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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MEMÓRIAS PAROQUIAIS

melgaçodomonteàribeira, 27.06.15

 

Memórias Paroquiais de 1758:
uma «gramática» corográfica das terras


Publicam-se no presente volume, as Memórias Paroquiais de 1758, relativas às paróquias dos concelhos actualmente integrados no território do Distrito de Viana do Castelo. Dizer da valia destas fontes para o conhecimento da História local (paroquial) e regional portuguesa (provincial) e também da História Nacional é talvez redundante, tendo em vista o que foi dito e escrito na edição das Memórias de Braga (2003), e também dos textos que acompanham a presente edição. Sobre estas Memórias direi, simplesmente, que elas constituem os textos fundadores da História Paroquial: se o século XVIII (e de um modo geral os Tempos Modernos) é o tempo das Gramáticas e das Corografias e por elas se definem os métodos de abordagem do nosso conhecimento, Moderno, Humanístico (das Letras), Histórico e Científico, as Memórias Paroquiais são, neste âmbito, as Gramáticas corográficas (das paróquias) e logo por elas se constituirão as matrizes, os arquétipos, o método de abordagem da História e vida paroquial. A partir delas, até ao presente, não mais será possível fugir à consideração dos elementos diria do quadro gramatical, que define e dá corpo à realidade paroquial que de um modo tão completo foi fixado e construído nestes Inquéritos e nesta Memorialística. Neste contexto fixam-se os objectivos do projecto: relevar a valia e importância das fontes; ressaltar também a importância do quadro da paróquia/freguesia na nossa constituição histórica e social por ela, naturalmente, da composição nacional, construir e escrever a História local……

O Coordenador da Obra
José Viriato Capela

As Freguesias do Concelho de Melgaço nas Memórias Paroquiais de 1758
Alto Minho: Memória, História e Património


Edição Câmara Municipal de Melgaço
2005

 

A SAUDADE

melgaçodomonteàribeira, 20.06.15

Rua de Baixo - Ao centro, a casa de Iasousa

 

VELHO MELGAÇO

 

Quero cingir-te num longo abraço,
Descansar no teu peito a vida inteira;
Passar contigo a noite derradeira…
Fechar os olhos em teu doce regaço.

 

Porque só tu, só tu, velho Melgaço,
És para mim a sublime e verdadeira
Ama. Teu verde chão, pela vez primeira,
Viu meus pés darem seu primeiro passo.

 

Escuta, por favor, o meu apelo:
Abre, para mim, teu corpo inebriante…
Nele por fim vai minha alma fundir-se!

 

Se há mistério em ti, quero sabê-lo:
Conta-o a este cansado caminhante,
Que em teu níveo seio quer exaurir-se!

 

Os Meus Sonetos (e os do frade)
Joaquim A. Rocha
Edição do autor
2013
p.55

 

 

A FROTA 1930-1940

melgaçodomonteàribeira, 13.06.15

Vista sobre o Minho

 

MELGAÇO 1930-1940

 

CLARO QUE CONTRABANDISTA ERA PROFISSÃO

 


Claro que contrabandista era profissão. Sempre houve os exportadores e importadores, sendo que na nossa terra e outras terras raianas, era uma actividade ilegal mas lícita e consentida. Melgaço sempre sobreviveu ao contrabando. Com a livre circulação das mercadorias, agora, a nossa terra sobrevive das remessas dos emigrantes; o futuro é uma incógnita.
Voltando ao tio Emiliano, de quem mais nada havia a dizer: os galegos que transportava eram fugidos quer duma quer doutra situação. Houve perseguições e chacinas de parte a parte. Veja-se, "Por Quem os Sinos Dobram", de Ernest Hemingway.
Apareciam em Melgaço, escondidos, acobertados por amigos (não sei se o Figueirôa tinha alguma coisa com o assunto, talvez). Transportá-los não era difícil embora requeresse alguma habilidade. De admirar era eles se radicarem em Lisboa onde a PIDE era mais activa. Sair de Melgaço num Ford, modela A, de madrugada, não era problema. Estrada deserta. Não havia tanta fiscalização assim como se apregoa. Vivia-se com bastante liberdade. Ninguém perseguia ninguém, a menos que houvesse denúncia. Muitas, algumas, injustiças houve neste aspecto. Quando um não gostava de outro denunciava-o como comunista, sinónimo de anti-regime. Aí, sim, até que provasse estar isento de culpa sofria um bocado.
Quando eu era criança lembro-me que iam umas mulheres oferecer à tia Ana, açúcar branco e também de trigo branco, pão. Na altura em Melgaço o açúcar era escuro e fazia-se pão de milho em todas as casas; algum de trigo no forno do João Morais. Petins ou moletinhos de trigo e bôlas, de trigo e centeio.
Naquela altura tudo na Espanha era melhor que em Portugal, pelo menos o que chegava a Melgaço. Viana não tinha, então, grande significado e o Porto, a maior cidade próxima, era longe, muito longe; Vigo e Orense eram ali perto, de comboio que se pegava do outro lado do rio. O dinheiro para comprar os artigos espanhóis era o que os trabalhadores iam ganhar lá. Engraçado, não?
Anterior a esta época deve ter havido outros artigos que não são do meu conhecimento. Também não achei literatura a respeito. Depois rebentou a guerra civil e a consequente escassez de alimentos na Espanha foi grande. Então, de Melgaço ia tudo que representasse mantimentos, produzidos na terra ou vindo de fora, especialmente café. Os inescrupolosos misturavam tudo o que pudesse aumentar esse produto. Torravam e trituravam milho escurecido com óleo queimado de automóvel, chicória, cevada e não sei que mais.
Antes de vir para esta terra fui à festa a Orense com o Manuel Macarrão, pai do Miguel. Entramos num bar e a primeira coisa que ele me avisou foi: "Não tomes café. É feito com as merdas que mandamos para aqui". Ele inclusive. Em troca desses produtos alimentícios vinha a prata e o ouro. A moeda não valia nada. Seguiu-se a guerra mundial. Para não desagradar ao "seu aliado" inglês Portugal exportava tudo através do contrabando, agora não tanto mantimentos que também não os tinha, mas tudo que pudesse transformar-se em produto bélico que a Alemanha precisava. Volfrâmio e Xelite escavados em Castro Laboreiro e Monte da Agueira; os cigarros americanos, a tripa seca vinda da Índia, pedras de isqueiro, continuava o café e o sabão, este o maior potencial. O sabão feito de "judeus" escasseava na Alemanha e o feito de cães em Portugal ia às toneladas. O ouro e a prata continuavam a ser a moeda e já agora as pesetas que começavam a representar alguma coisa. Após guerra, a Espanha por ter sido aliada da Alemanha foi isolada comercialmente. Tudo continuou faltando. A frota automotora era velha; os carros caindo aos pedaços eram recuperados com as peças que de Portugal iam como contrabando. Nesta operação de vender peças de carro o Miguel Macarrão juntou seu primeiro dinheiro. Também peças de bicicleta que o Manuel Castro ia buscar ao Porto. Embora ilegais nenhuma destas operações eram ilícitas muito menos imorais. Algumas pessoas, entretanto, metiam os pés pelas mãos. Todos queriam ficar ricos com o contrabando. Durante o racionamento havia estabelecimentos encarregados de distribuir aos demais, as mercadorias. Entregavam uma pequena parte e o restante vendiam para os galegos. Um sapateiro tradicional foi indicado para receber a sola e cabedais que distribuiria aos colegas para estes continuarem a botar tacões e meias solas. Vendia para Espanha e deixava os colegas a ver navios.
A penicilina e estreptomicina foi o único caso escandaloso. O Lílí do Teodorico foi o bode espiatório. Na Espanha não havia esse medicamento. Os Estados Unidos mantinham o isolamento (só o levantaram e ajudaram a Espanha quando, durante a guerra fria precisaram de instalar bases aéreas). A penicilina chegava a Melgaço por requisição médica destinada aos pacientes graves. Não havia como desviar esse produto. Então, certas pessoas que ainda existem, compravam das famílias dos pacientes os frascos vazios. Para que queriam eles esses frascos?... A resposta está no livro e filme "O Terceiro Homem". A não ser esta nódoa da penicilina tudo o mais sobre contrabando pode ser tema de conversa por não envergonhar quem quer que seja. Toda a população da vila de Melgaço, mas toda mesmo, duma forma ou de outra esteve envolvida nessa actividade durante os ano 40.
O meu pai que não tinha habilidade para essas coisas, nem os filhos, emprestava a sua casa para o Júlio Coelho, de São Gregório, guardar os volumes de cigarros americanos que chegavam pelo correio. Em troca recebia uma vez ou outra uma garrafa de vinho do Porto. Coitado do Augusto Félix! Também em nossa casa eram guardados pacotes com remédios, do Adolfo, marido da tua tia Ernestina. Deu-se um caso curioso, assás hilariante, que foi tema do anedotário. Descoberto que pelo correio podia chegar a Melgaço tudo que se quisesse, era ver pacotes e pacotões de cigarros e outros produtos chegarem em profusão. O comando da Guarda Fiscal deu-se conta da actividade postal e tomou providências. Enquanto só o destacamento local sabia da coisa não teve impedimento. O comando geral, então, mandou montar guarda à porta do correio e apreender todas as mercadorias que não fossem para consumo local.
A anedota chegou ao conhecimento do comando: "o chefe dos correios de Melgaço está tão mal de saúde que lhe está saindo a tripa por detrás".
A tripa seca era um dos artigos mais transportados.
A residência do chefe do correio era na traseira da estação e de noite, e até de dia, facilitava a saída das encomendas por ali. Veio a ordem: fechar e cravar todas as janelas e portas da residência. Foi a coisa mais absurda que já se viu. O chefe da estação ficou quieto. Se resmungasse era capaz de perder o emprego. E viveu algum tempo emparedado. Mesmo assim, com a conivência dos guardas que fingiam vigilância, as encomendas continuavam saindo.
Nessa euforia frotista, como era conhecido o contrabando (se por acaso não conheces o termo toma nota para futura informação), uns poucos ficaram ricos, alguns remediados, a maioria, porém, os transportadores que levavam as mercadorias às costas até à beira do rio, o pouco que ganhavam gastavam a seguir no café do Hilário ou do Manuel Castro. Pobres diabos que por momentos gostavam de se sentir importantes.


Rio, 31 de Março de 1996
Correspondência entre Manuel e Ilídio

 

PODIA SER UM PARAÍSO

melgaçodomonteàribeira, 06.06.15

À esquerda do rio Laboreiro, Espanha; à direita, Ribeiro de Baixo

 

TERRAS DO FIM DO MUNDO

 

Álvaro Domingues / 11 Abr 2015

 

Pelo fundo de encostas abruptas, praticamente esculpidas em pedra, corre o rio que as escavou e que foi deixando, num leito também de pedras, uma cicatriz que aparta uma e outra margem. Por estas bandas, desde os alvores da demarcação do reino e das suas fronteiras, também se disputaram terras de pasto e lameiros.

Numa nesga à borda de água fica o fundo do lugar, onde ainda moram alguns dos descendentes de uma comunidade que, na outra margem, aqui deixou uma pegada de campos férteis, onde a cheia do rio não subia e que são um misto de terra desprendida das vertentes e séculos de estrume de animais. Essa geometria de campos minúsculos desenha-se entre muros de pedra solta que o rio rolou e poliu; assim se protegiam as culturas do passo dos animais que debandavam os pastos pelas encostas e se iam espedregando os campos para o lavrar dos arados. Pelo Abril, as cerejeiras em flor iluminam-se como aparições. Podia ser o paraíso.

Não é. Nunca foi. Geria-se a escassez e o pouco que a terra dava com o muito que era preciso trabalhar e calcorrear por montes e tojos. Por serem terras do outro lado do rio-fronteira, noutro país, nem sempre as coisas eram serenas. Tudo era longe por caminhos a pique.

Agora reina a calmaria. Quando algumas das comodidades de hoje chegaram, já o povo tinha emigrado e o que mais há nestes dias são casas vazias, umas velhas, quase ruínas, outras quase novas, quase sem estrear.


Publicado em: JORNAL UNIVERSITÁRIO DO PORTO

http://juponline.pt/2015//04/terras-fim-mundo/