AUTO DA LADINA IV
Monte
(Enquanto se muda de cenário, o narrador esclarece o público)
Parte com outro soldado
para os montes, à procura
desse ser endiabrado,
para a meter em clausura.
(1º guarda – dirigindo-se ao outro guarda)
Havemos de a encontrar,
nem que seja no inferno!
Sem ela, não vou voltar:
Nem lhe vale o pai eterno!
(Narrador – com ar sério)
Montes e vales correram…
Fardas rotas, pés descalços;
quanta fome eles venceram…
quantos foram os percalços!
Aos dias, seguiram dias…
Eles, sem nada encontrar!
‘sp’rança e ódio, os guias;
um prestígio a reencontrar.
Em certa manhã nebulosa,
a sorte bateu-lhes à porta.
(2º guarda – falando para si próprio em voz alta)
Como a sorte é caprichosa,
mas que venha é o qu’importa!
(Narrador – gesticulando)
É o guarda florestal
que a Ladina apercebe.
(Guarda Florestal – apontando)
Ela está no matagal,
fugiu de mim como uma lebre.
(Narrador – fingindo estar comovido)
E logo os três a cercaram,
dando-lhe voz de prisão:
seus cães-lobos mandaram
trazê-la à sua mão.
(1º guarda – agarrando a mulher sem parcimónia)
Até que enfim, mulher maldita,
nunca mais me escaparás!
(E dirigindo-se ao outro guarda)
Traz-me, Toino, aquela guita,
atêmo-la aqui atrás.
(Narrador – com ar triunfante)
Meteram-na na carripana,
e ataram-na, bem atada.
(2º guarda – de punho fechado)
Nunca mais foges, cigana,
a aventura tens findada!
(Ladina – com um olhar furioso)
Não o penseis, desgraçados,
filhos de uma mãe impura;
já a mais espevitados…
eu cavei a sepultura!
(E, sem ninguém o prever, atira-se do jeep abaixo, e rola por uma ribanceira enorme. Pelo caminho a corda que a atava deu de si. O Narrador, atónito, diz):
Quando foge, esbaforida,
poço profundo avista;
e com desdém pela vida
mergulha sem deixar pista!
Os guardas, sem hesitar,
despem-se num segundo;
cumprindo, da lei, preceito:
o castigo é neste mundo.
A Ladina, como um gato,
como filha de Pluto,
mesmo dentro do regato,
traça um plano arguto:
Deixar-se passar por morta,
castigá-los no seu brio;
o gozo é o que importa
a este ser de sangue frio!
Já em terra, bem prostrada,
corpo sem vida ali jaz;
diz um guarda: -«que maçada,
mais um problema nos traz».
Improvisam forte maca,
da sua roupa lhe vestem;
e sem ganhar mais pataca,
caminho íngreme investem!
Horas e horas suando,
mal dizendo sua sorte;
corpo «morto» carregando
levando a própria morte!
Finalmente vê-se a estrada,
poisam-na com certo cuidado;
pele dos ombros rasgada,
lombo forte castigado!
Nesta altura, a Ladina,
filha de deus gozador,
levanta-se do estupor
e diz-lhes, tal Agripina:
Filhos pobres do homem-deus,
seres sem inteligência;
tolos, porcos e sandeus,
falhos de toda a ciência!
Morta… eu? Génio do mal,
filha do olímpico Zeus,
senhora do vendaval…
dos oceanos, dos céus!
Tudo posso, se o quero;
dou vida ao impossível!
Sou a mãe do doido Nero
conduzo a nau do Terrível!
Se me prendeis, perdeis-vos!
Porque as prisões são imagens,
devoro-as, como miragens…
Meus «homes» - arrependei-vos!