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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VIDA NO CAMPO - II

melgaçodomonteàribeira, 14.03.15

Álvaro Domingues

 

(continuação)

 

Mais tarde, porém, a sua rotina fotográfica desviou-se das morfologias e taxionomia do povoamento e de outras ferramentas de análise geográfica, que no entanto nunca deixou de estudar, como demonstra o livro Políticas Urbanas II que editou, com Nuno Portas e João Cabral, na Gulbenkian, em 2011, depois de um estudo semelhante e com os mesmos parceiros de 2004. E não faltam ensaios e conferências no seu currículo académico, hoje exercido na Faculdade de Arquitetura do Porto. O olhar de Álvaro Domingues, porém, virou-se para essa fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o urbano, entre o campo e a cidade. Aos poucos, os seus artigos encheram-se de imagens que documentavam uma profunda “hibridez”, sendo essa, na sua visão, uma das principais marcas que caraterizam Portugal. De início, não adotou nenhum método, nem sentiu a obrigação de percorrer Portugal de lés-a-lés. Apenas ligou o “radar”, essa atenção pessoal e transmissível que nos liga ao mundo, e esperou que a realidade inundasse a sua máquina fotográfica. Em suma: deixou-se surpreender. E as surpresas foram muitas, em particular aquelas que punham em causa o “discurso oficial” da geografia e revelavam as “nossas compreensões”.

Em a Rua da Estrada, o 1º volume desta tetralogia e ponto de partida para uma curta-metragem homónima de Graça Castanheira (ainda em rodagem), Álvaro Domingues mapeou o modo estatisticamente mais comum de urbanização: a estrada. “Essa coisa mal-amada pela mesma razão de muitas outras coisas cuja identidade era flutuante, não encontrando estabilidade por aquilo que é, mas sim pelo que deixou se ser ou ainda não é”, descreve. “Quando as estradas eram estradas, não havia os problemas que hoje há. Estradas eram estradas, boas ou más, e ligavam povoações, vilas e cidades. À beira da estrada havia fontes para matar a sede de animais e pessoas; havia miradouros, valetas e sombras para descanso e merendas”.

Mas o que a sua objetiva fixava era muito diferente: “A rua da estrada perdeu quase toda a poética e a estética da lonjura e evasão. Já não é o traço do asfalto que se acomoda à morfologia da paisagem, as subidas gloriosas, os altos com vistas de perder a respiração, o serpentear ao longo de um vale ou um traço que se funde no horizonte de uma planície”. Pelo contrário, como sublinha, apoiando-se em conceitos que foi buscar não só à Geografia, mas também ao Urbanismo, à Antropologia, e à Sociologia, “a estrada-rua mistura tudo num conflito permanente, camiões e peões, carros e autocarros, motorizadas e patins em linha, cruzamentos com outras estradas. Rápida de mais para quem lá vive, lenta e congestionada para quem lá passa. Um desassossego que não se resolve com passadeiras, semáforos, multas, rotundas e outros truques de acalmia de tráfego”.

Neste trajeto, o que mais despertou a sua atenção foram as edificações que cresciam ao correr da via pública, respondendo às necessidades humanas, num emaranhado de estilos, atividades agrícolas, industriais e sociais. Percurso semelhante será feito no 3º volume da tetralogia, intitulada Volta a Portugal, e que tem como ponto de partida as míticas caravanas de ciclismo e as paisagens que então se revelavam na comunicação, radicalmente transformadas nos últimos anos, como as planícies da Amareleja, em pleno Alentejo, que atualmente acolhem a mais alta tecnologia na área dos painéis solares. O último tomo abordará, por seu turno, esse “buracos negros ou túneis do tempo a que chama-mos auto-estradas”, como diz a brincar. Terá como título Entre nós: de auto-estrada.

Não se pense, contudo, que este trabalho de cartografia tem na sua essência um olhar exterior, como aqueles estudos sobre a música pimba ou as festas populares, mais assentes na paródia do que na compreensão. Ao contrário de muita opinião pública, Álvaro Domingues não adjetiva esta malha urbana e rural de “caótica” ou “feia”, fruto de uma construção civil desenfreada (que reconhece haver) ou de uma corrupção tentacular (que diz existir em todas as sociedades). “Não podemos dar como explicação o que precisa de ser explicado”, afirma. “Estamos perante realidades complexas e para as compreender precisamos de novos instrumentos. Somos uma sociedade pós-moderna que nunca chegou a ser moderna, uma economia pós-industrial sem nunca ter sido industrial. Temos um discurso de país rico quando na realidade não o somos”.

Talvez seja mais correto afirmar, como sugere, que “Portugal é o país mais exótico do mundo”, fazendo jus à sua condição de semi-periferia, segundo a conceção de Boaventura de Sousa Santos. E, para Álvaro Domingues, há nele beleza suficiente para “não termos problemas de autoestima”. Basta deixar cair as imagens mitificadas e renovarmos o olhar e o saber. É com essa intenção que está a trabalhar num novo conceito, o de Paisagens Transgénicas, que enunciou pela primeira vez na coletânia de ensaios Arquitetura em Lugares Comuns, também uma edição da Dafne, como a A Rua da Estrada e Vida no Campo. Um termo que criou para “ultrapassar enviesamentos, bloqueamentos e ilusões de conhecimento em torno dos conceitos vagos de paisagem – paradoxalmente considerados claros e classificáveis em taxinomias estáveis –, tentando diminuir o ruído de fundo e a cacofonia existente, para melhor perceber o que de facto é mais importante no mal-estar social que se exprime no discurso e nas representações sobre a paisagem tornada assunto e bem público, e elemento de identidade e distinção face aos processos acelerados da globalização-massificação e do sentimento de perda de identidade”. O mundo é composto de mudança. A paisagem também.

 

Texto publicado no JL 1081, de 7 de Março de 2012

 

Retirado de: A Volta do Parafuso

 

http://voltaparafuso.blogspot.pt/2012_03_01_archive.html