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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

OLINDA CARVALHO, UMA GRANDE CONTADORA DE HISTÓRIAS I

melgaçodomonteàribeira, 25.02.17

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Um Carnaval na Memória Coletiva

 

Como tantas coisas do passado também o Carnaval suscita mil lembranças, mil e uma evocações nostálgicas de um tempo que foi muito melhor do que o presente. Porque associado à juventude, a mais saúde, a um convívio mais são? É o que se diz. Será, porém, verdadeiro? Do que eu me lembro, a pressão social era, há uma dezena de anos, muito mais pesada do que hoje e ai de quem pisasse o risco! Alguém que desse azo a andar nas bocas do mundo só de lá saía quando a novidade ou amplitude de outro deslize lhe arrebatasse o lugar. O esquecimento podia nunca acontecer, de vez em quando algo voltava a surgir para apoucar sicrana ou beltrana, eram, são quase sempre as mulheres as vítimas das línguas viperinas do povo. Os homens, mesmo que o discernimento delas os coloque no seu devido lugar, merecem geralmente muito mais tolerância e favores das mulheres. Postas a refletir, elas confessam-se mais capazes, mas assumem no outro género méritos maiores do que os que a prática lhes conferem, os que a tradição instituiu.

O Carnaval era a festa por excelência em que novos, velhos e crianças se divertiam. Para muitas rapariguinhas era uma espécie de passaporte para aceder aos bailes destinados às mais velhas, em idade de namorar e procurar o almejado pretendente, sendo este o objetivo de uma vida. Depois de participar, um ou dois anos seguidos, em todos os bailes, de sábado à tarde até à madrugada de quarta-feira de cinzas, qualquer moçoila se sentia com direito a reivindicar participar em todas as posteriores folias carnavaleiras. As mães deixavam-se convencer com mais ou menos facilidade, de acordo com as alegrias do coração, as filhas limitavam-se a reproduzir o que se tinha passado com elas, quando tinham a mesma idade. Os pais eram pouco tidos para a decisão, a maioria porque estava ausente e, se não era o caso, deixavam as coisas difíceis para as mulheres, além de as parirem também tinham de as criar para ninguém ter nada de nada a apontar-lhes.

Naquele ano queriam que os festejos fossem de arromba. Um ano antes, tinha havido dois enterros nas vésperas e ninguém se atrevera a lembrar a época festiva, por respeito para com as famílias dos falecidos. Se a morte do tio Manuel da Marmeleira foi aceite naturalmente, pois já não esperava pela idade e estava acamado há tempo, fez-lhe Deus favor, o mesmo não se pode dizer da partida inesperada do Francisco Americano, vítima fulminante de um garrotilho que o levou em menos de oito dias, tinha vinte e três anos. Foi uma dor de alma naquele lugar e nos adjacentes, nunca até àquela data um enterro foi mais concorrido. Ouvir a mãe e as irmãs a gritarem por ele entranhava-se no coração mais empedernido, até os homens deixavam as lágrimas correr sem se esconderem, tamanha dor tinha de ser partilhada, nem que fosse apenas para aliviar um pouquinho a noite negra que caíra sobre aquela família.

O tempo mostrou-se amigo, esquecido da neve, apenas uma chuva miudinha na segunda à tarde. Assim, em espaços abertos, os entrudos podiam resultar os variados números, muitas vezes preparados de longe, outras deixados ao improviso e a sugestões do momento, algumas limitando-se a reproduções por demais conhecidas, mas que faziam sempre rir, que mais não fosse pelo conhecimento antecipado da coisa. Depois do almoço de sábado, onde a mesa era ainda frugal, as carnes e outras iguarias eram para domingo e terça feira gorda, acorria o povo à eira do meio. As crianças não paravam, chegava o tocador, as velhas e velhos acomodavam-se nos bancos que iam surgindo de um canto e de outro, alguns improvisados com o que estava à mão, as raparigas punham-se de um lado, os rapazes, sempre em menor número do que elas, de outro. Começava a concertina na sua função e de seguida os pares a rodopiar, sob os olhares atentos, perscrutadores de mães, pais, avós, vizinhos em geral. Todos dançavam com todos, as raparigas que ficavam sem par iam buscar os velhotes que saíam para o terreiro, o entrudo é assim mesmo, alguns rapazes faziam o mesmo com solteironas que já não estavam para festas, mas carnaval é carnaval. Em geral só mulheres de meia idade, viúvas de maridos emigrados, é que não participavam na dança. A muitas não faltava a vontade, mas o recato impunha distância daquelas alegrias e, estando por perto, gozavam os olhos, já era bem bom.

Quando menos se esperava, ora com introdução a preceito, fazendo-se anunciar, ora de rompante, eis que fazem parar o baile. Entravam os mascarados, com um número ensaiado para animar, para fazer rir, às vezes até às lágrimas. Era mister que a identidade dos entrudos não fosse descoberta. Ele era ver o médico que assistia ao nascimento de uma criança e fazia sair um ser horrendo debaixo de uma saia branca manchada de vermelho, ele era o mesmo médico a fazer uma intervenção cirúrgica e a extrair um chouriço que deveria ser o apêndice, ele era o casalinho que pretendia dar o nó e o padre se recusa porque o noiva é mais alta do que o noivo e este precisa de crescer e depois aparecer.

 

(continua)

 

 

UMA MULHER DE BARBA RIJA

melgaçodomonteàribeira, 18.02.17

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ANA HOME

 

O seu nome verdadeiro era Ana Fernandes. Nasceu em 1876 e faleceu na Vila de Melgaço a 5/4/1947, com 71 anos. Ficou com a fama de hermafrodita, por ser virago, mulher de pulso rijo. Em certa ocasião, num monte da Galiza, desarmou um carabineiro que dias antes lhe tirara o contrabando, uns míseros gramas de tabaco e duas barras de sabão, e com a própria carabina deu-lhe uma tremenda sova, deixando-o ali estendido como um morto. Depois remeteu a espingarda para o posto onde o ferrabrás estava afecto. O caso deu brado! E não foi só aquele que experimentou a “lenha” com que ela se aquecia, mas muitos outros homens pseudo valentes. Era tesa! Fazia todos os trabalhos normalmente atribuídos ao sexo masculino: podar, sulfatar, lavrar, etc. Fumava, vício que em Portugal só os homens tinham. No “Notícias de Melgaço” nº 1 de 6/3/1924, na secção DIZ-SE, alguém escreveu «que a Ana Home no domingo último, numa entrudada que neste dia se fez em Cristóval, vestiu-se com traje masculino, caracterizando-se com pêra e bigode; que a certa altura do divertimento montou num cavalo como qualquer homem, fazendo algumas evoluções para afastar o povo, o qual a elogiou.» Foi mãe solteira de dois filhos: o António Maria, conhecido por “Olharapo”, jornaleiro, o qual morreu na Vila (SMP), tuberculoso, a 27/3/1951; e o José, que depois da tropa ingressou na GNR, atingindo o posto de cabo. Carlos Afonso escreveu: «…embora não tendo “barba rija” tinha força e coragem para enfrentar quem a quisesse importunar. Poderia até equiparar-se à lendária Inês Negra, isto se os tempos fossem semelhantes e as oportunidades fossem as mesmas. (…) Eu conheci a “Ana Home”;… um irmão dela foi meu tio por afinidade. Mulher forte, de meia estatura e de voz grave. Trajava roupa de tecido grosso, como antigamente se usava em Castro Laboreiro, e dizia-se que por lá viveu algum tempo. Creio ter sido, talvez, da 2ª geração de uma família galega, de Desteriz, ali junto a S. Gregório, que aí por volta de 1850 veio para Melgaço, trabalhar para a Quinta chamada de Santo Preto. Em Melgaço, os descendentes dessa família, tinham por alcunha “os noivos”… Andava sempre armada com um varapau da sua altura e, dizia-se, não sei se com alguma ou total verdade, que usava “faca na liga”. Creio que a alcunha… lhe foi dada por ter a voz grossa, ou mais pelo facto de ela fumar, tal como os homens. Uma mulher a fumar, há mais de 70 anos atrás, era mesmo coisa de outro mundo…» (VM 1116, de 15/5/1999).

 

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO II

Joaquim A. Rocha

Edição do Autor

2010

p. 18

 

Joaquim A. Rocha edita o blog MELGAÇO, MINHA TERRA

 

 

UMA CARTA IRÓNICA

melgaçodomonteàribeira, 11.02.17

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ANA CORREIA FEIJÓ

  

Nasceu na Casa da Cordeira em 8 de Julho de 1832 e cinco dias depois foi baptizada na igreja paroquial de Rouças.

Os seus paraninfos foram Frei Bento do Pilar, D. Abade do Mosteiro de Tibães e Geral da Congregação Beneditina do reino e D. Ana Joaquina de Castro Sousa e Meneses, da Casa de Galvão, e impuseram-lhe o singelo nome de Ana, mas pela vida fora os próprios pais lhe chamaram Ana Cândida numas ocasiões e Ana Joaquina noutras.

Assim, quando em 14 de Fevereiro de 1852 a mãe encarregou o filho padre em Ponte de Lima a representar na escritura de nomeação de prazos em sua posse, deu-lhe o nome da madrinha – Ana Joaquina – e dois anos depois, numa outra escritura, a impôs como Ana Cândida.

Enquanto, porém, não passou de menina toda a gente a tratou por Ana e assim aparece ela em baptizados ao lado dos irmãos José Agostinho, P.e António e Manuel.

Os feitos de Ana e Manuel associaram-nos na vida e não é, por isso, de admirar encontrá-los juntos em 11 de Outubro de 1832 a vender em comum a José Albano Dantas, dos Carvalhos de Rouças, a propriedade de Cecrinhos, de pão e vinha, sita no lugar do comprador, não importa dizer agora por quanto.

Também foi a eles ambos que a mãe doou por escritura de 23 de Dezembro de 1872 todas as propriedades por ela possuídas no lugar da Boa Vista; formavam uma quinta que valia bem oitocentos mil réis e rendia por ano dez por cento.

Actos menos reflectidos de Manuel Feijó contristaram e amarguraram muitas vezes o coração fraterno do clérigo e se, na verdade, a D. Ana interveio sempre entre os arrufos dos dois manos como anjo da paz, nem sempre a sua inteligência conseguiu forjar a frase exacta para acalmar a irritação e levar o preciso conforto moral a Santo Estevão da Facha ou alcançou afastar de si e do Manuel as justas recriminações do padre.

E a prova está nesta carta a exibir a tristeza sob a capa da ironia:

 

       Ex.ma Senr.ª

12-2-84     D. Ana Corr.ª Feijó

 

Apenas me cumpre dizer q V. Exª decerto se esqueceu de uma carta que me escreveu no anno de 1883, dizendo que recebera de seu mano Manuel trinta libras, com que comprara uns touros e bois se me não engano; porq se disto se lembrara não vinha dizer agora a ha tres annos não tinha recebido um real, quando desde aquella época até hoje apenas tem decorrido um anno. Ora se falla verd.e nesta última carta então mentiu na primeira, e se disse na primeira uma verdade neste cazo mentiu nesta, q me escreveu agora. Peço que resolva este problema, e q applique a sua pessoa o nome que lhe compete. Tambem tenho em meu poder outra carta do seu mano Manuel do mesmo anno, em que declara levar mais pª Melgaço 25 mil reis pª tratar dos foros, e V. Ex.ª declara agora que não sabe desse drº

porq no questou que o não gastou; mas neste cazo como elle está ahi na sua companhia, q lhe declare pª q foi tal quantia, a mim só me compete dizer a todo mundo e não só ao Antº do Pombal, q desde o anno de 1881 mandei pª Melgaço 961$550, apesar de V. Ex.ª me recomendar q não o diga a pessoa alguma que ha tres annos lhe tenho dado. Enq.to ao seu mano Manuel ter gasto a renda de sua Prima Maria eu nada tenho com isto, porq felismente não preciso q ninguem me ajude a fazer as minhas obras. Se seu mano fes torres no ar eu não lhas mandei fazer, por q não lhe encomendei tão grande sermão, e se lá não vou, ainda mais queria fazer, já se sabe a minha custa. O que elle fes foi muitos calotes, e não pequenos, um de cincoenta mil reis ao negociante em Ponte, que se não lembrou de pagar e outro de onze livras a uma mulher de Darque segundo me consta, e por último deixou tudo arrazado, muros na chão, paredes e latas no m.mo gosto e dep.s de tudo isto V. Ex.ª deita a berrar q seu mano Manoel tem sofrido muito. A isto respondo que ninguem mais tem sofrido do q a minha bolsa; mas pª que seu mano não sofra mais q se deixe estar com sua Ex.ma Mana, porq na sua companhia está muito bem. Deste modo não cauzamos encommodos uns aos outros, e m.mo V. Ex.ª assim o estima e assim o quer e deseja. Pois bem está a sua vontade feita. Entre tanto diga a seu mano que me remetta já a letra do Coelho antes que se perca aquelle drº p.r q p.a perjuizo já basta, e eu irei tomar conta do que é meu, p.ª não encomodar as suas pessoas. Creio q nisto lhe faço um grande serviço, visto lamentar V. Ex.ª tanto trabalho, q lhe tem cauzado os bens de seu irmão padre. Deste modo ficão terminadas todas as questões.

                                                              Seu mano

                                                                Antº

 

Note bem: Ha um anno q foram 30 libras, e por isso esteve calada até agora, sem falar em segurança do drº e como não foram este anno outras tantas, então já berra. Pois olhe q tem então m.to que berrar».

 

Foi esta senhora que em Rouças faleceu no dia 22 de Setembro de 1885, embora o assento de óbito lavrado pelo pároco na ocasião do decesso de D. Ana não corresponda à verdade inteira. Era solteira e faleceu s. g.

 

O MEU LIVRO DAS GERAÇÕES MELGACENSES

Volume I

Augusto César Esteves

Edição da Nora do Autor

Melgaço

1998

pp. 176-178

 

 

UMA VÍTIMA DO MIGUELISMO MELGACENSE

melgaçodomonteàribeira, 04.02.17

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JOSÉ MANUEL GOMES DE ABREU

 

Foi uma das vítimas do miguelismo local, pois longos dias viu coar-se a luz do dia através das grades das cadeias onde o encarceraram; mas debaixo desta vil perseguição ao homem talvez estivesse e se escondesse uma inconfessada luta de interesses patrimoniais movida pelo ódio de melgacenses poderosos malquistados com o progenitor deste desditoso moço.

Viu-se contudo compensado após D. Maria II ser aclamada em Melgaço Rainha de Portugal pois por carta real de 4 de Novembro de 1843 foi-lhe confirmada a nomeação de escrivão camarário, cargo que ocupou sempre com muita proficiência e grandeza de isenção.

Casou com D. Joaquina de Jascão, nascida do casamento de José Cardoso de Campos e de Joana da Purificação, moradores na cidade do Porto, mas naturais, ele da freguesia da Senhora da Piedade e ela da de S. João Baptista de Ruivás, pertencentes ambas à diocese de Lamego.

Moraram de princípio no lugar da Corga da vila e depois na Rua de Baixo e não obstante o desempenho aturado do cargo administrativo e da chefia do registo da alfândega de Monção em terras de Melgaço, nunca a fortuna o bafejou, porquanto, «por causa das suas molestias, e pela calumnia que se lhe tiña feito por quatro requerentes em sessão de Camara, disendo que ouvera suborno na arrematação da obriga da carne, quando ella foi legalmente arrematada em Praça em gerencia da Camara então existente, arguindo-lhe a elle Ex Escrivão da Camara que tinha recebido sinco peças de sete mil e quinhentos do arrematante», renunciou ao cargo camarário em 11 de Agosto de 1843.

Camaristas, contudo, o defenderam da desprimorosa acusação e embora alguns propugnassem para ele reassumir as funções interrompidas, José Manuel foi vencido pela desgraça e embora continuasse a levar uma vida de honestidade e de pobreza, como um pobre de Cristo de finou em 23 de Junho de 1848.

António Máximo, que não só conhecia a dignidade e inteireza de ânimo, mas também admirava a nobreza de carácter deste seu irmão, respeitou também a sua memória quando a morte o levou, pois deu-se ao trabalho de quebrar os dentes às más línguas locais, mandando rezar por alma do mesmo no dia 1 de Julho um ofício de dezasseis padres.

Escondem hoje os seus ossos os velhos muros da igreja da Misericórdia; não sei, no entanto, se aí jazem os da sua viúva, que muitos mais anos aturou neste vale de lágrimas, visto só ter entregado a alma ao Criador no dia 1 de Março de 1871.

 

O MEU LIVRO DAS GERAÇÕES MELGACENSES

Volume I

Augusto César Esteves

Edição da Nora do Autor

Melgaço

1989

pp. 92-94