NO LARGO DA CALÇADA I
toni costa e berto chiquera na esplanada do café estrela
O Barbosinha
Estávamos em 1974. A Vila, a maior parte do ano plácida e silenciosa, transformava-se no mês de agosto – e isto quotidianamente – num dia de feira sem tendeiros; o agosto do ano da Revolução dos Cravos fulminara todos os superlativos: os emigrantes, vindos dos quatro cantos do mundo, tinham-se apoderado do concelho.
Muitos destes conterrâneos adoravam externar ostensivamente parte do pecúlio acumulado com grandes sacrifícios durante um ou vários anos, gastando a torto e a direito. Sofregamente, saciavam as abundantes apetências que, por exigências económicas, se esforçavam por reprimir no país de acolhimento até ao mês libertador. Enterravam, durante uns dias, umas semanas, o papel de humildes, de serviçais e de bajuladores, induzidos a esposar localmente. Exibindo modelos de automóveis recentes e arvorando maneiras pretensiosas, embora grotescas, estavam convencidos de que, socialmente, tinham galgado um degrau considerável.
Esta maneira de ser também se observava em muitos melgacenses radicados nas principais cidades portuguesas, em especial Lisboa e Porto.
Não dispondo de meios para se ausentar e desfrutar de um ambiente bonançoso durante esse mês de estio, a grande maioria dos melgacenses ociosos tinha, pois, de sujeitar-se e de digerir o restringimento, o alarido e o pandemónio causados por esta maré humana.
Eram umas semanas difíceis, conflituosas que irritavam os autóctones e faziam com que, finalmente, acabassem por ser eles a sentir-se imigrantes na terra natal que raramente abandonavam. Aguardavam pelo fim do mês como o preso pelo dia de redenção.
As divisas enviadas pelos emigrantes através das sucursais dos bancos portugueses no estrangeiro – cujo desígnio era canalizar as suas poupanças para Portugal –, ou trocadas em escudos nas abundantes agências da Vila, faziam a felicidade dos comerciantes que se regozijavam unanimemente. Para eles, fosse qual fosse o ramo, quantos mais emigrantes melhor. « O ideal era haver dois meses como este. Não precisávamos de trabalhar o resto do ano », afirmavam.
Mas agosto já não era mais do que uma má lembrança, e Melgaço nadava no ambiente vegetativo consuetudinário. A população, com a enérgica adinamia que a caracterizava, tinha retomado os gestos, os hábitos, as tarefas, os horários e os gracejos do dia-a-dia com os quais estava familiarizada. Era uma harmonia que duraria pouco mais de dez meses.
Na Calçada, no vasto imóvel pertencente ao Manuel Lourenço (Manuel da Garagem), havia um ano e pouco que abrira um segundo café, o Estrela. Este nome fora uma reposição em homenagem ao que, uns anos atrás, este abastado comerciante, baldadamente, montara noutra parte do edifício.
Naquele tempo, podia dizer-se que passara a ser o centro da Vila, o café que muitos melgacenses – e não só – gostavam de frequentar. A sua clientela constituía um leque com nuances que iam do bêbado ao advogado e incluía funcionários públicos, bancários, políticos, lavradores, elementos da GF, professores do ensino secundário, comerciantes, estudantes, homens de negócios... Apesar desta variegação, ou talvez graças a ela, havia uma afinidade atenta entre os clientes, que, globalmente, engendrava uma atmosfera bastante agradável e cordial.
A existência deste exíguo café era o resultado da associação de dois parentes: um de Soutomendo e outro da Adedela, freguesia de Fiães. O primeiro era um senhor muito polido e afável, chamado Martins, que vivera durante umas décadas no Brasil. « Em Belém do Pará ! », frisava com prazer e uma ponta de nostalgia. O segundo, um trintenário chamado Abílio, sobrinho por aliança do primeiro, era filho do senhor Augusto, conhecido por Meio Quilo ou Augusto Pequeno devido à sua estatura nanica. Astuto negociante, transportador e um dos maiores contrabandistas da margem lusa do rio Trancoso, era um homem que não desperdiçava a menor oportunidade de engravidar os seus haveres. Esta bulimia fora a causa de, em tempos, ter sido vítima de uma burla grosseira que ficou na memória da maioria dos melgacenses: comprara, por bom preço, a um tal Barbosinha, do Extremo, Arcos de Valdevez, uma máquina que, presumidamente, fabricava notas de mil escudos. Não se sentira humilhado pela estafa, pois era um homem habituado a correr riscos, a aflorar o fiasco diariamente, mas por esta se ter tornado pública.
As horas de presença no café eram geralmente asseguradas pelo Martins e pelo Abílio. Porém, por conveniência ou imperiosidade, acontecia que o primeiro deixasse, de vez em quando, o encargo ao próprio filho, o Luís, um simpático adolescente de dezasseis anos que nascera no Brasil.
Este rapaz, como acontece com naturalidade noutras paragens a muitos indivíduos, foi pronta e adequadamente apodado. O Carlos, um jovem estudante maroto, ele próprio alcunhado de Cartucho, quando soube que o Luís era sobrinho do Meio Quilo, crismou-o com o nome do indivíduo que, uns anos antes de ele vir ao mundo, intrujara o tio. Pouco tempo depois, todos o conheciam por Barbosinha.
Nessa sexta-feira de tarde, quinto dia de outono, tanto caía uma chuva forte atiçada por lufadas, como abocanhava; instantes que o sol aproveitava para desferir pontualmente, por entre umas nuvens acinzentadas carregadas de electricidade, uns raios lívidos, cansados. A feira, já debilitada pelo retorno dos emigrantes, ainda o fora mais pela instabilidade do tempo.
Neste dia, os aldeões do concelho, em particular os do monte, vinham à Vila para se aprovisionar; mas também para comprar o necessário no grémio da lavoura (extinto no fim desse mês), nas lojas de ferragens, de tratar de papeladas ou pagar uma contribuição na casa grande (câmara municipal), de concluir ou empreender um negócio...
Havia os que juntavam o útil ao agradável e manducavam uma boa refeição. Na serra, os campos, os animais, mais os diversos afazeres exclusivos das mulheres, pouco tempo lhes deixavam para verdadeiramente cozinhar. Ademais, a penúria de alimentos frescos (carne de vaca e peixe, essencialmente) era uma franca frustração. Os refrigeradores, ou quaisquer outros aparelhos movidos a electricidade, eram inexistentes. A força motriz ainda não dera entrada na maioria dos lugares montanhosos do concelho.
Por esta razão, aqueles que tinham possibilidades, ao meio-dia, depois das aquisições liminares, aproveitavam a ocasião para degustar um repasto inabitual numa das tabernas da Vila. De tarde, davam mais umas voltas, consumavam as minúcias e, ao fim da tarde, encantados, regressavam à aldeia. Podia dizer-se que era um pequeno dia de festa para eles.
Os mais desfavorecidos, expeditos, compravam o devido e voltavam à aldeia antes do fim da manhã num dos numerosos veículos que, ilegalmente, faziam fretes no dia de feira.
Havia, também, alguns que baixavam à ribeira apenas para cortejar. A caneja (caleja) que desembocava no caminho das Carvalhiças (compreendia a parcela da actual rua de Santiago a partir da esquina onde se situa o café Alameda) era o bordel predilecto das parelhas fortuitas que se faziam e desfaziam no mesmo dia.
A partir do meio da tarde, os dois cafés do Largo da Calçada (Estrela e Stop) passavam a desempenhar a função de salas de espera para os utentes da Auto Viação Melgaço, mormente quando o tempo lhes contrariava o movimento, como nessa sexta.