DENÚNCIA CALUNIOSA
PREFÁCIO
É lugar comum afirmar-se ter o homem dois patrimónios: moral e material.
Para quem seja, verdadeiramente, pessoa - e ser-se pessoa, no elevado e nobre sentido e significado do termo, é ter nítida consciência dos autenticos valores - ,a honra está infinitamente acima do património físico.
Eis uma verdade, infelizmente, que muita gente não compreende.
Quem mente para conseguir vantagens materiais de qualquer espécie: dinheiro ou libertar-se de concorrente, ou cevar ódio vesgo, a título de exemplo, não é, própriamente, pessoa.
Ao fazer isso aliena a qualidade mais nobre do ser humano para se identificar com o bruto.
Os burros batem-se para afastar concorrentes da cevada, servindo-se de dentes e patas.
Os cães, na disputa do osso, fazem-se luta de extermínio.
Pois bem:
Todo o homem que lança mão de quaisquer armas, as mais abjectas, como o são a calúnia e a mentira, mostra identificar-se com aqueles animais.
Como é grande a multidão dos bandidos e porque se tornaram relaxados, não podendo já esconder a torpeza dos seus actos, procuram, por lhes parecer justificação, intitular-se pessoas de carácter actualizado.
Há pessoas em quem se descobrem os característicos sinais da coleira, com que foram ou são presos pelo dono.
Houve, há e haverá sempre escravos, enquanto existirem homens à superfície da Terra, e se não operar profunda alteração nas consciências.
Vistas bem as coisas, a afirmativa de que o homem é livre não passa de figura de retórica.
Porém, hoje em dia, só é escravo quem nasceu para sê-lo.
Uma questão de qualidade.
Observando atentamente os agrupamentos humanos, somos, imediatamente, conduzidos a dividi-los em duas grandes categorias:
1 - os que nasceram para escravos ou desprovidos de personalidade; e
2 - os que nasceram para homens livres ou dotados de forte personalidade.
Prosseguindo no estudo, logo somos levados à conclusão de que é enorme o número daqueles e pequeno o destes.
E de que a existência dos escravos implica necessáriamente a dos tiranos.
Depressa assentamos que estes formam legião.
Depois disto, podíamos fazer classificação, trabalho de grande envergadura, a assumir proporções de tratado.
Não vamos, porém, tão longe.
Apenas consideraremos o tirano própriamente dito e o tiranete.
Os tiranetes formam enxame,
Peguemos em um tiranete, à sorte, o primeiro que apareça, e sujeitemo-lo a cuidadoso estudo analítico.
Averiguemos do ambiente familiar em que foi gerado, nasceu e cresceu, dos trabalhos a que se dedicou, numa palavra, de todo o seu passado.
Pequena será a demora em concluir ser ele de mau sangue, da pior educação, nado e criado em baixa atmosfera moral.
Mas, se alguma dúvida puder restar no nosso espírito, façamos a prova real, submetendo-o a exame físico, observando-lhe pescoço e costado.
É fatal: descobrimos-lhe sinais, mais ou menos disfarçados, mais ou menos antigos, da coleira.
E ficamos edificados: trata-se de antigo escravo.
Por mera questão de interesse puramente científico, já que se está com a mão na massa, observemos-lhe o lombo.
Descobrimos, pela certa, vestígios, mais ou menos remotos, mas bem característicos, dos estragos produzidos pelo fardo.
De posse de todo este material, sempre positivo e concludente, chegamos a esta verdade científica: o sujeito foi escravo.
É de notar que o analista ao proceder a todos estes trabalhos não foi capaz de descobrir o mais insignificante vestígio de chá em todo o passado do paciente.
Nem pitada!
A metamorfose da larva escravo para o insecto tiranete é uma questão de enriquecimento, conseguido à custa dos mais baixos processos, de todos os métodos.
Sobre enriquecimento, urge distinguir entre dois verbos diferentes: ganhar e juntar.
Ganhar supõe profissão, trabalho honrado. Lucro lícito; juntar supõe roubo, espoliação, expediente.
Ganhar é claridade; juntar, escuridão.
O primeiro significa morosidade; velocidade o segundo.
Ganhar é percorrer caminho liso, para jamais chegar ou chegar tarde à meta: Fortuna; juntar é velocidade através de todos os caminhos, esmagando obstáculos, todos os obstáculos, até à Fortuna.
O junto é feito de lágrimas, sangue, traição, contrabando, fraude, mentira, espoliação e abuso.
Infelizmente, nos maus tempos que correm, ter significa valer.
E tiranete, linguísticamente, vem a significar novo rico.
Esta prestidigitação pela qual o escravo se volve tiranete mete batota.
Aqui é impossível afirmar-se não ter havido nisso trampa ninguna, como de ouve, a outros propósitos, aos espanhóis.
Nesta metamorfose há sempre trampa.
Muitíssima trampa.
DENÚNCIA CALUNIOSA
José Joaquim de Abreu
Edição do autor
1957
pp. 5-8