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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VOLTA A PORTUGAL

melgaçodomonteàribeira, 27.01.18

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VOLTA A PORTUGAL

 

De bicicleta ou no Google Earth, dar voltas em Portugal constitui um modo de (re)conhecimento perfeito para preencher curiosidades ou estranhamentos acerca da exótica geografia da terra dos portugueses. Dizem-nos e demonstram-no de maneira variada que tal terra existe mesmo; que tem uma certidão de nascimento, um corpo, uma alma, uma identidade. Não tem nem tem de ter. Muito se insistiu no Portugal dos marinheiros, dos fados, da bola no jardim à beira-mar plantado – um território, o nevoeiro dos antepassados, os mitos, o império, a língua, a saudade e a ruína, aquele que os deuses amam e visitam, o bom povo cosmopolita ou burro de trabalho repartido pelo mundo. Pode ser tudo isso e muito mais e mudar no dia a seguir ou perder-se no caminho; pode dar um execrável programa na televisão, um elaboradíssimo ensaio, um solene discurso patriótico ou uma frenática crepitação nas redes sociais.

Se existe, pode-se-lhe tirar o retrato, variar a pose e os humores do seu território, a sua casa comum. É um caleidoscópio dos cumes do Pico ou da Estrela até aos lodos da ria que é formosa. Não há como congelar tudo numa imagem e as palavras estão cheias de ecos. Não há um fio condutor, um roteiro. Vai-se pela terra fora. Convocam-se palavras de muitas vozes e tempos. Alguma lhe servirá melhor que outras.

Fim do mundo

Foto de Álvaro Domingues

 

Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é Geógrafo, douturado em Geografia Humana e professor associado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), nos cursos de mestrado integrado e doutoramento e do curso de doutoramento Arquitectura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos do ISCTE, em Lisboa. É investigador do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Foi colaborador da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura.

Entre outras obras, é autor de Território Casa Comum (com Nuno Travasso, FAUP), A Rua da Estrada (Dafne), Políticas Urbanas I e II (com Nuno Portas e João Cabral, Fundação Calouste Gulbenkian) e Cidade e Democracia (Argumentum). Publica regularmente (texto e fotografia) em jornais e revistas generalistas e especializadas e participa em conferências, exposições e eventos de divulgação científica e de performance artística, como as Quintas de Leitura. Enquanto ensaísta, interessa-se sobretudo pela metamorfose recente da sociedade e do território portugueses, um mosaico instável de fusão/tensão entre contextos de pré e pós-modernidade, de localismo e conservadorismo, mas também de cosmopolitismo e globalização. A condição tripla de geógrafo, ensaísta e fotógrafo ajustam-se particularmente a este trabalho que procura organizar evidências e sinais dessas mudanças.

 

VOLTA A PORTUGAL

Álvaro Domingues

Contraponto

1ª Edição

Novembro de 1917

 

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - II

melgaçodomonteàribeira, 20.01.18

 

 

Continuação do post do 06 de janeiro de 2018.

 

 

Media mais de um metro e oitenta – era conhecido pelo Manel Grande –, tinha uns ossos ricamente cobertos e uma grande e oblonga cabeça, cujo cabelo, sempre bem rapadinho, deixava sobressair umas orelhas colossais e descoladas. Durante o ano, fosse qual fosse o tempo, uma camisola interior de alças e uma camisa branca de nylon eram a única vestimenta que lhe cobria o tronco; as mangas, sempre arregaçadas, desvelavam umas veias bem irrigadas; os dois primeiros botões desapertados auspiciavam um peito firme e imberbe. Barrigudo, conformemente à maioria dos campónios da sua idade, caminhava de maneira ronceira e inabalável, com aparente pena, o que não deixava dúvidas sobre a massa bruta que era.

Imbróglios, aborrecimentos eram as coisas que ele menos procurava. Era um luxo que não se podia permitir. Primeiro, por serem termos que não faziam parte do seu temperamento deferente e pacato; segundo, e antes de tudo, por não estar documentado.

No dia já longínquo que, com a mulher, passara o regato e se estabelecera em terra alheia, fizera a promessa de nunca indispor ou prejudicar os seus anfitriões, facto que, fortuitamente, podia colocá-lo em situação embaraçosa. Viera para Espanha trabalhar e não aventurar-se, fosse no que fosse. Sempre respeitara a liberdade dos próximos e acreditava que cada qual era o julgador absoluto e imparcial dos seus actos e, consequentemente, o único imputável. Nunca se incomodara com a vida dos outros, detestava que se imiscuissem na dele e jamais tentara ilibar-se das suas responsabilidades, ainda que fossem meras futilidades. Até aquela data, felizmente, não tivera quaisquer desarmonias ou mal-entendidos notáveis com os seus semelhantes.

Honesto e trabalhador como poucos, os maiores lavradores da região rivalizavam para lograr os seus serviços durante as temporadas de azáfama. Nunca estivera um dia inactivo sem que fosse por vontade sua.

Havia muitíssimos anos que vivia na Frieira:  vinte, vinte e três, vinte e cinco. Talvez mais, talvez menos... Já não sabia, nem queria saber. Cada vez que retrocedia no tempo, o seu espírito era invadido de imediato por remembranças excruciantes.

Menosprezava a servidão, a vileza a que tivera de se sujeitar na terra natal. Tinha sido o preço a pagar para comer umas batatas insossas que nem com um fio de azeite podia condimentar, falta de meios.

A lembrança – ainda que momentânea – destes tempos obrigava-o a cerrar os punhos com força e a ranger os dentes. Era uma reacção convulsiva, de incomensurável asco. O senhorio para o qual trabalhara, pessoa despicienda que vira poucas vezes, nem a mão se dignava apertar-lhe, como se fosse uma besta, um ser sarnento. Fora um capítulo horrível da aurora da sua vida, uma submissão cobarde, abjecta que, hoje, o enojava e indignava visceralmente por ter sido tão adinâmico.

Apesar da miséria, da repugnância de que era alvo, renunciar ao único, mas mais belo pedaço de terra onde viera ao mundo, aos colegas de infância e de adolescência, tão miseráveis como ele, fora um rasgo ardente. Chegou a outra terra, mais pobre do que a sua, com outra gente, visivelmente inospitaleira; mas, como a sociabilidade e a sensibilidade são os fusíveis do nosso destino, a sua visão foi-se agudizando e o rasgo, passo a passo, colmatou-se.

O Manel, depois de dar o salto, fora contemplado com a lógica suspicácia habitual das pessoas que se desconhecem; fora, nem mais nem menos, acolhido como qualquer forasteiro que chega a uma aldeia. Graças ao seu carácter expansivo e à sua exemplaridade, não precisara de temporizar muito para que o aceitassem, para que o considerassem, para se integrar. Era como se tivesse vindo ao mundo ali.

Desde o dia que, apreensivo e desconsiderando os imprevisivos percalços, resolvera  saltar o regato, não podia dizer que a sua vida fosse tão ingrata. Não era por aí além, nem pensar, mas era certamente bem mais luminosa e copiosa do que a que até ali suportara. Continuava a ser o homem cândido que vendia a sua pujante força braçal aos agricultores, aos proprietários das melhores terras, mas ganhava para apaziguar a fome e ainda lhe sobrava. Só por olharem para ele com decência e humanismo, já se sentia realizado, embora soubesse que também era apreciado por ser uma pessoa laboriosa e prestadia.

Não deplorava, de modo nenhum, a decisão dilacerante que tivera de tomar. E, hoje, se por ventura a conjuntura o forçasse, não teria a menor hesitação em voltar a fazê-lo noutras direcções. Ficara a saber que todo ser, onde quer que tenha nascido, corre atrás das mesmas imprescindibilidades fulcrais. Para ele, o essencial era ter um pouco a fim de viver em harmonia com os demais. Não tinha inveja de ninguém, não, nem dos ricos para os quais trabalhava. «O que já tem muito e mais quer nunca será rico nem feliz. Rico e feliz é aquele a quem basta o que têm. Como eu.», alegava.

O sol, cansado, do qual dois terços já se tinham ofuscado a oeste, por detrás dos montes da margem direita, arrojava os últimos clarões. Ainda que langorosos, galvanizavam poeticamente os primeiros cem metros do percurso internacional das águas do Minho que dali se descortinavam.

Nas janelas das casas esboroadas pelas duas margens do rio, já se apercebiam algumas luzes. Frouxas e pálidas, anunciavam o fim do dia de trabalho e, para quase todos, o começo da vida caseira. Para esta gente, como para toda a desta condição, onde quer que se estivesse, o tempo livre era tão escasso como algumas iguarias em cima da mesa.

O Manel era dos últimos a chegar à casa.

Deixou-se ficar inerte uns segundos e coçou energicamente a traseira do crânio com a boina sebosa; depois, ajustou-a de novo na cabeça e olhou para um e outro lado do tabuleiro da ponte, como quem quer persuadir-se de alguma coisa. Com as costas da mão polposa, limpou umas gotas de suor que lhe atapetavam a testa. «Raio de calor!», queixou-se de modo falacioso. A transpiração obstinada que, àquela hora e naquele momento, ressumbrava da parte superior do seu rosto não era originada pela temperatura ambiental, mas pela forte sensação de estresse que o assolava.

Como hoje, cada vez que se avizinhava o momento fatídico de traspassar a ponte, reproduzia, incondicionalmente, as mesmas invectivas, as mesmas gesticulações, as mesmas pantomimas. Esta iniciativa transtornava-o psiquicamente, engendrando-lhe distúrbios físicos. Homem de uma robustez extraordinária, temia, no entanto, mais este instante do que a própria morte: as mãos tremiam-lhe, o coração latejava-lhe e um pânico potente submergia-o, intrincando-lhe a respiração. Uma autêntica paranóia. Cuspiu para o chão, nauseado, e grunhiu a meia voz: «Rio do caralho!» O Manel sofria de acrofobia severa.

 

Continua.

 

PROFESSOR DOUTOR CÓNEGO JOSÉ MARQUES

melgaçodomonteàribeira, 13.01.18

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José Marques, nasceu a 12 de Agosto de 1937, em Roussas, no concelho de Melgaço. Fez a instrução primária na terra natal, seguindo os estudos no Seminário da Arquidiocese, em Braga, onde se ordenará em 1961, sendo logo chamado a exercer no Seminário Conciliar (1961-1970).

Entre (1969-1974) faz a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e de imediato a frequência e conclusão de curso de Bibliotecário-Arquivista na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1976) e especialização como Bibliotecário-Arquivista.

Realizou provas de Doutoramento com o trabalho intitulado A Arquidiocese de Braga no século XV, em 1982, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde ascendeu a Professor Catedrático (depois das provas de agregação de 1989-90) com a Lição de Síntese, sobre a Assistência aos peregrinos no Norte de Portugal durante a Idade Média, tendo-se aposentado em 2003.

Colaborou com as Universidades Portuguesas de Coimbra, Açores, Universidade Católica de Braga (Faculdade de Filosofia e Teologia), com a Fluminense de Niterói – Rio de Janeiro Brasil, e com a Universidade de Louvain-la-Neuve.

Foi Diretor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1982-1985).

Foi coordenador desde 1984 até 1998 da Revista da Faculdade de Letras, nas séries de História, Filosofia e Línguas e Literaturas Modernas.

Membro do Centro de História da Faculdade de Letras do Porto (co-fundador em 1982, da Academia Portuguesa da História (sócio de número e atual vice-presidente), do Instituto Galaico-Minhoto (também co-fundador em 1982), da Real Academia de la Historia de Madrid (sócio correspondente), das Sociedades de Estudos Medievais, portuguesa (de que é sócio fundador, 1985) e espanhola, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (sócio correspondente), da Comission Internationalle de Diplomatique (membro desde Outubro 1986, seu vice-presidente em 2008) e do Comité International de Paléographie Latine (desde 1989).

Os seus Estudos Históricos fixam-se, no período da História Medieval Portuguesa, no quadro cronológico que concentra a montante e a jusante do séc. XV. Tem como quadro geográfico de principal concentração e referência a Arquidiocese de Braga, que é o Minho e Trás-os-Montes e que por ele, em estudos extensivos e comparativos se alarga a outros territórios diocesanos. E como território de fronteira extremamento ativo e participativo, se estende e alarga às vicissitudes de outros territórios (e dioceses) de fronteira.

 

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - I

melgaçodomonteàribeira, 06.01.18

 

 

Pouco faltava para ser noite quando o Manel emergiu da floresta. Essencialmente povoada de pinheiros e eucalíptos, toldava a maior parte da encosta íngreme do monte. De modo despreocupado, empreendeu a descida do sinuoso caminho que findava na extremidade direita da ponte da Frieira. Esta superestrutura recente, sobranceira ao rio Minho, unia dois lugares galegos homónimos que pertenciam a concelhos e províncias diferentes.

Ambas províncias confrontavam com Cevide, o lugar luso mais hiperbóreo. A da margem direita, a Província de Pontevedra, estava separada dele pelo rio Minho; a da margem esquerda, a Província de Orense, pelo rio Trancoso, um simples arroio.

O nome adequado das duas aldeias era A Frieira, mas todos proferiam e escreviam Frieira. Até nos epígrafes da estação do caminho de ferro.

Daquele lado da ponte, num discreto remanso retirado da estrada cerca de dois metros, havia uma casinhola de metal laminado. Durante o dia, e a qualquer hora, a probabilidade de nela se encontrarem dois guardas civis era inconstante, mas depois de se implantar o lusco-fusco, a possibilidade convertia-se numa asserção. O verde azeitona original das placas do abrigo – o mesmo que o do uniforme dos ocupantes –, apesar da persistente inclemência do tempo que o fora carcomendo, ainda preponderava. Um jipe Land Rover, igualmente verde, apenas mais escuro, estacionado em frente daquela guarita, denunciava a presença evidente dos guardas fronteiriços.

Vistoriavam os veículos e os respectivos ocupantes em busca de contrabando e de eventuais emigrantes clandestinos que experimentavam, por todos os meios, atingir os países europeus onde o emprego pululava. Observavam e vigiavam, em paralelo, a escada férrea situada diante do tugúrio, necessariamente utilizada por todos aqueles que, vindos da margem esquerda, tinham de ir apanhar o comboio à estação. Os passageiros procedentes de Madrid, de Barcelona e, mormente, de Irun – País Vasco –, que ali se apeavam, eram alvo do maior reparo. Fotos dos principais membros operacionais da ETA e do GRAPO decoravam uma das paredes do casebre.

Aquele espaço restrito era o ponto mais decisivo, mais problemático e mais delicado que determinava a vida e, por conseguinte, os recursos de muitos habitantes da margem ourensana do rio Minho, assim como dos das beiras do rio Trancoso.

Naquela região, onde as terras galaico-minhotas se entestavam, o contrabando – como em qualquer outra zona fronteiriça do mundo – era um afazer intrínseco, arraigado, filho da raia. Fazia de tal maneira parte da vida das pessoas que acabara por ciselar e normalizar as suas exigências, as suas obrigações, as suas asperezas e, em geral, a sua existência. Exceptuando um período quase industrial, principiado com a Guerra Civil Espanhola e finalizado com a capitulação dos Alemães, podia dizer-se que o contrabando, embora considerável, se transformara, ao longo dos anos, num contrabando artesanal, familiar, de necessidade e facilidade. Grande parte dos raianos extirpava diariamente uns dolorosos dividendos mais do que indispensáveis do petate – contrabando.

A partir de 1965, e quase durante uma dezena de anos, a construção da barragem – inaugurada em 1970 – e, depois, da ponte, com tudo o que vai de par, atraíra uma infinidade de pessoas heterogéneas para aqueles povoados; fizera daquelas e de mais algumas aldeolas vizinhas uns centros de comércio, consentindo aos nativos ganhar uns inesperados duros – antiga moeda espanhola de 5 pesetas. Esta profusão alastrou-se, sendo gratificante para muitos portugueses da raia, especialmente para os argutos comerciantes.

Dos consideráveis trabalhadores recrutados para a ocasião, um grande número – os menos qualificados – tinha vindo do outro lado. Foi desta maneira que muitos portugueses esbarraram com a sua alma gémea, fundaram uma família e abraçaram outra terra que, para alguns, não era mais do que o prolongamento da deles.

A ponte e o posto de controlo foram inaugurados conjuntamente.

A consumação destas obras – gigantescas para a região – pusera, inevitável e definitivamente, fim ao eldorado de vários anos de convivialidade, de partilhas e de saudável fartura. Os raianos, sem outra opção, voltaram, pois, a engalfinhar-se nos retrospectivos e corriqueiros negócios que, durante os anos de exuberância, tinham gerido ao ralenti, relegado para um plano secundário ou, muito simplesmente, esquecido.

Instintivamente, o Manel constatou que o Land Rover dos guardas civis não estava ali. Era-lhe igual visto não ter nenhum motivo para revelar o mais pequeno receio ou, ainda que fosse, se precaver das autoridades locais. Neste aspecto sentia mesmo uma deliberada displicência que muito o orgulhecia.

O contrabando nunca fora um capricho, uma fidedigna preocupação ou uma fonte de dinheiro para ele. Ajudava ocasionalmente um africano a atravessar o regato que passava ao lado da sua casa, quando este, em regra geral no inverno, se tornava difícil e pernicioso de transpor. No sítio mais acessível, que distava uns passos da foz, a corrente já se tinha mostrado capciosa, traiçoeira, e até fatal, para alguns aventureiros, aos quais o imenso desespero e sofrimento impulsaram a desafiá-la incautamente. Mas ele conhecia-lhe umas falhas, uns vaus...

Desde as bandas de Portelinha, a torrente do riacho ia engrossando com a água das chuvas ou o derretimento das nevadas; auxiliada pelo desnivelamento do solo, roborava gradualmente, activando-se com pertinácia durante os últimos metros, para se aliviar com estrondo no rio Minho. 

Mas era mais por solidariedade do que pela remuneração, embora o gesto nunca o deixasse indiferente, que o Manel corria o risco de transgredir. Não ignorava que a desesperança podia, de maneira imponderada, perturbar a razão e conduzir as pessoas mais sensíveis ou carenciadas por caminhos desvastadores. Por esta razão, na medida do possível, esforçava-se por fazer o que podia para alijar as angústias dos que, do outro lado do ragato, por vezes, imploravam que lhes estendesse a mão.

Os guardas civis estavam ao corrente da sua prática efémera – tudo era trivial num lugar daqueles –, mas nunca lhe tinham manifestado qualquer contrariedade ou desagrado pelo facto. Compreendia muito bem que quem era pago para combater e sancionar infracções não podia tolerá-las. Achava que era uma elementar questão de sobriedade e de deferência. Não, não os desaprovava, sempre tinham sido bastante afáveis e benevolentes para com ele.

 

Continua.