Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

POMAR DAS ADEGAS

melgaçodomonteàribeira, 23.07.16

61 a2 - terreiro card.jpg                                                                       

O ANTIGAMENTE

 

A Maria Florinda, filha do saudoso Francisco de Sousa Cardoso, querida contemporânea, esclareceu a oleogravura “Frades Barbeiros” que mencionei num dos meus “Antigamente”. Obrigado pelo esclarecimento que me despertou mais esta crónica.

Nos meados dos anos quarenta, no jornal “Notícias de Melgaço”, do também saudoso Adriano Costa, apareceu um artigo assinada por M, referindo-se a um garoto modesto e educado, que pela vila circulava assobiando despreocupadamente. Que tal rapazinho tinha pendores para desenho e pintura, fazendo um repto às autoridades camarárias para que fosse mandado a Lisboa a fim de ser submetida a análise a sua capacidade artística em laboratório estatal que existia e não me lembro o nome. Ora, esse garoto era eu. Fiquei atarantado e envaidecido ao mesmo tempo. Alguém reparara em mim e na habilidade que eu não tinha a certeza que tinha. Pelo Fabiano soube que o autor era o Sr. Cardoso. Como retribuição ofereci-lhe uma pintura feita a pastel que pelo visto ainda existe pois foi referida há pouco tempo pela mesma Maria Florinda.

O Sr. Cardoso era figura destacada na vida social de Melgaço. Acho que fora comerciante e chegara a ser Presidente da Câmara, quando mandou fazer, se não o primeiro, um dos primeiros jardins da Vila, ali naquele espaço onde actualmente está o chafariz de São João. Era o local, até aos anos cinquenta, conhecido como Jardim do Cardoso, onde jogávamos bola de pano. Nunca vi o jardim, apenas nomeá-lo. Foi o Sr. Cardoso, o primeiro melgacense que viu em mim alguma habilidade e me dava atenção. Era o mentor da sociedade recreativa que se denominava Assembleia. Esse clube organizava metodicamente bailes. Como era destinado ao que na época chamávamos “alta sociedade”, esses bailes revestiam-se de grande gala. Nas noites das realizações, as mulheres do povo (plebeias), inclusive as minhas irmãs, aglomeravam-se na porta da Assembleia para apreciarem as senhoras entrando para o baile e comentarem suas indumentárias, por dias a fio. Situava-se este clube no sobrado por cima da loja do Sr. Aurélio, na confluência da rua Velha e rua do Rio do Porto. Das frequentadoras ilustres lembro as meninas Durães, as meninas da Fonte da Vila, as meninas da Calçada, as meninas do Sr. Cardoso, as do Antonino Barros, das Cerdeiras, das Teixeiras, e outras famílias afidalgadas. Foram acontecimentos de destaque social, bailes que feneceram a partir dos anos quarenta. Querendo soerguer o clube o Sr. Cardoso convocou uma reunião de associados e para tal fez uma lista com os nomes, cerca de cinquenta e contratou-me para procurá-los e pegar a assinatura de todos como cientes da reunião. Pagou-me cinco escudos por tal. Nas casas ou no trabalho visitei a todos, apenas o Manéco do Simão encontrei na rua, e como era um gozador, além de assinar escreveu isto: “visto em trânsito”.

Pouco tempo durou essa reanimação, os tempos do após guerra já eram outros.

Nessa altura, o Sr. Cardoso, que era dinâmico e empreendedor, incrementou a sua propriedade agrícola que tinha no lugar das Adegas. Comercializou o vinho das uvas produzidas nessa propriedade, que baptizou de Pomar das Adegas. Para tornar conhecido encomendou-me uns cartazes promocionais. Feito o esboço aprovou e ajustamos dez cartazes a cinco escudos cada um. Feitos à mão em meia folha de cartolina, tornou-se tedioso repetir dez vezes o mesmo desenho colorido. Representava uma espécie de pomar com o castelo ao fundo, e em primeiro plano dois homens na mesa de um bar, com as legendas em balões. Dizia um: “Estou mal!” (com cara de enjoado), respondia o outro: “Faz como eu que só bebo Pomar das Adegas”. Esses cartazes foram afixados em cafés e tabernas.

Pouco depois aconteceu mais um cortejo de oferendas para o hospital e o Sr. Cardoso resolveu participar do desfile. Encomendou-me duas grandes garrafas de vinho, branco e tinto, feitas chapéus, para dois homens usarem no cortejo. A minha experiência limitava-se a montar as construções de armar que vinham no “Mosquito” e outras revistas infantis. Aceitei o desafio que a custo consegui desenvolver. Com papelão, cola e mais papelão pintadas a carácter, ficaram bonitas mas impossíveis de segurar na cabeça de tão pesadas e grandes, de modo que os rapazes carregaram-nas nas mãos. Não me lembro quanto pagou, sempre foi correctíssimo.

Voltou a escrever no jornal sobre a minha pessoa, a que tardiamente, agora, apresento a minha gratidão. Obrigado Sr. Cardoso!

 

   Rio de Janeiro, Fevereiro de 2013

                                                                       M. Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço