Álvaro Domingues
Foto www.por.ulusiada.pt
ÁLVARO DOMINGUES E MELGAÇO
O pai foi contrabandista, ele contrabandeia ideias à luz do dia e dos livros, passando-as entre geografia, em que se formou, a arquitectura, a cujos alunos dá aulas, a semiologia, só para citar alguns dos seus territórios de eleição. Pela Rua da Estrada e entre a Vida no Campo, levou-nos a Melgaço, uma terra que, com as suas palavras, se nos mostra como não parece: cosmopolita.
Não fomos pela rua da estrada (nacional). O horário era apertado, Melgaço ainda é longe do Porto e, na EN13, seríamos forçados a um pára-arranca. Não por causa do trânsito, mas porque esta via, e outras por aí, atraem de tal forma a atenção do geógrafo Álvaro Domingues que seríamos quase de certeza obrigados a várias paragens por essa cidade em contínuo, cidade-montra onde tudo se vende, que ele conceptualizou no livro A Rua da Estrada. Escolhemos por isso a A28, início de conversa (quase) sem distracções, o mais próximo que há, na Terra, do tele-transporte. E, ainda assim, tínhamos a paisagem, a aproximação ao destino, a fazer-nos curvar a conversa entre o passado e o presente.
A Rua da Estrada tem já uns anos. Em 2012 Álvaro atirou-nos para os olhos Vida no Campo, outro murro no estômago em que digerimos as nossas convicções até às generalidades que nos saciam as conversas de café. Livro a abrir brechas nas habituais oposições conceptuais cidade/campo, rural/urbano. É próprio dele. É como se achasse que ainda estuda no conservador e católico Colégio D. Diogo de Sousa, em Braga, e nos visse a todos como os padres a quem dava cabo do juízo com a sua tendência para quebrar as regras estabelecidas. A diferença é que, em troca, não lhe aplicamos castigos. Lemos, gostamos ou não, e seguimos em frente.
Vamos a caminho de Melgaço, insistência nossa, a da Fugas, que por ele ficávamos pelo caminho (pela rua, está visto). A biografia está lá, entre vinhas de alvarinho e os rios Minho e Mouro onde adorava nadar, quando a escola, as vacas ou a mercearia da família não lhe ocupavam o tempo. Já não está lá é a “Guidinha”, camioneta que os levava depois para o ciclo em Monção, num movimento pendular hoje repetido por meninos da aldeia a caminho dos modernos centros escolares. E faltam muitas coisas mais – e pessoas. Melgaço é sítio de emigração, “foi dali que saiu o primeiro Expresso para Paris”, nota o geógrafo, nascido em 1959, que, como muitos conterrâneos, conheceu a capital francesa antes de ter vislumbrado Lisboa.
Vamos para o “cu do mundo”, palavras dele para dizer o que outros diriam de Melgaço. Mas Álvaro não tem dúvidas que, nesses bafientos anos 1960, havia mais mundo na mercearia do pai do que nas maiores cidades do país. A loja “era o Facebook da altura”, onde lhe chegavam notícias de França, do território francês da Nova Caledónia, do Canadá, da América e de outras paragens longínquas. Um contraste com o subdesenvolvimento reinante, que lhe gravou na memória a chegada da electricidade e o facto de ter começado a ver TV… em espanhol. Um contraste com as ideias de pitoresco, as discussões “agressivas” sobre as casas de emigrantes, e a questão do gosto, com que “chocou” ao conviver com a chamada cultura erudita dos seus professores e colegas universitários.
É por isso que ele nos há-de mostrar, no caminho para Parada do Monte – clara alusão a ponta de descanso de uma via romana –, uma casa na curva da estrada. Chalé que viu erguer-se, até ao estado de pronto e desabitado que agora ostenta; que em 1994 foi capa de uma obra, Maisons de Rêve au Portugal, de Roselyne Villa Nova, Carolina Leite e Isabel Raposo. Casa de sonho que, como milhares de outras por esse país fora, foi remetida para um limbo, longe das construções autorizadas pela erudição, os arquitectos, e sem lugar nos livros sobre arquitectura popular. Um livro onde a única classificação plausível, e difundida pelos média, remetia para a condição de emigrante dos seus donos, com uma carga negativa que nunca se vira usada, por exemplo, para falar dos pardieiros de onde aquelas pessoas haviam fugido.
Quem classifica, classifica-se, já dizia, resumidamente, Pierre Bourdier, a quem Domingues pede boleia para a conversa, nesta curva por onde, num minuto passam dois táxis. Não. Não é Lisboa. Apenas a ausência de transportes públicos, que, face ao envelhecimento dos que ficaram, os deixa dependentes destes carros verde e negros para qualquer deslocação. Nós, que já o fotografamos sob um sinal de perigo de aproximação de animais (uma vaca) e esperámos que o sol reencontrasse entre as nuvens um buraco para recortar melhor os campos que desenham a encosta do monte, temos a nossa viatura. E, agora que nada nos prende, partimos para o topo da serra, para ver uma casa que vomita um pedregulho em Castro Laboreiro, antiga sede de um concelho e que na polémica reforma em curso poderá ser unida a Lamas de Mouro.
A mulher castreja
O planalto de Lamas, porta de entrada mais a norte para o Parque Nacional da Peneda-Gerês (criado em 1971), é lugar imperdível. Álvaro Domingues não precisava de dizê-lo. Com cumeadas acessíveis para os mais afoitos nos passeios, é, graças ao rio Mouro, um sítio cheio de verde, de árvores densas e pastos, numa paisagem que, por aqui, de tanta pedra a esboroar-se nas encostas, parece por vezes lunar. Daqui poderíamos descer até à Senhora da Peneda, onde há um lago secreto em que ele gostava de nadar, mas a carne fala mais alto, e a promessa de pecar perante um prato de um bom naco de vitela barrosã empurra-nos para Castro Laboreiro por uma estrada que o geógrafo viu ser inaugurada, inícios de 1970 talvez, pelo então presidente Américo Thomaz.
Nevou por estes dias, lá em cima. Há espelhos de gelo a reflectir o dia luminoso nas fragas e, entre o casario escuro de Castro, uns fiapos de branco, incapazes de se deixarem derreter. Álvaro Domingues vê uma velha castreja, de polainas, e ri-se – lá vem ele outra vez – a lembrar um documentário, que arranca com estas imagens pitorescas, cheias de mulheres de negro, imagem do Portugal profundo (ainda que alto, como é o caso), que nos habituamos a procurar nestas viagens. Chamava-se “Além de nós: mudança na paisagem”, essa reportagem de Anabela de Saint – Maurice, na RTP que, a dado passo, nos mostra Duartina. Mulher regressada para abrir um restaurante na terra natal, após 30 anos de vida na Austrália, destoando em tão antipódica viagem do retrato esperado. Ela, como muitos. Daqui, os pedreiros que trocaram o trabalho nos muros dos socalcos do Douro pela arte da maisonerie de França e outros países tiveram grande sucesso, tendo conseguido, por via disso, dar à geração seguinte condições para irem para as universidades quando no resto do país muitos ainda se ficavam pela quarta classe. O pai de Álvaro, comerciante de dia e contrabandista de noite, dono de pesqueiras no rio Minho, que nos recebera tumultuoso, cheio, à chegada a Melgaço, pensou o mesmo. O miúdo haveria de estudar, que era inteligente e tirava boas notas. As mesmas que o haveriam de salvar de alguns castigos, pelas suas traquinices de adolescente, quando chegou ao liceu. Ele que há quase três décadas trocou as margens do Minho pelas do Douro – que se vê da casa onde vive e da Faculdade de Arquitectura, onde trabalha – fez-se no que é: geógrafo a contrabandear ideias e conceitos entre ciências, a ignorar as fronteiras entre elas e a desafiar os seus guardiões. À luz do dia, que hoje ninguém prende ninguém. Bom, mesmo naqueles outros tempos, o que o pai pagava aos guardas dava-lhe a ele paz, e a eles mais dinheiro que o salário mensal – tinha já recordado o filho Álvaro quando nos mostrara, no lado espanhol, a curva do rio onde tudo acontecia, e em que até lingotes de ouro eram transportados pela calada.
O texto anda assim, de trás para a frente e da frente para trás, como a conversa. Agora a olhar de canto para o castro que dá o nome à vila, a recordar já uma carne que soube pela vida, empurrada pelo alvarinho, o vinho da casa. Depois a reparar, já no adro da igreja do mosteiro de Paderne, nas duas palmeiras californianas que, definitivamente – e vamos lá ser preconceituosos –, não casam bem com o estilo românico do templo, com um belo portal do século XIII, mas nas quais Álvaro vislumbra uma estética a puxar para o gótico flamejante. E não saímos de Melgaço sem passar pelo Peso, terra em que o renascimento das termas e do seu parque de árvores frondosas não alastrou ainda aos velhos hotéis de outros tempos, que mantêm o mesmo ar de ruína com que Manoel de Oliveira os filmou em Viagem ao Princípio do Mundo, em 1997.
O princípio da nossa viagem é que já vai longe. Temos de ir embora, passar por Viana, que lá chegando haverá barriga para uma bola de Berlim do Zé Natário e, no caminho, sabemos que o nosso guia se perderá na rua da estrada. Dito e feito. Em Valença, fez-nos parar numa loja chinesa que chama atenção pela estátua de sereia na berma, granito fino da região, de mamas fartas, a que ele se agarra para a fotografia final.
Jornal Público
23/02/2013
Abel Coentrão