O NASCIMENTO DO MITO IGNES NEGRA - V
Codex Manesse - Heinrich von Breslau
(continuação)
Ao mesmo tempo mandou que nas imediações se cortasse madeira, e se acarretassem materiaes para se construírem duas escadas e uma bastida, formidável machina de guerra sobre rodas, de temeroso effeito contra as praças fortes.
Descreve Fernão Lopes minuciosamente essa bastida, muito larga de roda a roda, e de padral a padral; com os seus três sobrados madeirados de pontões, para serem guarnecidos de homens de armas; com estrados de mui grossos caniços para se andar por cima; com escadas de alçapão e nos pontões superiores, três mil pedras de mão, que mandaram apanhar pelas regateiras. Havia também trebolhas cheias de vinagre para evitar o fogo, e seis grandes caniços forrados de carqueja, assim como vinte e quatro couros verdes de boi para guardar o fogo que viesse.
Era um rudimento do moderno tank; era o precursor d’essa machina de guerra, que nos campos da Bélgica está actualmente exercendo a sua terrível acção devastadora.
Esta de D. João I, que levou quinze dias a construir, era mais modesta e de mais acanhados recursos. Mas o seu effeito, ainda antes de manobrar, foi eficaz, pois os de dentro, que assistiam aterrados a fabricação do aparatoso engenho, apressaram-se a pedir tréguas, propondo que João Fernandes Pacheco conferenciasse com Álvaro Pães. Por mandado de El-Rei chegou-se o Pacheco à barbacã, e de dentro, encostado ao muro, falou-lhe o comissário castellão. Longo espaço de tempo durou esta conversação entre os dous guerreiros arvorados em plenipotenciários. E emquanto elles falavam, assediados e assediadores suspenderam as investidas, acudindo ao ânimo de uns, (os mais pacíficos) esperanças de uma concordância; refervendo no de outros (os mais belicosos) desejos impacientes de recomeçar a pugna. D’estes o mais irreprimível era o da Arrenegada que ardia em sanha. Sabendo que os dous chefes não se tinham accordado resolveu então provocar um combate singular, pois sabia que entre a gente do arraial se achava um contendor digno d’ella.
Era uma mulher d’aquella região a quem chamavam Ignez Negra.
Negra, por apellido da família? Talvez!
David Negro se chamava o rabi de Castella que urdiu o enredo contra D. Leonor Telles. E Affonso Pires – o Negro – era o escudeiro de Nun’Álvares na véspera de Valverde.
Famílias com o nome de Negrão e Negreiros tem havido em Portugal, pertencendo à primeira no século XVIII, o poeta da Arcádia – Almeno Sincero.
Ou seria antes a nossa Ignez, negra, porque a sua pelle exageradamente trigueira como a da Sulamite do Cântico dos cânticos, (nigra sum sed formosa) contrastasse com a das suas conterrâneas, quasi todas alvas, de olhos claros e cabellos aloirados, revelando a origem celta das nobres raças?
A iconografia portugueza é assaz pobre. E, se nos faltam retratos de tanta figura predominante, não é maravilha que a galeria das mulheres illustres careça de qualquer documentação acerca das feições da modesta, mas valente portugueza dos arredores de Melgaço.
Figuramol-a, porém, por artifício da imaginação, com encrespado cabello da cor do seu apellido; olhos ígneos como o seu nome de Ignez; a pelle acastanhada, adusta e curtida pelo mordente sol dos campos, na ceifa. Magra, musculosa e com farto buço a atapetar-lhe o lábio superior. Peito chato como o das amazonas. Typo levemente aciganado e plebeu, mas não destituído de encanto. E no seu todo o interesse que provoca sempre uma personalidade fortemente accentuada.
Visitando a casa onde segundo a tradição elle habitou depois da sua proeza, – a Venda da Angelina – (hoje um prédio modernizado), ou percorrendo as ruazinhas estreitas que descem até à porta de D. Affonso, encontrámos algumas moradoras ao soalheiro, que, por comparação retrospectiva, nos ajudaram a recompor uma effigie da Ignez Negra, porventura sua remota parenta. Devia ser assim como a evocamos!
Quando lhe chegou aos ouvidos o desafio da Arrenegada acceitou prazenteiramente o repto.
Entretanto El-Rei enviara à Rainha recado para que viesse. Os engenhos estavam concluídos, e quasi aplanado o caminho pelo qual se devia fazer rodar a bastida e encostál-a às muralhas.
É possível que o mensageiro anunciasse também no Mosteiro de Fiães, onde D. Filippa se achava, o desafio entre as duas mulheres de Melgaço.
E isso seria certamente escutado com curiosa attenção pelo mundo feminino que rodeava a Rainha. Ávidas deviam estar por certo as suas damas e cuvilheiras, de distracções e recreios, tão escassos n’aquella solidão.
E logo entre o mulherio quantos comentários sobre o projectado duello! Nas velhas, altos escarcéos, e motivo para ralharem de tão descomposta escaramuça. Nas novas, grande jubilação com a espectativa das comoções.
Por isso quando n’aquella manhã do princípio de Março a Rainha, com a sua Corte, se apromtou para descer de Fiães a Melgaço, eram agitadas as discussões acerca do projectado combate.
A primavera anunciava-se promettedora. O ar gelado da manhã bafejava a pelle do rosto das senhoras, que, ao montarem se embuçavam friorentas nos seus manteus e biocos.
Na descida, quasi a pique, da íngreme ladeira, que durante uma hora percorreram, caminhando pelos carreiros do monte escalvado, algumas das boas donas iam só attentas ao perigo, que offerecia o marchar hesitante dos cavallos sobre os pedregulhos das veredas agrestes.
E quando as montadas punham o pé com menos segurança, o que trazia a iminência de um tropeção, ouviam-se exclamações afflictas das mais timoratas, provocando risadas escarninhas entre as resolutas. Outras olhavam maravilhadas a paysagem deslumbrante, o panorama das extensas ondulações que formam o berço delicioso em que se espreguiça voluptuosamente o rio Minho.
Além à esquerda os montes de Pernidêllo, em cuja verdura se aninhava o conventinho de Paderne. Mais ao largo Monsão, a pátria de Deu-la-Deu. E, como a manhã era clara, lá muito ao longe, quasi se distinguia a nobre Valença. Para a direita inferiormente, e já em terra extranha, as pequenas povoações gallegas tão maneirinhas… que apetecia dal-as como brinquedo a uma creança!
A maior parte, porém, da comitiva só tinha olhos para a villa de Melgaço, alli em baixo com a sua airosa torre quadrada, que uma coroa de ameias enfeitava, e para a povoação em redor della, mettida nas faixas das muralhas defensoras, promettendo um espectáculo attrahente, quando se rendesse à força, como fêmea dominada pelo seu legítimo senhor.
Por de fora d’essa muralha estendia-se em arruamentos de tendas de campanha o arraial português, sobressaindo a barraca elegante tomada em Aljubarrota aos Castelhanos, que já servira em Ponte de Mouro para firmar a alliança ingleza. E, informe, como um animal antediluviano, destacava-se a medonha bastida, prompta para atacar.
(continua)