A CRUZ DE PENAGACHE - VERSÃO 3
(continuação)
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As gentes do Louriçal, outro lugar também raiano mas um pouco mais distante, têm a sua própria versão da cruz e também esta é relatada como fruto da mais pura verdade, embora ninguém a possa confirmar. Aconteceu em pleno inverno, já mais noite do que dia, quando um grupo de contrabandistas foi surpreendido por uma trovoada inesperada, mas temível, até porque naquela parte do planalto não há árvores e as pessoas temem atrair os raios. Chovia copiosamente água e neve à mistura e os relâmpagos sucediam-se ininterruptamente, o ribombar dos trovões mesmo por cima deles. Os três companheiros conheciam a lapa nos cotos de Penagache e apressaram-se a acolher-se no local, embora não muito confiantes, podia ser reduto de alguma fera. Também não sabiam exatamente onde ficava a entrada da gruta, mas, nem de propósito, o clarão de um relâmpago guiou-os para lá. Continuou a tempestade e eles deixaram-se ficar, mas o frio tomava-lhes conta do corpo e da alma, ensopados que estavam e sem possibilidade de acender uma simples fogueira para se aquecerem e espantarem o desconforto e a escuridão. Fome não tinham nem teriam, até porque um deles tinha o bornal cheio de pastas de chocolate encomendadas pela tendeira. O cansaço foi mais forte do que o frio e acabaram por adormecer. Devem ter passado algumas horas e quando já estavam todos acordados estranharam a falta de luz, já devia ser dia. Procuraram adaptação ao espaço e ao tempo, mas a desorientação era total, acabando por descobrir que a entrada da gruta estava completamente tapada por neve, por isso lhes não chegava a luz do dia. Estavam enregelados, um tremia como varas verdes, ardia em febre, os outros dois mal conseguiam mexer os dedos das mãos e dos pés. Não servia de nada gritar por socorro, este nunca lhes chegaria, mesmo que dessem o alerta da sua falta e os fossem procurar ao monte, jamais os encontrariam naquele buraco. Perderam a noção do tempo e acabaram por desistir de alcançar a saída, sem forças para lutar pela vida. Acabaram por ser encontrados pelos cães de caça que participaram nas buscas alguns dias mais tarde: uma cadela muito boa que servia de pisteira e conhecia as tocas todas do planalto não saiu da entrada da gruta enquanto os homens não abriram uma entrada. Um dos rapazes estava morto, os outros dois completamente gelados e perto de perder a vida, os dedos das mãos negros e inertes. A um tiveram de lhe cortar três da mão direita e o outro perdeu um bocado do nariz. Salvaram-se por pouco. A cruz será, pois, a homenagem ao que não resistiu.
Olinda Carvalho
Publicado em A Voz de Melgaço
Março 2015