A CRUZ DE PENAGACHE - VERSÃO 1
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A CRUZ DE PENAGACHE
(uma história, três versões)
1
Os mais antigos falam dela como de algo quase imaterial, inacessível, mas com uma presença na memória que a passagem do tempo não diminui. Poucos a viram, mas o que testemunharam e sobretudo ouviram não dá para esquecer os arrepios que o desconhecido provoca quando algo inexplicável se nos impõe e lembra a fragilidade de que somos feitos, como a vida é um presente que nos dão mas também nos podem tirar, sem respeito nenhum pela condição de filhos de Deus, que a todos cria da mesma maneira, iguais. Os mais novos, desafiando a distância e os maus caminhos, singram, planalto fora, nas motas que o dinheiro e a vaidade de parecer, de ter o que os outros têm, e se possível ainda melhor (a inveja é um mal geral), chegam lá e detêm-se a espiolhar tudo, com um vagar que os anciãos não tinham. Não têm fardos à espera para fazer chegar a um qualquer destino, do lado de lá ou de cá da raia, os negócios que por ali ainda se fazem estão facilitados e têm subtilezas que afastam os que têm alguns escrúpulos. Também não têm afazeres no eido, o ócio é nos dias que correm a ocupação principal de uma juventude mais ou menos letrada que vive a expensas da família até terem cabelos brancos.
Pelo registo na pedra que a encima, 1911 ou 1912, o escriba fala de ouvido, não há ninguém para dar testemunho nem da sua construção nem do porquê da mesma. Os mais antigos do lugar mais próximo do lado espanhol contam, esvaziada a chávena do café e a copa da aguardente, que ali mataram um português, um ajuste de contas para lavar a honra de uma irmã iludida e enganada. Não era muito comum, mas acontecia portugueses e galegos conviverem nos montes quando guardavam o gado e os rapazes frequentarem os bailes e festarolas de um e outro lado da fronteira. Um rapaz do Souto e uma rapariga de Santo Amaro conheceram-se numa romaria e os encontros passaram de ocasionais a procurados. A moça tomou-se de amores, pensou que era correspondida e o que tinha de acontecer aconteceu. Algum tempo decorrido tornou-se o namoro evidente, a rapariga não conseguia esconder a proeminência progressiva do ventre. Instada pelos irmãos a denunciar o oportunista, quis ela remediar, avisando o namorado que urgia assumir a sua responsabilidade. Aparentemente, o amor não o consumia e não estava pronto para ser homem, perdida a honra da moça, perdia ele a sua, abandonando-a, não estava sozinha no mundo, tinha muitos irmãos para a ajudarem a criar o filho.
Os três irmãos uniram-se para cobrar a desfeita, até um garoto ainda menor de idade tomou parte no desforço. Observaram as idas e vindas do bandalho pelos caminhos da serra e uma noite surpreenderam-no nas pedras de Penagache. A probabilidade de encontrarem alguém era mais do que mínima e, sem testemunhas, fizeram-no pagar a sua dívida com o bem mais precioso que tinha: a vida. Deixaram o corpo exposto ao tempo, sem qualquer resquício de respeito, abandonado no lugar onde foi encontrado em adiantado estado de decomposição. Foi identificado pela roupa e pelo anel que usava no dedo mindinho da mão direita. A família, amargurada por uma vida ceifada tão antes de tempo, mandou fazer uma cruz no alto da pedra na base da qual o tinham encontrado. Das razões que o teriam levado àquele fim não queriam saber, ou sabiam e calavam-se para não dar mais força às vozes viperinas do povo.