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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A ALTA E LIVRE TERRA DOS PASTORES, DOS CONTRABANDISTAS E DAS URZES

melgaçodomonteàribeira, 02.08.14

 

Lamas de Mouro - PNPG

 

 

O MINHO

 

(…)

Em Melgaço, do alto do castelo, tentei abranger num relance a pátria toda. Mas o horizonte visual não me ajudou. Verifiquei apenas que a burguesia comilona curava ali perto a diabetes e que o rio Minho, laboriosamente, continuava a defender a fronteira desguarnecida. Como a espada de Tristão, também aquele fio de água cristalina se esforçava por tornar impossível o coito das duas margens.

Teria chegado ao fim do inventário verde? Talvez não. Embora lido, o livro fora certamente mal interpretado. Mas quem poderia vislumbrar uma grandeza humana e telúrica soterrada por tanta parra sulfatada? Um solo que não se mostra, de tão revestido, e uma gente atacada da doença de S. Vito, perturbam qualquer observador. (…)

 

(…) Desanimado, meti para Castro Laboreiro à procura dum Minho com menos milho, menos couves, menos erva, menos videiras de enforcado e mais meu.

Um Minho que o não fosse, afinal.

Encontrei-o logo dois passos adiante, severo, de curcelo e carapuça. A relva dera finalmente lugar à terra nua que, parda como o burel, tinha ossos e chagas. O colmo de centeio, curtido pelos nevões, perdera o riso alvar das malhadas. Identificara-se com o panorama humano, e cobria pudicamente a dor do frio e da fome. Um rebanho de ovelhas silenciosas retouçava as pedras da fortaleza desmantelada. E uma velha muito velha, desmemoriada como uma coruja das catacumbas, vigiava a porta do baluarte, a fiar o tempo. Era a pré-história ao natural, à espera da neta.

Ó castrejinha do monte,

Que deitas no teu cabelo?

Deito-lhe água da fonte

E rama de tormentelo.

Bonita, esbofeteada do frio, a cachopa vinha à frente dum carro de bois carregado de canhotas. Preparava a casa de inverno para quando chegasse a hora da transumância e toda a família – pais, irmãos, gados, pulgas e percevejos – descesse dos cortelhos da montanha para os cortelhos do vale, abrigados das neves.

- Conhece esta cantiga?

- Ahn?

Falava uma língua estranha, alheia ao Diário de Notícias, mas próxima do Livro de Linhagens do Conde de Barcelos.

- É legítimo este cão?

- É cadela.

Negro, mal encarado, o bicho olhou-me por baixo, a ver se eu insistia na ofensa, o matriarcado cuidava ainda.

- A Peneda?

A moça apontou a vara. E, como ao gesto de um prestidigitador, foram-se desvendando aos meus olhos mistérios sucessivos. Todo o grande maciço de pedra se abriu como uma rosa. A Peneda, o Suajo e o Lindoso. Um nunca mais acabar de espinhaços e de abismos, de encostas e planaltos. Um mundo de primária beleza, de inviolada intimidade, que ora fugia esquivo pelas brenhas, tímido e secreto, ora sorria de um postigo, acolhedor e fraterno.

Quando dei conta, estava no topo da Serra Amarela a merendar com a solidão. Tinham desaparecido de vez as cangas lavradas e coloridas que ofendiam as molhelhas do suor verdadeiro. A zanguizarra dos pandeiros festivos e as lágrimas dos foguetes já não encadeavam a lucidez dos sentidos. Os aventais de chita garrida davam lugar aos de estopa encardida. Nem contratos pré-nupciais ardilosos, nem torres feudais, nem rebanhos de homens pequeninos, dóceis, a cantar o Avé atrás do cura da freguesia. Pisava, realmente, a alta e livre terra dos pastores, dos contrabandistas e das urzes.

 

 

MESTRE MIGUEL TORGA

 

Retirado de: www.bibliotecavieiraaraujo.pbworks.com