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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

EMIGRAÇÃO & CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 04.11.15

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A FRONTEIRA COMO DESTINO

 

Melgaço traz consigo as marcas da emigração. O seu lastro prolongar-se-á, certamente, por longos anos. Ficou para perdurar e não há modo de o ignorar. Os nossos avós foram pioneiros na emigração para os países da Europa, designadamente para França. Quando o País acordou para este fado, já os melgacenses trabalhavam, há vários anos, para além dos Pirenéus. Primeiro, os do monte, logo os da ribeira. O êxodo foi de tal ordem que, em poucas décadas, a população concelhia diminuiu para quase metade (55%). Se o censo de 1960 registava 18 211 residentes, estes resumiam-se, no censo de 2001, a 9 996, ou seja, menos 8 215 habitantes em 41 anos. A envergadura do movimento avoluma-se ainda mais se recordarmos que, durante esse período, Melgaço, principalmente no que respeita às freguesias da ribeira, acolheu importantes contingentes de pessoas provenientes de concelhos mais ou menos vizinhos. A maioria veio suprir a carência de mão-de-obra provocada, precisamente, pelo vazio aberto pela emigração. Acorreram, sobretudo, caseiros para viabilizar as “quintas”, mas também “artistas” para a construção civil, comerciantes, empresários, empregados, funcionários… Esta afluência, que diversificou a origem geográfica dos melgacenses, assevera-se, aliás, uma das marcas indirectas da emigração.

Mas a emigração, no nosso concelho, não se distinguiu apenas por ter sido mais precoce e mais intensa do que nos demais. Apresenta outra característica que a individualiza: manifesta-se bastante elevada a proporção de emigrantes que regressam à terra natal, mormente entre aqueles que, mais antigos, pertencem à chamada  “primeira geração”. Terminada a lide no estrangeiro, demandaram as origens. A dimensão deste movimento expressa-se, de forma imediata, no envelhecimento da população, um dos mais pronunciados da Região Norte. O censo de 2001, registava, no concelho de Melgaço, uma relação de três idosos (pessoas com 65 ou mais anos) para cada jovem (até aos 14 anos). O triplo do País, quase o quádruplo da Região Norte! No caso das freguesias da Gave, Castro Laboreiro, Fiães e Cousso, este número ultrapassa os seis idosos por cada jovem! A intensidade da emigração, a saída dos mais jovens, a esperança de vida e a taxa de mortalidade são variáveis que não chegam para explicar a razão por que, em matéria de envelhecimento da população, Melgaço ultrapassa, por exemplo, a maior parte dos concelhos de Trás-os-Montes. A diferença radica, provavelmente, numa maior incidência do regresso, normalmente em idade avançada, dos emigrantes melgacenses. Os resultados de um inquérito aos idosos das freguesias do Alto Mouro, promovido em 2003 no âmbito da Rede Social, ilustram esta realidade: 90% dos homens com mais de sessenta anos foram emigrantes, o que nos dá uma ideia do impacto da emigração e do alcance do regresso. Trata-se de mais uma marca da emigração, a acrescentar a outras, tais como a distorção do ciclo anual de actividades, a efervescência do Verão e a letargia do Inverno, o desequilíbrio da estrutura produtiva, a propensão para o consumo, a renovação da paisagem ou a mudança dos hábitos e dos valores locais.

Para além da emigração, o presente livro contempla, também, o fenómeno do contrabando, outra actividade vinculada à fronteira, que, na sua ambivalência, ora se ergue como obstáculo, ora se oferece como oportunidade. Em Melgaço, o contrabando é uma tradição que remonta a tempos longínquos que nem a memória enxerga. Café, minério, metais preciosos, gado, marisco, electrodomésticos, tabaco, entre outros produtos, sucederam-se na travessia furtiva da fronteira pela mão de pequenas redes informais assentes na família e na vizinhança, mas também de organizações relativamente complexas. Ao contrabando de mercadorias, talvez se deva acrescentar uma outra “passagem clandestina”, a de homens e de mulheres rumo a destinos mais promissores.

A escolha da emigração e do contrabando para tema deste livro não podia ter sido mais pertinente e oportuna. Sintoniza-se, designadamente, com o desígnio local de promover um espaço museológico e de animação dedicado à “memória da fronteira”. Em Melgaço, tem vindo a ressurgir uma auspiciosa actividade cultural, um sobressalto decisivo para a construção da identidade do concelho e para o estímulo da sua vontade criadora. Boa parte da responsabilidade deste impulso anímico cabe às gerações mais jovens, a que pertencem o autor, Joaquim Castro, e o colaborador, Abel Marques. Pulsa-lhes nas veias a história da terra natal. A sua escrita é reflexiva, movida pelo entusiasmo e pela curiosidade, num misto de rigor e inconformismo. Disposição que não lhes tolda, todavia, o olhar, que se quer pautado por uma abordagem de cariz científico. Tiveram, nomeadamente, a sensibilidade de investigar o nosso “legado histórico” privilegiando fontes de ancoragem local: os jornais Notícias de Melgaço e A Voz de Melgaço, o jornalista melgacense N. Rocha e a memória de conterrâneos. Um dos capítulos mais interessantes do livro consiste, aliás, num relato de vida. Sabendo-se que “cada pessoa que morre é uma biblioteca inteira que arde”, urge programar e intensificar esta recolha de testemunhos e de histórias de vida para uma valorização previdente do património local.

Encarando a cultura actual como um rio que corre na “sombra dos dias velozes”, exposto, portanto, à vertigem do esquecimento, esta obra revisita o passado, procurando convocar “a vida intensa de outrora”. Não o faz, porém, com o propósito de uma contemplação saudosa. Procura-se, antes, que a memória concorra para dar corpo ao presente e alma ao futuro. Nesta perspectiva, o estudo é movido por um duplo ímpeto de apego e de inquietação.

Abre o livro com cinco citações, uma, por sinal, do poeta espanhol António Machado. Não resisto a transcrever o poema na íntegra:

Caminante, son tus huellas

el camino, y nada más;

caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se há de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

sino estrellas en la mar.

Se é certo que “caminhando, não há caminho, o caminho faz-se a andar”, não é mesmo verdade que convém, de vez em quando, olhar para trás para reconsiderar a “senda que nunca mais se há-de voltar a pisar”. Indispensáveis são, ainda, as “estrelas” para nos orientar. Como constata Walter Benjamim “estamos condenados a avançar com os olhos postos no retrovisor”.

São gratas as obras que, como esta, indagam as pegadas e sondam as estrelas do nosso devir colectivo. Ouvir, fotografar, revolver, contar e escrever o concelho de Melgaço, apresentar, sem exageros ou artifícios, a terra, as gentes e a história é, no meu entender, quanto baste para lhe prestar homenagem.

 

                                                                     Albertino Gonçalves