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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VIDA NO CAMPO - I

melgaçodomonteàribeira, 07.03.15

 

A FALSA DICTOMIA ENTRE O RURAL E O URBANO

DE

 ÁLVARO DOMINGUES

 

 

É um livro em tudo original, até na sua edição. Tem uma chancela – a Dafne – mas esteve em subscrição pública para recolher o dinheiro necessário à sua publicação. Vida no Campo de Álvaro Domingues, 52 anos, prof. da Faculdade de Arquitetura do Porto, é tão híbrido como as paisagens que descreve. Para evidenciar a fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o urbano, o especialista em Geografia Urbana socorre-se de fotografias suas, poemas alheios, teses comuns e análises próprias. Um livro feito de retratos de um país composto de mudança.

A brincar costuma dizer: “Fui primeiro a Paris do que a Lisboa”. Poderia ser sobranceria, ou até sinal de um certo cosmopolitismo bacoco. Mas não. É apenas a sua forma de desmitificar algumas ideias feitas, enraizadas na sociedade nas últimas décadas, fruto da propaganda do Estado Novo e das idealizações turísticas do século XXI. Melgaço, onde nasceu, em 1959, “nunca foi, nem é, esse mundo remoto e desligado da terra como muitas vezes é pintado”. Dessa terra no limite norte de Portugal, lembra, partiu o primeiro autocarro semanal para Paris. E nos seus tempos de criança era tão frequente falar-se da “próxima vaca que ia parir”, como da “atualidade da Nova Caledónia”, onde morava um conterrâneo. Ao quotidiano difícil da vindima e do trabalho da lavoura, sobrepunha-se um manto diáfano de urbanidade da diáspora, animado pelas notícias da emigração e das mundividências que se cruzavam.

É precisamente essa realidade multifacetada, menos linear do que se possa supor, que Álvaro Domingues tem tentado divulgar em investigações universitárias e, agora, numa tetralogia que cruza fotografia e ensaio. Sempre com a ruralidade debaixo de olho. No conjunto, estes livros são “uma metáfora sobre a perda do Portugal Rural e um antídoto contra o mau viver pelo despovoamento e abandono, ou, noutro registo, pela profunda metamorfose que vai lavrando pelo país dos (ex)agricultores com o desaparecimento das suas práticas ancestrais, modos de vida, território e paisagens”, como o autor nos explica, citando o que escreveu na introdução do 2º volume da tetralogia, Vida no Campo, pronto para ser publicado. E acrescenta: “Esta não é uma questão menor. Como a língua ou a história, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa comum. E não há paisagens para sempre. Elas são o registo de uma sociedade que muda e, se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá disso sinais, para além de pouco tempo e muito espaço para compreender ou digerir as marcas e formas como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços”.

Zona de pasto ao lado de grandes barragens, ovelhas num bebedouro à beira de uma estrada, vivendas com lojas no piso térreo, ruínas postas à venda em grandes empresas de imobiliário, viadutos que atravessam aldeias, campos de cultura colados a áreas industriais, uma corda de roupa estendida entre dois pilares de uma estrutura rodoviária, cabos de alta tensão sobre casas e campos ou alfaias agrícolas atrás de estádios de futebol com projetos arquitetónicos premiados internacionalmente. Eis algumas das suas imagens – são cerca de trezentas em Vida no Campo – que Álvaro Domingues captou de norte a sul do país, de forma a evidenciar “a falsa dicotomia entre o rural e o urbano”. Ou, como diz: “Continuar a insistir na dualidade urbano/rural é como olhar para a sociedade e território com conceitos desfocados. A realidade é que os conceitos são apenas invenções para tornar claro o que é complicado”. Ou, como reforça: “Vida no Campo” é sobre isto tudo: mitologias do último país rural da Europa que persistem em inscrever-se no imaginário coletivo e, ao mesmo tempo, as imagens bucólicas e os destroços desse mundo perdido, variando entre calamidades e incêndios, resorts para todos os gostos com muita relva e espaço verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por todo o lado”.

Neste cenário, uma conclusão é óbvia: o trauma da perda de um mundo rural está longe de ser resolvido ou apaziguado. “É também disso que se trata neste jogo de espelhos onde não se percebe exatamente o que é que objetivamente se perdeu, mas muitos creem que foi o próprio paraíso, a versão bucólica e pastoral do mundo rural mais que perfeito, como Adão e Eva antes da serpente”. Álvaro Domingues não tem dúvidas. Neste caso, como na psicanálise, Freud explicaria que estamos perante o trauma ou o “mau luto” pela perda da paisagem que deixou de ser o que supostamente era. O pensamento também atormenta a paisagem.

Foi um vizinho de Melgaço, colega da Faculdade e viajante por terras das Américas, que comprou para Álvaro Domingues uma primeira máquina fotográfica, selando, sem o saber, o destino do amigo. Paga em prestações com os “primeiros dinheiros que ganhou” – começou a dar aulas quando ainda frequentava o 3º ano da licenciatura em Geografia, na Universidade do Porto – essa Nikon passou a ser uma companhia diária. Os primeiros disparos surgiram sem intenção específica, guiados apenas pelas regras do ofício e as lições de Orlando Ribeiro. “Para ler a paisagem, é preciso ganhar cota”, dizia o geógrafo aos seus alunos. E Álvaro Domingues não deixou de subir a montes e colinas, elevações e penhascos para, com o olhar distanciado, perceber não só como o homem modificou a natureza, mas como esta também o condicionou.

 

(continua)