Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - III

melgaçodomonteàribeira, 03.02.18

 

 

Continuação do post do 20 de janeiro de 2018.

 

 

Com a pesada enxada ao ombro, o passo abúlico e o olhar fixado em permanência na outra margem como se estisesse a auto-hipnotizar-se, decidiu, mais uma vez, fazer face à dramática travessia da extensa ponte pelo centro, o modo menos aflitivo para ele. Como mais alguns, não se servia dos passeios laterais, protegidos por barreiras metálicas, como justamente recomenda o bom senso.

Uma quinzena de metros abaixo da ponte, a água do rio fronteira golpeava com fragor tudo o que se empenhava em dirimir o seu galope. Esporeado pela brutalidade da água que duas comportas liberavam constantemente, evadia-se da omnipotência da represa. Numa luta perpétua, assediava os escolhos abundantes e os calhaus que o flanqueavam. Estes infindáveis blocos pétreos dimanavam das explosões impostas pelas fundações do açude. Passado este bulício, as águas do rio perseguiam o seu caminho murmurando.

O vácuo assustador entre a ponte e o dilúvio de água, assim como a barulheira retumbante, provocavam-lhe vágados abomináveis. As tigelas de vinho deglutidas frequentemente depois do trabalho acentuavam-lhe rudemente o terrível sentimento de pânico.

Quando, por causas laborais, era obrigado a mudar de margem, só assentia por mérito do lavrador ou se não tivesse outra alternativa.

Este suplício era escamoteado com a mais peremptória cupidez por ele. Ninguém, rigorosamente ninguém, estava ao corrente da sua incapacitante fobia. Era um problema de amor-próprio, de ufania. Não queria, de modo nenhum, ser a risada dos outros. Fazia parte dos inconfessáveis segredos que o laceravam.

Embora não fosse com desopilante prazer, havia quatros dias que trabalhava para um casal de lavradores do Freixo. A primeira vez fora há meia dúzia de anos, quando as rugas os tolhera de assegurar a lida dos terrenos e das cepas. Os três herdeiros da parelha viviam na Suiça e esperavam regressar um dia. Entretanto...

O Freixo era um lugar próspero e gracioso da margem direita. Ficava a nordeste da Frieira, sito a meio do monte cuja falda o Manel descera. As habitações – decalque das dos países onde os mais jovens ganhavam a vida –, ressuscitadas ou construídas com os haveres vindos de fora, espelhavam o prestígio dos seus donos.

As parreiras acompanhavam os contornos dos campos, hortados com subtileza, que gozavam de uma exposição solar privilegiada. Esta prerrogativa fazia com que as suas vides produzissem uma uva cujo néctar dava vida a uns vinhos – branco e tinto – inqualificáveis, mas de uma qualidade extra. Apadrinhavam maravilhosamente os peixes nobres do rio e o fumeiro local. Estes produtos, cuja reputação excedera os confins do concelho, faziam a vanidade dos seus habitantes.

O Manel só tinha boas razões para anuir ao trabalho dos idosos lavradores. Com amenidade, preparavam-lhe uma alimentação a seu gosto, sápida e em quantidade mais do que correcta. No entanto, como o conheciam e eram pessoas de incontestável sensatez, acautelavam-se delicadamente na bebida, a fim de prevenir repercussões que se fariam, talvez, reverberar na actividade ou, mesmo, quem sabe, nas relações pessoais.

Por sorte, depois de terminado o dia de labor, tinha à mão onde afogar a sua sofreguidão cíclica. No coração do lugar, o Perfecto, um viúvo de oitenta e dois anos, proprietário da única tienda – loja – da aldeia, ostentava, no andar térreo da sua casa, uma pinga caseira de prodigiosa categoria. Três mesas quadradas, cheias de laivos de vinho tinto e de queimadelas de pitillos – cigarros –, doze cadeiras e um balcão obsoleto – tudo de madeira avelhantada –, mobilavam o negócio.

Havia muito que o Perfecto apenas vendia produtos vitais, de última hora, para a alimentação; o pouco que os habitantes do Freixo compravam faziam-no num verdadeiro comércio. Mas, para o Perfecto, a tienda e ele faziam um.

As paredes do seu comércio estavam, quase na totalidade, revestidas de amplos programas anunciadores da festa de San Roque e da  Romaria do Cruceiro Quebrado, as duas manifestações festivas que, anualmente,  faziam trepidar o lugar. O mais antigo, como muitos outros, descorado e amarelecido como uma bola de unto rançoso, datava de mil novecentos e trinta e três e publicitava a Romaria do Cruceiro Quebrado, celebrada o primeiro domingo de Julho. Nesse ano, calhara o dia dois.

Naquela sala grotesca, reuniam-se quotidianamente os mais ancianos do lugar. Num ou noutro programa, todos eles viam e reviviam instantes folgazões, lascivos e imortais da sua vida. Era um passado que os cingia, que os acaparava e ao qual se agarravam jovialmente; um passado catequizado todos os dias num presente artificioso, que lhes ciciava, mudamente, que o futuro se ia reduzindo à medida que o tempo escoado se estirava.

Por turnos e com buliço, jogavam às cartas, o passatempo popular ao qual se consagrava a pluralidade dos galegos. Para eles, o jogo era um rito que veneravam. Para o Perfecto, que os exortava e se presumia numa arena, era o meio de dar vida ao dia, de testilhar a derrelicção.   

Os jogadores, fitando-se, acatavam fielmente o mutismo durante a partida, mas, uma vez perfeita, a tradicional algazarra de críticas e de regozijo rebentava. O folclore associado tinha muita mais importância para eles do que o jogo.

Para os espectadores esporádicos, como o Manel, esgotados pelo estafante trabalho da lavoura, este cenário equivalia a uma relaxação revulsória. Encostado ao sumário balcão, sem que ninguém lhe prestasse atenção, seguia, religiosamente, aquela brincadeira com franca satisfação. Achava-lhes muita piada. Dizia que eram castiços, dicção que propalava as suas raízes forâneas. Enquanto ia esvaziando tigelas e mordiscando azeitonas saídas dum molho generosamente apimentado, contorcia pouco a pouco o músculo risório. Radioso, externava inocentemente uns dentes cheios de sarro e num estado avançado de apodrecimento.

Era um homem superficial que fazia tudo para não complicar a humilde vida. «Como não sabemos o que vamos descobrir mais tarde, acho que o melhor é não nos apoquentarmos com isto.», gostava de filosofar.

Um dito insulso punha-o a rir até se mijar. Acomodava-se perfeitamente com coisas simplistas, como ele, como tudo o que tinha conseguido discernir até ali; com o dia-a-dia que, frivolamente, se tinha modelado e com o qual se contentava plenamente. O Manel era, à sua maneira, um homem feliz, um homem para quem um dia chuvoso era sempre ensolarado.

 

Continua.