Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

ARCHIVO HISTORICO DE PORTUGAL II

melgaçodomonteàribeira, 29.02.20

afonso III.JPG

No período que medeia de 1384 a 1393, sustentou Portugal encarniçadas batalhas com os pretendentes castelhanos João I e Henrique III.

Depois do assassinato do conde Andeiro, a rainha D. Leonor Telles repleta de ódios contra Portugal, chamou o genro de Castella, para que tomasse conta do paíz. Desde logo o monarca veiu sobre Portugal, invadindo e perpetrando várias barbaridades, mas a heroica attitude de Nunalvares, a sábia direcção política de João das Regras, e a sensatez e brios do valoroso mestre de Aviz, lograram salvar o paíz das algemas da escravidão. Não há, ou pelo menos não deve haver, um só português que ignore os feitos brilhantes dos nossos avós d’aquella época de riscos, de angústias e indecisões, aggravada tão lastimosa situação ainda pela peste que se alastrava na Europa.

O epílogo d’estes combates titânicos foi a assombrosa batalha de Aljubarrota, em que as portuguezas hostes se ergueram ás proporções de legendários heroes. Foi ali que vinte mil guerreiros inimigos, bem equipados e instruídos na guerra, ficaram derrotados por um exército indisciplinado, ignorante, e cujo número não passava de dez mil homens. Mas em cada um d’esses homens havia um coração gigante, transbordando de amor pátrio! Iam dispostos a morrer, mas não a presencearem a morte da adorada mater. Com elles estava o homem digno, que n’aquelle grande dia symbolisava a Pátria, e esse, o sympathico Mestre de Aviz, bateu-se como um leão, incutindo audácia aos seus com a palavra e com o exemplo.

Este ilustre varão, que tão immortalisado tinha de ficar na gratidão portugueza por seus feitos e pelos seus preclaros filhos, viu fugir em debandada o numeroso exército inimigo, que tão soberbo e provocante se apresentara, contando de antemão com o triumpho decisivo.

Fiava-se o insolente castelhano na desproporção numérica dos nossos combatentes, olvidado dos heroísmos de que a fronteira lhe dera já severa lição. É certo que a princípio nos tinham tomado grande parte das povoações fortificadas do Alto Minho, mas os portuguezes retomaram o forte castelo de Neiva. Vianna, que estava sob o governo de um castelhano, por nome Vasco Lourenço da Lira foi salva de similhante ignomínia por um popular chamado Frisus, o qual pondo-se à frente do povo atacou valentemente o castello, e aprisionou toda a guarnição castelhana. Frisus morreu na refega, porém a posteridade immortalisa-o no capitólio da glória.

Villa Nova de Cerveira, Caminha e Monção foram igualmente reavidas pela ousadia patriótica dos povos. Ponte de Lima foi resgatada pelos heroicos esforços dos seus habitantes em prémio do que o bom rei D. João I lhes mandou collocar os bustos sobre as vergas das portas.

Voltemos, porém, ao nosso propósito de exemplificar o quanto valem e o quanto bem merecem da Pátria as mulheres de Melgaço.

Permanecia ainda esta villa sob o domínio castelhano, defendendo o castello Alvaro Paes Sotto-Maior, alcaide-mor, que tinha às ordens uma guarnição de trezentos infantes e trezentos cavallos.

Enfastiado pela resistência, foi o valente D. João I pessoalmente pôr cerco a Melgaço, mas os dias decorriam sem haver ensejo para mais de ligeiras escaramuças sem importância para a decisão do pleito. Ao décimo dia o rei-guerreiro, já exasperado pela situação, tomou a resolução de mandar fazer um castello de madeira, que ficasse a cavalleiro das muralhas. Vinte dias levou o plano a executar-se. Vendo os inimigos propinque um assalto, deram signal de um armistício, e mandaram à praça um emissário para entabularem negociações.

Alvaro Paes, o velho amigo de D. João, taes condições poz, que não pode resolver-se coisa alguma, e então o monarca ordenou que se desse o assalto, o qual seria por elle mesmo commandado.

Deu-se isto pelo anno de 1387; D. João havia-se matrimoniado recentemente com a virtuosa e intelligentíssima princeza D. Filippa de Alencastre, que tão salutar, honesta, e gloriosa influência exerceu no ânimo do esposo e na educação dos heroicos filhos. A jovem rainha estava em Monção com as suas damas e acompanhada pelo famoso João das Regras, sábio mestre e alma da política d’aquelles tempos. Viera do Porto para ver o esposo real, e tencionava residir no convento de Fiães emquanto durasse o cerco. Espírito varonil e angélico ao mesmo tempo, não a atemorizava o perigo, antes d’elle se approximava como uma estrella de amor, que lançava os seus castíssimos reberveros no coração dos reivindicadores dos direitos de sua nova pátria, pátria que a doce e bella rainha tanto amou e soube honrar!

Dentro da praça havia uma mulher destemida, espécie de virago, que sendo natural de Melgaço, renegara a sua origem e se dera de alma e coração aos castelhanos. Ora no arraial dos portuguezes achava-se também uma mulher de muita valentia, do que havia dado bastas provas. Esta, cujo nome era Ignez Negra, abrigava no coração os mais sagrados princípios patrióticos, e daria a sua vida pela honra de sua terra. Sabedora a renegada da existência da valente portugueza nas sua vizinhanças, mandou-a desafiar a um combate singular.

Ignez Negra não repelliu a proposta, e dirigiu-se immediatamente para o lugar da justa, que ficava a meia distância do arraial e da villa. Chegada ali encontrou a sua antagonista já perfilada, arregaçada e capaz de luctar com o próprio Hércules. Não se intimidou Ignez, mas antes se encheu de nobre indignação, em presença da deshonrada virago que atraiçoara a mãe pátria.

Feriu-se o combate com extraordinário ardor. Parece que ambas andavam armadas, mas não especialisa a chronica a espécie de armas de que se serviram, sabendo-se apenas que essas armas ficaram despedaçadas na refega. Por fim valeram-se de unhas e dentes.

Afinal a arrenegada, como então de se dizia, ficou vencida, rotas as vestes, esmurradas as narinas, escalavrada a cara, e n’esse vergonhoso estado de derrota teve de fugir, deixando como tropheus à vencedora os cabellos e os farrapos do vestuário.

Grande foi a assuada que os castelhanos soffreram do arraial portuguez, e a nossa destemida compatriota foi victoriada como de justiça era.

No dia immediato cahia a villa no regaço da mãe pátria e, Ignez Negra, guerreira entre os guerreiros, lá estava no alto da plataforma do castello, cercada de besteiros, olhando amoravelmente o pendão das quinas, que de novo conquistara o seu lugar.

Então, no auge do seu enthusiasmo exclamou triumphantemente, collocando as mãos sobre o generoso coração que parecia disposto a saltar-lhe do seio:

«Mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder. És do rei de Portugal!»

Salvé brilhante heroína de Melgaço! A Pátria agradecida te cobre de bênçãos a gloriosa memória!

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 2

melgaçodomonteàribeira, 22.02.20

 

Media mais de um metro e oitenta – era conhecido pelo Manel Grande –, tinha uns ossos ricamente cobertos e uma grande e oblonga cabeça, cujo cabelo, sempre bem rapadinho, deixava sobressair umas orelhas colossais e descoladas. Durante o ano, fosse qual fosse o tempo, uma camisola interior de alças e uma camisa branca de nylon eram a única vestimenta que lhe cobria o tronco; as mangas sempre arregaçadas desvelavam umas veias bem irrigadas; os dois primeiros botões desapertados auspiciavam um peito firme e imberbe. Barrigudo, conformemente à maioria dos campónios da sua idade, caminhava de maneira ronceira e inabalável, com aparente pena, o que não deixava dúvidas sobre a massa bruta que era.

Imbróglios, aborrecimentos eram as coisas que ele menos procurava. Era um luxo que não se podia permitir. Primeiro, por serem termos que não faziam parte do seu temperamento deferente e pacato; segundo, e antes de tudo, por não estar documentado.

No dia, já longínquo, que, com a mulher, passara o regato e se estabelecera em terra alheia, fizera a promessa de nunca indispor ou prejudicar os seus anfitriões, facto que,  fortuitamente, podia colocá-lo em situação embaraçosa. Viera para Espanha trabalhar e não aventurar-se, fosse no que fosse. Sempre respeitara a liberdade dos próximos e acreditava que cada qual era o julgador absoluto e imparcial dos seus actos e, consequentemente, o único imputável. Nunca se incomodara com a vida dos outros, detestava que se imiscuissem na dele e jamais tentara ilibar-se das suas responsabilidades, ainda que fossem meras futilidades. Até aquela data, felizmente, não tivera quaisquer desarmonias ou mal-entendidos notáveis com os seus semelhantes.

Honesto e trabalhador como poucos, os maiores lavradores da região rivalizavam para lograr os seus serviços durante as temporadas de azáfama. Nunca estivera um dia inactivo sem que fosse por vontade sua.

Havia muitíssimos anos que vivia na Frieira:  vinte, vinte e três, vinte e cinco. Talvez mais, talvez menos... Já não sabia, nem queria saber. Cada vez que retrocedia no tempo, o seu espírito era invadido de imediato por remembranças excruciantes.

Menosprezava a servidão, a vileza a que tivera de se sujeitar na terra natal. Tinha sido o preço a pagar para comer umas batatas insossas que nem com um fio de azeite podia condimentar, falta de meios.

A lembrança – ainda que momentânea – destes tempos obrigava-o a cerrar os punhos com força e a ranger os dentes. Era uma reacção convulsiva, de incomensurável asco. O senhorio para o qual trabalhara, pessoa despicienda que vira poucas vezes, nem a mão se dignava apertar-lhe, como se fosse um ser sarnento, uma besta. Fora um capítulo horrível da aurora da sua vida, uma submissão cobarde, abjecta que, hoje, o enojava e indignava visceralmente por ter sido tão adinâmico.

Apesar da miséria, da repugnância de que era alvo, renunciar ao único, mas mais belo pedaço de terra onde viera ao mundo, aos colegas de infância e de adolescência, tão miseráveis como ele, fora um rasgo ardente. Chegou a outra terra, mais pobre do que a sua, com outra gente, visivelmente inospitaleira; mas, como a sociabilidade e a sensibilidade são os fusíveis do nosso destino, a sua visão foi-se agudizando e o rasgo, passo a passo, colmatou-se.

O Manel, depois de dar o salto, fora contemplado com a lógica suspicácia habitual das pessoas que se desconhecem; fora, nem mais nem menos, acolhido como qualquer forasteiro que chega a uma aldeia. Graças ao seu carácter expansivo e à sua exemplaridade, não precisara de temporizar muito para se integrar, o considerassem e aceitassem quase como se tivesse vindo ao mundo ali.

Desde o dia que, apreensivo e desconsiderando os imprevisivos percalços, resolvera  saltar o regato, não podia dizer que a sua vida fosse tão ingrata. Não era por aí além, nem pensar, mas era certamente bem mais luminosa e copiosa do que a que até ali suportara. Continuava a ser o homem cândido que vendia a sua pujante força braçal aos agricultores, aos proprietários das melhores terras, mas ganhava para apaziguar a fome e ainda lhe sobrava. Só por olharem para ele com decência e humanismo, já se sentia realizado, embora soubesse que também era apreciado por ser uma pessoa laboriosa e prestadia.

Não deplorava, de modo nenhum, a decisão dilacerante que tivera de tomar. E, hoje, se por ventura a conjuntura o forçasse, não teria a menor hesitação em voltar a fazê-lo noutras direcções. Ficara a saber que todo ser, onde quer que tenha nascido, corre atrás das mesmas imprescindibilidades fulcrais. Para ele, o essencial era ter um pouco a fim de viver em harmonia com os demais. Não tinha inveja de ninguém, não, nem dos ricos para os quais trabalhava. «O que já tem muito e mais quer nunca será rico nem feliz. Rico e feliz é aquele a quem basta o que têm. Como eu», alegava.

O sol, cansado, do qual dois terços já se tinham ofuscado a oeste, por detrás dos montes da margem direita, arrojava os últimos clarões. Ainda que langorosos, galvanizavam poeticamente os primeiros cem metros do  percurso internacional das águas do Minho que dali se descortinavam.

Nas janelas das casas esboroadas pelas duas margens do rio, já se apercebiam algumas luzes. Frouxas e pálidas, anunciavam o fim do dia de trabalho e, para quase todos, o começo da vida caseira. Para esta gente, como para toda a desta condição, onde quer que se estivesse, o tempo livre era tão escasso como algumas iguarias em cima da mesa.

O Manel era dos últimos a chegar à casa.

Deixou-se ficar inerte uns segundos e coçou energicamente a traseira do crânio com a boina sebosa; depois, ajustou-a de novo na cabeça e olhou para um e outro lado do tabuleiro da ponte, como quem quer persuadir-se de alguma coisa. Com as costas da mão polposa, limpou umas gotas de suor que lhe atapetavam a testa. «Raio de calor!», queixou-se, de modo falacioso. A transpiração obstinada que, àquela hora e naquele momento, ressumbrava da parte superior do seu rosto não era originada pela temperatura ambiental, mas pela forte sensação de estresse que o assolava.

Como hoje, cada vez que se avizinhava o momento fatídico de traspassar a ponte, reproduzia, incondicionalmente, as mesmas invectivas, as mesmas gesticulações, as mesmas pantomimas. Esta iniciativa transtornava-o psiquicamente, engendrando-lhe distúrbios físicos. Homem de uma robustez extraordinária, temia, no entanto, mais este instante do que a própria morte: as mãos tremiam-lhe, o coração latejava-lhe e um pânico potente submergia-o, intrincando-lhe a respiração. Uma autêntica paranóia. Cuspiu para o chão, nauseado, e grunhiu a meia voz: «Rio do caralho!» O Manel sofria de acrofobia severa.

Continua.

AO AMIGO QUE ME PEDIU INFORMAÇÃO SOBRE FOTOGRAFIAS, NÃO TENHO FORMA DE ATENDER AO SEU PEDIDO. LAMENTO. NÃO RESPONDI AO E-MAIL PORQUE PERDI O ENDEREÇO.

Ilídio Sousa

 

 

ARCHIVO HISTORICO DE PORTUGAL I

melgaçodomonteàribeira, 15.02.20

 

48 a2 - antigo escudo da vila, desaparecido.jpg

antigo brasão de melgaço

ARCHIVO HISTORICO DE PORTUGAL

MELGAÇO

Fica esta villa na província do Minho, e pertence ao arcebispado de Braga.

É praça de guerra, cabeça de comarca e dista 430 kilometros de Lisboa e 72 ao noroeste de Braga.

A origem de Melgaço perde-se na penumbra da história. Sabe-se que é povoação antiquíssima, mas ignora-se quando e por quem foi fundada. Querem uns que a sua fundação fosse devida aos luzitanos, outros que ella fosse obra dos romanos. Não há vestígios de espécie alguma que dêem qualquer idéa do que foi esta povoação na sua primeira idade. Nenhum monumento, nenhuma revelação archeologica tem aparecido a fazer luz n’esta obscuridade de origem.

Que existia no tempo da dominação árabe é incontestável, porem já a esse tempo era Melgaço antiquíssima povoação, visto ter D. Affonso Henriques encontrado ali uma grande fortaleza inteiramente arruinada.

Era este castello denominado castello do Minho, e foi com certeza construído pelos árabes. Em volta d’elle apinhavam-se alguns casebres, talvez construídos com o fim de acolherem os seus habitantes á protecção do forte, pois que n’aquelles tempos não havia segurança longe d’esses colossos de pedra, que continham em respeito os aventureiros.

Qual a importância que tivesse esta villa não é dado, pois, saber-se positivamente. No entanto, o facto de n’ella terem os árabes edificado uma fortaleza, prova que não era destituída de consideração dos seus possuidores.

No tempo de D. Affonso Henriques achava-se, porém em misérrimas circumstancia, e abandonada pelos seus habitantes. Não são também conhecidas as razões que levaram os mouros a essa emigração. Talvez possa explicar-se o facto pela guerra acérrima que os christãos lhes moviam. O audacioso e aguerrido filho do conde D. Henrique encontrando a terra deserta, mandou-a povoar por christãos e reedificar-lhe o castello, em 1170.

Em 1197 o prior do mosteiro de frades crúzios, D. Pedro Pires, mandou á sua custa edificar a fortaleza e a torre.

Era este prior muito abastado de fortuna e dedicado ao engrandecimento do paiz. O mosteiro a que pertencia era o de Longosvales.

Em 21 de Julho de 1181 deu D. Affonso Henriques o primeiro foral a Melgaço e fez doação da aldeia de Chaviães aos seus moradores.

D’este foral trata o sapientíssimo historiador Alexandre Herculano na sua História de Portugal, vol. IV, pag. 114. Referindo-se ás garantias e liberdades que usofruiam alguns concelhos, escreve o imortal auctor do Eurico: Quanto, porém, ás liberdades mais importantes, eis o que lemos no foral de Melgaço concedido por Affonso I em 1181:

«O vigário d’elrei seja um morador da villa. Se alguém o ferir ou matar, pague cem soldos de multa, como de outro qualquer homem.»

«O que quizer ser vizinho, vindo morar convosco, pague um soldo, seis dinheiros para os juízes da villa, e seis para o senhor da terra.»

«Se algum mercador vier com estofos, venha o fardo por atacado e não a retalho, salvo sendo na feira, e se assim o não fizer, pague trinta soldos que se dividirão entre o meu vigário, e os juízes de vossa villa».

«Se alguns homens travarem lucta e se arrepelarem (per capillos se traxerint) dentro da villa, quer seja em concelho reunido, quer na egreja, a ninguém deem satisfação disso senão a si mesmos, se quizerem fazel-o, etc.»

«Se, porém, algum dos dous recusar a reparação, e o outro der querela por intervenção do vigário, execute-se o que sentenciarem os juízes da villa, dando-se metade (da condemnação) ao espancado e metade ao vigário.»

«Se entre vós o vizinho matar seu vizinho, venha a justiça da villa com o vigário d’elrei á porta do homicida e peçam-lhe um penhor: dado este, peçam-lhe um fiador por cinco soldos: dado o fiador, restituam-lhe o penhor dentro de nove dias: passados os nove dias, venham as dictas justiças e vigário, e exijam do criminoso cem soldos pelo homicídio. Se, porém, não o acharem na terra, o fiador pague cinco soldos, e o homicídio recaia sobre a casa e prédios ruraes do auzente, e ninguém mais lhe faça mal senão os seus inimigos.»

Isto quer dizer que a vingança ficaria aos parentes do morto pelo direito de revindicta, sem que a justiça interviesse n’isso, tendo tirado os cem soldos de multa por execução nos bens do criminoso.

El-rei D. Affonso III lhe deu outro foral em Braga, a 29 de abril de 1258.

Tratando d’este segundo foral, diz ainda o imortal Alexandre Herculano em uma nota da sua História, que se encontra a pag. 169, que ali se estabelecia que os moradores da villa fossem 350, devendo pagar 350 morabitinos de direitos reaes. D’este foral, transcreve o mesmo auctor:

«Mandae-me immediatamente um cavalleiro português, que me faça menagem do castello de Melgaço, tal que possa ter e defender o dito castello e fazer delle direito.»

Estes foraes são escriptos em latim bárbaro, e encontram-se no archivo da Torre do Tombo, na gaveta especial de foraes antigos.

Pertenceu esta villa á caza dos Braganças, e pelos duques eram dados todos os offícios.

De Melgaço são oriundas várias famílias nobres de Portugal, taes como os marquezes de Niza, condessa da Ribeira, barão de Proença-a-Velha, Castros Pittas, de Caminha, e outras ilustres famílias, mais ou menos aparentadas com o antigo senhor de Lapella, morgado de Covas, Gaspar de Castro Caldas.

Se Melgaço não é conhecida na sua origem, se não tem a illustral-a nem columnas nem templos, preciosas relíquias da civilisação pagã, a sua história desde os tempos em que foi povoada pelos christãos é insufficientemente honesta e heroica para lhe grangear títulos de nobreza.

De quantas vezes a pátria precisou do seu auxílio, de lá correram valentes e  intrépidos patriotas, affrontando perigos, determinando-se bravamente a todos os sacrifícios. Nas longas e successivas guerras com Castella os melgacenses souberam sempre honrar a sua terra e a lusitana bandeira.  

E não só os homens como também as filhas de Melgaço são heroicas e arrojadas na defeza da integridade do território pátrio. Exemplos teem dado dos seus nobillísimos sentimentos, e d’este vamos fazer a narração de um, que de per si basta a orgulhar as formosas e honestas mulheres d’esta briosa villa.

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 1

melgaçodomonteàribeira, 08.02.20

 

Eu.JPG

30/11/1955

10/09/2018

David de Carvalho morreu há meia dúzia de meses. Eu continuo a conversar com ele todos os dias. Durante tempo, que eu não sei, lutou com a língua portuguesa, sua língua mãe (mais de metade da sua vida foi passada entre Galiza e Paris), e escreveu FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS. Vários episódios já foram publicanos, mas vamos começar do zero, como naquele dia em que recebi o nº 1 da história.

Deixou-nos o seu blog, MELGAÇO, DO PASSADO E DO PRESENTE.

Um abraço meu irmão, até um dia!

Ilídio

 

 Fragmentos de vidas raianas - 1978/1981

Pouco faltava para ser noite quando o Manel emergiu da floresta. Essencialmente povoada de pinheiros e eucalíptos, toldava a maior parte da encosta íngreme do monte. De modo despreocupado, empreendeu a descida do sinuoso caminho que findava na extremidade direita da ponte da Frieira. Esta superestrutura recente, sobranceira ao rio Minho, unia dois lugares galegos homónimos que pertenciam a concelhos e províncias diferentes.

Ambas províncias confrontavam com Cevide, o lugar luso mais hiperbóreo. A da margem direita, a Província de Pontevedra, estava separada dele pelo rio Minho; a da margem esquerda, a Província de Ourense, pelo rio Trancoso, um simples arroio.

O nome adequado das duas aldeias era A Frieira, mas todos proferiam e escreviam Frieira. Até nos epígrafes da estação do caminho de ferro.

Daquele lado da ponte, num discreto remanso retirado da estrada cerca de dois metros, havia uma casinhola de metal laminado. Durante o dia, e a qualquer hora, a probabilidade de nela se encontrarem dois guardas civis era inconstante, mas depois de se implantar o lusco-fusco, a possibilidade convertia-se numa asserção. O verde azeitona original das placas do abrigo – o mesmo que o do uniforme dos ocupantes –, apesar da persistente inclemência do tempo que o fora carcomendo, ainda preponderava. Um jipe Land Rover, igualmente verde, apenas mais escuro, estacionado em frente daquela guarita, denunciava a presença evidente dos guardas fronteiriços.

Vistoriavam os veículos e os respectivos ocupantes em busca de contrabando e de eventuais emigrantes clandestinos que experimentavam, por todos os meios, atingir os países europeus onde o emprego pululava. Observavam e vigiavam, em paralelo, a escada férrea situada diante do tugúrio, necessariamente utilizada por todos aqueles que, vindos da margem esquerda, tinham de ir apanhar o comboio à estação. Os passageiros procedentes de Madrid, de Barcelona e, mormente, de Irun – País Vasco –, que ali se apeavam, eram alvo do maior reparo. Fotos dos principais membros operacionais da ETA e do GRAPO decoravam uma das paredes do casebre.

Aquele espaço restrito era o ponto mais decisivo, mais problemático e mais delicado, que determinava a vida e, por conseguinte, os recursos de muitos habitantes da margem ourensana do rio Minho, assim como dos das beiras do rio Trancoso.

Naquela região, onde as terras galaico-minhotas se entestavam, o contrabando – como em qualquer outra zona fronteiriça do mundo – era um afazer intrínseco, arraigado, filho da raia. Fazia de tal maneira parte da vida das pessoas que acabara por ciselar e normalizar as suas exigências, as suas obrigações, as suas asperezas e, em geral, a sua existência. Exceptuando um período quase industrial, principiado com a Guerra Civil Espanhola e finalizado com a capitulação dos Alemães, podia dizer-se que o contrabando, embora considerável, se transformara, ao longo dos anos, num contrabando artesanal, familiar, de necessidade e facilidade. Grande parte dos raianos extirpava diariamente uns dolorosos dividendos mais do que indispensáveis do petate – contrabando.

A partir de 1965, e quase durante uma dezena de anos, a construção da barragem – inaugurada em 1970 – e, depois, da ponte, com tudo o que vai de par, atraíra uma infinidade de pessoas heterogéneas para aqueles povoados; fizera daquelas e de mais algumas aldeolas vizinhas uns centros de comércio, consentindo aos nativos ganhar uns inesperados duros – antiga moeda espanhola de 5 pesetas. Esta profusão alastrou-se, sendo gratificante para muitos portugueses da raia, especialmente para os argutos comerciantes.

Dos consideráveis trabalhadores recrutados para a ocasião, um grande número – os menos qualificados – tinha vindo do outro lado. Foi desta maneira que muitos portugueses esbarraram com a sua alma gémea, fundaram uma família e abraçaram outra terra que, para alguns, não era mais do que o prolongamento da deles.

A ponte e o posto de controlo foram inaugurados conjuntamente.

A consumação destas obras – gigantescas para a região – pusera, inevitável e definitivamente, fim ao eldorado de vários anos de convivialidade, de partilhas e de saudável fartura. Os raianos, sem outra opção, voltaram, pois, a engalfinhar-se nos retrospectivos e corriqueiros negócios que, durante os anos de exuberância, tinham gerido ao ralenti, relegado para um plano secundário ou, muito simplesmente, esquecido.

Instintivamente, o Manel constatou que o Land Rover dos guardas civis não estava ali. Era-lhe igual visto não ter nenhum motivo para revelar o mais pequeno receio ou, ainda que fosse, se precaver das autoridades locais. Neste aspecto sentia mesmo uma deliberada displicência que muito o orgulhecia.

O contrabando nunca fora um capricho, uma fidedigna preocupação ou uma fonte de dinheiro para ele. Ajudava ocasionalmente um africano a atravessar o regato que passava ao lado da sua casa, quando este, em regra geral no inverno, se tornava difícil e pernicioso de transpor. No sítio mais acessível, que distava uns passos da foz, a corrente já se tinha mostrado capciosa, traiçoeira, e até fatal, para alguns aventureiros, aos quais o imenso desespero e sofrimento impulsaram a desafiá-la incautamente. Mas ele conhecia-lhe umas falhas, uns vaus...

Desde as bandas de Portelinha, a torrente do riacho ia engrossando com a água das chuvas ou o derretimento das nevadas; auxiliada pelo desnivelamento do solo, roborava gradualmente, activando-se com pertinácia durante os últimos metros, para se aliviar com estrondo no rio Minho. 

Mas era mais por solidariedade do que pela remuneração, embora o gesto nunca o deixasse indiferente, que o Manel corria o risco de transgredir. Não ignorava que a desesperança podia, de maneira imponderada, perturbar a razão e conduzir as pessoas mais sensíveis ou carenciadas por caminhos desvastadores. Por esta razão, na medida do possível, esforçava-se por fazer o que podia para alijar as angústias dos que, do outro lado do ragato, por vezes, imploravam que lhes estendesse a mão.

Os guardas civis estavam ao corrente da sua prática efémera – tudo era trivial num lugar daqueles –, mas nunca lhe tinham manifestado qualquer contrariedade ou desagrado pelo facto. Compreendia muito bem que quem era pago para combater e sancionar infracções não podia tolerá-las. Achava que era uma elementar questão de sobriedade e de deferência. Não, não os desaprovava, sempre tinham sido bastante afáveis e benevolentes para com ele.

 

Continua.

 

MELGAÇO, 21 DE MARÇO DE 1829

melgaçodomonteàribeira, 01.02.20

10 c2 - r minho estrada fiães.jpg

 

UM CRIME EM MELGAÇO NO SÉCULO XIX

 

Fevereiro de 1828. D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, assume a regência do reino e jura a Carta Constitucional. Em Março do mesmo ano dissolve o parlamento; em 3 de Maio convoca as Cortes. Estas, restauram o regime tradicionalista, isto é, proclamam D. Miguel rei absoluto.

Os liberais não gostaram; organizam a oposição. É a guerra civil! Acaba em 1834, depois da derrota dos miguelistas. O rei parte para Viena de Áustria e nunca mais põe os pés em território nacional.

Estávamos em plena guerra fratricida; por todo o país D. Miguel perseguia incansavelmente os liberais; estes defendiam-se como podiam e sabiam. D. Pedro, vendo que as coisas não se resolviam, abdica em 1831, a favor de seu filho, a coroa do Brasil e dirige-se a França e Inglaterra em busca de auxílio, a fim de reconquistar o trono português para sua filha D. Maria da Glória (mais tarde D. Maria II).

Melgaço vivia dias agitados. Tomás das Quingostas aterrorizava toda a gente. Ninguém sentia segura nem a vida, nem a fazenda. Com a sua temível quadrilha matava e roubava com o maior desplante. A lei era ele. Por onde passava, deixava rastos de sangue e amargura. Uma das suas vítimas mortais foi o jovem João Vicente. Rapaz pouco dado a bens materiais e a folguedos, tencionava seguir, logo que as condições o permitissem, a carreira clerical. Só a sua mãe conhecia o segredo. Em 17 de Março de 1829 esta faz-lhe saber que tudo está pronto para ele poder assim concretizar seu sonho.

Enquanto não ingressa no Seminário vai tentando não se envolver em conflitos ideológicos ou bélicos. Ajuda na administração da Casa e de vez em quando visita as pesqueiras que a família possui no rio Minho, fiscalizando também a faina dos pescadores. Nesse ano as lampreias, os sáveis e os salmões saíam em abundância. Era, sem dúvida, um bom ano.

João Vicente tinha a estima de toda a gente de Melgaço. A sua índole calma e generosa granjeava-lhe amizades e respeito. Parecia que a sua vida decorria sempre assim: ajudando quem dele precisasse, materialmente ou com a sua palavra amiga e sábia.

No entanto, o seu destino já estava traçado. A morte estava próxima.

Naquela noite fatídica de 21 de Março de 1829, noite chuvosa, trilha o caminho que o leva ao rio. Parecia até um fantasma com a croça sobre o seu corpo miúdo. Não se vê um palmo à frente do nariz, mas como ele conhecia bem o caminho não havia qualquer problema. A croça não lhe servia de muito com a chuva.

Chega perto das pesqueiras, ouve o barulho amigo das águas e com seus olhos habituados à escuridão, perscruta-as. As redes lá estão. Tudo em ordem.

Na tarde do mesmo dia um grupo de homens, à cabeça Tomás das Quingostas, combinava um assalto a uma aldeia galega. Tinham lá gente da mesma laia que com eles colaboravam e desse modo esperavam roubar o suficiente para uns longos dias. Depois de tudo combinado até ao pormenor, foram lentamente descendo o monte em direcção ao rio. Aguardariam ali o sinal e depois atravessariam na batela que estava escondida sob umas espessas ramagens. Esperaram, esperaram, e nada de sinal. Pensaram então que algo se tinha passado com os seus amigos galegos. Outro dia seria. Tomás disse aos seus homens que se dispersassem. Com ele ficaram Caetano Paulo e o Pitães. Virando-se para eles diz-lhes: - Não regressaremos de mãos vazias! Vamos às pesqueiras ver se tem peixe. Arranjaremos depois alguém que nos faça a ceia.

Conhecedores das margens do Minho, avançam afoitamente, sem cautelas especiais.

João apercebe-se do movimento e das vozes e pergunta: - Quem vem lá?!

O Tomás, astuto como uma raposa, responde-lhe: - Gente de bem e de paz!

O rapaz, confiante e contente por ter companhia, aproxima-se deles sem qualquer receio.

O monstro, logo que vislumbra a silhueta esguia aponta-lhe o “bacamarte” e dispara sem hesitar. Um segundo depois os restantes facínoras descarregam as suas armas num corpo cambaleante. Pum! Pum!

O som dos disparos ecoou ao longo do rio durante momentos; depois, um silêncio pesado ficou a pairar no ar.

A besta aproximou-se do cadáver e com as suas botas de militar virou-o, confirmando assim a sua morte. Cruel, como abutre que era, disse aos outros: - Agora temos o caminho livre, vamos ao trabalho!

A justiça, depois de avisada, foi ao local do crime. Junto ao corpo perfurado pelas balas assassinas encontrava-se a croça toda ensanguentada.

Já neste século, um poeta anónimo, escrevia estes versos acerca do Tomás das Quingostas:

 

                                  Homem de muitas matanças,

                                  na guerra civil andou;

                                  herói das extravagâncias

                                  vidas sem conto ceifou!

 

                                  Mais dum século decorreu

                                  sobre a morte do malvado;

                                  que, por ironia, morreu

                                  sob as balas dum soldado!

 

Fonte: Melgaço e as Lutas Civis, 1º volume, Augusto César Esteves, páginas 87 a 92.

Saudações amigas a todos os melgacenses.

 

                                                           

 

   Joaquim A. Rocha

Publicado em: A VOZ DE MELGAÇO

 

Joaquim A. Rocha edita o blog Melgaço, minha terra