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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SAGRADO E PROFANO

melgaçodomonteàribeira, 03.12.16

19 c2 - anos 30 XII.jpg

                                 texto e desenho de manuel igrejas

 

O SAGRADO E O PROFANO EM MELGAÇO NOS ANOS 30 DO SÉCULO XX

 

Tradição enraizada na fé do povo da Vila de Melgaço, era, em Maio, a devoção ao Sagrado Coração de Maria quando acontecia festividade e a Primeira Comunhão das crianças.

Naquele ano a preparação em torno dos preparativos no que respeita à solenidade eucarística, foi fora do comum.

As famílias empenharam-se ao máximo para que as suas crianças fizessem boa figura. Tanto mais importante que o sacramento que pela primeira vez as crianças iam partilhar era o exibicionismo nas roupagens. Nos rapazes não dava para variar muito nas calças e na camisa branca e em alguns com casacos. Já nas raparigas era ver o luxo nos tecidos e modelos dos vestidos.

A maioria da rapaziada aprendia as orações obrigatórias em casa com a família, geralmente as mães; a doutrina, os princípios teológicos, eram ensinados pelas catequistas, as Donas Leonor e Emília Durães, com ajuda de outras senhoras, durante algumas semanas, diariamente, à tarde. O Padre Firmino que paroquiava as freguesias de Prado e da Vila, aparecia raramente para dar ênfase aos pecados e ameaçar com o fogo do inferno. Numa das prelecções, quando frisava que o fogo do inferno era eterno, o Manel do Jacob observou: - então a gente acaba por se habituar…

No domingo da festa, logo cedo, o Augusto do Félix chamou o seu pimpolho para se arranjar com esmero. O Manel e o Rogério, ambos fazendo a sua primeira comunhão, vestiam a rigor com fatos pretos confeccionados especialmente. Era o Manelzinho o mais novo da turma entre rapazes e raparigas. A maioria ou a totalidade daquelas crianças, por serem muito novas, não tinham a verdadeira noção do que iam fazer, e o Manel, a par da vaidade que a sua figura proporcionava aos parentes sofria tremenda expectativa ao pensar que não iria corresponder às recomendações. O primeiro dilema já fora no dia anterior quando voltou da confissão e em meio a uma brincadeira mandou o irmão à merda. O Ná, que trabalhava na alfaiataria, para o arreliar disse-lhe que a palavra era pecado.

Foi preciso o pai dizer-lhe que não era tão pecado assim, para o sossegar.

 A entrada para a igreja, mal comparando, teve alguma semelhança com o desfile de carnaval. Os adultos já superlotavam a nave da matriz da Vila. As crianças assumiram os lugares que lhe estavam reservados em bancos corridos a todo o comprimento da igreja. As pessoas em pé ou ajoelhadas na hora apropriada (ainda não existiam os bancos). Como era missa de festa, solene, como determinava o protocolo, teve sermão. O padre Artur, de Penso, o mais consagrado orador da região, inspiradíssimo, como sempre, arrebatou os fiéis em prolongada dissertação, em dado momento exortou as crianças a pedirem perdão aos pais. Foi uma tremenda confusão. As crianças procuravam o pai ou a mãe empurrando as pessoas. O Manel tinha visto o pai no coro, ia ser difícil passar pelo meio das criaturas e subir lá, sorte que a mãe estava perto e ele não vira, ela é que veio dar-lhe um abraço. Ao receber a comunhão empertigou-se numa atitude solene. A hóstia colou-se no céu da boca e ele não conseguia despegá-la sem que tocasse nos dentes o que lhe fora advertido ser pecado. Assustado, estava a ponto de chorar quando lhe valeu o António Toca, também conhecido por Nossa Senhora, que vinha com um copo d’água auxiliar as crianças naquela dificuldade. Durante o dia tudo foi festa: procissão, banda de música e muita gente andando para cá e para lá. Era gostoso o Melgaço naquele tempo.

A juventude melgacense quando sentia falta em que se ocupar fora dos seus ofícios organizava grupos de futebol. O Sport Club Melgacense fora reorganizado duas ou três vezes mas por pouco tempo vingava. O Toninho do Augusto do Félix que aparecia como adolescente promissor, líder dos rapazes na sua faixa de idade, com o João do Padeiro, fundou um grupo de futebol a que deu o pomposo título de União Artística Melgacense. As novidades sempre empolgavam e logo adquiriram o equipamento, um jogo de camisolas com listas verdes e brancas, verticais. Sobravam rapazes naquele tempo. Os irmãos, Carriço e Mi da Amália, mais o Carlota e outros, organizaram um grupo adversário, Atlético Club Melgacense, de início com as camisolas do extinto Sport. Logo se manifestou grande rivalidade no campo de jogo e muito mais fora dele. O povo da terra também por não ter  em que se envolver acudia por um ou por outro grupo, conforme o parentesco ou amizade com os jogadores. Segundo comentavam, antigamente as disputas eram entre os partidos políticos, diversão proibida naquela época. Jogaram algumas vezes entre si, ganhava um e ganhava o outro. Para aquilatar a soberania fora do campo organizavam bailes ao despique no carnaval. O União promovia os seus bailes na sala da Chico da Serra, ali no início da rua Direita, em frente à igreja, encostada à Farmácia Barreiros. No terreno o João Cataluna acabava de montar a Pensão Olímpia. O Atlético promoveu seus bailes no Salão Pelicano. Mais que os próprios bailes a sensação que os rapazes do Atlético imprimiram os seus carnaval foram os cortejos que antecediam.

O Sr. Silva, o mestre da marinha, pessoa grada e muito respeitada atendeu aos apelos e envolveu-se nos desfiles do Atlético. Foi ele o responsável pelos temas, organização e ensaios dos cortejos. Demonstrou grande capacidade de coreografia que redundou no grande sucesso dos desfiles. No largo da Calçada, onde tinha a bomba de gasolina do Sr. Teixeira, reunia-se a turma e se organizava conforme o tema a desenvolver no desfile. Rapazes e raparigas fantasiados de acordo, saíam cantando rua abaixo, Terreiro, rua Direita até ao Salão Pelicano. Durante quatro sábados apresentaram cortejos em temas e canções. O último foi uma apoteose. Uma réplica do castelo, iluminada por dentro, transportada como um andor, encheu os olhos do povo e muito aplaudido. A música entoada por todos os componentes fantasiados e sacudindo enfeites nas mãos, com letra brejeira sobre a música duma canção em voga, que em dado trecho dizia: Meu patrão mandou-me embora, mas não foi por roubar nada, foi só por molhar a pena, no tinteiro da empregada…

Como acontecera com outras manifestações também esta feneceu. A empolgação inicial logo dava lugar ao desânimo pela monotonia da repetição. Era como uma doença endémica.

 

 

                                                                                                                       Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço