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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

GUERRILHA EM MELGAÇO NO SÉCULO XIX - III

melgaçodomonteàribeira, 03.10.15

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Lamas de Mouro

 

 

 

(continuação)

 

A vida do Tomaz das Quingostas foi cortada pelas balas da tropa no dia 30 de Janeiro de 1839 na quinta da Alota, em São Paio, quando das Quingostas, enquadrado por elementos da Ordem, vinha preso para Melgaço.

A sua morte foi um assassinato como tantos naquele tempo, legal se o quizerem ver assim, mas um assassinato chocante e condenável em todos os tempos e em todos os logares, quer fosse provocado pela tentativa de fugir aos captores, quer por inadvertidamente, como se diz também, ter pisado os calos ao soldado – o assassinato dum homem sem devassa nem pronúncia o envolverem nas malhas, sem qualquer julgamento lhe ser feito, sem nenhuma condenação ter sido pronunciada contra ele pelas justiças da terra.

Vai passado mais de um século sobre essa data e por estas redondezas ainda hoje se ouve uma ou outra voz depreciativamente aludir à serra e aos tempos do Tomaz das Quingostas.

E enquanto uns, contando desvarios e violentas façanhas, o apresentam como vulgar quadrilheiro e o retratam como ladrão atrevido e assassino sem qualquer escrúpulo, outros, lembrando generosidades havidas com pobres lavradores, atiram para as costas dos comandados com todas as violências e mostram-o, a ele, caçador apaixonado e papa léguas da montanha, homem de muitas e boas relações no meio, acarinhado pelos grandes e a tirar exclusivamente a ricos, unhas de fome, algumas dezenas de mil reis para ele mesmo os entregar, depois, a desgraçados cuja boca não trincava a brôa precisa para mourejarem nos campos todo o santo dia e parte da noite.

A sua vida está a pedir revisão e, se um dia se fizer, talvez desse processo póstumo, saia ele de muitas e muitas culpas ilibado.

E despejado, precisamente, daqueles actos mais degradantes atribuídos à sua vida, talvez ele surja aos olhos dos melgacenses, como os Marçaes e os Brandões das Beiras, com a nova aureola de figura política marcante e talhada pelos moldes daqueles tempos da forca miguelista de 1828 a 1833 e do regabofe e anarquia liberal de 1834 a 1838, militando nas hostes miguelistas contra os constitucionais e, depois, setembrista da última hora, com a tal guia passada pelo Conde das Antas, contra os carlistas, aproveitando a sua sombra, como é natural e humano, para manter em respeito a um ou outro recalcitrante, a este ou àquele empata folhas da victória da sua facção política.

O imperativo da história e a honra da terra ficam agora impondo essa revisão e para a encetar e para iniciar, quiçá, a reabilitação da memória desse melgacense, como um acto de justiça às suas possíveis virtudes cívicas, de tantos documentos existentes sobre Tomaz Joaquim Codesso, «comandante da guarda volante do Alto-Minho» apenas um escolho para ser ponderado:

 

   «Administração Geral de Viana

   1ª Repartição

   2ª Secção

   Nº 303

   Circular                               Ill.mo Sñr

 

Tendo sido informado de viva voz pelo General Comandante da Divisão de Observações das Províncias do Norte, o Visconde das Antas, que elle a bem do serviço público havia concedido uma Guia a Thomaz das Quingostas cumpre que V. S.ª quando pelo mesmo lhe fôr aprezentada a mencionada Guia observe as disposições que ella contem.

Deus guarde a V. S.ª Vianna 23 de Dezembro de 1837

O Administrador Geral interino

  1. R. Marreca

 

Ill.mo Sñr Administrador do concelho de Melgaço»

 

O bando de Tomaz das Quingostas lembra a fábula «O Lobo e o Cordeiro» e, como este, vai arcando com todas as culpas, da responsabilidade de outros, embora. Nenhum dos seus acusadores descobriu ainda as terras de Melgaço e as dos visinhos concelhos trabalhadas pelos sectários da usurpação na falaz expectativa de qualquer vantagem alcançada pelos Carlistas, em alguma das muitas províncias fronteiriças de Espanha, trazer para Portugal a oportunidade apetecida para uma revolta contra o governo português comparsarem também; nenhum dos seus evocadores procurou desenvencilhar as consequências trazidas para Melgaço pelo scisma religioso de 1832-1842 começado no Porto e especialmente agudo em toda a diocese de Braga, onde chegaram a exercer simultaneamente autoridade, sem autoridade, dois Vigários Capitulares, ou apreendeu as lutas surdas e as travadas nos púlpitos, surpreendendo assim esse irrequietismo de Melgaço provocado pelos padres miguelistas na quadra do Tomaz das Quingostas, pois «que no concelho de Monsão appareceu um frade da Falperra chamado Frei Sebastião, que dizia ter vindo de Roma, e ser portador de excomunhões do Santo Padre, para os Ecclesiásticos empregados pelo Governo Constitucional, o qual nomeou Delegados para absolverem os que se lhe apresentassem, ordenado-lhes que não communicassem com os não absolvidos, sendo um destes Delegados o ex-abade de Rouças», o P.e Diniz Ferraz de Araújo, cujo múnus desde 1834 a 1844 exerceram sucessivamente os encomendados P.e Manuel da Conceição, P.e João da Rainha dos Anjos Cunha e P.e Agostinho Manuel Cardoso; nem tão pouco nenhum dos seus detratores visionou todas estas terras do Alto Minho invadidas sucessivas vezes por guerrilhas espanholas e entre estas pelo bando de cento e cincoenta homens capitaneados pelo célebre Guillade, um dos apaixonados chefes do movimento carlista galego, que conseguiu entrar em Tui e em Vila Verde e foi morrer no ataque a Lugo, na conhecida Guerra de Los Siete Años.

Talvez, desde hoje, no espírito do melgacense culto fique abalada a tradicional ferocidade atribuída nas seroadas dos aldeãos a Tomaz Joaquim Codeço se, acaso, consegui humanisar esse vulto das lutas liberais melgacenses e, esbatido de muitas sombras, apresentá-lo na ribalta como um vulgar facioso daqueles tempos; mas nos recantos das aldeas, ninguém se iluda, a sua vida há-de continuar a entreter as horas dos serões, longe da história e afastada da verdade, porque a lenda do Tomaz das Quingostas está feita.

  

 

Melgaço e as Invasões Francesas 1807 – 1814

Augusto César Esteves

Edição do autor

Tipografia Melgacense

Melgaço – 1952

pp. 38-47