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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

ARCHIVO HISTORICO DE PORTUGAL II

melgaçodomonteàribeira, 29.02.20

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No período que medeia de 1384 a 1393, sustentou Portugal encarniçadas batalhas com os pretendentes castelhanos João I e Henrique III.

Depois do assassinato do conde Andeiro, a rainha D. Leonor Telles repleta de ódios contra Portugal, chamou o genro de Castella, para que tomasse conta do paíz. Desde logo o monarca veiu sobre Portugal, invadindo e perpetrando várias barbaridades, mas a heroica attitude de Nunalvares, a sábia direcção política de João das Regras, e a sensatez e brios do valoroso mestre de Aviz, lograram salvar o paíz das algemas da escravidão. Não há, ou pelo menos não deve haver, um só português que ignore os feitos brilhantes dos nossos avós d’aquella época de riscos, de angústias e indecisões, aggravada tão lastimosa situação ainda pela peste que se alastrava na Europa.

O epílogo d’estes combates titânicos foi a assombrosa batalha de Aljubarrota, em que as portuguezas hostes se ergueram ás proporções de legendários heroes. Foi ali que vinte mil guerreiros inimigos, bem equipados e instruídos na guerra, ficaram derrotados por um exército indisciplinado, ignorante, e cujo número não passava de dez mil homens. Mas em cada um d’esses homens havia um coração gigante, transbordando de amor pátrio! Iam dispostos a morrer, mas não a presencearem a morte da adorada mater. Com elles estava o homem digno, que n’aquelle grande dia symbolisava a Pátria, e esse, o sympathico Mestre de Aviz, bateu-se como um leão, incutindo audácia aos seus com a palavra e com o exemplo.

Este ilustre varão, que tão immortalisado tinha de ficar na gratidão portugueza por seus feitos e pelos seus preclaros filhos, viu fugir em debandada o numeroso exército inimigo, que tão soberbo e provocante se apresentara, contando de antemão com o triumpho decisivo.

Fiava-se o insolente castelhano na desproporção numérica dos nossos combatentes, olvidado dos heroísmos de que a fronteira lhe dera já severa lição. É certo que a princípio nos tinham tomado grande parte das povoações fortificadas do Alto Minho, mas os portuguezes retomaram o forte castelo de Neiva. Vianna, que estava sob o governo de um castelhano, por nome Vasco Lourenço da Lira foi salva de similhante ignomínia por um popular chamado Frisus, o qual pondo-se à frente do povo atacou valentemente o castello, e aprisionou toda a guarnição castelhana. Frisus morreu na refega, porém a posteridade immortalisa-o no capitólio da glória.

Villa Nova de Cerveira, Caminha e Monção foram igualmente reavidas pela ousadia patriótica dos povos. Ponte de Lima foi resgatada pelos heroicos esforços dos seus habitantes em prémio do que o bom rei D. João I lhes mandou collocar os bustos sobre as vergas das portas.

Voltemos, porém, ao nosso propósito de exemplificar o quanto valem e o quanto bem merecem da Pátria as mulheres de Melgaço.

Permanecia ainda esta villa sob o domínio castelhano, defendendo o castello Alvaro Paes Sotto-Maior, alcaide-mor, que tinha às ordens uma guarnição de trezentos infantes e trezentos cavallos.

Enfastiado pela resistência, foi o valente D. João I pessoalmente pôr cerco a Melgaço, mas os dias decorriam sem haver ensejo para mais de ligeiras escaramuças sem importância para a decisão do pleito. Ao décimo dia o rei-guerreiro, já exasperado pela situação, tomou a resolução de mandar fazer um castello de madeira, que ficasse a cavalleiro das muralhas. Vinte dias levou o plano a executar-se. Vendo os inimigos propinque um assalto, deram signal de um armistício, e mandaram à praça um emissário para entabularem negociações.

Alvaro Paes, o velho amigo de D. João, taes condições poz, que não pode resolver-se coisa alguma, e então o monarca ordenou que se desse o assalto, o qual seria por elle mesmo commandado.

Deu-se isto pelo anno de 1387; D. João havia-se matrimoniado recentemente com a virtuosa e intelligentíssima princeza D. Filippa de Alencastre, que tão salutar, honesta, e gloriosa influência exerceu no ânimo do esposo e na educação dos heroicos filhos. A jovem rainha estava em Monção com as suas damas e acompanhada pelo famoso João das Regras, sábio mestre e alma da política d’aquelles tempos. Viera do Porto para ver o esposo real, e tencionava residir no convento de Fiães emquanto durasse o cerco. Espírito varonil e angélico ao mesmo tempo, não a atemorizava o perigo, antes d’elle se approximava como uma estrella de amor, que lançava os seus castíssimos reberveros no coração dos reivindicadores dos direitos de sua nova pátria, pátria que a doce e bella rainha tanto amou e soube honrar!

Dentro da praça havia uma mulher destemida, espécie de virago, que sendo natural de Melgaço, renegara a sua origem e se dera de alma e coração aos castelhanos. Ora no arraial dos portuguezes achava-se também uma mulher de muita valentia, do que havia dado bastas provas. Esta, cujo nome era Ignez Negra, abrigava no coração os mais sagrados princípios patrióticos, e daria a sua vida pela honra de sua terra. Sabedora a renegada da existência da valente portugueza nas sua vizinhanças, mandou-a desafiar a um combate singular.

Ignez Negra não repelliu a proposta, e dirigiu-se immediatamente para o lugar da justa, que ficava a meia distância do arraial e da villa. Chegada ali encontrou a sua antagonista já perfilada, arregaçada e capaz de luctar com o próprio Hércules. Não se intimidou Ignez, mas antes se encheu de nobre indignação, em presença da deshonrada virago que atraiçoara a mãe pátria.

Feriu-se o combate com extraordinário ardor. Parece que ambas andavam armadas, mas não especialisa a chronica a espécie de armas de que se serviram, sabendo-se apenas que essas armas ficaram despedaçadas na refega. Por fim valeram-se de unhas e dentes.

Afinal a arrenegada, como então de se dizia, ficou vencida, rotas as vestes, esmurradas as narinas, escalavrada a cara, e n’esse vergonhoso estado de derrota teve de fugir, deixando como tropheus à vencedora os cabellos e os farrapos do vestuário.

Grande foi a assuada que os castelhanos soffreram do arraial portuguez, e a nossa destemida compatriota foi victoriada como de justiça era.

No dia immediato cahia a villa no regaço da mãe pátria e, Ignez Negra, guerreira entre os guerreiros, lá estava no alto da plataforma do castello, cercada de besteiros, olhando amoravelmente o pendão das quinas, que de novo conquistara o seu lugar.

Então, no auge do seu enthusiasmo exclamou triumphantemente, collocando as mãos sobre o generoso coração que parecia disposto a saltar-lhe do seio:

«Mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder. És do rei de Portugal!»

Salvé brilhante heroína de Melgaço! A Pátria agradecida te cobre de bênçãos a gloriosa memória!