo Pintor identificou com o Porto de Araújo do foral de Castro Laboreiro e sob alçada dos seus moradores. Discordando dessa interpretação, considero poder identificar esta portela com as passagens frágeis do monte de Laboreiro que os de Riba de Mouro tinham que guardar e, à voz de apelido, a repelirem de mão armada os inimigos do castelo de Laboreiro, que, em contrapartida, em caso de perigo, os refugiava dentro dos seus muros seguros e protectores, conforme testemunharam às inquirições afonsinas de 1258.

 

O FORAL DE D. AFONSO HENRIQUES A CASTRO LABOREIRO.

“ÁDITO” PARA O DEBATE.

José Domingues

Porto, 2003

http://www.academia.edu/3470740/O Foral de D. Afonso Henriques a Castro Laboreiro. Adito para o debate

jdominguesul@hotmail.com

 

6 de Maio de 2013

 

 

 

O DRAMA DE ALVAREDO ou O CRIME DE MELGAÇO I

melgaçodomonteàribeira, 11.07.20

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 a aguardenteira

 

DE AGUARDENTEIRA A INCENDIÁRIA, NAMORANDO UM ASSASSINO

 

Maria da Piedade foi lavadeira mas não se deu bem. Apaixonou-se e passou a trabalhar junto do seu cabouqueiro, vendendo goles de aguardente. Mas o seu amor virou assassino e ela condenada por fogo posto. Este é o décimo caso da série “Crime à Segunda”, que o EXPRESSO está a publicar sobre criminosas portuguesas.

 

Perguntou-lhe se não queria fazer um seguro da casa, pois se esta ardesse ganhavam algum dinheiro, mas Alfredo não quis, andava com outras preocupações, nos preparativos de coisa mais rendosa. Então, Maria da Piedade, meteu mãos à obra e fogo na casa em que habitava às portas da cidade de Lisboa.

Dois anos antes, andava de um lado para outro, de galochas e odre a tiracolo, vendendo goles de aguardente ao pessoal da obra do túnel ferroviário de Lisboa, no lado de Campolide, na zona da Rabicha, a quinta que o caminho de ferro atravessará vindo do Rossio. Chamavam-lhe a Aguardenteira. A primeira ideia seria servir o namorado, mas o grupo de cabouqueiros a que este pertencia fez-lhe criar o negócio.

Maria da Piedade, nascida em São João da Pesqueira, distrito de Viseu, no ano de 1854, vivia com Alfredo Gomes, numa casa abarracada no sítio de Sant’ana, para lá da ribeira de Alcântara, onde hoje se localiza a Vila Ferro, no Bairro da Liberdade. Morava perto das obras do túnel da Rabicha, por isso, quando os homens esvaziavam a borracha, como chamavam ao recipiente que ela trazia ao ombro preso com uma correia, podia rapidamente ir enchê-la.

Piedade andava por ali, entre os trabalhadores, sem temer pelo físico. Não era mulher de se assustar, era valente “e mais temível do que muitos homens”, apesar de franzina. No sítio de Sant’ana, ninguém se metia com ela, “citavam-se proezas, na verdade extraordinárias, praticadas por aquela nova padeira de Aljubarrota”, escreveu em 1897 o jornalista Luiz Silva na “Galeria dos Criminosos Célebres em Portugal” publicada em 1897. E andava com más companhias. O namorado e os cinco vizinhos que hão de entrar no assalto fatídico, eram ali conhecidos como “desordeiros, jogadores e amigos de galinhas”, segundo o jornal “A Vanguarda”.

Na sua folha corrida, constavam duas prisões por ofensas corporais, uma de outubro de 1890 e outra no mesmo mês do ano seguinte. Nada de extraordinário, os jornais traziam diariamente notícias de agressões entre homens, entre homens e mulheres, entre mulheres… Sempre que a polícia intervinha, a prisão efetuava-se. “Maria do Patrocínio foi presa por agredir com socos a Rosa de Jesus. A cena deu-se numa casa da Travessa das Dores, nº 11, à Ajuda”, é apenas um exemplo sucedido no final de 1891. Às vezes bastava uns tabefes, como aconteceu a João Gautier, sapateiro, preso por esbofetear Carlos Leitão, morador no Areeiro do Monte.

Antes de ser Aguardenteira, Maria da Piedade ganhou músculo lavando roupa. Mas não por muito tempo, o mundo das lavadeiras também não corria de forma pacífica. Era um negócio muito competitivo… Veja-se um caso passado em setembro de 1892, quando desapareceu uma saia à lavadeira Maria de Jesus. Decorridos onze meses, a governanta do tanque nº 6, onde se dera o roubo, reconheceu a peça de roupa na mão de Joana Maria, quis tirar-lha e, como a outra não cedesse, agrediu-a, pondo-a fora do tanque que geria.

“A guarda municipal da estação do Pasteleiro, a quem a Joana se queixou, interveio e quis arbitrariamente, fazer com que a Joana continuasse a lavar no tanque, chegando a querer obrigar a governante a acompanhar a parte do ocorrido para o quartel”, noticiou em 12 de agosto de 1893, rematando: “Se o caso se assim deu, parece-nos incorreto o procedimento da guarda e para ele chamamos a atenção do sr. comandante”.

O caso não foi com a Maria da Piedade, aliás, ela já não se encontrava no continente quando se deu o desenlace, mas podia ter sido, dado o seu feitio. Uma agressão, ou mesmo um roubo, poderiam tê-la levado a mudar de profissão, todavia, sabe-se apenas que o negócio de lavadeira e, por isso, pensando no seu Alfredo, virou-se para a venda de aguardente nas obras do túnel que irão proporcionar viagens entre o Rossio e Sintra, ida e volta, a mil réis em 1ª classe, 900 em segunda e 500 em terceira. Por esta época, um operário ganhava cerca de 200 réis por dia.

Os trabalhos começaram em 1887 e terminaram três anos depois, mas o primeiro comboio a testar a circulação no túnel fê-lo em abril de 1889, levou 27 minutos, hoje demora três. Foram escavados 2612 metros de rocha calcária, entre o Rossio e Campolide; com a abertura da estação central, em junho de 1890, ficou a linha férrea de Lisboa a Sintra, Torres e Figueira a Alfornelos com um movimento de 50 comboios diários. E o casal de Sant’ana, assim como os cabouqueiros seus vizinhos, ficaram desempregados, por pouco tempo…

 

(continua)

 

 

OS AMORES DO VASCO

melgaçodomonteàribeira, 07.07.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XIII

Nos ensaios do teatro a rapaziada cochichava sobre o namorico do Vasco. Viúvo já há uns anos, com poucas sequelas do tempo da prisão, voltara a ser um homem interessante. Empregado na Central, serviço de camionagem em combinação com o caminho de ferro, que só chegava a Monção, tinha uma situação desafogada, tanto mais que, prevalecendo-se do seu cargo, facilitava os negócios aos contrabandistas.

Riam à socapa achando algo ridículo. A Biti, solteirona, loura, elegante, pela sua figura esbelta, pertencente à burguesia que se arvorava em fidalguia, portanto, tida como socialmente superior, não daria confiança a alguém de passado obscuro. Seria mais uma cena teatral na imaginação do Vasco, diziam.

O espectáculo foi encenado com o sucesso esperado, duas representações apenas. Como das outras vezes, a vaidade pessoal sobrepunha-se ao grupo, por dá cá aquela palha alguns elementos se afastavam desorganizando todo o elenco.

O namoro do teatrólogo foi confirmado. A Beatriz Ribeiro Lima, em horas calmas de expediente visitava a Central e, segundo os bisbilhoteiros, ficavam aos beijinhos. A Ana Toupeira, contemporânea do Vasco, para o arreliar, dizia-lhe: “estás velho não dás mais nada”.

 

Publicado em A Voz de Melgaço

 

                                               Manuel Igrejas

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 11

melgaçodomonteàribeira, 04.07.20

 

 

Nessa manhã, exaustos, depois de mais uma madrugada uniforme em que tinham o sentimento de serem os raros sobreviventes do lugarejo, transpuseram a estrada e empurraram a porta do familiar café. Os rostos, assolados pelo trabalho ininterrupto e opressivo, denunciavam o cansaço compilado durante a noite. A roupa, vetusta, suja e enfarinhada, dava-lhes uma triste aparência de foragidos.

O panificador e o jovem ajudante fincaram-se no extenso balcão, estenderam os cacetes recém-cozidos à Rosa e pediram as habituais sandes: hoje seriam de presunto. Concertavam-se anteriormente e concordavam sempre em comer ambos o mesmo acompanhamento.

A uma das mesas do café, uma parelha de camponeses de certa idade querelava-se incompreensivelmente, increpando-se mutuamente. Segundo a Rosa, havia mais de uma hora que esperavam pelo improvável aparecimento de um taxista que se comprometera a conduzi-los a Padrenda; contavam regularizar um problema importante no ayuntamiento – junta de freguesia.

— Quantos cacetes quereis hoje, Rosa ?

— Eu sei lá! Olha, traz oito, como ontem; depois, se precisarmos de mais, vê-se.

O padeiro fez um gesto da cabeça, o ajudante sumiu-se e regressou decorridos dois minutos com os oito cacetes.

Quando sobrava pão, depois de feita a repartição pela esposa do Fernando, confiavam a chave da padaria à Otília que, com todo gosto, se incumbia de corresponderer às eventuais demandas da clientela. Era o ensejo para uma hipotética conversa.

— Onde anda o sorna – o Manolo ? Diz-lhe que a mulher despertou e quer o café.

A moça riu. Tinha uma repulsão ínsita pela patroa. Portanto, esta considerava-a mais como uma colaboradora do que como uma criada.

Quando o marido se deslocava a Ourense por exigências comerciais, a Maribel, uma vez por outra, acompanhava-o e, diligentemente, percorria uma ou duas galerias –centros comerciais. Nunca menosprezava a empregada. Carinhosamente, brindava-a com uma peça de roupa interior, uma camisa qualquer, um tecido para fazer uma saia ou um vestido, um perfume de qualidade...

— Estás doido ! Ela não o quer. Quem ligaria a um homem como ele ? – e deu uma risada – Anda no outro lado a pôr um pouco de ordem nas mercadorias – confessou por fim.

Naquele instante, saiu ele de trás da cortina da cozinha, excitado.

— Vai-te embora, Rosa! Vem aí o senhor Ângelo. Vamos gracejar um pouco. Vais ver como o enervo – disse ao Fernando.

No país onde os desconhecidos se tuteavam, fosse qual fosse a idade duns e doutros, o Ângelo, ferroviário reformado, era a irregularidade notável. Fazia parte dos raros homens da Frieira a quem todos tratavam, invariavelmente, por senhor.

Tanto no verão como no inverno, exibia orgulhosamente pelas costas, quase como um troféu, um grosso capote castanho com o logótipo da companhia estampado no lado esquerdo. A cabeça, que abanava continuamente, trazia-a resguardada pela típica boina galega. Tartamudeava e articulava muito baixinho. Era, além disso, homem duns tiques pasmosos, excêntricos, mas cómicos: dava aos ombros repetidas vezes, tirava pela gola direita do capote com a sinistra, e vice-versa; depois, alçava o pé sestro ligeiramente, imitado imediatamente pelo direito. Era uma coreografia incontestável.

Segundo constava, estes gestos eram a sequela de um ritual que praticara sem restrição durante a vida que trabalhara nas linhas galegas da RENFE – caminhos de ferro espanhóis. Para não perturbar a trâfego, os trabalhos nas vias são efectuados de noite, maioritariamente; ora o senhor Ângelo fora capataz – chefiara uma equipa de dez trabalhadores – e, como é logico, não se movia muito. Durante as noitadas invernais, para que o frio não se assenhoreasse dele, supõe-se que operava estes meneios centenas de vezes, cadência que, com o tempo, acabara por se tornar mecânica e incontrolável.

Ademais destas digressões, soliloquiava imperceptivelmente de modo constante. Nunca falava com quem quer que fosse, nem nada o interessava ou comovia. Limitava-se a saudar as pessoas com um respeituoso aceno de cabeça sem nunca suspender a sua deambulação ramerraneira, como se fizesse tudo para se fundir no meio, dar a impressão de ser invisível.

Morava do outro lado da ponte, numa casinhola, a dois passos da estação dos caminhos de ferro, como não podia deixar de ser.

Matrimoniara-se com uma costureira, mulher muito interesseira, egoísta, cujo ódio que afeiçoava se lhe via na cara engelhada: a Henriqueta. Só se entendia  com as mais linguareiras da aldeia. Dizia-se que nada podia subtrair-se aos seus olhos de fuinha. Despudorada como poucas, tinha livretas em todos os comércios da zona, nomeadamente nos que vendiam tecidos. Os credores, apesar de a acossarem, viam-se na incapacidade de cobrar as dívidas que lhe foram consentindo acumular.

Tanto na Frieira da margem direita como na da esquerda, já ninguém se recordava de quando o senhor Ângel e a Henriqueta tinham sido vistos juntos ou a falar em público pela última vez. O domicílio era o único espaço que ainda os achegava corporalmente. Os ralhos, pontuais e ríspidos, eram a discussão exclusiva entre eles de que os vizinhos depositavam.

Ao senhor Ângel, nem todos os dias o blanco – vinho branco – lhe instilava a disposição satisfatória para digerir a maldade e as insinuações biliosas da mulher. Quando a discórdia rompia e percebia que a sua metade não tardaria em ultrapassar a linha exacerbante que ele lhe autorizava, ajeitava a boina na cabeça, deitava o capote pelas costas e, mais uma vez, fazia a mímica crónica; dava uma vista ao relógio de bolso e, se lhe desse tempo, encaminhava-se para o pequeno bar de As Neves, três casas acima da dele. Abancava ali e bebia umas chiquitas – tigelas – enquanto pacientava pelo comboio.

Podendo viajar gratuitamente, como todos os aposentados da RENFE, era o epílogo preferido para estas peripécias glaciais. Entrava no primeiro comboio que ali fizesse uma alta, sem se alarmar com o paradeiro, e só reintegrava o domicílio no outro dia, conforme a inclinação. Os diversos amigos, ex-ferroviários ainda vivos, tinham a porta sempre aberta para ele. Havia anos que trocara a companhia da mulher pela do vinho branco e dos camaradas, muito mais acomodatícios e sociáveis do que a ominosa mulher.

 

Continua.