O NASCIMENTO DO MITO IGNES NEGRA - III
Casamento de D. João e D. Filipa
(continuação)
O rancho conturbado caminhava silenciosamente, sob a opressão de agourentos presságios.
Chegaram ao paço do Curval. Ali o estado do Rei não era de molde a tranquillizar, ou desfazer cuidados.
Quando a Rainha e o Duque seu pae viram o enfermo, vencido pela febre «tão fraco e sem esforço, ficaram nojosos e tristes».
Os cirurgiões interrogados temiam que a prostração em que a quentura deixara o Rei o levasse em pouco. Ouvindo isto, a desditosa Rainha, atormentada e exhausta com a violência da jornada e das commoções, sentiu que alguma coisa se despedaçava dentro de si… e moveu uma creança.
Com este parto prematuro e desastrado, iam-se todas as alegres esperanças, desmoronava-se o edifício da sua felicidade sonhada, e… (cousa rara na vida) da sua felicidade realizada.
Via-se sósinha, casada de pouco em terra estranha, fallecer-lhe logo assim tudo o que a fortuna lhe trouxera – e bem se tinha por mal aventurada entre as mulheres do mundo –. Chorava, pedindo à morte que a levasse primeiro.
Na câmara próxima, onde os lamentos da Rainha, por serem energicamente suffocados, não chegavam, o Rei, cônscio do seu estado, tomava providências.
Mandava chamar o Condestável, agora ausente no Alem-tejo. Fazia testamento. E dispunha-se a morrer perdoando a alguns fidalgos que mandara, tempos antes, encarcerar.
Era solemne o momento. A Rainha, receosa de que a morte lhe roubasse o marido, como lhe roubara o filho, levantou-se e, embora gravemente combalida, arrastou-se até ao quarto onde o Rei agonizava.
Não sabia reter as lágrimas. A voz embargava-se-lhe na garganta. Olhava-o, sem articular uma palavra, tomada d’aquella ânsia com que nas occasiões decisivas tentamos arpoar um vislumbre de esperança.
Comtudo os olhos do Rei, semi-cerrados, e a sua respiração offegante não permittiam illusão!...
Então aquella mulher, a quem o destino parecia ter talhado uma tão radiante missão, sentiu-se miseravelmente infeliz, e cahiu junto à cama do moribundo n’uma convulsão de choro, implorando a protecção de Deus e da Virgem Maria.
Assim se conservou largo tempo…
Pelas janellas entreabertas ouvia-se de quando em vez o carpir do povo, sempre exhuberante nas manifestações do seu sentir. Os lamentos da multidão, impressionada com os presumíveis sinistros casavam-se com as preces roufenhas dos sacerdotes, e com os soluços da Rainha.
Sentia-se o destino da Nação suspenso por um fio…
A autonomia de Portugal dependia de um alente d’aquelle homem, estendido n’um catre estreito, junto do qual o vulto de D. Filippa continuava rezando…
Passaram horas…
Como se a mysteriosa acção das preces, e o esforço super-humano d’aquelle coração de mulher posto n’um só affecto, operassem mais eficazmente que as drogas ministradas pelos physicos, o arquejar do robusto arcabouço foi-se tranquilizando, os olhos começaram a descerrar-se, e o enfermo entrou a renascer para a vida…
Estava salvo D. João I!
Foi do Curval convalescer a Coimbra, onde a Rainha também se libertou do pezadelo que lhe opprimira o ânimo. Recomeçou para os dois o idyllio interrompido.
De breve dura, porém, havia de ser o repouso, nem D. João I era homem que se deixasse ficar em lazer descuidado, quando tantos negócios lhe sollicitavam a atenção.
Cumpria despachar o sogro que começava a ser um estorvo sério, e cuja empreza ia perdendo probabilidades de êxito. Cumpria reunir Cortes para a resolução de alguns negócios de Estado. Cumpria caminhar sobre Melgaço, única praça que no Minho ainda conservava voz por Castella.
Foi resolvido partir logo, de Coimbra para o Porto, onde El-Rei e a Rainha, que o acompanhava, despediram o Duque de Lancastre e a sua reduzida hoste, que, em seis galés, numa clara manhã de fins de Setembro largou da foz em fora, para Bayonna, então ingleza.
Desembaraçado assim do hóspede, e aviados outros assumptos, que se antolhavam urgentes, dirigiu-se D. João I para Braga a reunir as Cortes.
Foi durante ellas que D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável, teve notícia da morte da sua mulher. Correu ao Porto onde ella fallecera, fez-lhe exéquias solemnes, mandou a filhinha para Lisboa à guarda da avó – Iria Gonçalves – e, arrumadas assim as cousas domésticas, voltou para Braga onde o reclamava o interesse do Estado, verdadeiro fulcro do seu espírito.
Negócio do Estado era também por certo e de alta importância para D. João I, essa viuvez de Nun’Alvares.
Grande conchavador de casamentos, até mesmo sem audiência prévia dos interessados, El-Rei resolveu logo, de accôrdo com a Rainha, casar o seu Condestável com D. Beatriz de Castro, filha do conde D. Álvaro Pires, «uma donzella assaz formosa e bem filha d’algo!» Próxima parente da linda Ignez, collo de garça, possuía por ventura o mesmo poder de encanto, que seduzira El-Rei D. Pedro. Este viúvo, porém, era pouco susceptível de se deixar captivar com graças femininas.
Avesso por índole ao tracto conjugal, não lhe soffria também o ânimo independente aquella imposição de um consórcio, assim improvisado.
Resistiu bisonhamente – ao Rei com uma simples negativa; à Rainha, pela qual professava um respeitoso affecto, respondeu esquivamente: «Para offerecer a D. Beatriz os braços, era preciso que estivessem desarmados e não convém ainda largar a espada.»
Excusa de guerreiro! Sentir de monge!
Desobrigado assim, e livre da teia em que podia ser enleado, levantou voo para entre Tejo e Guadiana, onde a fronteira estava ameaçada.
D. João I conhecia o seu irmão de armas. Era inútil insistir, podendo até qualquer teima provocar alguma d’aquellas desavenças, que entre os dois às vezes surgiam.
D. Beatriz, se acaso edificara n’aquelle terreno o castello da sua felicidade, viu-o desfeito em névoa, antes mesmo de o habitar. E continuou, (até que ao deante levou outro destino) a ser ornamento na Corte de D. Filippa, acompanhando-a como as outras na jornada que logo El-Rei emprehendeu sobre Melgaço, e onde por certo foi das que mais aplaudiram a aventura da aguerrida Ignez Negra, que logo vamos presencear.
(continua)