SARAMAGO 2
As meninas de Castro Laboreiro II
Vai agora o viajante iniciar a grande subida para Castro Laboreiro. Melgaço está a uns trezentos metros de altitude. Castro Laboreiro anda pelos mil e cem. Vence-se este desnível em cerca de trinta quilómetros: não é íngreme a ascensão. Mas é inesquecível. Esta serra da Peneda não abunda em florestas. Há maciços de árvores, aqui, além, sobretudo próximo dos lugares habitados, mas na sua maior extensão é penedia extreme, mato de tojo e carrasqueira. Não faltam, claro está, nas terras ainda baixas, grandes espaços de cultivo, e nestes dias de fim de Outono a paisagem trabalhada pelos homens tem uma doçura que se diria feminina, em contraste com a serra ao fundo que vai encavalando montes sobre montes, qual mais áspero e bruto. Mas esta terra tem uma coisa numca vista que por muitos quilómetros intrigou o viajante, pouco experiente de andanças viajeiras, como logo se verá. Estava o Sol de maneira que batendo nas encostas distantes despedia brilhos, grandes placas luminosas, ofuscantes, e o viajante moía o juízo para saber o que aquilo era, se preciosos minérios assim revelados, se apenas o polido de lascas xistosas, ou se, imaginações fáceis, seriam as divindades da Terra a fazer sinais umas às outras para se esconderem dos olhares indiscretos.
Afinal, a resposta estava à beira da estrada por onde seguia. Pelas fendas das rochas ressumbrava água que, embora não correndo em fio ou em toalha, mantinha húmidas certas pedras, onde, dando o sol de jeito, se acendia um espelho. Nunca tal o viajante vira, e tendo decifrado o mistério foi gozando pelo caminho o atear das luzes, que depois se apagavam e ressurgiam à medida que a estrada fazia e desfazia curvas e portanto se alterava o ângulo de reflexão do Sol. Esta é uma terra grande e descampada, separam os montes grandes vales, aqui não podem os pastores gritar recados de encosta para encosta.
Castro Laboreiro chega sem avisar, numa volta da estrada. Há ali umas casas novas, e depois a vila com o seu trajo escuro de pedra velha. Bons de ver são os botaréus que amparam as paredes da igreja, restos românicos da antiga construção, e o castelo, nesta sua grande altura, com a única porta que lhe ficou, a do Sapo, alguma coisa daria o viajante, para saber a origem deste nome. Não requer grandes demoras a vila, ou requere-as enormes a quem tiver ambições de descoberta, ir, por exemplo, àquelas altas pedras, gigantes em ajuntamento, que ao longe se levantam. No céu, de puríssimo azul, atravessa um rasto branco de avião, recto e delgado: nada se ouve, apenas os olhos vão acompanhando o lento passar, enquanto, obstinadamente, as pedras se apertam mais umas contra as outras.
Está quase a despedir-se, veio por causa do caminho, da grande serrania, destes altos pitões, e correndo agora em redor os olhos, já distraídos, dá com duas meninas que o miram, com sério rosto, suspendendo as atenções que davam a uma boneca de comprido vestido branco. São duas meninas como nunca se viram: estão em Castro Laboreiro e brincam à sombra de uma árvore, a mais nova tem o cabelo comprido e solto, a outra usa tranças com uns lacinhos vermelhos, e ambas fitam gravemente. Não sorriem quando olham a máquina fotgráfica, quando assim se mostra o rosto tão aberto, não é preciso sorrir. O viajante louva, em pensamento, as maravilhas da técnica: a memária, infiel, poderá renovar-se neste rectângulo colorido, reconstituir o mometo, saber que era de tecido escocês a saia, crespas as tranças, e as meias de lã, e o risco do cabelo ao meio, e, descoberta inesperada, que uma outra bonequita havia caído lá para trás, acenando com a mão, com pena de não ficar de corpo inteiro na fotografia. O destino nem sempre ordena mal as coisas. Para ver a Igreja da Nossa Senhora da Orada e as meninas de Castro Laboreiro, teve o viajante de andar cem quilómetros, números redondos: tenha agora coragem de protestar quem achar que não valeu a pena. E tome lá, como acrescento e contrapeso, os gigantes de pedra, o macaco de Melgaço, o avião no ar, os espelhos de água, e esta pequena ponte de pedra solta, só para gente pedestre e gado miúdo.
VIAGEM A PORTUGAL
José Saramago
Editorial Caminho
1995
pp. 83-85
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