Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A FORTALEZA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 28.07.18

1 - 25 d2 - a fortaleza de melgaço.jpg

 

Augusto C. Esteves, apostado em prosseguir na busca do «Melgaço de antanho», embrenhou-se naquela zona, onde história e lenda se confundem perigosamente, chegando a afirmar o seguinte:

 

Simplesmente o nome deste povo, a palavra Melgaci não esmalta as páginas do livro de Plínio, porque como ele mesmo confessou, pareceu-lhe fastidiosa a enumeração total desses povos.

Ora o chefe dos melgaceos, o celta Melgacus que os baptisou, baptisou também este querido torrão natal, porque escolheu o planalto onde hoje assenta a vila para aí erguer o seu opidum, que lhe serviu, ao mesmo tempo, de centro de governo da sua civitas, de defesa e de habitação; uma fortalesa com duas ou três ordens de muralhas, à semelhança de Briteiros, Sabroso ou Santa Luzia, com casas redondas ou retangulares para o chefe e servos, estábulos para gados, etc.

 

 

A FORTALEZA DE MELGAÇO: PEDRAS E PATRIMÓNIO

 

Armando Barreiros Malheiro da Silva

 

Câmara Municipal de Melgaço

 

1987

 

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - XV

melgaçodomonteàribeira, 21.07.18

 

 

Continuação do post do 07 de julho de 2018.

 

 

A mente, saturada de vapores de álcool, afigurava-se-lhe deperecida, despregada do tronco. Procurou decantar as ideias enfezadas que rodopiavam no seu cérebro, mas este, penado, reagiu confusamente. Não tinha desejo nem forças para guindar a cabeça. Raramente, e apenas com finalidade devidamente firmada, o vinham arreliar durante um momento tão íntimo como aquele.

— Não há ninguém?

Desta vez a voz derivava de cerca, mais explícita, mais distinta. A ressonância desaparecera, substituída por umas pancadas secas, insistentes e inconfortáveis, sendo-lhe, todavia, impossível demarcar a proveniência. Sentiu uns adejos temíveis nos tímpanos.

Na sala lôbrega, junto do balcão, mantinha-se um homem sorridente, de uma trintena de anos, solicitamente trajado e engravatado, com uma volumosa pasta preta de couro na mão.  

O Manco, enfurecido, levantou a cabeça abruptamente e, sem abrir os olhos, berrou:

Me cago en Dios! Quem me vem enfadar a esta hora?

Assustado pelo grito estentóreo, e talvez ainda mais por aquele impressionante vulto cabalístico que distinguiu ao fundo do bar, o indivíduo relutou uns segundos antes de recitar num tom musical e bajulador:

— António Perez Gallardo, representante da fábrica de queijos Lacta Casales, da Ortigueira, A Coruña, para o servir, caro senhor.

Estupefacto, o Manco, perante tal prolação, descolou as pálpebras parcialmente; sem pronunciar uma palavra ou fazer qualquer movimento, olhou, para o jovem que se acercara da sua mesa e o agraciava com uma cativante expressão comercial.

Era uma première. Nunca um caixeiro-viajante o apostrofara manifestando-se com este maneirismo mercantil. Não lhe agradou mesmo nada. Esta arenga tinha um timbre incrivelmente efeminado para o seu gosto. Apeteceu-lhe expelir o tipo do bar. Alguém lhe telefonara para o informar que o Manco precisava de queijo? Que maneiras eram estas? Odiava que o assediassem, que o perseguissem! Era ele quem decidia! Que descaro, que arrogância havia que ter para desterrar uma pessoa dum adorável sono reparador! E isto para tentar vender-lhe produtos similares aos que ele comprava, havia muito, a outro provedor do qual estava plenamente satisfeito!

Joder, tio! – improperou com desacato. 

Reticente, engoliu em seco e ficou uns segundos a deliberar sobre o comportamento a adoptar. Por fim, resolveu conter-se. Taciturno e firme, pressionou as maxilas.

— Dá-me licença, caro senhor? – perguntou-lhe o profissional, desdenhando a careta inenarrável e inquietante em que o carão do Manco se metamorfoseara.

Não era a amabilidade ilusória do homem que enganaria o Manco.

O caixeiro-viajante deduziu que a sua quietação era uma acreditação. Sem aguardar pelo seu agrément – que não sabia se teria – colheu a segunda cadeira e sentou-se, risonho, diante dele, o attaché-case preto por cima dos joelhos. O proprietário do estabelecimento, descontente, arrulhou, resignado.

A estes cantamanhanas antevia-lhes os procedimentos comerciais e os métodos de comunicação. Visitas de representantes stressados como este tivera várias dezenas; eram um pesadelo. Ainda que vivamente contrariado, esforçou-se para aguentar a estopada do indivíduo sem extravagar. Fitava-o, mas não o via.

No entanto, para lhe significar o seu frenesim, remoeu a língua com barulho na boca mirrada, indício de que a ressaca não tivera tempo de se esbanjar. A subida do vinho branco é tão fulgurante como a queda é lenta; a diferença é que a primeira é atractiva, álacre e tebaica, enquanto que a segunda é subversiva e, por conseguinte, desagradável e encolerizante.

Desinibido, o polido viajante minuciou-lhe o que fazia a especificidade das criações propostas pela fábrica que personificava. Realçou as excelentes virtudes da nutrição que as vacas – a quintessência de raças – tosavam nos amplos campos de pastagens verdejantes, perto do mar; vizinhança que, aliada às admiráveis condições climáticas de que a região usufruía, conferia uma deliciosa eflorescência salina ao leite. Fez um breve hiato para observar o primeiro efeito sobre o cliente.

O Manco tinha o semblante duma cariátide. Não mexia nem descravava os olhos do caixeiro-viajante. Permitiu-lhe desenrolar o palavreado à vontade, movendo com subtileza a cabeça periodicamente, como se a conversa lhe interessasse.

Se o homem soubesse quanto gostaria de ir buscar uma garrafa de branco por detrás do balcão! Controlava-se porque mais uns minutos e livrava-se do desavergonhado intruso de uma vez por todas.

O viajante, implacável, mencionou o tempo de refinação; exaltou, em seguida, as suas dominantes e traços gustativos, olfativas e texturais, tamanhos e peso. Sobrepôs-se a amostra fotográfica dos produtos para os quais o Manco, grosseiramente, fingiu olhar. O extremoso viajante terminou a perfeita hipotipose sublinhando os controlos higiénicos regulares de que as modernas instalações, assim como todos os produtos nobres nelas elaborados, eram objecto.

O homem emudeceu. Finalizara a lábia sem um lapso, um erro e uma expressão oral irrepreensível. As feições afáveis persistiam. Persuadido, sem dúvida, do resultado da sua convincente dissertação, intentava desmascarar-lhe vestígios da sua adesão.

O Manco manteve-se imóvel uns segundos, deixando o silêncio desestabilizá-lo. Duas rugas, sinónimo de ambiguidade, esculpiram-se na testa do representante. Para testá-lo, o anfitrião deu uma tossidela cavernosa, como se quisesse desobstruir o gorgomilo para falar, e humedeceu os lábios com a ponta da língua alvacenta. As rugas faciais do visitante distenderam-se ao mesmo tempo que o bem-estar o invadia. A intuição garantia-lhe que a sua démarche ia ter uma saída favorável.

Sobrestimava-se, e essa análise presuntuosa comprazia imenso ao Manco que pensava: «É quando menos se prevê que a coisa mais dói». Com o ar sério e normal que até ali fora capaz de desvendar, indagou:

— Dos queijos que o senhor me sugere, qual deles atrai mais as moscas?

A questão insensata petrificou o visitante. Ofendido, adoptou um ar digno e esquiçou um gesto de repulsa, negando resolutamente com a cabeça.

— Nenhum. Isso é coisa impensável, caro senhor. Os nossos queijos são de uma qualidade extra, sublime, sem falar da frescura incomparável e inigualável. Depois de encetados pode mesmo conservá-los ao ar livre uma semana.

 

Continua.

 

O CRUZEIRO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 14.07.18

20 b2 - cruz s. julião.jpg

cruzeiro de são julião

 

CRUZEIROS

 

 

No pequeno alfoz da sua freguesia quatro cruzeiros houve outrora Melgaço e embora alguns tenham sido mudados de local, ainda hoje todos se conservam erectos à veneração dos fiéis. Um, e é o principal por mais lindo, mais trabalhado e mais artístico, tem a forma do Piedade, pois numa das faces da cruz está esculpida a imagem de Cristo crucificado e na outra a de Nossa Senhora com o filho morto deitado no regaço. Representa o descimento da cruz. A coluna esbelta, elegante, está lavrada com alguns primores de arte e na base tem esculpida a figura da morte, representada por caveira humana.

Ignora-se infelizmente o nome do artista lavrante e o do quem lhe encomendou ou pagou o primoroso trabalho, pois no referido monumento nem a mais escassa informação se colhe. Em 1779 estava erguido no Campo da Feira de Fora, junto de uma morada de casas, cuja escadaria exterior dificultava a passagem das procissões à sua volta. Depois foi mudado para o Campo da Feira de Dentro e ficou mais ou menos no centro do largo.

Daqui o transferiu a junta de paróquia em 1867 para o adro da capela de São Julião, onde ainda hoje se conserva exposto à veneração de todos os fiéis, tendo sido declarado há anos monumento nacional. É este o cruzeiro da vila.

Assim foi conhecido sempre e ainda hoje essa designação tem e lhe pertence. Vem de longe, do século XVII, se é que não foi trabalhado nos fins do século XVI por qualquer daqueles artistas trazidos à terra pelo juiz de fora Gil Gonçalves Leitão para fazerem muitas coisas aqui não havidas e talvez nem sonhadas.

E isto se avança porque este cruzeiro estava situado no Coto da Pedreira, que era monte baldio pertencente à Câmara do termo, ali à entrada das Carvalhiças, e outro cruzeiro assim não havia. De mais a mais quando em 1703 Frei Domingos Gomes de Abreu quis erguer uma capela em honra de Nossa Senhora da Pastoriza escreveu em requerimento estas palavras, aliás com aparência de serem descabidas ao intento: «…quer este fazer-lhe a capela no Coto da Pedreira desta freguesia por ser lugar público onde costumam irem os clamores desta vila não havendo neste lugar mais do que uma cruz…»

Mas esta cruz era o cruzeiro da vila. Quem o diz nesse processo organizado na Mitra bracarense são os sucessivos párocos da vila então no uso do múnus de cura de almas: o P. João Dias dos Santos e o P. António Soares Falcão.

Aquele fá-lo por estas palavras: «…Digo que ao sítio vamos com as ladainhas aonde está o Cruzeiro desta vila fora da muralha…»

E este assim o diz: «Pretende o instituidor edificar a capela de que fez promessa no sítio chamado o Coto da Pedreira, que fica extra muros desta vila, onde está um cruzeiro ao qual vão em procissão nas ladainhas…»

Ora como a capela da Nossa Senhora da Pastoriza ocupou o sítio do Cruzeiro e as obras da construção, por circunstâncias várias, só vieram a fazer-se entre 1725 e 1727 esta obra nova acabou por impor a mudança do cruzeiro. Foi, possivelmente, por esta época que o Cruzeiro da vila veio das Carvalhiças para o local assinalado por documentos conhecidos, mas muito mais recentes: o Campo da Feira de Fora.

 

Publicado em NM de 18/3/1956

 

Obras Completas: Augusto César Esteves

Nas páginas do Notícias de Melgaço

Volume I Tomo 2

Edição Câmara Municipal de Melgaço

2003

pp. 551, 552

 

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - XIV

melgaçodomonteàribeira, 07.07.18

 

 

Continuação do post do 23 de junho de 2018.

 

 

Nascera a Casa Manco, cuja popularidade se difundiria rapidamente.

A partir do ano mil novecentos e sessenta e oito, a vaga de emigração principiou a enfraquecer vagamente, sem todavia deixar de ser uma forte fonte de rendimentos. A efervescência económica originada pela construcção da barragem fazia levedar os proventos do seu negócio. Mais tarde, a ponte forneceu-lhe um novo filão de receitas adicionais. Sem jamais o ter agoirado, em dez anos o Manco transformou-se num homem pecunioso.

Optou, então, por empregar parte do augusto pecúlio na compra de uns magníficos campos adjacentes, no lugar da Agra, perto da junção da estrada Puente Barjas-Orense e da que descia para A Frieira.

No maior, fez erigir o que ele denominou, não sem prosápia, o Chalé Manco, uma linda casa com rés-do-chão e primeiro andar, para mais tarde ele e a Vicenta lá acabarem os dias. Nos remanescentes, plantou um sem-fim de árvores frutíferas. Uns anos mais tarde, todos falavam do vergel do Manco; era o mais completo e exótico da região.

Porém, o seu chalé não foi rematado sem sérios distúrbios. Os trabalhadores portugueses com os quais tinha negociado a execução da obra, depois de tormentosas altercações, queixaram-se à guarda civil por ele não ter honrado a totalidade dos pagamentos estabelecidos. Foi tempo perdido. Sem documentação que os habilitasse a trabalhar em Espanha, o comandante recomendou-lhes que negligenciassem a tramóia e não voltassem a cair noutra. Procedendo assim, o tenente da Benemérita – nome dado à Guardia Civil pelos serviços ministrados à população no século XIX – também poupou o Manco por recorrer à mão de obra estrangeira não declarada, deliberação que lhe abria as portas da Casa Manco.

Presentemente, já meio enfastiado e entediado, contentava-se em realizar bailes – reuniões dançantes, dizia, salientando a nuance. Aos domingos, do fim da tarde até altas horas da madrugada, amontoava-se ali a juventude da zona, assim como alguns portugueses.

Os galegos, como muitos outros povos, com um copo a mais são perturbadores e desordeiros. Todavia, nos dias de sarau, as zaragatas eram marginais. Os casos, esporádicos, afloravam, logicamente, quando os espíritos estavam escaldados e amblíopes.

A esposa, um tronco de couve a quem ele obedecia cegamente, murmuravam os alcoviteiros locais, tivera de aprender a brincar ao bombeiro.

Alguém que protestasse, fosse qual fosse a causa, ou vociferasse por se atrasarem em atendê-lo, era repreendido descaradamente com severidade. Podia até ser motivo para que o Manco ressentisse o reparo como um ultraje e incitasse illico o impertinente a ir empachar-se para outro lado, prevenindo-o cinicamente: «Agora, nem que me baixasses as calças te servia, cabrón

Nestas declinações, sem a intervenção pronta e habilidosa da Vicenta, a ameaça de que a controvérsia se alastrasse precipitadamente e findasse à hóstia era flagrante. Alguns jovens imprudentes, pensando que a sua debilidade os avantajava, tinham saído do seu estabelecimento fortemente aturdidos.

O génio rabugento que se apossara dele incentivava-o com regularidade a acometer alguns indivíduos por razões muitas vezes mais do que duvidosas, impertinência que o obrigara a sentar o cu no mocho – ir a tribunal – mais de uma vez.

Todos os dias, depois de almoçar copiosamente em família, sentava-se a uma das duas mesas do bar e entrava num estado tórpido, pré-letárgico, tanto físico como mental. Em silêncio, continuava a beber até ser aspirado, como por magia, pela tranquilidade feltrada, abstracta e opiácea de Hipnos, da qual, infalivelmente, emergia cerca de uma hora mais tarde.

A vida era-lhe insípida, inerte, agnóstica: elanguescia-o. Amigos não tinha, apenas conhecimentos. O vinho branco, o seu acólito, a sua amizade pagã desviava-o durante as situações instáveis, das águas do rio. Imergia-se nas lágrimas dos bagos, o paredão que conseguia retê-lo no seu mundo austero. Sempre disponível, afagava-o e mostrava-lhe, através dos seus vapores, uns raios de sol, embora lívidos e insulsos. Concorria para amortecer e equilibrar a fervorosa, a insuperável ira que, de modo impiedoso, fora prosperando nele e lhe despeçava o moral e a vida, desde que aquele malvado camião despejara parte da carga por cima dele. Se não fosse a carneirada, a barragem e a ponte, havia muito que o Manco não era deste mundo.

Na verdade, ninguém podia asseverar categoricamente que o Manco se embebedava, no sentido literal que ali as pessoas atribuíam correntemente à palavra; ninguém o vira alguma vez cambalear.

Homem condicionado pelo ânimo e pela atmosfera, arpoado pelo infortúnio, abusava do álcool, sem dúvida, mas comia bem e apenas bebia até um dado pique que poucas vezes excedia.

O mês de março estava a chegar ao fim. A mulher e as duas filhas andavam azafamadas nos campos: plantavam batatas, couves, tomates, ervilhas, cebolas, alfaces, feijões, cocos, alhos...

Naquela tarde insolada, encontrava-se, mais uma vez, desamparado no estreito e obscuro bar, ao lado da porta vaivém que o separava da sala do restaurante. Sentado diante da pequena mesa, a manga da camisa do braço órfão pendente, e a cabeça assentada sobre o ressaltado peito, degustava a descida fleumática das pálpebras defessas pela bebida. Por cima da mesa, uma garrafa e um copo, vazios. Era a hora da sesta, da primeira viagem do dia.

Intrépido, deixava a porta escancarada, mas, nunca se sabe, na gaveta nem uma perra – peseta – ficava. No entanto, qualquer podia entrar e apoderar-se sem grande trabalho de uma ou mais garrafas das que tinha em evidência no bar. Hipótese que descartava totalmente; o medo que inspirava desencorajava qualquer um. Aliás, as pessoas, em grande maioria, eram íntegras e trabalhadoras.

De repente, uma voz ecóica que lhe pareceu vir de longe extirpou-o dos braços hipnagógicos de Morfeu, nos quais se aninhara.

— Não há ninguém ?

 

Continua.