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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A HISTÓRIA DO CINEMA... QUANDO NÃO HAVIA CINEMA

melgaçodomonteàribeira, 11.06.16

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UMA HISTÓRIA DO CINEMA NO ALTO MINHO

 

16 de Junho 2013

Ivete Carneiro

 

É um objeto estranho, bonito, com espelhos e desenhos. Chama-se praxinoscópio, pertence aos primórdios da sétima arte e está exposto num museu minhoto, juntamente com outras relíquias. Melgaço tem mais que ver com contrabando, emigração, vinho, costumes ancestrais e lendas medievais, mas é aqui que se conta a história do cinema… quando não havia cinema.

 

António Augusto do Souto só não foi emigrante a salto porque cresceu guarda-fiscal e soube contornar as regras comme il faut. Em meados dos anos 1960, o homem, hoje com 77 anos, natural de Melgaço, foi a França com passaporte de turista e a autorização ministerial que era preciso mostrar à PIDE nas dobragens da estrada. Tudo legal, não tivesse ele na mala de cartão a ideia de vergar o fio por mais do que o conto e cinquenta que lhe dava Salazar, lá no posto afastado de casa para onde o mandou.

«Tinha 29 anos e três filhos, casei novo…» Aos 19 anos. E estava cansado de ir para fora cá dentro, primeiro no Algarve e depois ali em Lanhelas, Caminha, por tuta e meia e horas de estrada. Estávamos em 1965. Nunca foi para as «trincheiras» onde viviam os portugueses lá de Paris, de França. «Aluguei um quartinho porque fazia conta de vir buscar a minha mulher.» Era perto de casa de António Alves, o cunhado, cicerone pela Aubervilliers da altura, que lhe falava bastante de «francês muito boa gente». «Ele que venha cá a casa», disse Souto ao cunhado, insistindo que era só quartito e a sala. «Um belo domingo lá apareceu o Passek. Trabalhava na altura na Larousse, no dicionário mundial do cinema.» Jean-Loup Passek continuaria ligado a esse mundo, vida fora. Manoel de Oliveira conheceu-o como criador e Diretor do Festival de Cinema de La Rochelle. E seria mais tarde conselheiro do cinema para o Centre Georges Pompidou, onde dirigiu a coleção Cinema Plural com a resenha «Le Cinéma Portugais», entre muitas. Uma estafa de currículo.

Gosta de cinema, monsieur Souto? Os filmes, no Alto Minho, estão mais à mesa de uma bela adega. Jean-Loup Passek lá terá percebido. Tomou-se de amores pelos melgacenses personagens principais deste conto. De tal forma gostou da terra que fez um documentário sobre os portugueses em fuga. Ninguém o viu. Nem António Augusto nem os responsáveis pela herança de Jean-Loup. E que herança… «Nunca quis mostrar. Diz que é muito pessoal, que é muito específico daquele momento.»

Angelina Esteves, chefe da Divisão de Cultura e Comunicação da Câmara Municipal de Melgaço, eclipsa-se quando o Sr. Souto se instala para descansar no Auditório do Cinema da vila. Um banco almofadado corrido, quatro ou cinco lugares com vista para uma das faces da Torre de Menagem que encima a vila, um plasma a fazer de ecrã de cinema, os fundos carregados de história, podemos imaginar, daquele que foi o posto da guarda-fiscal. «Se o cinema está aqui, deve-se a mim.» Não gagueja, o hoje presidente da junta de Paços, freguesia de Melgaço, onde Passek assentou praça intermitente, alternada com os pinhais de Pataias de Alcobaça (outra paixão ganha do convívio com o Abílio do restaurante português) e com o chiquérrimo Saint-Germain-des-Prés da Paris dos abastados. O bom do francês queria desembaraçar a cansada mãe da tralha que a paixão do filho pelo cinema lhe foi colando à arrecadação de oitenta metros quadrados – um sem fim de mistérios e pura arte, muitos até angariados com as brincadeiras no Pompidou. E como Portugal lhe enchera as medidas, procurava por aí, na Cinemateca de Lisboa, em Cerveira…

«E então, eu disse-lhe: «Ò João, tens de o deixar aqui para Melgaço.» «Oh, c’est trop petit.» É muito pequeno, não pode expandir. Bom, tinha alguma razão. Um dia agarrei-o e vim mostrar-lhe as coisas boas de Melgaço. Ele conhecia era Paços, a minha casa. E viemos aqui.» Ao posto fiscal, um canto encostado à muralha, de que Passek gostou. E gostou pelo romantismo, pela carga simbólica, traduz Angelina.

«Ele costuma dizer que é um museu sentimental», diz Elisa Vilarinho, que recebe o euro que custa entrar no mundo mágico. O edifício fora adquirido pela câmara para funções sociais, mas desviou o rumo para a cultura e, há quase oito  anos, abria-se ao mundo o embrião do Museu do Cinema Jean-Loup Passek. Ainda é ele que dirige os destinos programáticos do espaço, apesar de mal andar, 76 anos doentes que o afastaram de Portugal há uns anos. Souto esteve com ele no Natal, na última ida a Paris e aos filhos, e viu-o acabado, mas teimoso na solitude. «É solteirão, homem solitário», de muitas mulheres, que trazia, sempre diferentes, aos grelhados das sextas nos chantiers dos immigrés.

É verdade, Melgaço tem mais que ver com contrabando e emigração, da clandestina e da outra, com vinho, com costumes ancestrais de transumância, com lendas medievais… do que com cinema. Mas o francês simpático e bem apresentado que subia e descia as curvas da Peneda na sua Citroen Diane azul-clara, atrás de testemunhos das fugidas dos anos 1960 e 1970, merecia o apreço.

Mas tinha razão, o João aportuguesado – tem cartão de contribuinte, medalha de honra de Melgaço e, diz-se, fala português como os portugueses lhe trituravam o francês, perfeitamente percetível. De facto, aquilo era pequeno. E são três os armazéns a explodir de praxinoscópios e antecessores, de memórias que nos atiram para os irmãos Lumiére e para Georges Méliès e a sua famosa Viagem à Lua de 1902, de imagens vintage. Vai daí, Passek comprou o cinema mesmo, o velho Pelicano feito esqueleto, para estender o museu. E doou-o ao município. E o município fez o projeto e obteve autorização do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico. E calculou o preço. À roda de 250 mil euros. Que não há, nem em fundos externos. Por isso, não se sabe quando vai abrir o novo espaço.

 

Uma carta de Manoel de Oliveira

 

«Para Jean-Loup Passek, criador e diretor do Festival de Cinema de La Rochelle.

Tive a sorte de pertencer ao grupo daqueles que tiveram a honra de ser um dos seus convidados para a primeira edição, com a minha primeira retrospetiva apresentada em França. Evoco com prazer esses bons momentos em que tive a ocasião de discutir de forma muito violenta com o público e de expor os meus pontos de vista sobre uma visão do cinema. Obrigado Jean-Loup.

 

Manoel de Oliveira.»

 

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