Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A NECRÓPOLE MEGALÍTICA DE CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 28.04.20

 

MONTES LABOREIRO

PALMILHANDO UMA RAIA CARREGADA DE SÉCULOS

 

AMÉRICO RODRIGUES

               e

JOSÉ DOMINGUES

No traçado da linha imaginária aproveitam-se indícios salientes na paisagem. Um dos indícios que nos chamou a atenção (mas que ainda não conseguimos observar pormenorizadamente no terreno, apesar de sabermos a sua localização) foi a pedra “que bole quando bolem com ella” – no tombo de 1565. Tudo leva a crer que se trata de uma pedra bolideira.

As pedras oscilantes já são referidas pelos escritores da Antiguidade, Plínio e Ptlomeu. Eduardo Amarante, citando Henry Martin, chama a atenção para a sua função como prova judiciária: “os acusados que não conseguissem pôr em movimento a pedra eram considerados culpados; há não muito tempo ainda que os maridos que suspeitavam da fidelidade das suas mulheres obrigavam-nas a passar esta prova”. Trata-se da prova medieval de ordálio ou juízo de Deus, mediante os quais se remetia a decisão para Deus, na crença de que Este não iria favorecer o culpado contra o inocente.

A ligação destas pedras ao megalitismo estaria aqui plenamente certificada. Este planalto, de ambos os lados da raia, está semeado de monumentos megalíticos. No actual processo de classificação dos monumentos Megalíticos e Arte Rupestre do Planalto de Castro Laboreiro, iniciado em 2008, do lado português estão referenciados sessenta e três monumentos megalíticos, duas estruturas líticas e um núcleo de arte rupestre, faltando no entanto nesse inventário alguns monumentos.

Num périplo por este fragmento da raia aos entusiastas do megalitismo revela-se um conjunto de estruturas, muito próxima da meia centena: 13 nas proximidades do marco nº 6 ao nº 9, desde Arrazis até ao Alto de Gontim; nas Roçadas, junto ao marco nº 14, mais 2 monumentos e outro no Alto de Paicota; no Alto da Besteira, perto do marco nº 18, um monumento; passando ao marco seguinte, na Lama do Rego, 6 monumentos; desde o marco 20 a 24, na Portela do Pau e Outeiro do Ferro, cerca de 8 monumentos; seguindo até ao marco nº 28, na Lama do Brincadoiro, 2 monumentos; em Pedra Mourisca, junto ao marco nº 29, 4 monumentos e estruturas líticas; em Cabeça de Meda, marco nº 31, mais 3 monumentos; nas proximidades dos marcos 33 e 34, em Cabreira e Barreiras Brancas, 4 monumentos; esta vasta necrópole termina com um monumento megalítico junto ao marco nº 40.

Esta disseminação acabou por colocar alguns destes monumentos no caminho preciso da raia, fazendo com que apareçam referidos na documentação compulsada. A Mota de Cidadela ou Cidadelha é referida nos dois tombos mais antigos (1538 e 1551). Trata-se, certamente, da mamoa junto ao marco nº 28, na Lama do Brincadoiro, vulgo identificada por Mota Furada. No tombo de 1754 aparece uma referência à “caza de Antella”, que ficaria nas proximidades do marco nº 36.

Mesmo por cima da linha da raia fica um dos maiores e mais emblemáticos monumentos do Laboreiro – a Mota Grande. Por motivos que nos escapam, este monumento, na segunda metade do século XX, passou na íntegra para território galego. Um dos mais conceituados investigadores do megalitismo do Laboreiro, António Martinho Baptista, já chamou a atenção para esta recente mudança do marco nº 23, precisamente, no “monte de terra chamado Motta-Grande”.

Mas, bem mais importante do que a estéril discussão sobre o lado de fronteira em que está implementado este monumento, seria promover uma investigação científica conjunta, que unisse especialistas dos dois países no aprofundar do conhecimento deste monumento em particular e de toda a necrópole em geral. Para além de ser o maior em tamanho, os seus esteios estão profusamente decorados com gravuras: com especial destaque para o motivo “idoliforme”, que, segundo Martinho Baptista, poderá ser a representação de uma “divindade megalítica”(?). Outro motivo válido e impulsor é o da existência de um menir nas suas proximidades.

Para a localização precisa e entendimento das funções deste menir podem ser proveitosos os conhecimentos radiestésicos de Alexandre Cotta. Este investigador já teve oportunidade de aplicar os seus estudos em menires e antas do Alentejo. Como amigo pessoal e a convite do NEPML visitou a Mota Grande e levantou interessantes questões, relacionando o menir com o motivo idoliforme, acabando por concluir: “seja como for, esta pedra actualmente tombada (com orientação Este-Oeste) indica ou marca um lugar particularmente importante”. Para Alexandre Cotta, o menir da Mota Grande pode ser uma pedra de cura:

“Quer em Castro Laboreiro como no Cromeleque dos Almendres confirmámos a experiência feita pelo nosso amigo Jean-Marc Riper. Ao colocarmo-nos sobre a pedra tombada (perto da Mota Grande) e no menir caído e amputado (dentro do Cromeleque), a polaridade indicada pelo movimento do pêndulo inverte-se. Tal indica que são pedras de cura. Em algumas doenças graves verifica-se que o movimento das células, correspondentes aos órgãos ou sistemas afectados, muda de sentido: de horário para anti-horário. Pelas suas características, as pedras de cura ajudam a inverter a situação das células doentes repondo a polaridade das células saudáveis”.

 

CADERNO ARRAIANO

 

 

1974, POLÍTICA EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 25.04.20

25 abril 115 - política de 1974 em melgaço (1).j

dr. antónio durães

 

UMA CARTA DO SR. DR. ANTÓNIO DURÃES

 

Ex.mo Snr.

Director do «Notícias de Melgaço»

Dr. Abel Augusto Vaz

 

Ao ler, no número de 10 do corrente, do quinzenário de que V. Ex.ª é ilustre Director, o apelo «CAVE (isto é, CAUTELA em língua portuguesa) Junta de Salvação Nacional» fiquei impressionado, e creio que com justificado motivo.

Porque dele se poderá, ou mesmo deverá depreender que V. Ex.ª admite que da mudança dos «quadros dirigentes» - no nosso caso local, da Câmara Municipal – o «poder» teria a possibilidade de cair «nas mãos de criminosos, ladrões ou corruptos administradores do antigo regime, ou de seus cúmplices ou de quem notoriamente estará interessado em destruir ou sonegar as provas dos condenáveis actos daqueles».

Eu não sei a quem V. Ex.ª se terá querido referir ao aventar esta possibilidade, tanto mais que os «administradores do antigo regime» eram, sem dúvida seus correligionários políticos, visto terem sido nomeados Presidentes da Câmara Municipal, pelos governos, que tiveram como essencial, mesmo como exclusivo apoio e sustentáculo político, a União Nacional depois chamada Acção Nacional Popular, de cuja Comissão Concelhia V. Ex.ª foi PRESIDENTE, até à sua extinção pelo Movimento das Forças Armadas, de 25 de Abril.

Não sei nem isso me interessa.

Interessa-me sim, o ver admitido por V. Ex.ª, e não sei por mais qual leitor do seu Jornal, a possibilidade da Junta de Salvação Nacional, ou o Governo que lhe suceda, encobrirem actos que V. Ex.ª classifica de criminosos, impedindo a sua averiguação e merecida punição, como o fizeram os governantes daquele antigo regime, por V. Ex.ª apoiado e defendido até à sua extinção, encobrimento que V. Ex.ª põe a nu, e bem claro, no artigo do mesmo número do seu jornal, intitulado «O Tema».

E interessa-me porque não admito essa possibilidade e não desejaria que menos atento leitor fosse levado a admiti-la, embalado pelas suas aliciantes palavras.

Estou certo que todos aqueles que forem DEMOCRATAS conscientes, e não se proclamem como tais, apenas por interesses pessoais, não admitem, como eu, tal possibilidade.

E esta certeza é-me dada até pela isenção e imparcialidade demonstrada no telegrama, de que fui primeiro signatário, enviado àquela Junta Nacional, e em que pedimos a substituição da Câmara Municipal de Melgaço «por uma comissão presidida por digno Oficial do Exército ou da Marinha, que faça ou promova rigoroso inquérito às violências e delapidações de que é publicamente acusada».

Não quisemos que algum mal intencionado, ou sem escrúpulos, viesse mais tarde dizer que o inquérito realizado fora parcial, ou «encobridor», orientado por ódios, ou amizades, que não tem cabimento na descoberta da VERDADE.

Não sei se V. Ex.ª compreenderá isto, não sendo DEMOCRATA, e habituado como estará aos métodos do regime, que nos esmagou durante quasi meio século, e V. Ex.ª serviu como destacado elemento do grupo político que apoiou e sustentou esse regime, até à sua extinção. Mas não me caberá a mínima culpa nessa incompreensão, e já que todos os DEMOCRATAS conscientes e sinceros tão facilmente o compreendem.

Não me atrevo a pedir a V. Ex.ª a publicação desta carta no seu Jornal, embora me fosse grata, para, e pelo menos, despertar a atenção de quem tenha lido as palavras de V. Ex.ª menos atenta e cuidadosamente delas tirando conclusões distorcidas.

Mas, não posso deixar de me reservar o direito de dar conhecimento dela a quem entender, ou de a tornar pública pelos meios de que possa dispor.

O que não deverá impedir que me subscreva,

Melgaço, 15 de Maio de 1974

De V. Ex.ª

atenciosamente

António Durães

(Obs.: O seu jornal do dia 10 só ontem recebido por mim)

A Voz de Melgaço, 541, 1 de Junho de 1974

 

 

 

VAMOS TODOS FICAR EM CASA

 

 

 

FRASES E PALAVRAS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 21.04.20

9 b melgaço - lado nascente.jpeg

 

PALAVRAS E FRASES DE MELGAÇO

 

Na Biblioteca de Évora, mss. III-IV, maço 37, pasta nº 12, que tem por título Papeis de D. João d’Annunciada (+ 1847), há um folheto de três páginas, escritas à pena, cada uma em duas colunas, com o título de Palavras e Frases de Melgaço, que copiei há anos, e que vou aqui publicar. A lêtra deste folheto não é da mão de Anunciada, como se mostra de comparação dela com a de outros papeis escritos por êle.

1903

Abaladura – aborto.

Acabanar-se a mulher – fazer-se cabaneira (só ouvi a expressão cabaneira, no sentido de descansada; sem pressa.

Acadar hua pessoa – espera-la, saindo aonde ela vem.

Achar-se ao engano – enganar-se (diz-se achar-se enganado).

Adonde elle – ir aonde um sujeito está.

A feito – a fio, a eito.

Affuzal de linho – hu molho como pedra de linho.

Agarimado – abrigado.

Alboyo – alpendre.

Amistade – amizade.

Anaco – pedaço.

Ante conto – de pressa.

Arjoadas – as videiras atadas a paos.

Arjoens – paos em que atão as videiras.

Arrendo – arrendamento.

Arribada – parte do vallado cahida.

Atuir – entulhar.

Barbadas – videiras de raiz para pôr.

Barbeito – terra que só se lavra de 2 em 2 anos.

Beira; estar à beira – estar ao pé, ou à borda.

Bêo – veyo.

Bessada – campo mayor e desigual; e o acto de o lavrar.

Bica do borralho – pão aso cozido na lareira; bôlo feito no borralho.

Binherom – vierão.

Bola – que é o mesmo; com pouca diferença.

Borregar ou berregar – gritar; clamar.

Botado (vinho) – he o mesmo que corrupto; turvo.

Boubelar – com frio; tremer com frio.

Bouça – mato de giesta.

Bourar em hu sujeito – dar-lhe pancadas.

Brandouro – pesqueira no mais interior do rio.

Broyar – dar com força e estrondo.

Burgar – cavar mato e sacudi-lo.

Burro – todo o género de besta.

Cabaneira – mulher solteira; que vive só (e que não tem modo de vida).

Cabirto – cabrito.

Calor, a calor – o calor.

Campo – terra pequena que dá pão; leira; valado.

Cangos – barrotes ou tirantes.

Cangosta, congosta, quingosta – azinhaga.

Cápeas – pedras mayores por cima da parede.

Carrejão – homem que accareta às costas.

Carrejar – acarretar por qualquer modo.

Cebado – porco.

Cerdeira – cereigeira.

Chimpar – derrubar.

Cocar – (o linho) massalo 2ª vez; depois da agoa.

Cocos – abóbras.

Confradaria – confraria.

Cordada do linho – hu grande feixe delle por massar.

Corga – vale fendido com agoa.

Côrte – curral; córte de gado.

Costaã – da casa, parede por onde cáhe a agoa.

Coutada – mato tapado para tojo e pastos.

Crabunhas – caroços da fruta.

Crega – a filha do clérigo.

Cresposso – pescoço.

Dar de perda – deitar a perder.

Debousar o linho – é purificá-lo nas maons e pedra.

Deveza – mato com árvores tapado.

Deya – “quer que lhe deya” quer que se lhe dê.

Dia passado, o dia passado – os dias passados.

Discante – viola pequena.

Duzia de linho – certa conta de estrigas.

Eido – morada com seus logradouros.

Embarrada – pejada, prenhe.

Empessar – começar.

Emporisso – ainda assim, todavia.

Emprègado – entrevado.

Em tanta forma – de tal sorte.

Enta – camada de algua cousa.

Envidadouro das pesqueiras – baraço grande que segura as redes.

Escalão – pedras na parede, para se passar.

Escaleira – escada.

Esgassado – arranhado.

Esguitar uhm campo – parti-lo em leiras entre muitos.

Esmonar-se – quebrar-se hua parte de qualquer couza.

Estar com – conversar com um sujeito.

Esteso – estendido.

Estinhar-se (a água) – deixar de correr.

Faldro ou faldra – fralda.

Fame – fome.

Fartes ou que fartes – é o mesmo que muito.

Fato – pequeno rebanho de gado.

Fez – fiz.

Fezo – fiz.

Folheteiro – pesqueira na parte lateral do rio.

Formalidades – quinhões de terra.

Fum – fui.

Gando – gado.

Goarida – rego contínuo de vinha.

Grabato – paozinho.

Graxa – gordura.

Guiar – concertar.

Herdeiros – consortes ou sócios.

Hir ante conto – hir de pressa a hum negócio.

Hir em hum sítio – hir a hu sítio.

Hir onde elle – hir aonde elle está.

Invaza – do vinho, é tiralo do lagar onde está alguns dias, e lansalo nas pipas.

Iuvenca – vaca; bezerra.

Jaza – trave.

Lardo – toucinho.

Lareira – lar onde se faz lume.

Lata – latada; parreiral.

Legão – enxada.

Leiva – aduela de pipa.

Limar o campo – trazer-lhe água de inverno.

Lomêdro – parte da perna superior ao joelho.

Mal de fóra – feitiços.

Mandil – avental.

Manozear – trazer entre maons.

Mayozia – mayoria; vantagem.

Mercedes! – viva muitos annos.

Moço – filho pequeno; menino.

Molete – pão mole.

Mora – amora; pizadura negra.

Nenho – mentecapto; pateta; inerte.

Ningum – nenhum.

Nobios – noivos.

O ametade – a ametade.

O dia passado – ontem.

Pata – pé.

Peja – peya do animal.

Pejado – animal peado.

Pelo – campo de erva.

Pervage – mergulhão de hua vide.

Perzigo – conduto de carne ou peixe.

Peúgas – polainas ou meias das crastejas.

Pial – parede alta da pesqueira.

Poços – cepas de mergulhia (chamam poças a covas para meter as vides que se mergulham).

Pôda – podão ou podoa.

Ponto – pontada; dor de pleuriz.

Portêlo – passage com pedras na parede, para se pôr o pé.

Pouco de si – falto de juízo.

Pruga – purga.

Purgar – o vinho; alimpar da flor.

Quedar – ficar.

Que fartes – muito.

Quelha – rua estreita.

Quingosta – azinhaga.

Quinteiro – quintal; pateo; pequeno cerco ao pé das cazas.

Quitar – tirar.

Rabiar – enraivecer-se.

Rapaza – rapariga.

Rapazo ou raparigo – rapaz.

Rebotado – corrupto; avelhentado.

Recio – logradouro à roda das casas; orvalho da noite.

Reconto – pergunta que se faz da gente por hu rol.

Reloucar – enlouquecer; sahir de si.

Repêlo – escalabradura em mão ou pé.

Ressa de sol – restea; rayo de sol.

Rezuras – dores depois de parir.

Rifar – ralhar; peleijar.

Rodo e rodilha – joelho.

Sabajo – coisa endemoninhada.

Sandar – sarar.

Sanja – barroca; rêgo de desagoar a terra.

Sayo – véstia.

Simentos – alicerces.

Sopeado – menino baptizado em casa.

Sumidouros – barrocas subterrâneas (para desagoar a terra).

Surreira – por onde entram os enxurros nos campos.

Tânjara ou tanja – carga de pancadas.

Tardo – pesadelo.

Tascar o linho – espadelar.

Tizouras – tesouras.

Tóla da agoa – parte do rego onde há muitas roturas para sahir a agoa (cada uma das roturas é que é a tóla).

Tolheito – tolhido.

Trepa de pao – carga de pancadas.

Trespôr – lançar longe qualquer couza.

Tritar – tremer com o frio.

Trousar o vinho – trasfegalo; mudalo para outra vazilha.

Valos – valados de terra.

Víeche – vieste.

Vinhoens – cabrestilhos.

Xaroubia – raiz branca.

Zeba dos porcos – cêva.

Zoar – ralhar; peleijar.

 

 

 

VAMOS TODOS FICAR EM CASA

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 6

melgaçodomonteàribeira, 18.04.20

 

Com os anos, aprendera a arrogar-se daquele recanto, a viver ali. Agora suspeitava de que não se conformaria com uma mudança. Era o seu buraco, o seu ninho. Morava em Espanha e via Portugal da sua casa; de ambos lados do Trancoso, falava-se uma língua gémea, e as pessoas não destoavam.

No verão, era um rincão feérico, refrescante; no inverno, para as pessoas que como ele compadeciam ligeiramente de reumatismo, a humidade – acrescida pela que a barragem estancava – acabava por ser inconciliável, ruinosa. «Na vida tudo tem o seu revés; não se pode ter só o lado bom.», desabafava com acrimónia.

Uma vez diante da casa, em vez de escorar a sacha à parede, dependurou-a na parreira, a umbela nos dias de forte sol. Premunia-se assim contra a encurvadura do cabo que o tempo, insensivelmente, lhe faria incorrer; a humectação, por seu lado, fazia com que o cabo da sachola aderisse idealmente à parte férrea. O Manel era muito avisado.

Com o préstimo dum pé, abriu, com vigor, a porta do que outrora fizera as vezes de palheiro e de arrecadação para um carro de vacas e distintos apetrechos para a lavoura. A madeira da armação e da porta da casa, apesar do tempo enxuto e ameno das semanas precedentes, ainda se dilatava.

Entrou na cozinha que, por norma, estava deserta. Além desta, o rés-do-chão do pequeno pardieiro era composto por uma minúscula dependência que funcionava como sala de jantar nos dias de festa ocasionais. De baixo da mesa retirou um banco já meio desgastado pelo seu traseiro e sentou-se. Não havia outro, os demais assentos eram cadeiras. Não se sentia à vontade numa cadeira. Desde criança, as suas nádegas afeiçoaram-se aos bancos toscos, fabricados pelo pai com a madeira das árvores das terras que cultivavam. Aquele, fizera-o ele.

Deixou deslizar um repousante uf de acalmia, de complacência enquanto passeava o olhar lasso pela cozinha. A casa era velha, surrada e insalubre, mas havia muito que transluzia uma conivência absconsa entre ele e aqueles escombros remendados. Fora tudo feito por ele, pelas suas mãos calosas, pela sua força animalesca. Mesmo o primeiro andar, e isso era uma sobranceria que não ocultava a ninguém.

Estava bem. Fora um dia cansativo, um dia de faina como os outros, mas tranquilo, e isso agradava-lhe. Nascera para esta vida.

Alertada pelo ruído da abertura brusca da porta, a Gracinda resvalou com languidez e em silêncio os degraus da escada de madeira em espiral, o acesso aos três ínfimos quartos de dormir, que absorviam o primeiro piso. Intencionalmente, eternizava a descida. Ao fim do dia, quando o travesso marido penetrava no lar, velava em abordá-lo com minuciosa circunspecção; aferia o seu humor, a fim de se eximir do perigo de expressar a palavra indevida que o quizilasse bruscamente de modo irracional.

Pequena, franzina, o cabelo trançado, enrolado e preso na nuca, uns olhos pequenos e vivazes, tinha uma certa graça, mas aparentava não ter qualquer prestância. Portanto, era uma mulher com genica da qual emanava uma energia imparável e uma solidez incrível, tanto compleicional como moral. De tempos a outros, quando a chamavam a ela e ao marido para arrancar batatas ou sachar milho, manejava, de modo pretensioso, uma sachola da mesma polegada que a dele. O Manel, para a acompanhar e resistir ao seu ritmo endiabrado sem perder a face diante dos outros jornaleiros, devia duplicar os esforços. Desforrava-se publicamente da falocracia do homem.

Congratulava-se, com toda a legitimidade, que fora graças à sua volição e ao seu afinco que fizeram as economias correspondentes para adquirir o casebre em que residiam. Actualmente, o marido satisfazia-se em entregar-lhe dois terços do salário do dia, guardando a sobra para cuidar da sua fraqueza dipsomaníaca.

A Gracinda, apesar de fazer uns biscatos todos os dias, tinha necessariamente de ser muito parcimoniosa em tudo: na alimentação, na electricidade e, em especial, no vestuário. Embora limpa, trajava sempre a mesma roupa: uns dias com uma, outros, com outra e, ao domingo, com a mais engalanada. O mesmo acontecia com o marido. Os filhos, jeunesse oblige, eram bem mais impertinentes.

O Manel, ciumento como um leão, condenara-a, desde que se tinham amigado, a vestir calças quotidianamente: não admitia que lhe mirassem as pernas. Demasiado perfeitas e excitantes, captariam, a seu ver, olhares devassos; era uma criação da qual tutelava o monopólio visual.

Para os usos recorrentes da terra – omitindo as adolescentes e as vintaneiras mais emancipadas –, esta conduta feminina não era nada bem vista pelas sexagenárias e septagenárias, que eram a maioria na aldeia. Contudo, o tempo, inebriante e indulgente, foi empreendendo uma estagnante cura homeopática, fazendo com que até as mais escandalizadas se vergassem àquele modelo de trajo.

A Gracinda falava pelos cotovelos. Em geral, a verborreia é vista por muitos como uma anomalia, um descabimento, mas, na Frieira, para sua grande alegria, não; provava que a pessoa era extrovertida e se agregava sem demora à vida do lugar.

 «O silêncio é a única coisa de ouro que deixa as mulheres insensíveis.», dizia o Manel. Com ele, havia muito que a Gracinda se resignara a reter a língua, mas com os da paróquia tagarelava de tal forma que, por vezes, baralhada, interrompia-se por já não saber de que estava a falar.

— Vens um bocado mais tarde do que nos outros dias. Vejo que tiveste muito que fazer – arriscou, com prudência.

«Mais uma!», pensou, agastado. Sem olhar para ela, bufou de novo e, em tom agreste, retrucou:

— Só fiz o que tinha que fazer. Nem mais nem menos.

— E agora estás cheio de fome e de sede, não é? A terra seca-te a garganta – ironizou, um nada solicitante.

O Manel optou por não replicar, embora lhe aprazesse mandá-la calar-se. Fruira de um dia simpático, estava extenuado e não queria estragar a noite de descanso. Sentia-se com pouco ou nenhum ânimo para polemicar. Com malacia e martelando bem as sílabas, retorquiu:

— Vejo que não se te pode esconder nada, Gracinda.

Quando o Manel era prosódico, a mulher não duvidava de que o melhor era fazer de conta e pôr um ponto final ao breve litígio. Desolada, deu meia volta e lamentou-se subtilmente. O diálogo não podia aviltar-se. À medida que as dissimilitudes entre eles floresciam, os dias assemelhavam-se proporcionalmente.

continua

  

 

 

VAMOS TODOS FICAR EM CASA

 

 

GALEGOS EM MELGAÇO - MARGINALIDADE E ASSISTÊNCIA

melgaçodomonteàribeira, 14.04.20

17 b ponte s greg..jpg

A PRESENÇA GALEGA NO ALTO MINHO NOS FINAIS DO ANTERIOR REGIME

Alexandra Esteves 

Muitos dos mancebos espanhóis que atravessavam ilegalmente a fronteira para escapar ao recrutamento militar e procuravam guarida em Portugal tinham grandes dificuldades em angariar o seu sustento, pelo que acabavam por ingressar em grupos de salteadores e enveredar pelo banditismo. Em 1835, as autoridades galegas, conhecedoras deste fenómeno, solicitaram ao governador civil de Viana do Castelo que “se no permita que ninguna persona desconocida passe de un reino a outro sin o qual indispensable documento sea arrestado como sospechoso”. Nesse ano, muitos desertores galegos que estavam refugiados na zona de fronteira compreendida entre Castro Laboreiro e Valadares constituíam um autêntico manancial de recrutamento das quadrilhas que atuavam na região, em particular a de Tomás das Quingostas. A inoperância revelada pelas autoridades portuguesas na captura deste assaltante era incompreensível aos olhos das suas congéneres da Galiza, onde tinha perpetrado uma série de desmandos, dada a facilidade com que se movimentada pelas feiras e festas do Alto Minho.

A ineficácia na vigilância do território raiano punha em causa a segurança de pessoas e bens, dado que tanto as quadrilhas de ladrões como os pequenos larápios se dedicavam, sem grande dificuldade, a pilhar igrejas e habitações galegas e minhotas. A resposta portuguesa, no sentido de pôr termo à situação, traduziu-se no reforço da guarda da fronteira nos locais mais propícios à entrada e movimentação de desertores, nomeadamente em Castro Laboreiro e S. Gregório.

Por outro lado, a cumplicidade entre o bandido português Tomás das Quingostas e o guerrilheiro espanhol Mateo Guillade, conhecido salteador e carlista, era motivo de grande preocupação para as autoridades dos dois países. Este, por várias vezes, se refugiou em Portugal com a cumplicidade da quadrilha de Quingostas e de miguelistas. Em funho de 1837, por exemplo, foi detetada a sua presença na cidade de Braga. Em agosto desse mesmo ano, sabia-se que estava refugiado em Melgaço.

Ao longo da década de 30 do século XIX, era frequente as autoridades galegas solicitarem a Portugal a captura dos soldados sorteados para o serviço militar. Todavia, esta missão revelava-se difícil, uma vez que os fugitivos contavam com a conivência das populações que os acolhiam e os sustentavam em troca de prestação de trabalho não remunerado. Esta situação revelava-se vantajosa para os lavradores locais, pelo que não estavam interessados em denunciar a presença de trânsfugas nas suas comunidades.

 

A PRESENÇA GALEGA NO ALTO MINHO NOS FINAIS DO ANTIGO REGIME: ENTRE A MARGINALIDADE E A ASSISTÊNCIA

 

Alexandra Esteves

Universidade Católica Portuguesa Lab2PT

Universidade do Minho

pp. 129-131

 

 

 

LAR EM MELGAÇO LEVOU CRUCIFIXO A UTENTES EM APOIO DOMICILIÁRIO

 

OUTRO CASO ACONTECEU NO CENTRO SOCIAL DE PADERNE, EM MELGAÇO, ZONA ONDE JÁ SE REGISTARAM, NOUTRO LAR DE IDOSOS, MORTES POR COVID-19. SEGUNDO O JORNAL O MINHO, FOI A DIRETORA DE SERVIÇOS DAQUELE LAR QUE TOMOU A INICIATIVA DE IMPROVISAR UMA VISITA PASCAL AOS QUINZE UTENTES QUE BENEFICIAM DO APOIO DOMICILIÁRIO DA INSTITUIÇÃO.

ÀQUELE JORNAL, A RESPONSÁVEL ADMITIU QUE NÃO SEGUIU AS INDICAÇÕES DA DGS E EXPLICOU: "A INICIATIVA FOI MINHA, ERA A MINHA VEZ DE LEVAR OS PEQUENOS-ALMOÇOS AO DOMICÍLIO E DECIDI LEVAR UM POUCO DE ALEGRIA A CASA DESTAS PESSOAS". QUATRO UTENTES DO REGIME DE APOIO DOMICILIÁRIO BEIJARAM A CRUZ, QUE DEPOIS FOI LEVADA PARA O INTERIOR DO LAR DE IDOSOS E DEPOIS BEIJADA POR OUTROS IDOSOS.

"FIZ ISTO PORQUE MUITOS DELES NÃO TEM NINGUÉM, A FAMÍLIA NÃO OS PODE VISITAR E ANDARAM A SEMANA TODA A QUEIXAR-SE PORQUE NÃO IAM TER PÁSCOA ESTE ANO" AFIRMOU A RESPONSÁVEL CONSIDERANDO A SUA AÇÃO COMO UM ATO DE "CARINHO" PERANTE OS IDOSOS QUE "SÃO MUITO CATÓLICOS".

DENTRO DO LAR O CRUCIFIXO FOI DESINFETADO COM ÁLCOOL ENTRE CADA BEIJO. "a INTENÇÃO ERA MELHORAR O ESTADO ANÍMICO DOS UTENTES, NUNCA PENSEI QUE AS PESSOAS FOSSEM LEVAR PARA O LADO DE QUERER FAZER MAL", DISSE A DIRETORA DOS SERVIÇOS DA INSTITUIÇÃO.

A CÂMARA MUNICIPAL JÁ EMITIU UM COMUNICADO A APELAR A TODAS AS INSTITUIÇÕES DO CONCELHO QUE SIGAM AS PRÁTICAS QUE CONSTAM DO PLANO DE CONTINGÊNCIA DO MUNICÍPIO.

(...)

Segunda feira,13/04/2020  20:07

Publicado no jornal online OBSERVADOR

 

 

 

 

PADRE, JOVEM E BEM PARECIDO

melgaçodomonteàribeira, 11.04.20

7 b - cemitério melgaço.JPG

cemitério de melgaço

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

VIII

O senhor padre Justino logo caiu no goto da população. Era natural da freguesia de Parada do Monte, um povoado perdido no meio das montanhas pertencente ao concelho de Melgaço. Logo que se ordenou foi pastorear uma paróquia serrana em Arcos de Valdevez. Em matéria de padres, a vila de Melgaço nos últimos tempos não fora feliz. O último desandara a fazer besteiras. Era jovem e bem parecido. Tinha atitudes arrogantes que não condiziam com a sua condição de sacerdote. Autoritário fazia valer a sua vontade: intransigente aceitava o que a vida lhe impunha. Empolgado com os ventos patrióticos auto-nomeou-se capelão do núcleo da Legião Portugal e comprou a farda no grau de oficial. Fumava exibindo bonita cigarreira de prata como ditava a moda dos dândis da época. Um seu irmão namorava e anunciou o casamento: a noiva era filha de um ex-padre. Não aceitou tal acontecimento e a sua revolta foi tremenda. Passou a viver em permanente estado de nervosismo. Durante uma novena, cercado dos rapazes do catecismo que eram obrigados a participar, enervou-se com os risos e cochichos que aquelas crianças trocavam entre si. Pegou um que lhe pareceu o responsável e às bofetadas levou o rapazinho pelo meio dos fiéis até à porta, pondo-o na rua. Uma mulher que lhe pareceu aquele rapaz ser um seu neto, protestou.

Na mesma hora, em altos gritos o padre mandou que a mulher se retirasse e ela obedeceu.

O irmão do padre casou. Na adega do amigo Tenente Perez para afogar a revolta, passou a tarde a beber. O vinho desceu fácil e fácil subiu à cabeça. Tinha ao final daquele dia o compromisso de encontrar a alma e acompanhar o funeral do Tino Garrilha. Amparado tentou fazer as leituras de praxe, as velas que ladeavam o caixão atrapalhavam-lhe a visão e a leitura saía gaguejada. Apagaram as velas. Durante o préstito cambaleou amparado por amigos. Foi um grande vexame! Mais vergonhosa ficou a situação quando o povo passou a comentar uma amizade exagerada com uma bonita rapariga. O arcebispo tomou conhecimento e transferiu o nervoso padre para outra freguesia.

Foi nomeado para paroquiar a vila de Melgaço, o senhor padre Justino Domingues, o inverso do anterior. Humilde em excesso, zeloso com as coisas de Deus, de figura franzina e sorriso acanhado. Despertou certa hilaridade no início ao cumprimentar as pessoas. Usava chapéu como mandava a etiqueta clerical, e como era canhoto, ao descobrir-se o impulso inicial era a mão esquerda adiantar-se, logo lhe ocorria que a norma ditava fosse a mão direita a tirar o chapéu. As duas mãos se embaralhavam e quase sempre tirava o chapéu com as duas mãos ao mesmo tempo. Na sua simplicidade revelou-se um sacerdote bondoso, empreendedor, de grande capacidade realizadora no aspecto espiritual e material. Transmitia carácter, nobreza e simplicidade em palavras e atitudes.

Quando de pronto aceitou a ideia de rapazes e raparigas de fazer a novena em intenção da saúde do Zeca do Aurélio, o senhor padre Justino ganhou a simpatia da juventude.

 

(continua)

 

                                                                Manuel Igrejas

 

                                   fica em casa

 

 

 

 

 

 

MUSEU DE CINEMA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 07.04.20

60 c2 - jean loup cinema.jpg

jean-loup passek

 

O MUSEU DE CINEMA JEAN-LOUP PASSEK:

UMA PRECIOSA MEMÓRIA A DESCOBRIR

 

A minha última visita a Braga tinha por objectivo assistir a uma mostra de cinema coordenada por Margarida Avillez, uma grande amiga com quem partilho a minha paixão do cinema e que faz parte, como eu, do Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

Durante o mês de Julho passado, o Auditório Vita, que pertence à Arquidiocese de Braga, apresentou todas as Sextas à noite uma obra fílmica, seguindo-se um debate entre o público e a organizadora. Estando hospedadas no seminário, os padres Joaquim Félix e Avelino Amorim disponibilizaram o seu precioso tempo para nos levar a descobrir os encantos da paisagem e da cultura Minhota. O Padre Carlos Vaz (Director deste jornal e que se juntou a nós mais tarde) lançou o desafio de visitar o Museu de Cinema de Melgaço – Jean-Loup Passek, já que somos, Margarida e eu, especialistas na área. Eu já conhecia o Museu que tinha inaugurado em Junho de 2005. Na altura, com o meu marido (que também ensina Teoria e História do Cinema na Universidade Lusófona de Lisboa) ficamos espantados pela originalidade do projecto: oferecer um Museu de Cinema fora das capitais regionais, numa pequena vila à fronteira entre Portugal e Espanha, não podia ser mais interessante. O Museu liga a memória de um cinéfilo-coleccionador com a memória do cinema. Se a escolha geográfica parece curiosa, a sua justificação não podia ser menos afectiva. Seria depois de um encontro com dois emigrantes portugueses em Paris, há mais de três décadas, que o crítico e historiador de cinema Jean-Loup Passek, descobriu a magnífica vila de Melgaço e decidiu ceder a sua colecção pessoal para criar um pequeno museu de cinema. Aliás, Jean-Loup Passek, que também era Director do Festival Internacional du Film de La Rochelle durante muitos anos, foi um dos primeiros em França a prestar uma homenagem à obra do realizador português António Campos, em 1994.

O Museu de Cinema conta com uma colecção única de cartazes e outros preciosos documentos ligados à história do cinema. Por exemplo, em Julho passado, tivemos a sorte de descobrir a evolução do cinema cubano através dos cartazes e das fotografias que constituem a exposição temporária intitulada “Um olhar sobre o cinema cubano”. Mas o mais espantoso é a colecção permanente que se encontra no rés-do-chão e que se prolonga no primeiro andar. Jean-Loup Passek adquiriu inúmeros “brinquedos ópticos” do pré-cinema que fazem sonhar qualquer amador da história do cinema. Das lanternas mágicas do século XVIII e do princípio do século XIX até à invenção do fenakistiscópio, do zootrópico ou do praxinoscópio, todos esses objectos ópticos anunciam a descoberta da imagem em movimento projectada num ecrã. No primeiro andar do Museu, e não só por fins didácticos mas também pelo prazer da procura, é possível experimentar alguns desses brinquedos do pré cinema e compreender que o movimento da imagem não passa de uma ilusão óptica. De facto, a ilusão do movimento é criada através do intervalo que existe entre duas imagens. Sem a sua existência, as imagens fundem-se umas nas outras. Mas há muitas mais razões para afirmar que o Museu de Cinema – Jean-Loup Passek é uma pequena pérola e, para os cinéfilos, torna-se uma passagem obrigatória. Basta ir até Melgaço para as descobrir.

 

Inês Gil

Professora de Cinema da

Universidade Lusófona

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

 

 

VAMOS TODOS FICAR EM CASA!

 

 

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 5

melgaçodomonteàribeira, 04.04.20

 

A esposa, a Gracinda, quando a oportunidade o propiciava, não desprezava estas fantochadas de ricos, como ele lhe chamava. Influenciada pelas cativantes estultícias da pantalha e pelas constantes cantilenas das colegas, insistira várias vezes com ele para que arranjasse uma televisão em segunda mão; o homem foi sempre intransigente. Um dia, colérica, chantageou: «Pois olha, se não a compras tu, compro-a eu!» O Manel, convencido da sua supremacia, rira e, cinicamente, advertira: «Com o machado, abro-ta ao meio, Gracinda.» Desistiu. O marido não tinha por hábito ameaçar em vão, e ela sabia-o bem; tinha a triste confirmação disso no corpo.

Para não suspender a viagem  quimérica à mulher do patrão, ainda que fosse apenas por uns segundos, bateu de mansinho com a manápula aberta por cima do balcão. A cortina afastou-se quase instantaneamente e o Manolo desembocou da cozinha. Verteu o tinto na tigela sem pronunciar uma palavra e, consoante irrompera, assim  desapareceu.

Havia pouco tempo que coabitavam. Para ele, pouco tempo era um, dois anos. No entanto, estimava-o e testemunhava-lhe uma sincera admiração por ser um homem obsequioso, sempre bem-disposto, consciencioso e que escutava os problemas dos outros. Era uma maneira de ser que lhe agradava. Graças a Deus, até àquele dia, não tivera de ir bater à sua porta... nem à de ninguém. Ainda que não o demonstrasse, nem o confessasse, o Manel estava a par de muitas coisas. Para ele, a reserva e a civilidade eram propriedades consubstanciais.

Percebera que, embora fosse bastante galhofeiro, era um homem seriíssimo. Quando, por coincidência, assistia às suas pilhérias, ria com um anelo irrefreável, apesar de nem sempre as compreender. Eram suficientes as suas mímicas, a fraseologia e o estilo para o fazer gargalhadear.

Uma música mais forte apregoava o fim da telenovela.

A Maribel, depois de se espraiar ruidosamente, levantou-se com a alhada costumeira. Saíra do entorpecimento em que as novelas a entranhavam. De estatura média, cabelo preto cortado à rapaz, usava uns vestidos floreados, largos e compridos. Forcejava-se para encobrir ao máximo as redondezas que a entristeciam e contra as quais conflituava desde o primeiro e único parto: pesava uns bons vinte quilos a mais do que o marido.

— Ai, tu estavas aí, Manel? Não te vira.

«É bem verdade que as mulheres desgraçam a cabeça com estas palhaçadas», disse para si.

— Vens do Freixo, não? – e acrescentou logo – Vens tarde, carambas!

A observação não o incensou. Um esgar inaparente dos beiços traiu o seu descontentamento. No timbre da voz decifrou, uma vez mais, a ponta de diatribe habitual à qual nunca se acostumara.

E se tivesse trabalhado até anoitecer ou se, como era proverbial, tivesse dilapidado o restante da tarde a beber? Vinha quando queria e lhe apetecia e ela não era quem para o reputar sobre o emprego que fazia do seu tempo. Quando é que a gente abandonaria essa ousadia, essa desenvoltura de se entremear na vida dos outros e de os avaliar?

Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios ou da sua vida que o irritava, mas a permissividade com que se sentia autorizada em admoestá-lo.

Que cresse o que quisesse! Devido à sua mandriice e à sua verbosidade, o carinho por ela nunca levedara e, cada dia, mais abaixava.

A despeito do fastio com que as suas palavras o tinham acirrado, sorriu-lhe friamente e deu aos ombros. Preferiu fazer o néscio e não ripostar.

Podia ser reconhecida ao formidável marido, senão havia muito que a tinha posto no merecido lugar.

Exasperado, inspirou devagarinho o mais que pôde. Eram horas de ir para a casa. Apesar do corte da patroa, recobrara vivacidade e tinha fome. Pediu mais uma tigela para o caminho e pagou as três.

Já noite escura, enxada ao ombro e sibilando baixinho, foi encurtando a distância que o abduzia do logo. Depois de percorrer uns cem metros pela estrada, virou à direita, pelo caminho do regato. A partir dali, a ligeira luz – e intermitente – era a do inapreensível astro da noite, quando os cúmulos, de imprevisto, o não impediam de espargir a sua claridade coruscante e imaculada. Por entre campos e por debaixo de um par de latadas, ia ao encontro da velha casa que ocupara uns anos depois de emigrar para a Galiza.

Não ressentia arduidade alguma para se orientar. Era capaz de adivinhar o caminho de olhos fechados. Sem embargo, já lhe adviera, embriagado, de se enganar e de dar sucessivas voltas a um ou outro campo até, por fim, atinar. Outra vez, não caiu no tanque de rega que havia ao lado de uma das latadas porque teve o reflexo de deitar uma mão ao pé de uma vinha.

Uns metros antes de avistar a luz da casa, já ouvia o burburinho particular orquestrado pelas águas do regato, tão recôndito e falante. Discriminava facilmente as variações sinfónicas que, durante o ano, o caudal, umas vezes agitado, atrabiliário e estrepitoso, e outras, sereno, reticente e embalador, gorjeava.

Quando a noite fora boa, deitava-se descontraído, encantado, com a cabeça ensopada de álcool. Durante estas madrugadas, bastante frequentes, a casa afigurava-se-lhe um palácio, o colchão, de penas de ganso, e a mulher, a mais bela e excitante que podia existir. Até o sussurro do ribeiro, que lhe valsava no bestunto, soava como o folclore – uma invenção divina, dizia –, a sua flama, o seu fervor desde que tinha ouvidos. Adormecia arrastado por este arrebatamento, como uma criança, como um serafim.

E, repetidas vezes, tinha o mesmo pesadelo: via-se no cimo de uma montanha, no fundo da qual vislumbrava uma ponte monstruosa sob a qual serpenteava um rio sedicioso. Apesar da sua resistência, terrificado, era propelido no vazio por um viço esfíngico. Apartava os braços e auxiliava-se deles como se fossem asas, até se amainar e governar a conturbação. Em seguida, baixava vagarosamente e pousava-se numa das pontas do viaduto num admirável estado de euforia.

Quando acordava e lhe sobreviviam resíduos destas fantasias, infestava-o uma ledice estrambólica.

 

Continua.

FICA EM CASA, CARALHO

 

O BLOG, MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA, VAI CONTINUAR COMO ATÉ AQUI,  ACRESCIDO DO POST DE TERÇA-FEIRA. COMO TEMOS QUE FICAR EM CASA E OS POST ATÉ AO FIM DO ANO ESTÃO A SER PUBLICADOS AUTOMÁTICAMENTE, VOU FAZENDO UNS ACRESCENTOS PARA NOS AJUDAR A PASSAR O TEMPO QUE ESTAMOS EM CASA... EM CASA... EM CASA...