RIO MINHO - SR MURTEIRA PINTOR
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No terreiro pequeno a bola não saltava; se não fosse a Guarda era o Carriço, zelador da Câmara, a correr com os putos. Valiam os piões, a esfera ou o espeto, jogos mais sossegados para quem estava junto ao Sr. Hilário a passar o tempo ou fazê-lo render para uma tigela acima ou abaixo que taberna de amigo não faltava. Era a Quina, o Carlota ou mais na Vila a Maria do Nau ou o Raul, consoante a qualidade do tinto. O Sabino também fazia companhia ao Lucas na hora da escolha. A conversa deles, futebol só na rádio, politica nem da terra, mulheres eram da família, ficava-se sempre por quem não passava e por quem era mais pobre que eles. Olhavam…
Do prédio do terreiro saía o Sr. Murteira, bata branca, olhar altivo, cavalete de madeira debaixo do braço e maleta na mão, passo largo como que a medir terreno e chegado ao terreiro pequeno cravava o cavalete de pontas metálicas, sacava da maleta, paleta, tintas e espátula e os putos esqueciam o jogo. Eles eram os únicos a seguir o filme que o Sr. Murteira passava para a tela, silenciados pela maravilha das cores que nem no Pelicano com índios e cowboys os impressionavam tanto.
Os outros sussurravam, encolhiam os ombros, debandavam para a tasca escolhida sem darem conta que os jogos e berreiro dos putos tinham acabado.
Sentados à roda ou em pé, bocas abertas seguiam os vermelhos e amarelos, azuis e verdes, as cores da terra que os vira nascer e sempre ignoraram.
Recolhida a tela, fechado o cavalete, o cortejo dos putos seguia Sr. Murteira até à porta do prédio.
Nessa noite os sonhos dos rapazes da vila foram mais coloridos e até o comboio galego, feio e cinzento, apitou com mais doçura.
Homenagem ao emigrante - Fiães
ESTE TEXTO TEM POR BASE DADOS DOS INSTITUTOS DO GOVERNO PORTUGÊS. MELGAÇO É O CONCELHO COM MENOR NÚMERO DE INSCRITOS EM CENTRO DE EMPREGO. É VERDADE, SIM SENHOR; E DESDE CAMÕES FOI POETICAMENTE ESCRITA A NOSSA BOA SORTE.
"A QUE NOVOS DESASTRES DETERMINAS
DE LEVAR ESTES REINOS E ESTA GENTE
QUE PERIGOS, QUE MORTE LHES DESTINAS
DEBAIXO DALGUM NOME PREMINENTE!
QUE PROMESSAS DE REINOS E DE MINAS
D’OURO, QUE LHE FARÁS TAM FACILMENTE ?
QUE FAMAS LHE PROMETERÁS? QUE HISTÓRIAS ?
QUE TRIUNFOS? QUE PALMAS? QUE VITÓRIAS ?"
CAMÕES
"NÃO ME TEMO DE CASTELA
DONDE INDA GUERRA NÃO SOA;
MAS TEMO-ME DE LISBOA,
QUE, AO CHEIRO DESTA CANELA,
O REINO NOS DESPOVOA"
SÁ DE MIRANDA
"VEMOS NO REINO METER
TANTOS ESCRAVOS CRESCER
E IREM-SE OS NATURAIS
QUE, SE ASSIM FOR SERÃO MAIS
ELES QUE NÓS A MEU VER"
GARCIA DE RESENDE
OLHAI, OLHAI, VÃO EM MANADAS
OS EMIGRANTES …
UIVOS DE DÓ PELAS ESTRADAS.
JUNTO DO CAIS, NAS AMURADAS
DAS NAUS DISTANTES …
VELHINHAS, NOIVAS E CRIANÇAS,
SENHOR! SENHOR!
AO VOAR DAS ULTIMAS ESP’RANÇAS
CRISPAM AS MIOS, MORDENDO AS TRANÇAS,
LOUCAS DE DOR!
LÁ VÃO LEVADOS, VÃO LEVADOS
PELO ALTO MAR
…………………………………………….
VOLTARÃO, QUANDO, MAR PROFUNDO ?
JAMAIS! JAMAIS!
GUERRA JUNQUEIRO
"HOMENS QUE TRABALHAIS NA MINHA ALDEIA,
COMO AS ÁRVORES, VÓS SOIS A NATUREZA.
E SE VOS FALTA, UM DIA, O CALDO PARA A CEIA
E TENDES DE EMIGRAR,
TRONCOS DESARREIGADOS PELO VENTO,
LEVAIS TERRA PEGADA AO CORAÇÃO.
E PARTIS A CHORAR.
QUE SOFRIMENTO,
Ó PÁTRIA, VER CRESCER A TUA SOLIDÃO!"
T. PASCOAIS
"…VI MINHA PÁTRIA DERRAMADA
NA GARE DE AUSTERLITZ. ERAM CESTOS
E CESTOS PELO CHÃO.
PEDAÇOS DO MEU PAÍS.
RESTOS.
BRAÇOS.
MINHA PÁTRIA SEM NADA
SEM NADA
DESPEJADA NAS RUAS DE PARIS.
E O TRIGO ?
E O MAR ?"
M. ALEGRE
AI, HÁ QUANTOS ANOS PARTI CHORANDO
DESTE MEU SAUDOSO, CARINHOSO LAR!...
FOI HÁ VINTE ? … HÁ TRINTA ?... NEM EU SEI QUANDO!...
MINHA VELHA AMA, QUE ME ESTÁS FITANDO,
CANTA-ME CANTIGAS PARA EU ME LEMBRAR!...
DEI A VOLTA AO MUNDO, DEI A VOLTA À VIDA…
SÓ ACHEI ENGANOS, DECEPÇÕES, PESAR…
OH! A INGÉNUA ALMA TÃO DESILUDIDA!...
MINHA VELHA AMA, COM A VOZ DORIDA,
CANTA-ME CANTIGAS DE ME ADORMENTAR!...
GUERRA JUNQUEIRO
ESTE TEXTO FOI RETIRADO DE BIBLIOTECA DIGITAL CAMÕES, INSTITUTO DE CULTURA E LINGUA PORTUGUESA. É DA AUTORIA DE JORGE CARVALHO ARROTEIA. DENOMINADO: A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA – SUAS ORIGENS E DISTRIBUIÇÃO.
UMA HOMENAGEM A TODOS NÓS QUE DEIXAMOS A NOSSA TERRA.
A TODOS OS MELGACENSES EM FRANÇA, SUIÇA, ANDORRA, GALIZA, ESPANHA, CANADÁ, EUA, BRASIL…
Alcobaça - Lamas de Mouro
Por fim entrámos na villa, que é como os Crastejos chamam á sua terra, visto que ella o foi algum dia. Ainda que as instituições sociaes mudem, o vulgo, que está afeito á linguagem tradicional, conserva esta longo tempo, em contradicção com os factos.
Apesar da sua rusticidade, Castro-Laboreiro procura acompanhar o progresso: possue algumas lojas de negócio, uma fonte de cantaria, e um Commendador, que é ao mesmo tempo o Professor primario da freguesia, o Sr. Mathias Lobato, pessoa amável, a quem os forasteiros ficam sempre devendo obsequios.
Ao longe o castello, posto num alto, provocou logo a minha visita, porquanto esperei encontrar ahi alguns vestígios proto –ou prehistoricos; na sua última fase, é todavia de epoca portuguesa, o que se vê da architectura e de uma inscripção. Nada encontrei no interior. Sem embargo, quem procedesse a excavações, talvez encontrasse qualquer cousa junto d’aquela mole de granito, onde, por causa da inexpugnabilidade do sitio, que fica de mais a mais entre dois regatos, jazeu certamente o primitivo Castro. De lá se goza ampla vista de aldeólas, por exemplo, Corveira, Laceiras, Barreiro, Açoreira, Meijoeiro (quartel permanente da guarda-fiscal), Dorna, Entalada, Pontes, Mareco, solitarias, entre arvoredos e montes. Várias d’ellas servem de inverneiras. Em contraste com ellas ha as brandas, por exemplo, Portos, Seara, Eiras, onde se passa o verão; a palavra branda está, quanto a mim, por ‘’veraada < veranata, e corresponde á hespanhola vernada; cfr. de um lado, o gall. e crastejo gando, e hesp. ganado, e do outro, o hesp. braña ‘’pasto de verano’’, de veranea.
No dia da nossa chegada havia na villa feira de gado. Tive por conseguinte ensejo de observar muitos homens juntos: apresentavam-se geralmente de cara rapada, vestiam de çaragoça (jaqueta, calças e collete), traziam chapeu de panno ou carapuça, e varapau. Mulheres, por ser de gado a feira, não andavam lá muitas. O trajo ordinario d’ellas é: camisa; faxa vermelha; collete; jaqueta; saia branca; saiote; saia de côr, quasi sempre preta, feita de foloado ‘’pano de lã de ovelha ou de linho’’, que se fabrica em Castro; mandil; singuidalho, do mesmo ou de outro panno; na cabeça capella, que póde ser substituida por lenço; nas pernas calções e piucas, meias sem pé, que se prendem com uma liga ou baraça; e nos pés chancas. A outras peças de vestuario já acima me referi. No inverno, tanto homens como mulheres se abrigam das neves, chuvas e friagens com o corucho, especie de capuz de burel que se traz na cabeça, e tem uma especie de aba que se prolonga pelas costas abaixo; a palavra corucho provém talvez de corona + suff. –ucho.
O sr. Abbade de Melgaço é natural da freguesia de Castro, e por isso fácil lhe foi apresentar-me em muitas casas para eu observar os costumes.
Uma das industrias caseiras mais correntes é a de fiar. Ha grande variedade de rocas no nosso país, e cada uma das peças e componentes d’ellas tem seu nome: assim a parte bojuda, onde se colloca o fiado, chama-se em Castro rocanço, e apresenta tres saliencias; o cone truncado que cobre o fianço chama-se naipo, por ser feito de cartas de jogar (naipe). Fianço é o nome do fiado. Os fusos são de duas especies: de ferro, para linho, e de pau para lã; adquiri alguns mais curiosos, que trouxe para o Museu Ethnologico. Aos pesos de tear (feitos de madeira) ouvi dar o nome de catolcas.
A cozinha consta de: lareira, borralheira, especie de camara para recolher o borralho, coberta por uma lage que se chama copeira ou pilheira; escanos, postos ao lado da lareira, para se sentarem; almario, simples prateleira para louça; masseira; fumeiro ou ‘’caniço’’, pôsto superiormente á lareira, para ahi se enxugar a roupa; arcaz, caixa para guardar os cereaes.
Os Crastejos servem-se, mais ou menos, de pratos de madeira, tanto para comerem, como para conservarem a comida. Eu vi d’estes pratos. Tambem se usam cuncas ‘’malgas’’ ou ‘’tigelas’’ da mesma substancia; d’antes todos comiam nellas, hoje porem só as crianças. Consta-me que esta ‘’loiça’’ se fabrica na Galliza, e se exporta de lá para o Alto-Minho. Ha colheres de madeira, que se chamam igualmente cuncas. A fórma masculina cunco applica-se a uma gamella de pau para se bater a massa do pão antes de ir para o forno, ao que se chama patiar o pão (em S. Gregorio dizem afupar o pão.
Para iluminação das casas, os mais pobres fazem uso de guiços, que são pedaços de urzes secas (gândaros), de queirogas sêcas e de tojos secos, descascados do tempo, e que se accendem á maneira de vela: sustentam-nos na mão, ou espetam-nos num buraco da parede; de vez em quando esmoucam-nos, quebrando no chão a parte carbonizada, para os reaccenderem. Na Galliza acontece o mesmo, e o nome é igual, só se escreve com z. Com os guiços concorrem vantajosamente candeias de lata, suspensas em seu velador, como é geral no Norte e Centro do país; outr’ora havia-as de ferro e alimentavam-nas de sil ou banha de porco.
Terminarei aqui a parte descritiva, mencionando a cama, palavra que significa propriamente ‘’leito de madeira’’; assim se diz: ‘’o carpinteiro faz uma cama’’. A cama consta de um caixão grande, com quatro banzos ou pernas, que terminam superiormente em pirâmides. Os mais pobres ahi dormem sobre palha, envolvidos numa manta de burel (sem enxergão ou lençoes); de travesseiro serve um farrapo. Num dos banzos da cabeceira enrola-se o rosario em que rezam.
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No regresso de Castro-Laboreiro trouxemos ate Portellinho o mesmo caminho da ida. Ás alturas de Portellinho desviámo-nos da rota, por montes quasi nus de arvoredo, á vista de Lamas de Mouro, em direcção a Covalhão e Urjaes, d’onde seguimos até ao Peso. Acompanharam-nos constantemente as duas mesmas mulheres, que eram como duas cabras monteses, na rijeza physica e nos modos.
Lisboa, 1904-1916
J. Leite de Vasconcellos
Castro Laboreiro
UMA EXCURSÃO A CASTRO-LABOREIRO
(NOTAS NUMA CARTEIRA)
I
Em 1904, estando a veranear nas Agoas do Peso, fiz uma excursão a Castro-Laboreiro em companhia do Rev.º Manoel José Domingues, Abbade de Melgaço. A excursão foi muito breve. Partimos num dia de manhã, e voltamos no dia seguinte depois de almôço. Tomei porém algumas notas ethnográficas e dialectologicas que poderão ter utilidade para os estudiosos; e por isso aqui as publico, pouco mais ou menos na mesma fórma em que as tomei.
Castro-Laboreiro fica na serra, em uma das regiões portuguesas mais rusticas, por tanto preciosissima para investigações ethnologicas. Ha, de facto, a seu respeito já um ‘’ensaio anthropologico’’ dado a lume por Fonseca Cardoso na Portugália, II, 179 ss., e algumas referencias avulsas publicadas ibd., II, 360, no que toca a trajos, pelo fallecido Rocha Peixoto, que igualmente se refere a Castro-Laboreiro num artigo que escreveu nas Notas sobre Portugal, I, (1908), 73 ss., acêrca das fórmas da vida communalistica no nosso pais. Vid. Também: O Itenerario de Lisboa a Vianna do Minho de Sebastião José Pedroso, Lisboa 1844, pag. 29-30; O Minho Pittoresco de J. A. Vieira; e entre outros tratados de Geographia, o Portugal ant. e moderno de Pinho Leal, II, 205 ss.
A palavra Castro-Laboreiro está por Castro-do-Laboreiro, pois nos compostos d’esta especie a particula articular, do, reduz-se, a de, que depois cae às vezes: cfr. Ponte de Lima , por do Lima, beira-mar por beira- do-mar. O povo em vez de Castro diz sempre Crasto (e sem Laboreiro). Esta palavra não é mais que o lat. Castrum que no latim da decadência significava ‘’oppidum’’; ella applica-se no nosso pais aos montes em que ha vestigios de fortificações da epoca lusitanica: Castro-Laboreiro deve ter sido na origem um castrum proto-historico.
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O nome patrio dos habitantes de Laboreiro é Crastejos, que assenta na fórma popular Crasto, já citada.
Como disse, partimos de Melgaço, o Sr. Abbade e eu, uma manhã às 9 ½, montados em mulas, e acompanhados de duas robustas mocetonas, calçadas de grossos çoques (i.é, çocos ou ‘’socos’’), e com polainas de branqueta. Não pareça descortesia irem dous homens com mulheres por arreeiras; é este o costume local.
Fomos subindo montes, e atravessando miseros logarejos: Cavalleiros, Cabana, Villa do Conde, Candosa, Ladrunqueira; neste último as nossas companheiras beberam vinho mosto por uma malga, em uma venda.
Ao passarmos por Fiães, visitámos as ruinas do convento que ahi se vêem entre bons campos, em meio do mysterioso silencio que outr’ora convidava os monges à meditação; a entrada para lá é uma bella alameda de carvalhos. A igreja conserva ainda as suas portas ogivaes. Diz-se que em tempos viera para aqui a imagem de uma santa, que fez que num campo proximo rebentassem agoas milagrosas que encheram um tanque; ha muito que os milagres acabaram, mas a lenda, que já tem o protótypo antigo na de Hippocrene, continúa a occupar a mente do povo, sempre propensas a maravilhas, especialmente por estes lindos sitios do Alto-Minho, onde cada elemento da natureza, fonte, ribeiro, collina, penhasco, arvore, ajuda a conservar os mytos poeticos do passado, e promove a criação de outros novos.
Em vez de pinheiros, que abundavam até agora, começam a ver-se unicamente vidos ou bidos (i.é, ‘’vidoeiros’’ou ‘’bétulas’’), carvalhos e plantas rasteiras. Continuámos a subir, e chegámos ao sitio do Outeiro da Loba, que na sua denominação dá ideia da fauna local; depois chegámos a uma aldeia chamada A Alcobaça, palavra bastante curiosa, já por ser precedida pelo artigo a, já porque serve para desfazer o êrro dos que suppoem que a villa de Alcobaça, na Estremadura, deve o seu nome aos rios Alcoa e Baça. Vê-se que Alcobaça foi expressão comum e bastante geral: além dos dois citados exemplos, temos Alcobacinha no districto de Santarem , e Alcobaza na Hespanha.
Na Alcobaça termina propriamente a colheita do milho e principia a do centeio. O milho, como é raro, recolhem-no em canastros de vergas de carvalho, - espécie de sebes de carro, tapadas com cupulas de colmo; peculiaridade esta d’aqui, e de Lamas de Mouro, que fica proximo.
Pouco depois entrámos na freguesia de Castro-Laboreiro, pelo lugar de Porto de Cavalleiros: casas cobertas de colmo (na Alcobaça já algumas), que, vistas de longe, mal se distinguem, na côr, dos giganteos penedos de granito que as rodeiam. Portellinho, logo em seguida, é povoação da mesma categoria. Contarei uma aventura que me aconteceu aqui. Quando vou a alguma aldeia, costumo examinar os teares, porque ás vezes os pesos d’elles ou tém forma artística, ou são objectos archeologicos, achados casualmente no campo, e applicados para aquelle uso; em Portellinho vi um tear, e pedi á tecedeira, - uma velha, em mangas de camisa, com o collete muito rente ao corpo, e grossas polainas -, me deixasse entrar em casa, no que ella de boa vontade consentiu, pois cuidou que eu era carpinteiro; a breve trecho, porém, como a nossa gente do campo vive sempre debaixo do pesadelo dos tributos, suppôs-me fiscal da fazenda, e toda se affligiu, sendo precisa a conciliadora intervenção do Sr. Abbade para lhe incutir sossêgo, e eu poder sondar em descanso o vetusto apparelho penelopeu, que infelizmente nada tinha especial. – Do nome de uma planta que ha pouco citei como indigena da região vem o do lugar de Vido ou Bido, que também atravessámos, e que não sobrepuja os precedentes. Ao lado fica Varzea Travéssa.
1° de maio de 1974 - Melgaço
Ancient Roman therm Ourense-Galicia-Sp
Morre o sol entre as nuvens pretas, enormes, a encherem o horizonte.
- ‘’Ai meu senhor, não me lebe! Quem bai colher o binhinho! Ai meu senhor! Sou doente. Pelas ‘aurmas’ deixe-me ficar! Ai meu senhor!...”
- “E o prebilégio? E o prebilégio? Somos caseiros da Senhora da Oliveira. Ele não bai, boa! Ai meu senhor!...”
Atiram-se ao chão. Rogam. O lavrador, a mulher, os filhos, mocetões e tremerem como folhas ao vento. Lá vai a leva. Mais uma, os soldados a venderem as toucas e saias das mulheres e depois as armas, a deixarem-se ficar pelos caminhos dizimados pela fome e doença. (223)
(223) “Em 1641. Em 1-IV os capitães desta vila requerem que lhes fossem dados os socorros precisos para eles e soldados, porquanto já haviam ido duas companhias para guarda da vila de Melgaço, tendo, para a grande jornada os soldados vendido as toucas das mulheres, não chegando lá muitos, por adoecerem com fome e ficarem pelo caminho”
Ares pesados, a terra sufocada, assombrada aqui e além por relâmpagos. Escaramuças, sortidas, entradas “a parecerem mais de bandoleiros que de soldados”. Gente sem disciplina, sem comando, a rastejar pelas veredas, a fugir com os despojos. Chicotes a zunirem, a estalarem nas costas dos mais temerosos, a obrigá-los a combater. Do outro lado da raia impiedosas mãos de oficiais, tomadas de fúria, estrangulam soldados apavorados a recusarem o combate. Terras da fronteira, aldeias cobertas de colmo e paz, a saque, a arderem inocentes!
A Guerra. O horror da Guerra. Pior ainda é ver os castelhanos a entrarem , a Pátria mais uma vez a correr perigo. Vamos! Marchemos com a Companhia de Ordenanças de Frei Pedro Cirne de Sousa. Entre os fidalgos vai também o Capitão Dionísio do Amaral Barbosa, já experimentado em vários rebates, filho mais novo de Gregório do Amaral. Avante! Sempre a direito, rumo ao Castelo de Lindoso. Prestes, a cumprir a ordem: juntar-se aos de Braga, entrar pela Galiza.
Na iminência daquele monte, o inimigo! Avistam-se 200 homens; tem mosquetes, arcabuzes e outras armas. Pelo vale, junto ao Lima, avançam mais 400. Portugueses são só 70. Não se hesita. escala-se o monte. Ataca-se como “leões os peitos descobertos”.
- Atirai inimigos, que lá vos imos buscar! Atirai!
A primeira carga. Desbarataram-se as trincheiras castelhanas. No encalço, as forças de Guimarães. Mais um reencontro, continuam a fugir. Vamos! Pela Galiza adentro, a marchar saquear seis lugares, a espalhar o medo. Nesta entrada “q se fez por Castro Laboreiro foi Dionísio do Amaral dos primeiros que se empenhou com os inimigos e ajudou a por fogo em vários lugares com tão particular valor que se lhe atribuiu grande parte do bom sucesso desta empreza”.
Duas léguas acima de Melgaço fica Lamas de Mouro “terra da Galiza” já tomada pelos portuguêses. Para reforçar a defesa: a hoste vimaranense, duas companhias pagas, outros soldados. Queimam o reduto, esperam com balas, pólvora e cordas o adversário que não chega. Agora o objectivo é Pedrenda, entre Porto de Cavaleiros e Ponte das Várzeas, bem guarnecida pelo exército castelhano. Entram os portugueses pela Portela do Homem, por Lindoso, avançam de Melgaço. Atacam. Há quem fuja, há quem roube, há quem combate com valentia. Vencemos. Fazem-se prisioneiros. Ardem as vilas de Lobios e Compostela. “Tomam-se assim num só dia nove redutos rompendo ao inimigo dentro dos seus mesmos quarteis e fortificações”.Dionísio do Amara l“cumpre comodevia
Maria Adelaide Pereira de Moraes
Casa de Sezim
Boletim de Trabalhos Históricos
Revista de Guimarães
Na Peneda
Fiães
SER MINHOTO
Ser minhoto é ser Celta; Castrejo
Galaico, pouco Lusitano; mais
Suevo do que Vizigodo; nada Mouro
Aragem do Atlântico sobre o Mediterrâneo.
Do berço de Portugal, não da colónia.
Se perguntar se é bem ou mal,
julgo que é apenas tal e qual:
mais enxada do que charrua,
mais regadio do que sequeiro,
mais prado do que pousio,
mais trabalho do que terra.
Prof. Eugénio Castro Caldas
In ‘’ Informativo ‘’ nº 18 DRAEDM
Pub. In A Voz de Melgaço
Não tivera coragem para levantar os olhos da lareira e enfrentar o olhar cordial, mas circunspecto da avó que não ficara nada satisfeita com a resposta. Gostaria tanto de ter a coragem necessária para lhe contar a pena funesta que se apoderara dele, o envenenava e o impelia a destruir-se. Era um jovem e, portanto, naquele momento, parecia mais velho do que a avó que tinha cinco vezes a sua idade. É bem verdade que a pior velhice é a do estado de espírito, que corroi, que se alimenta de desgostos e que definha as pessoas brutalmente. Tinha de sair, de respirar. Não queria aviltar o contentamento, a felicidade que a notícia da vinda do pai tinha prodigado à sua avó. Levantou-se delicadamente, baixou-se diante dela e agarrou-lhe nas mãos cadavéricas que acarinhou.
— Abó, nom faça caso de mim qu’eu ando aborrecido, mas isto nom ê nada. Ô que quero ê que bocê esteja contente por ô meu pai enfim bir. Bou ir prô quinteiro rachar lenha, que me bai fazer bem.
Sentiu um desdém aflitivo por si. Que coisa estranha ! Havia muito que se prometera honestidade, confiança e harmonia assíduas entre as palavras, os actos e a sua pessoa, que jurara nunca mascarar os seus pensamentos e eis que, fortuitamente, se pusera a seguir as pegadas da mentira, a glorificar a hipocrisia, a erigir sebes de sorrisos e a forçar os olhos e os lábios a exibirem uma felicidade inexistente. A verdade fazia-o corar e exasperava-o. Tinha vergonha de se ter deixado subjugar pelos sentimentos.
O Fedelho seguiu-o até à porta das cortes e sentou-se ao lado. O Armindo foi trazendo toros de pinheiro e de carvalho até constituir um elevado monte. Depois, cuspiu nas mãos e, com o machado que era minuciosamente amolado pelo Salvador, foi rachando, fazendo com um toro quatro boas achas. A energia colossal que dele exalava atirava com as achas às viravoltas a uma distância considerável. Quando o machado rachava o toro, era na gente do lugar, nos pais da Lídia, no padre, na mãe, no pai, nos amigos, no velho pedinte, no destino... que ele pensava. Por causa deles, não pudera desenvolver aquela vitalidade admirável com a qual o seu coração se abraçara, se aninhara no da rapariga mais linda, mais angelical do lugar. Ele, aleijado, a risada dos apoucados, despertara sentimentos afectuosos, amorosos, numa moça que não tinha a menor dificuldade em encontrar alguém conveniente. E, isso, para ele, era a prova de que os sentimentos não precisam de olhos para se poderem revelar e ancorar. Só os que não têm sentimentos é que se guiam pelo olhar que, forçosamente, é falacioso e lhos desenvolve erroneamente.
Detestava esta gente toda como nunca pensara que fosse possível detestar alguém. Sentia-se roubado. Tinham-no desbulhado, despido da única coisa para a qual o seu infortúnio não era uma atrofia. Percebeu que a pouca dignidade e respeito que ele acreditava que lhe tinham deixado não eram mais do que um véu tão transparente e fino, que a mais derisória corrente de ar não tinha qualquer dificuldade em precipitar. Como no mundo animal, os mais vulneráveis são sempre os primeiros a cair. Já não tinha importância nenhuma para ele.
À medida que ia estilhaçando os toros, crescia nele a sensação de que, finalmente, começava a saborear este sofrimento abjecto, consubstancial. Quanto mais aumentava o ódio monstruoso e a aversão que sentia por quem lhe tinha feito mal, por quem o tinha vilipendiado, mais o gozo e o sarcasmo o exaltavam, imaginando a cara assombrada que as velhas do lugar, meias beatas, meias pitonisas, afixariam. Já as ouvia bisbilhotar entre elas: “Eu bem bo-lo dezia qu’êl nom era mi correito.” Ou: “Aquêl rapaz nom era obra de Deus, j’ó sabia.”
Transpirava por todos os poros, mas rachou os toros sem fazer uma pausa até acabar. Em seguida, depois de limpar o suor da testa com a manga da camisa, amontoou as achas dentro da corte, por cima de muitas outras. Depois, encheu a caneca de lata do vinho verde fresco e espumoso de que tanto gostava e que esvaziou em poucas goladas. Fez estalar a língua e ficou uns instantes a olhar para o tecto da corte. O Fedelho, deitado sobre as patas dianteiras, seguira tudo o que o seu amigo fizera e, durante o tempo todo, não tinha mexido, como se o instinto lhe permitisse farejar os funestos pensamentos que ferviam no espírito do rapaz. O sol tinha desaparecido e o dia, sem fazer barulho, ia penetrando fortemente no crepúsculo. Era quase noite quando subiu as escaleiras e fez a porta queixar-se mais uma vez.
XXV
Na manhã seguinte, a Palmira pôs-se a pé à hora habitual. Estava um pouco arreliada porque fora acordada de noite pelos uivos inabituais do Fedelho. Preparou as sopas de cevada com leite que comeu com calma e indiferença, a pensar, como sempre, nas tarefas ordinárias que a esperavam. Lavou a sua malga, o prato e a tigela que o Armindo deixara por cima da mesa naquela noite. Estava mesmo cansado, pensou, lembramdo-se dele, pois ficara a dormir. Deu uma olhadela na mãe que ressonava e fez chorar mais uma vez a porta da casa. O ar era fresco e um vento fraco, mas cortante, puxava, no céu, grandes núvens sujas, como que lavadas de tinta. Desceu as escaleiras pausadamente e dirigiu-se para o celeiro onde tinha as cordas e a foucinha. Deitou a mão à chave, mas constatou logo que a porta não tinha sido fechada à chave. Empurrou-a, mas não passou do limiar. Na ponta duma corda, pendia o corpo do Armindo, inerte. A seus pés, deitado, o Fedelho, que a fitava atentamente.
Epílogo
Deus ouviu as preces reiteradas da Delfina, consentindo-lhe abraçar, mais cedo do que ela pensava, o seu querido Belardo pela última vez e conduzindo-a, ataráxica e fortuitamente, durante uma soneca na sua deificada cadeira, para junto do seu “Bilinho”, algumas semanas mais tarde.
O Belardo, por sua vez, à vista dos nefastos acontecimentos, decidiu pôr ponto final às estadias fora da terra para se ocupar da esposa atrabiliária que, desde que o filho se suprimiu, deixou totalmente de falar, afastando-se ainda mais do homem e de todos.
A Áurea acabou por casar e, vista a indiferença com que era recebida pelos pais asténicos, acabou por espaçar gradualmente as vindas a Orjás.
Quanto à Lídia, ficou solteira e a sua mãe acabou por expirar. O pai substitui-a na cama pouco tempo depois. Era vista frequentemente no caminho do moinho do “tio” Júlio, sentada no muro, por debaixo do velho carvalho, onde estivera sentada pela última vez com o Armindo. Falava animadamente com um interlocutor invisível, dando esporadicamente extravagantes gargalhadas, seguidas de estranhos e prolongados prantos convulsivos. Incontestavelmente, não se tinha acomodado da morte do rapaz. Diziam que tinha “virado da cabeça”.
Dedicado aos meus amigos do Monte.
Julho de 2010.
António El Cambório.
Não fazia mal. Mostrar-lhes-ia o desdém, a irreverência que tinha por estas pessoas maldosas, diabólicas, luciferianas. Lembrou-se do sermão do padre na missa do último domingo. Para quê ameaçar as pessoas com o Inferno, se elas já são infernais ? O próprio Diabo devia ter ciúmes desta gente !
O balido das cabras acabou por pôr fim ao seu devaneio. Tirou as mortalhas e o tabaco do bolso interior do casaco, velho pelo tempo e pelo uso, e enrolou um cigarro calmamente. Antes de o acender, chamou com meiguice pela Rabugenta que acorreu imediatamente. Sentou-a ao seu lado e, ao mesmo tempo que fumava, ia-lhe acariciando o lombo com ternura. Fazia-lhe bem. Pouco a pouco, a companhia do cabrito foi-o trazendo à realide, placidamente.
XXIV
O Fedelho punha-se todos os dias à espera do Armindo e do gado diante do portão de ferro. Como todos os cães, pressentia a presença deles uns minutos antes destes entrarem por ele adentro. Sabia que não tardariam e quanto mais perto os sentia, com mais intensidade abanava o rabo.
Naquela casa, tudo estava ordenado, regulado. Todos sabiam o lugar que ocupavam, quais eram as suas tarefas e quando deviam ser feitas. Os dias repetiam-se há muito e cada vez se pareciam mais.
Depois de o rapaz abrir o portão e os animais terem entrado, o cão, abanando o toco, esfregou-se insistentemente contra ele. Dava a impressão que entrevia o desgosto que submergia o seu amigo, o seu companheiro, e queria confortá-lo. O Armindo fechou as portas das cortes e agarrou no Fedelho que levou no colo até ao cimo das escadas. Entrou e fechou a porta cujos gonzos não deixaram de pedir sebo mais uma vez. A avó estava sentada na sua cadeira, toda risonha, e a mãe, à mesa, virada para ela. Deu-lhe a impressão que tinha interrompido a conversa que, à primeira vista, devia ser cordial. Sem uma palavra, arrumou o pau ao lado da porta, o saco por cima do móvel e dependurou o casaco no pau. Cansado, puxou uma cadeira e sentou-se, a olhar para a avó, silencioso.
O seu espírito estava longe, divagava, confuso, perdido, no meio de um espesso nevoeiro. As fontes latejavam-lhe continuamente. Passou uma mão pela testa exsudada. Ficou-lhe ensopada e enxugou-a dissimuladamente na manga da camisa. A agitação desmedida provocou sempre nele um excesso de transpiração que o indispunha. Por momentos, instintivamente, continuava a pensar na Lídia e o sangue, ardente, ria no seu corpo. Fragmentos absurdos de frases da conversa que tivera com a rapariga não deixavam de lhe molestar o desvairado espírito. À primeira vista, o seu aspecto não revelava nada do ferimento secreto que o devorava, mas não estava suficientemente dissimulado para conseguir iludir o penetrante olhar e o acerado faro da avó.
— Estás cansado, é Mindo ? – perguntou-lhe a avó, não sem uma ponta de ironia.
A velhota percebera que o rapaz estava contrariado, mas, apesar da sua perspicácia, não podia imaginar a que ponto a exasperação o comia. Confuso, sorriu e, sem olhar para a avó, respondeu-lhe que sim. Revoltava-o não lhe poder dizer a verdade pois conhecia a sua extraordinária susceptibilidade e não queria vê-la atormentada.
A Palmira, que desde que o filho entrara não mexera nem dissera uma palavra, levantou-se e, com a calma crónica que a distinguia, dirigiu-se para os quartos.
Ficaram os dois, em silêncio. A avó observou-o calmamente uns segundos e, vendo que o rapaz, triste, não tirava os olhos do chão, disse-lhe no tom afável e adocicado como só ela sabia exteriorizar:
— Sabes, meu Mindinho, a tua mai recebeu hoje uma carta do teu pai qu’eu esperaba hai muito. Ai que saudades tenho del ! Que Deus no-lo traga passar ô Natal connosco a Orjás, meu filho. Passa tanto tempo sim bir à terra !
Voltou a esboçar um sorriso e, embora sem vontade, levantou o olhar do chão e fixou-o confusamente na avó, cujos olhos cintilantes de felicidade davam a impressão de querer saltar das órbitas ressequidas. Não se sentia nada bem. Levantou-se com incongruência e, depois de ver que restava um pouco de vinho na caneca, deitou-o numa tigela que esvaziou imediatamente. Se estivesse só, tinha dado uma boa golada na garrafa de aguardente que se encontrava no armário da sala. Precisava de um estímulo vigoroso.
Apareceu a mãe com a carta na mão e entregou-lha. A Palmira não fora à escola. O rapaz abriu-a meticulosamente com um canivete e leu-a em voz alta. As duas mulheres estavam inquietas, mas não era pelas mesmas razões. Quando leu a passagem em que o Belardo anunciava a sua chegada para o 21 do mês de dezembro a Delfina louvou o Senhor fazendo o sinal da cruz e a sua cara fendeu-se num enorme e aprazível sorriso de contentamento e alívio.
— Deus oubiu-me. Nom me quêr lebar antes de o ber pola última bez – comentou.
A cara da Palmira não manifestava qualquer alívio ou alegria. A novidade, aparentemente, não tinha excitado qualquer contentamento na mulher. Já nada exercia fosse o que fosse sobre ela. A ausência contínua do Belardo acabara por criar nela uma sensação de derrelicção que, por sua vez, a foi tornando indiferente, desmazelada a tudo e a todos com o decorrer dos anos. Ninguém partilhava com ela a mágoa que o aborrecimento lhe proporcionava. A solidão das pessoas dá cabo de tudo, amolece a terra e faz perder a alma aos seres. É a desgraça suprema. Eram tantas as dores e as lágrimas que a tinham afogado, que o amor, há muito neglijado, se extinguira e transformara em cinzas. Para ela, o marido não passava de um estranho que se vinha intrometer, por umas semanas, na sua vida rotineira, na parte mais íntima do seu corpo, mais por necessidade do que por amor e ao qual tinha que se abaixar. A sua presença era um estorvo, um obstáculo. Foram tantos os anos que passou sem ele que se alegrava de nada mais possuir em comum com este homem e de poder odiá-lo libremente. Sentia-se forte, pois já nada mais tinha para perder. Era tempo de cessar de pensar e de se acomodar, da maneira mais superficial, às circunstâncias.
A impertinência da missiva exprimiu-se através do silêncio glacial que se prolongou depois do termo da sua leitura. O Armindo estendeu a carta à mãe, baixou a cabeça, fincou o queixo no punho, sem manifestar nada de patente e ficou a olhar para a lareira, trepidando, como se estivesse avinhado. A Palmira agarrou na carta e dirigiu-se novamente para o quarto onde a tinha ido buscar. Apenas se ouvia o estalido da lenha no lume.
A pobre Delfina não deixou que lhe enlutassem o momento de grande alegria que não tinha há anos e que tanto desejava. A atitude da filha não a espantava absolutamente nada pois os acontecimentos sobrepunham-se num lapso de tempo demasiado curto. Os aborrecimentos ainda estavam fortemente vivos e a fobia que certamente se apoderara dela não ia ser fácil de evaquar tão depressa.
— Tu nom ficastes contente, Mindo. Ôs teus olhos estam tristes. Êl tu nom estás bem ? – perguntou ao neto.
— Fiquei, bó, mas estou cansado.
(continua)
A Lídia não pôde suportar mais tempo o silêncio inquietante do rapaz. Endireitou-se e, inconscientemente, levantou os braços como quem quer contorcer a fatalidade com as mãos. Uma pequena aragem fez mexer os ramos do velho carvalho, a cabeça da moça encheu-se de sombra e o seu coração duma claridade infinita e abrasadora. Então, disse-o, tinha que dizê-lo, era, talvez, a última oportunidade que tinha de fazê-lo: “Gosto de ti, Mindo.” A suavidade do timbre e a melodia da voz fizeram-lhe lembrar a avó que, quando ele ainda era criancinha, lábios colados ao seu ouvido, o acalentava cantando com meiguice. O moço levantou a cabeça bruscamente e um delicioso sorriso de instantânea felicidade e alegria apareceu-lhe no rosto. Parecia uma flor que, depois do orvalho nocturno, desabrocha ao sentir as carícias do sol matinal. A rapariga, os penedos, as árvores, tudo se confundiu nos seus olhos e, nesse instante, viu a beleza da Lídia como nunca a vira, como gostaria de continuar a vê-la. Os seus lábios tremeram de desejo mas, com um lento esforço, como se lhe pesasse, desviou o olhar dela. A sua beleza, a sua graça, tinham-lhe dado tantas emoções que só ele e os seus desejos secretos conheciam. Para quê dizer-lhe que gostava, que sempre gostara e que continuaria a gostar dela, como se fosse única na Terra ? Para quê dizer-lhe que nunca conhecera coisa tão boa como a sua presença, que nunca sentira uma euforia tão entorpecedora, tão apaziguante e agradável como com ela ? Para quê dizer-lhe que, com ela, esquecia os males, as contrariedades, as feridas que o ulceravam e que se sentia tão feliz como nunca imaginara que fosse possível ? Já não tinha sentido nenhum. Em escassos minutos, tudo se desmoronara, tudo se desagregara. O sonho deixara lugar à realidade.
Mantiveram-se silenciosos e imóveis largos instantes. A pobre ignorância que os definia ampliou-lhes o medo e a tristeza que tinham de separar-se. Sentiam-se tão pobres e órfãos como se fossem viver para mundos separados e longínquos. Fez uma festa na mão da rapariga e disse-lhe:
— Minh’irmam dicho-me qu’a gente ê mi mala, é tem razom. Nunca lhes cheg’ó que tem. Atê àlegria dos outros lhes pêsa.
A Lídia pôs uma mão sobre o seu ombro e olhou para ele. Não falou. O rapaz percebeu que não eram estas as palavras que ela esperava mas não conseguiu exprimir o que sentia. Os suspiros dos dois perdiam-se no silêncio. Ele, que se tinha prometido resistir, desafiar e mesmo enfrentar os que sempre o quiseram vilipendiar e aviltar, sentia as esperanças, as forças, a solidez que o amor pela rapariga lhe tinha incutido, sujeitar-se ao peso da vantagem, da utilidade, como o pinheiro que se verga sob a energia do vento ou da chuva.
A moça levantava e deixava cair as mãos nos joelhos fazendo pequenos movimentos de impotência. Por momentos, dava-lhe a impressão que tinha ido embora, que se encontrava alhures, longe, e que não podia encontrar o caminho de regresso para se encontrar com ela própria. Por sua vez, amaldiçoou a gente do lugar. As más-línguas têm todas um determinado talento para acentuar as acções e as palavras que o ódio lhes sugere.
— Êl tu, aconteça ô qu’acontecer, nom t’esquêces de mim ? – inquiriu o Armindo, sem olhar para ela, percebendo que o destino lhe roubava o seu amor para sempre.
Os olhos da moça embriagaram-se de um ardor, de uma radiância ofuscante. A floresta parecia que gemia com eles, duma maneira viva, cúmplice. Inclinou o corpo para trás, graciosamente, provocante. No seu movimento, nas suas palavras, notava-se a magnífica selvajaria do monte, do adejo que serve de apelo às parelhas de pássaros na floresta.
— Nunca, Mindo, nunca – repetiu-lhe – Todo los dias me lembrarei de ti é pedirei a Deus que t’abençoi é te deia um bô destino. É tamém ficamos amigos p’ra sempre, nom, Mindo ?
O rapaz pareceu apaziguado. Não contava com mais nada da vida. A moça, que esperava uma resposta, notou um princípio de cólera rebelde sufocá-la, como se tivesse sido insultada mas, ao voltar a ver o seu ar prostrado, entristecido, depressa se controlou. Apavorada, estendeu-lhe a mão, que transpirava, e que ele agarrou imediatamente. Lembrou-se da noite que sonhara que a Lídia era sua irmã e vivia na sua casa... Talvez fosse o augúrio de que nunca seria sua mulher nem nunca lá entraria. Suspirou e apertou a mão da moça com tanta força que quase a fez soltar un gemido.
— Agôra que t’estab’à conhecer é que bira qu’êras a moça da minha bida, nom quero saber ô que seri’à minha bida sim ti.
Falou brevemente, tinha medo de dizer demais com poucas palavras. A moça não percebeu o fim da frase. Não tinha dúvidas de que a rapariga gostava muito dele, mas não lhe podia ser grato. Intimamente, fazia esforços vãos, mas o seu coração e a sua alma, gelados, só o deixavam pensar nele, na sua vida, no seu fim. Será verdade que a natureza humana repudia, como um sonho de criança, o amor sincero ? Será verdade que o amor se alimenta de angústias e de tormentos e que a seiva generosa e fecunda do seu caule seca com a tortura do destino, da inveja ?
— Boltarás a bir berme ? – perguntou subitamente o rapaz.
O pedido ficou sem resposta. Arrependeu-se imediatamente, sabia que tal coisa não tinha sentido.
A moça retirou a mão da dele e, decidida, saltou do muro.
— Tenho que m’ir embora, Mindo.
Na cabeça do rapaz, aquelas palavras entoaram como a saída da procissão. Nos seus olhos não havia lugar para mais sofrimento. O seu coração batia, dizendo-lhe que não podia esquecer-se dos momentos da mais sã felicidade, da mais cristalina alegria que o tinham feito palpitar como nunca até ali. Bruscamente, sentiu-se miserável, humilhado, tal uma criatura selvagem dos montes, apanhada numa armadilha. Lentamente, deixou-se caír do muro e olhou para ela uns seguntos. Abatido, confuso, nunca pensara que houvesse coisas que o pudessem fazer sofrer ainda mais do que o que até ali tinha sofrido. Cegamente, inclinou-se, deitou as mãos à cintura da moça e apertou-a contra o seu peito desesperadamente. Queria fazê-la penetrar na sua carne, apoderar-se dela para sempre. A rapariga colou-se a ele e deitou-lhe os braços à volta do pescoço, como uma planta silvestre sedenta. Encravou a testa em fogo contra o peito do rapaz, apertou-o, abafou-o. No seu desejo obscuro, inflamado, procurava deixar de existir, fazer só um com ele, correr no seu corpo, no seu sangue, através das suas veias. Queria transfundir-se nele. A emoção tornava-lhe a respiração ofegante, difícil. Assim ficaram, imóveis, durante uns curtos instantes até que a rapariga, lentamente, o afastou dela e se deitou a correr pelo caminho fora, em direcção do lugar, sem olhar para trás.
O Armindo, braços pendentes, encurvado, de cabeça baixa, olhava para a curva do caminho onde vira, talvez pela última vez, desaparecer a Lídia. Estava desorientado, acabado, desamparado, renegado. Quando pensava ter encontrado uma razão, um estímulo para viver, para ser considerado normal, como os outros, quando pensava ter encontrado um paliativo para os tormentos crónicos que havia tanto o martirizavam, o cansavam, é quando o privam, o destituem da sua dignidade de ser humano ! Estava mais só do que nunca.
Foi então que a sua vontade, inconscientemente, agindo sem ele dar por ela, tomou uma resolução que o encheu de uma calma espantosa. As coisas correriam como deviam correr, pelo caminho que o destino escolhera, nem mais nem menos. E ele não podia, não tinha vontade, não tinha forças para se opor. Já não era dono de si. Deixava-se dirigir, como um rio que se vai adaptando ao declive, à escarpa. Subiu a encosta e foi sentar-se encostado ao eucalípto, de olhos fechados. Não sentia absolutamente nada. Estava completamente vazio, sem vontade, sem pena, sem inveja, sem tudo. Não tinha valor algum, não tinha qualquer utilidade, tinha menos valor do que uma cabra. Estava nu, como quando nascera.
(continua)
A Fonte de S. João é, para os da minha idade e mais velhos, fonte de recordações infantis e a reminiscência de um Melgaço desconhecido para os que têm menos de cinco décadas. A canalha toda que nesse tempo havia na Vila bebeu frequentemente naquela fonte e caiu, um dia ou outro, no tanque adjacente ao tentar apanhar o que nós chamávamos “caçolas” (girinos).
Esta fonte foi recentemente degradada. Um tal acto demonstra o desrespeito, o desdém que determinados seres têm pelo nosso património comum (etimologicamente o que se herda do pai) e que é a nossa memória colectiva e o testemunho da nossa civilização, conservado para ser transmitido às gerações futuras.
Não encontro palavras para qualificar acções desta natureza sem cair na bestialidade, na obscenidade, na vulgaridade e muitas mais palavras terminadas por idade. Finalmente, o mais certo é que seja a obra da idade, de alguns jovens ou velhos adolescentes aborrecidos, desorientados, sem ponto de referência, que quiseram manifestar através deste gesto a aflição e a angústia que neles nutre. Ou então foi um desatino momentâneo de estroinas, ocasionado pela inalação de uns fuminhos estimulantes. Mas seja qual for a causa, nenhum dos postulados serve para atenuar ou legitimar um gesto tão absurdo e estéril como este.
Compete ao poder público tomar as medidas necessárias para encontrar os ineptos responsáveis por este feito, a fim de evitar imitações desastrosas no nosso rico património.
VANDALIZARAM A FONTE DE S. JOÃO...
Às tardes, o Armindo sentava-se no muro e não cessava de olhar para a curva do caminho, esperando, a todo instante, ver despontar a Lídia com um saco às costas. Nessa tarde, o sol iluminava frouxamente o caminho por debaixo do carvalho e o rapaz, encostado ao eucalipto, acabava de fumar o segundo cigarro do dia.
O seu olhar, perdido para lá dos lindos e verdejantes vales que dali podia contemplar, viu súbitamente emergir qualquer coisa no caminho. Era a Lídia. Não trazia saco nenhum às costas. Tinha vindo de propósito para o ver, concluiu, satisfeito. Era a primeira vez. Levantou-se com prontidão e foi ter com ela ao caminho. Ficou desapontado ao distinguir no seu rosto crispado um olhar receoso. A rapariga desviou o olhar e fixou-o no chão. Evitava o do Armindo como se quisesse esconder qualquer coisa de vergonhoso nos seus próprios olhos. Nunca a tinha visto como naquele instante. A sua cara parecia estranhamente magra à sombra do carvalho.
— Êl tu que tês, Lídia ? Nom estás bem ? – inquiriu o rapaz preocupado.
Como resposta, foi sentar-se no muro, abanando a cabeça com tristeza e balançando as pernas, sem uma palavra. Pôs-se a brincar, ingenuamente, com as mãos no regaço. Alguma coisa a oprimia, lhe blocava as palavras no seu interior. O rapaz, cada vez mais inquieto, ficou de pé, imóvel, à espera. Não compreendia a razão do silêncio da moça. A sua hesitação, o seu combate interior, atormentavam-no, como todas as outras coisas que não percebia. Por fim, os seus olhares acabaram por encontrar-se e as nuvens húmidas que se tinham formado nos olhos da rapariga deixaram escapar fios de lágrimas. Chorou, chorou em silêncio. O coração do moço encheu-se da tristeza, do grande sofrimento que sentem as árvores, os animais, as pedras, tudo o que na terra não pode falar. Aproximou-se dela, agarrou-lhe na delicada cabeça com as duas mãos e apertou-a ansiosamente contra o seu robusto peito. Durante aqueles silenciosos segundos de terno enlace, perceberam que estavam tão bem juntos, que precisavam um do outro... Lentamente, separou-se dele e, quase que involuntariamente, começou a falar. Primeiro, balbuciando, depois, nervosamente, num tom acusador.
— Alguém dicho ô meu pai qu’andábamos juntos. Nom nos podêmos ber mais.
E calou-se. O rapaz, como se não tivesse ouvido, parecia olhar para as manchas de sombra que o sol fazia por debaixo da árvorea. Subitamente, disse:
— É quê ? Ê pecado ?
Falara instintivamente. Não falara com os lábios, mas com a alma. Não sabia que os corações, por muito indulgentes que fossem, nada podiam contra uma inveja acérrima. O seu olhar tornou-se, repentinamente, profundo e inapreensível. Dava a impressão que já sabia o que ia ouvir em seguida. Sentou-se ao lado dela.
A moça suspirou profundamente. Dardou uns instantes os olhos no rapaz, lutando desesperadamente para ficar muda. Na solidão da floresta, apenas se ouvia a sua respiração ofegante. Gostaria tanto de lhe dizer coisas que não o magoassem... Não podia perceber o que se tinha passado, a maldade das pessoas e, portanto, mal se admirava. Havia muito que estava habituada ao imprevisto. Tudo era tão incompreensível : as pessoas, a vida...
— Quêrem que me case com alguém que ganhe dinheiro é que nos tire da misêria p’ra qu’eu poida ocupar-me deles. Bem sabes qu’a minha mai está mi mal é ô meu pai p’ra lá bai.
As palavras pareciam vir de longe, como num sonho. Era pior do que a inveja. Era a submissão, o escalão mais baixo da dignidade humana. Inconscientemente, odiou o pai da rapariga. Odiou a gente toda do lugar. Odiou-se a ele. Sentiu uma moleza no corpo como nunca tinha conhecido até ali e, sem se aperceber, as lágrimas cairam-lhe pelos cantos do nariz. Já tinha sofrido muitas baixezas, muitas vexações, mas sentia que aquele momento era uma viragem determinante na sua consternadora vida. Sentia-se de novo sozinho no mundo e ainda mais desprezado. O seu coração batia tanto que parecia querer saltar-lhe para fora do peito. Cego pela dor que as crueis palavras lhe provocavam, apeteceu-lhe fugir através da floresta e gritar o seu desespero, a sua consternação, até vomitar as entranhas.
A rapariga inclinou a cabeça e lançou-lhe um rápido olhar. O sangue gelou-se-lhe nas veias. O Armindo estava pálido, os seus olhos, encharcados. Fechou os dela para afastar a assustadora visão. Sentia-se culpada por ele estar a sofrer tanto. Sem saber porquê, invadiu-a um medo feroz pelo que ele pudesse fazer. Dava-lhe a impressão que estava à beira de um abismo e que as profundezas da escuridão a puxavam para o fundo do precipício. As lágrimas escorreram-lhe novamente pelo rosto. Agarrou-lhe na mão com meiguice e apertou-a carinhosamente entre as suas, ao mesmo tempo que encostava a cara à dele. O rapaz atraiu pela segunda vez a cabeça da moça contra o seu peito para não a ver chorar e pôs-se a acariciá-la como a um pequeno cabrito doente que ele quisesse aliviar, adormecer. Não tinha dúvidas de que a Lídia gostava dele. Choraram em silêncio. Estavam sozinhos no mundo, contra toda a gente, pois todos eram seus inimigos.
— Eu nom posso fazer doutro modo, Mindo – começou, baixinho, encostada ao seu peito – Sabe-lo bem que tenho qu’obedecer ôs meus pais. Eles quêrem ô meu bem é nom sabem ô qu’ê gostar d’alguém. Só em saber que bou ter que me casar c’um home de quem nom gosto nem conheço, nom me sinto bem, bem-me cousas estranhas à cabeça é tenho medo.
Os seus pais eram pessoas que, desgraçadamente, nunca souberam o que era agradar, fazer alguém feliz... nunca o tinham sido. Eram coisas estranhas para eles. O sofrimento era tanto que só se viam a eles, neles próprios. E este sentimento levava-os insensivelmente a escolher as coisas que lhes eram cómodas, primordiais, em detrimento das que podiam ser agradáveis à filha. E, no monte, aos pais, nunca se desobedecia, nem nunca se discutiam os seus desejos.
Falara suavemente como se aquilo fosse a sua sina, o seu destino, uma fatalidade implacável que queria evitar ao moço. Gostava tanto dele que o seu mais pequeno sofrimento era para ela um suplício intolerável. Por isso lhe escondera o que o pai verdadeiramente lhe tinha dito: “Êl tu nom bás casar c’um aleijado, ou biu-t’uma bruxa ?” Aquelas palavras fizeram-na estremecer e penetraram no mais profundo do seu ser. Pareciam raios que precedem um retumbante estrondo e desaparecem depois nas profundezas da terra nas noites de grande trovoada.
O rapaz continuava a mimar-lhe a testa e os lindos cabelos com doçura. Dava a impressão que estava longe dali, que o que a rapariga dizia não o concernia. E, portanto, pensava nela. Pensava na rapariga que admirava e que amava, que encontrava, havia uns dias, periodicamente, às tardes, com quem sonhava há muito e que jamais poderia extirpar da cabeça, do pensamento. Imperceptivelmente, combatia para que a demência animalesca que o roía, a raiva, a repugnância, a revolta surda que, durante uns curtos dias, tinham estado discretamente calmas, não triunfassem e o voltassem a dominar. Felizes aqueles que dão um valor imponente a uma vida simples, aparentemente fútil, e que, pela sua felicidade, pela sua salvação e pela sua prosperidade, a consideram como uma obra gigantesca. Que grande bem faça a quem assim pode agir, a quem assim pensa. O Armindo sentiu uma coisa gelada percorrer-lhe a espinha. Sabia que nunca teria uma vida assim, simples, alegre, no meio dos montes da terra que o viu nascer, com a mulher de que gostava, na companhia das cabras, suas notórias e sinceras companheiras.
(continua)
XXII
O Armindo entrou no quinteiro com o gado quando já o sol salpicava o horizonte de línguas de fogo alaranjadas. A noite, que no outono parece cair do céu de tal modo cai depressa, não tardaria em instalar-se. Nestes lugares isolados com hábitos regulados e simples, as pessoas reganham as casas a esta hora precoce pois as noites, cada vez mais longas, são feitas para dormir.
Fechou os animais e, satisfeito, subiu para a cozinha. O Fedelho não se mostrou, sinal de que a mãe não estava. Com efeito, a avó estava só, no seu singelo lugar. Conseguia fazer três coisa simultaneamente: rezar, tricotar e viajar nos seus pensamentos de então. Sorriu-lhe, dependurou o velho casaco e foi dar-lhe um beijo na testa, antes de pousar o saco com a garrafa de vinho, à qual não tocara, por cima do móvel. Ficou encantado por sentir no corpo o calor aconchegante da lareira.
Estava esfomeado. Encheu uma malga de caldo, bem grosso, que pôs por cima da mesa, assim como meia peça de pão, a garrafa de vinho e uma tigela.
— Esta manham estubo aqui o Irineu – disse-lhe a avó.
O rapaz sobressaltou levemente.
— Si ? – perguntou, descuidadamente.
— Si, é tua mai deu-lh’uma peça de pam. Por isso hai pouco. Mas tu côme, meu filho, côme que te faz falta ! – disse-lhe a velhota.
Não perguntou mais nada. Comeu com saborosa voracidade. Esvaziou a tigela e deu um arroto. Arrastou a cadeira e colocou-se ao lado da avó, diante da lareira em brasa. A mulherzinha pousou o tricô no regaço e pegou-lhe na mão com a qual brincou entrelaçando os seus dedos nos dele. Faziam-lhe tão bem aqueles carinhos simplistas e inocentes ! Que seríamos nós sem os afagos, sem o amor de alguém ? O bem-estar, a ventura dos outros foi sempre uma necessidade para ela. Para a filha, ao contrário dela, os outros eram, ao mesmo tempo, uma abulia física e mental, o sentimento obscuro e profundo de que nada tinha importância, de que tudo se transformava num cansaço inútil. Eram tão diferentes !
— Tua mai parêce-me qu’está melhôr, que lhe fijo bem desabafar. Sabes bem qu’ela habituou-s’a nunca falar do qu’a preocupaba cos outros. Q’antas vezes sim fim tentei dizer-lhe que, da maneira qu’encarab à bida, só s’estaba a fazer-se mal! Nom m’oubia, inda me mandaba calar, como se nom soubera o que dezia!
E olhou fixamente para o neto. Leu nos seus olhos o que, certamente, ele devia ler nos dela : a incompreensão.
— Q’ando se começa a mentir, ê fácil imbentar, esconder as coisas é, pouco a pouco, ô mentiroso bai-se desajeitando é, despois, ê mais fácil apanhá-lo porque já ê um hábito é nom sabe ô que dicho no dia antes. Assi lh’aconteceu à tua mai, meu filho. É, q’ando se cheg’á um ponto destes, qu’a mentira, de calbário em calbário, cheg’á um aborrecimento assi, entom começa ô inferno. À noite, na cama, chorava é rezava, mas hai lágrimas que nim as rezas conseguem secar. Sabia qu’as cousas, só despois de rebentar o abcesso, ê que seriam como dantes. Creio que foi ô que passou. Mas, ôlha meu home, nom ê porque alguém qu’ê infeliz é que fijo uma escolha indigna, que nom tem mais direito ô amor dos outros. Ô rancor nom te deixa vivir. Ê ô perdom que te dá a tranq’ilidade, a paz.
O moço ouvia com grande atenção o que a avó lhe dizia sem compreender totalmente o que lhe queria significar. Tinha vontade de lhe dizer que, nesse dia, percebera o que era aquela coisa incoercível, provocante, perniciosa e, ao mesmo tempo, tão fascinante, tão libertadora, tão jubilatória, que era o cio. Ao que o padre, na missa, chamou pecado. Porque será um acto destes, próprio dos seres humanos, considerado um pecado mortal ? E que este acto não passa de uma reciprocidade de aprazíveis e repousantes momentos, indispensáveis ao bom zelo, ao desenvolvimento genuíno de um ser normalmente constituído ? Esses ímpios, dadores de moralidade, de virtuosidade, que se declaram transitários da verdadeira e sincera palavra divina, não são mais do que contrafactores, maquiadores, polícias da alma, cuja finalidade é cultivar um sentimento de apreensão, de receio nas populações para, deste modo, poderem dominá-las. Esta instituição, ao longo dos séculos, foi bem mais nefasta do que benéfica para os homens. O tempo, excelente ponderador, já iniciou o seu trabalho de regulador; a instituição vai perdendo cada vez mais a credibilidade, continuamente maculada por escândalos de várias ordens. O desenvolvimento do nível de instrução e do nível de vida da classe popular também contribui para o seu declínio.
Tinha-se instalado um silêncio embaraçante na cozinha. A Delfina conservava a mão do neto entre as suas, por cima do seu regaço. Pensativa, com os pequenos e afundados olhos, perscrutava o braseiro como se tentasse ver algo nas cores vivas e ardentes. O rapaz parecia entorpecido, ausente.
— Que se queir’ou nom, as cousas hai qu’aceitá-las como som, sabes ? – perguntou sem olhar para ele – É sô elas podem fazer a difrença da alegria ou da desgraça. Nimguém pode cambiar ô rumo do destino, meu home.
A mulher tinha o mérito, cada vez mais raro nos nossos dias, de só deixar saír da boca palavras que o seu pensamento concebia, fecundava. Realizara que era impossível uma pessoa em contradição contínua com a vida, em guerra com ela própria ou com os outros, pudesse viver em paz e não invejasse a pouca felicidade que os outros pudessem ter. Mesmo os que ofendemos involuntariamente fazem pouco caso da nossa inocência, da nossa boa vontade e apenas procuram o meio de vingar-se. Para evitar as hostilidades, a única solução era a reconciliação.
A porta chiou e a Palmira entrou sem uma palavra.
XXIII
Os dias foram passando. Na casa, a Palmira recobrara um pouco de ânimo, de ardor, no dia a dia mas, sobretudo, uma permissividade há muito esquecida para com a mãe. De manhã, perguntava-lhe se tinha passado uma noite boa, se as sopas tinham açúcar suficiente, se lhe apetecia algo de especial para o almoço, falava-lhe do tempo que estava, dos animais, do que ouvira na loja... Ela que nunca pudera suportar as queixas, os sofrimentos da mãe, que virava a cara para que ela não visse no seu rosto a indiferença que isso lhe causava, perguntava-lhe, quando passeavam no quinteiro, se as pernas não lhe doíam, se queria subir.
Para a Delfina, foi uma prenda divina, inesperada. Havia tantos anos que pedia a Deus que assim fosse, que a filha se corrigisse, se humanizasse ! Sentia-se tão contente que preferia morrer antes que a filha voltasse a degenerar.
O Armindo vivia uns tempos de grande agitação, impensáveis uma semana antes. A Rosa ficara fascinada com a sua constância genital que lhe permitira gozar uns desvairados e lascivos momentos de prazer. Ficou de vir fazer-lhe uma visita prazerosa de vez em quando.
O caso é que o rapaz sentia-se outro, alguém que tinha coisas para partilhar. Era a primeira vez que alguém via nele sentimentos salutares, qualidades naturais que, finalmente, fazem o homem ordinário. Não pedia nada, somente que o considerassem como os outros, alguém que, apesar da sua desvantagem evidente, tinha valorosos recursos para fazer prevalecer.
A Lídia, cada vez que ia e vinha do moinho, não deixava de fazer uma alta e de namoriscar com o Armindo. Sentavam-se no muro, por debaixo do velho carvalho. As relações entre os dois iam-se estreitando e tornando cada vez mais naturais. Nunca pensara que a moça mais bonita e mais cobiçada do lugar, que agora encontrava periodicamente, se interessasse por ele. A força e a solenidade das suas aparições faziam-no sucumbir cada vez mais. Havia alturas que se instalavam entre eles curtos silêncios, no meio do grande silêncio da floresta, e, então, sabiam que entre eles havia alguma coisa. A sua beleza genuína dava-lhe emoções que a sua natureza e o seu desejo secreto lhe exigiam cada vez mais. Olhava para ela, de olhos brilhantes, admirativo e só ouvia bater o seu coração. Batia no meio das pedras do muro, na floresta, nas montanhas, com as cabras. À medida que o seu amor foi crescendo, deixou de pensar com a razão. Sentia-se confiante, mimado e pedia ao céu que lhe fosse dando dias como os que ia passando.
(continua)
XXI
Para a Áurea, o domingo não foi longo em chegar. Passara os dois últimos dias a preparar-se mentalmente para este verdadeiro primeiro encontro. A sensação que o Pedro lhe produzira, quando bateu com ele na feira, fora extraordinariamente agradável. O importante era ver se o cenário, embora não voltasse a ser tão intenso, produzia as mesmas sensações.
Como tinham combinado, encontraram-se de tarde na pastelaria da alameda. Estavam a ser duas horas. Nesse dia, os cafés e a alameda eram a propriedade dos amorosos. Os casais, sobretudo os casados, gostavam de mostrar-se publicamente arvorando, a maioria, sorrisos hipócritas sem sequência e dando espalhafatosas gargalhadas, mais para atrair os olhares alheios do que para manifestar a felicidade que sentiam por andarem juntos ou que os unia.
Como da vez precedente, puderam sentar-se na mesma mesa. Pediram as mesmas coisas, um café e um carioca de limão. Ergueu-se um grande silêncio entre os dois. Os dois olhares entrechocaram-se e fixaram-se um no outro, uns instantes, como dois desconhecidos que se amavam. E, instintivamente, deitou a cabeça para trás, provocante. Não falavam, comiam-se com o olhar. Os seus lábios abriram-se como para beber. O Pedro não podia desprender os olhos dela. As pestanas pesaram-lhe e os olhos inebriaram-se-lhe. A Áurea viu a sua beleza nos olhos do rapaz. A partir daquele instante, o seu corpo não se esqueceu mais daqueles movimentos de sedução. Este novo e perigoso poder que ressentia na alma, que sempre tivera, mas que só hoje conhecera, fê-la arrepiar-se. Via-se neles que sentiam um prazer salutar e desmedido por estarem juntos.
A Áurea, confusa, ao ver que o silêncio se prolongava demais, foi a primeira a falar, propondo-lhe a sessão cinematográfica da tarde. Não que lhe interessasse, nem sabia qual era o filme, mas unicamente para romper o silêncio embaraçoso que a perturbava. O Pedro assentiu, mas, manifestamente, sem grande entusiasmo. Certamente que preferia concentrar o intenso e penetrante olhar nos seus lindos olhos pretos em forma de amêndoa, dominados por umas sobrancelhas bem arqueadas.
Levantaram-se e, conversando placidamente, foram percorrendo no mesmo ritmo, num sentido e por um lado, e depois no outro e pelo outro lado, a comprida alameda sem reparar no que se passava à volta deles. Falavam de tudo, mostrando, tanto um como o outro, um bom conhecimento dos sucessos relevantes da vida portuguesa, assim como uma boa cultura geral. Às vezes, quando ela falava, atirado pelos movimentos dos seus lábios vermelhos, pelas suas faces tão frescas, e, como que perdido no meio das suas palavras e na emoção que estas lhe causavam, deixava de ouvi-la, sem saber como. Ele parecia sentir uma espécie de pudor em interrogar um ser cuja felicidade se lhe afigurava bastante frágil. Às vezes, olhava para o céu e pensava na forte alegria que provinha dos seus grandes olhos pretos. O prazer que sentia na companhia desta criatura, tanto o fazia saborear o presente como temer o futuro.
Nela, reinava uma estranha serenidade, parecida ao belo dia outonal que se fizera, e que ela desfrutava com delícia. Com ele, até as brincadeiras satíricas tinham o estígma do talento. Foram-se descobrindo, desvendando mutuamente, pouco a pouco. O tempo foi passando, imperturbável, sem se lembrar deles nem eles do tempo.
Não sabia quantas vezes tinha percorrido a alameda quando, passando diante do café-restaurante-cinema que tinha o mesmo nome, a Áurea reparou na multidão que, a sessão terminada, saía do cinema. Olhou para o relógio embora soubesse por experiência que passava das cinco. Efectivamente, eram cinco e um quarto, a hora do mil-folhas com o copinho de leite com canela. Deram uma última volta antes de se instalarem no café.
Uma hora mais tarde, deixou-se acompanhar à casa e despediram-se. No dia seguinte começava uma nova semana de trabalho. Era a sua prioridade. Tudo o mais só se poderia apegar nele.
Foi para o seu quarto preparar as coisas. Sentou-se uns momentos por cima da cama. Estava habituada a passear na alameda mas, como hoje, nunca lhe tinha sucedido. Tinha as pernas cansadas e doridas. Não afastava a possibilidade de ter cãibras de noite. Tinha o corpo e o espírito atormentados. Fechou os olhos e passou em revista a tarde que acabara de passar. Circunstâncias tão favoráveis como nas que ela se achava e a faziam sentir-se tão radiante, sabia que raramente se encontravam reunidas. Sobretudo, quando se sabe que o coração é o único a fazer o seu tormento ou a sua felicidade. Sentia-se bem na companhia do Pedro, sentia uma vontade, uma força interior, um encanto manifesto que a devorava aprazivelmente. Os seus olhos, tão bonitos e tão ternos, aterrorizavam-na de prazer. Qualquer coisa que descobria e cuja sensação enfrentava pela primeira vez. A segunda impressão que o Pedro lhe causara ia na mesmo sentido que a primeira. Ainda não podiam mentir-se um ao outro, que era o privilégio de um conhecimento mais estreito, de uma maior intimidade. Mas quaisquer que fossem as impressões de ambos, calavam-nas, escondiam-nas. Como se diz em determinados meios com uma elegância positiva e um pouco abstracta, encontrou-o bem. Riu-se. “Para já, estou na fase experimental. O tempo é o melhor censor, o melhor termómetro”, pensou.
Pensou nos pais. Só em pensar que extenuavam as suas forças a satisfazer necessidades, e que essas necessidades não serviam senão para prolongar a miserável existência que tinham, sentia o coração que se lhe fendia. A tranquilidade de que gozavam não era mais do que uma resignação fundada sobre infortúnios, semelhantes aos do prisioneiro que, para tornar a estadia mais agradável, pinta os muros da cela com cores variadas e perspectivas agradáveis.
Olhou pela janela e viu o pôr do sol que deitava sobre o rio os seus tons alaranjados, entrecortados de sombras. Ficou contente por poder gozar do charme da paisagem que dali desfrutava, de poder viver numa região que, de certo, fora feita para almas como a dela.
A ceia era servida habitualmente às sete e meia. Desceu para a sala que havia ao lado da galeria, e que se encontrava deserta, e, depois de acender a televisão, instalou-se confortavelmente no sofá de três lugares. A alegria e a impaciência acabaram por aturdi-la.
(continua)
XX
No dia seguinte levantou-se à hora habitual e ainda o sol estava a espreguiçar-se e já ele ia pelo caminho da azenha. Os dias repetiam-se e raramente divergiam. A manhã estava fresca, mas o sol não tardaria em aquentar um pouco o ambiente. Quando chegou ao cruzeiro ouviu as pancadas que as marteladas espaçadas e matinais do ferreiro propagavam até ele. Vindo de mais longe, talvez do caminho de Cubalhão, ouviu chocalhar e berrar alguém como quando as reses debandam e há que reuni-las. Tinha sorte pois as suas acompanhavam-no sempre com imenso agrado. Certamente que era o feito da estreita e prolongada relação que ele tinha tecido com os animais.
Antes de chegar ao campo onde deixava as vacas, viu uma forma estranha, curvada no meio do caminho. Acabou por reconhecer o Irineu, o mendigo de Birtelo. Dava passos pequeninos mas apressados. Pequeno, tinha uma cabeça demasiado grande, uns cabelos brancos e longos e a parte superior do seu corpo encolhida de tal modo que lhe dava o aspecto de um gnomo. Andava sempre com pressa. Se alguém lhe dava uma esmola, virava a cabeça e olhava para a pessoa de baixo para cima, como um velho cão engelhado. Com um movimento ávido, enfiava o pão na sacola e o dinheiro na boca, antes de ir à loja onde o cuspia por cima do balcão. Enchiam-lhe a pequena garrafinha, que outrora contivera laranjada, de aguardente e continuava o seu caminho sem falar. Diziam que não tinha o juizo perfeito por afirmar predizer os acontecimentos, lendo nas pedras e nos tojos coisas que só ele podia ver. Contava que nos seus constantes passeios pelas aldeias da vasta região, muitas das vezes de noite, encontrava os espíritos de pessoas que erravam pelos montes e com os quais falava. Em geral, toda a gente o pilheriava. Portanto, em segredo, muitos acreditavam supersticiosamente nele. Perguntavam-lhe como seriam as colheitas, iam pedir-lhe conselho e ervas curativas quando a doença batia à porta... Sabia o que muita gente ignorava.
Ainda infante, o Armindo tinha medo dele; mais tarde, gostava de ouvir as suas histórias. O mundo e a vida contava-os como os sentia, não como os via. Quando se encontraram, estacaram mas o homem nem para ele olhou. Apenas abanava a enorme cabeça como se estivesse a ouvir vozes que vinham de longe. Ao cabo de alguns segundos, fixou os olhos avermelhados e imóveis nos do rapaz e grunhiu:
— A tua mai nom anda bem pois nom, rapaz ?
Este, que esperava tudo dele menos uma pergunta destas, reteve a respiração. Endireitou-se como se quisesse evitar que as palavras o atingissem e sentiu o coração bater mais depressa. Os olhos do homem, profundamente afundados, sem vida, agitaram-se repentinamente nas órbitas de tal maneira que dava a impressão que lá formigavam insectos. Acercou-se mais do moço e continuou, nasalando, desta vez, como se estivesse a sonhar :
— Ôs homes bam-se é esquêcem-se das mulhêres. A culpa ê deles que, sim comprendê-la, encaram a bida duma maneira é, despois, lebam-na doutra.
O seu rosto queimado pela aguardente adquiriu um ar misterioso. E, inesperadamente, desatou às gargalhadas. Os joelhos do rapaz tremiam. Raivosamente, abriu o saco de pano, tirou tudo o que tinha para comer e deu-o ao mendicante, antes de se apressar de apanhar as cabras e as vacas que tinham continuado o caminho. Ainda ouviu o homem dizer:
— Ô home ê filho da bida, rapaz, é a ti, esta tamém te nom bai poupar !
E deu mais uma gargalhada assustadora e desdenhosa que o estarreceu.
Quando, por fim, chegou à azinheira sentou-se numa pedra, perto do caminho, a olhar para o enorme carvalho cor de cobre que cobria o caminho. Notou nos ouvidos um zumbido estranho, um calor irritante no lóbulo das orelhas e o silêncio da floresta povoou-se da lembrança de vozes raivosas. Pareceu-lhe ouvir de novo os clamores do padre, as adivinhanças do mendigo e um sentimento de amargo desaire apoderou-se dele. Tudo e todos estavam contra ele.
Levantou-se, partiu uns galhos de uma amoreira e chamou pelas cabras, como só ele sabia fazê-lo. Estas, contentes, trotaram atrás dele como crianças, tentando morder no ramo. Conhecia-as tão bem e gostava tanto delas ! Esgotado, foi sentar-se encostado ao eucalípto. Lentamente, recobrou o fôlego.
A imagem do Irineu, definhado e caduco, às gargalhadas, atormentou-o. Não entendia como tinha adivinhado que a mãe não andava bem. Não queria acreditar que o pobretana pressagiasse as coisas. De certo que ouvira mal. “Oubi mal, talvez, mas entom como pôd’ele tamém dizer qu’era por culpa dos homes ?” Havia algo que lhe escapava, que não batia certo. Como se não lhe chegassem as dificuldades que tinha ! Não contaria o sucedido a ninguém, nem à avó.
Fechou os olhos e deixou-se berçar pelo silêncio da floresta, interrompido às vezes pelo crocito de um corvo ou de uma pega. As horas, monótonas, foram passando, pesadamente. Acabou por adormecer.
Foi acordado por uma voz feminina que não reconheceu logo. Esfregou os olhos rapidamente e só então realizou quem era. Ficou sentado, encostado ao eucalípto, indeciso, sem saber como reagir.
— É Mindo, acordei-te, nom ? Posso-m’acercar ?
A voz da mulher era melodiosa. Sem esperar resposta, subiu os escassos metros de monte que os separavam e pôs-se diante dele, um sorriso trocista no olhar, a brincar com um vime que trazia na mão. Era a Rosa, a Viúva. O Salvador cumprira a promessa que havia bastantes meses lhe tinha feito.
O rapaz estudou-a uns instantes. Era uma boa quarentona, bastante bonita, cujo rosto respirava saúde. Possuía uma beleza tardiva, maior do que os esplendores luminosos e rosados da juventude que as mulheres com uma vitalidade profunda, como ela, escondem por debaixo das delicadas linhas do rosto. Tinha uns membros sólidos e umas ancas vigorosas. A cara amorenada estava envolvida por um lenço azul escuro do qual escapava uma marrafa de cabelos pretos. Uma parte das pernas e os pés, desnudados, saíam-lhe de uma espessa saia cujas pregas acentuavam as linhas das poderosas ilhargas. O peito apenas estava protegido por uma camisa de tela grosseira, larga, que deixava ver através de uma ampla abertura a nudez rosada de um busto maleável e forte e dois seios enormes.
Apetecia-lhe deitá-la no chão e, por cima dela, apalpar avidamente aquele corpo excitante, morder-lho e apertá-la nos seus braços até lhe faltar o ar. Mas, por muito ardente e imperiosa que fosse a tentação, não mexeu, não tinha coragem para arriscar-se. Uma vaga angústia, misturada a um inconsciente pudor, reteve-o. Não sabia que dizer, como abordá-la. Procurava uma palavra, um gesto, um meio e não os encontrava. As suas mãos, impacientes, crisparam-se nas ervas que conseguiram apanhar. Por fim, para romper o longo silêncio que o incomodava e para encorajar-se um pouco, perguntou-lhe com uma voz vacilante e ansiosa :
— Êl tu biste ô Salbador ?
A mulher riu e, estendendo-lhe a mão, disse-lhe:
— Bem, bamos ali p’ra riba, p’ra detrás do muro.
O rapaz, como um autómato, estendeu-lhe a mão do braço normal e, agarrados, foram para detrás do pequeno muro de pedras que, mais acima, separava os montes. Ficavam ao abrigo de quem passasse no caminho. Mandou-o deitar-se no chão e ajoelhou-se ao seu lado, sentando-se nos calcanhares. O Armindo, de costas, não tinha coragem para encará-la nem para articular uma palavra. Fitava o céu , tão familiar e intensamente azul, e ela, muito devagarinho, sem uma palavra, começou a fazer-lhe festas na nuca, no pescoço e no peito. O corpo do moço reagia ao contacto da sua mão descontraindo-se e, gradualmente, uma excitação exorbitante, eufórica, como nunca tinha ressentido ou imaginado, apoderou-se dele. Dela expelia um cheiro acerbo e exaltante, um cheiro animalesco, de estábulo, de flores selvagens, de um corpo fustigado pelo trabalho e pelo sol. A respiração do rapaz acelerou-se e notou uma ligeira sensação de vágado, de embriaguez. Sentiu o desejo morder-lhe violentamente o coração. Nas veias, o sangue queimava-o como se ardesse. Naquele momento, para satisfazer o seu deleite carnal, era homem para tudo. Limitava-se a obedecer a uma folia incoercível. A pouca razão que lhe restava ia-se desvanecendo à medida que o desejo crescia. Foi naquele momento que percebeu o que a avó lhe dissera. Estremeceu ao sentir a mão da Rosa que lhe desabotoava a braguilha e lhe tirava o membro vertiginosamente rijo. Em seguida, depois de arregaçar a espessa saia, pôs-se agilmente por cima dele, um joelho de cada lado. Era verdade o que contavam: a Rosa não trazia calcinhas. O moço, inflamado, remexia as narinas, dilatadas, como fazem os garanhões que farejam, no vento, os odores das fêmeas e, ao sentir-se entrar nela devagarinho, fechou os olhos e puxou um suspiro que mais parecia um ronco. O seu rosto, relaxado pelo prazer, sorria. Pensava na Lídia.
(continua)
XVIII
Só quando chegou à casa é que a Áurea reparou que deixara ficar no café o saco com as meias e o cachecol, assim como os pastéis. Iria mais tarde recuperá-los. Sentou-se na cama a pensar no que lhe acontecera, como reagira, as razões e as possíveis consequências. Quantas vezes pensara nisto ! A gente cuida sempre que só acontece aos outros ! De todos modos, não tinha nada que deplorar. Reagira como qualquer outra, na sua situação, reagiria. Nem mais nem menos. “O mais importante, agora, é gerir”, disse-se.
O que a perturbara fora o seu à vontade, a educação, e, sobretudo, o seu olhar cheio de bondade, de compreensão. Nunca tinha visto um olhar tão profundo e meigo que a aliviara e tranquilizara como nunca até ali. Era preciso ter um talento louco para poder descrever os seus gestos, a harmonia da sua voz e o fogo dos seus olhares. Nenhuma linguagem poderia representar ou personificar a ternura que dele emanava nem a sua impressionante postura. Por isso reagira com confusão e com agitação. A partir de agora, seria diferente.
Tinha lido diversos clássicos franceses e não tinha a mesma concepção que eles do amor. Acreditava incontestavelmente que o amor só podia ser a forma suprema da amizade. A amizade tinha de ser o factor básico, o húmus, o pedestal para se poder atingir o amor. E, para isso, o convívio e a experiência, eram os únicos sendeiros a trilhar. Os sobressaltos da vida só podiam ser as lianas que os fizessem subir até chegar à meta final : o amor. Dava-lhe vontade de rir, e até a irritava, quando andava no magistério e ouvia as colegas dizer que, com tal ou tal outro, iam para a cama de olhos fechados. Era o amor cego, diziam. Que disparate!
Desprezou sempre o estado a que chamavam de paixão. Não podia conceber que uma pessoa pudesse viver exclusivamente para outra, criando à sua volta uma espécie de membrana isoladora que a separava do resto do mundo. Era uma forma extrema de egoismo, de insensibilidade, de desprezo e de exclusão voluntária, espantosamente tolerada pelas pessoas. Não acreditava que pelo amor de um ser se pudesse ficar autista, rejeitar os restantes, desprezar tudo, chegando mesmo a suprimir-se. Não era amor, era a loucura que se manifestava num quadro amoroso.
Para ela, ao contrário da maioria, o sexo não era primordial para se poder amar alguém. Quem lhe dera encontrar alguém com quem pudesse compartilhar para sempre o sexo, o amor, as ideias, as vontades, as paixões, os problemas relutantes... Era quase que impossível. Compreendia muito bem que houvesse casais estáveis e fortes que, passados anos, apenas tivessem relações sexuais distintamente, sem que isso tivesse quaisquer consequências ou incidências sobre o seu equilíbrio. Ver o amor através do sexo é consagrar o casamento ao fracasso. Era o que via à sua volta. Não contava casar-se unicamente para se assegurar um prazer sexual. Não, a representação que se tinha feito do casamento apoiava-se, inicialmente, na igualdade perante o amor, no respeito mútuo e na compreensão recíproca, categórica e total. Numa segunda fase, era a decisão e a orientação a dar à construção da família. Tinha lido que só a partir do século 18 é que se principiou a falar de amor nos casamentos. Até ali, ninguém casava por amor, nem a pensar no sexo. A finalidade primeira do casamento era aumentar o património e manter a descendência. No casamento não existia moral. Riu-se. “Não vou encontrar ninguém que queira suportar os meus delírios.”
A avó já lhe tinha dito que só se podia dizer que um casal se entendia quando não fosse preciso falar, quando um leve olhar, um pequeno gesto fosse suficiente para se compreender. Mas, para isso, que eram necessários muitos anos. Era o que a Áurea queria encontrar mas em muito menos tempo.
Desceu as escadas que a separavam da galeria. Como era cedo, ligou a televisão. Depois de almoçar, deitou-se de lado por cima da cama, um livro nas mãos. Precisava de aliviar um pouco a mente. Quando reparou que não tardaria em fazer noite, foi à pastelaria buscar as coisas. O dia fora curto. E imprevisto.
XIX
Pouco a pouco, durante o dia, o ambiente foi melhorando e eles foram-se descontraíndo. O Armindo e a mãe foram matar um frango que depois ela preparou com arroz à maneira do sarrabulho. Inconscientemente, faziam frente ao inesperado sermão do padre. A Delfina ficou satisfeita por ver que se tinham aproximado um do outro. Sabia que não era fácil, tanto para um como para o outro, e, por isso, ainda mais mérito lhes dava. Os momentos de sincera harmonia eram de tal modo inabituais que, quando se apresentava um motivo para tal, o júbilo era extraordinário. As palavras eram escassas e desnecessárias. A Delfina sabia que o silêncio é uma queixa e que as palavras são querelas. Se as pessoas soubessem quantas nuances há nos sentimentos e na maneira de agir... Por ser mulher e mãe, podia perceber com mais facilidade as loucuras da filha e ser mais indulgente do que o neto que se sentia sufocado pelo seu orgulho de adolescente.
A Delfina há muito que desconfiava do que se tinha passado. As pessoas, como ela, onde a imaginação, modelada diariamente, predomina, e só o corpo langue, têm pressentimentos que mais ninguém pode ter. Ainda de manhã, depois da missa, muitos e muitas estavam admirados com a sua força de vontade, a sua veemência. Não compreendem que as esperanças de um dia se sentir aliviada lhe davam coragem para viver e para ignorar o sofrimento. O próprio silêncio, mesmo pesante, se se lhe prestar atenção, é suficientemente poderoso para fazer-nos cessar os funestos pensamentos e os frequentes momentos dolorosos.
Depois de comer, da avó e da mãe terem ido deitar-se, o Armindo sentou-se um pouco ao sol, no degrau da porta. O Fedelho, abanando o toco que lhe servia de rabo, juntou-se-lhe prestamente, deitando-se ao lado dos seus pés. Tinha uma grande amizade pelo cão. Cresceram juntos. O rapaz pouco mais velho era do que ele. Fazendo-lhe festas na cabeça e no peito, pensava na noite anterior. Sentia-se contente. A conversa que tivera com o Salvador fora bastante agradável e pusera-o à vontade. Sentia nele uma vontade firme, uma força jovial, estimuladas pelos actos disparates da mãe. Queria experimentar, comprovar a força irracional que a mãe e a avó atribuiam ao cio, à necessidade fisiológica e incontrolável das pessoas.
Irremediavelmente, a figura da Lídia veio perturbá-lo com encanto. Só em pensar nela, sentia-se embriagado, subia-lhe qualquer coisa à cabeça que o euforizava, que o subjugava, como jamais as suas incomparáveis fantasias tinham feito. Via-a sentada no muro, depois de terem vindo do moinho, a contar-lhe coisas que ele não ouvia, de tal modo estava mergulhado nos seus olhos, nos seus lábios... Nunca os seus lábios lhe tinham parecido tão atraentes, como se se entreabrissem, lânguidos, para absorvê-lo lentamente.
Deu um grande suspiro com agrado. Levantou-se mas, depois, hesitou uns instantes. Tinha pensado ir até ao adro. Era possível que a encontrasse lá pois, aos domingos de tarde, era o ponto de encontro das raparigas e dos rapazes. Preferiu rescindir da ideia e evitar aborrecimentos com os rapazes.
Resolveu ir dar um passeio pelo caminho da azenha. Pegou no chapéu e no pau e dirigiu-se para o grande portão de ferro que já não tinha cor. Quando se virou para fechá-lo, reparou que o Fedelho, agitando o rabo, permanecia do lado de dentro. Sorriu-lhe e baixou-se para lhe fazer umas festas. O coração fendeu-se-lhe ao descobrir-lhe nos olhos turvos e embaciados um enorme sentimento de frustação, de sofrimento por não ter forças suficientes para acompanhá-lo na sua caminhada. Consternado, agarrou-lhe a cabeça e esfregou-a, com meiguice, contra a dele.
— Ô meu Fedelhinho, nom fiques triste qu’eu benho já, si ?
“Ô peso dos anos estraga tudo.” – pensou, com mágoa. E, portanto, queixava-se que a infância não queria abandoná-lo. Não imaginava que, por muito que crescesse, nunca conseguiria curar-se da infância.
Fechou o portão e dirigiu-se para o cruzeiro. Sabia que, ao domingo, àquela hora, não encontraria ninguém. Movia-se com calma, olhando para o céu de um azul profundo como o aço. Ofuscado pelo belo sol outonal, ia enchendo os pulmões do ar puro e fresco da montanha que o revigorava. Inelutavelmente, a imagem da Lídia impôs-se e sentiu, de imediato, um bem-estar inabitual, uma sensação atraente que lhe conferia o sentimento de que era um rapaz que tinha algo mais do que os outros, apesar da desvantagem. Pôs-se a cantarolar.
Lembrou-se que, um dia, conversando com a irmã, esta tinha-lhe dito que nos outros lugares, nas vilas e nas cidades, as pessoas eram como ali : mal-intencionadas, más-línguas, invejosas, egoistas... mas, como não se conheciam, viviam mais descansadas, na ilusão, pensando que eram felizes. Também lhe tinha dito que a felicidade era uma coisa subjectiva, coisa que ele não percebeu. Então, explicou-lhe que dependia das pessoas, que uns, com quase nada, eram felizes, outros precisavam de mais, outros, de muito mais, e outros tinham tudo e, apesar disso, eram infelizes. Ele, ao perceber, rira-se, não dissera nada mas identificou-se imediatamente com os primeiros. Não pedia grande coisa mas sentia que nem isso lhe queriam deixar.
Fez uma careta e apertou o pau até lhe doerem os ossos da mão. Não se deixaria ditar as suas vontades, os seus desejos, a sua vida pelos outros.
(continua)
XVII
Às sete e meia da manhã, a Palmira e o filho estavam sentados à mesa da cozinha. Era domingo. Cada qual tinha diante dele uma malga de sopas fumegantes. Para ela, a comida tinha de estar bem quente, ainda que tivesse que esperar ou soprar-lhe, de outro modo, não a queria. Tinham-se encontrado na cozinha, lavado a cara e preparado a desjejua sem se terem dirigido uma só palavra. Evitavam cruzar o olhar. A Palmira tinha a cara particularmente ressequida pelo cansaço físico prematuro mas também pelos pensamentos que, durante a noite, lhe tinham, sem dúvida, escavado a alma. Via-se que tinha vontade de dizer qualquer coisa mas não encontrava as palavras na sua cabeça perturbada. Gostaria de lhe dizer o que a feria, que lhe causava dor, o que lhe apertava o coração e a sufocava. O que não devia ter feito, nem pensado. Em vão ! As palavras fugiam-lhe da boca. Respirou intensamente, vencida, como quem nada tem que dizer, que nada pode fazer.
O Armindo foi o primeiro a acabar. Arrumou a malga no lava-louça e, quase como se falasse sozinho, informou :
— Bou arrumar ôs animais enq’anto você s’ocupa da minh’àvó.
— Está bem, Mindo – respondeu-lhe com uma voz quase inaudível.
Aparentemente, excepto a voz dela, nada era diferente das outras manhãs de domingo. Enquanto a sua mãe, pensativa, acabava as sopas, preparou a lavadura e, depois de pôr o chapéu na cabeça, saiu para o patamar. O Fedelho esperava por ele, como estava habituado a fazer. Tinha chuviscado de noite. O chão estava molhado.
Às nove e meia, depois do sino tocar pela segunda vez, estavam os três vestidos e preparados para ir assistir à missa dominical. Elas vestiam, practicamente, a mesma roupa preta que nos outros dias, só que esta estava quase nova; o Armindo metia o último fato, também preto, que o pai lhe mandara fazer, havia mais de três anos, e uma camisa dum branco imaculado. A manga do braço maior começava a ficar-lhe um pouco curta. A Delfina, fincada na bengala com o braço direito e, com o esquerdo agarrado ao da filha, foi descendo cuidadosamente o caminho até à velha igreja.
No interior da pequena capela, as pessoas do lugar, numerosas, apertavam-se nos bancos. Do lado direito, os homens, do esquerdo, as mulheres. Na primeira fila, estavam sentados o Beites da loja, o Rogério e o Arsénio, o ferreiro, que era zarolho. Os três, vestidos de preto como todos os outros, tinham os chapéus na mão, mostrando a cabeça resplandecente de brilhantina. O ar principiou a ficar mais pesado. O cheiro da água de colónia barata de que todos se encharcavam, misturado ao do fumo de que as roupas se impregnavam com o tempo, e ao do incenso da capela, tornava o ar irrespirável.
A missa foi evoluindo com normalidade até que o padre subiu ao púlpito e se agarrou a ele com as duas gordas mãos. O móvel gemeu sob a pressão do sacerdote. Era o momento do sermão. A atmosfera dominical propagou-se lentamente pela igreja. Os aldeões limparam a testa gordurenta com o lenço e aclararam a garganta como se fossem eles que iam falar. Fez-se silêncio, um silêncio de espera, de apresto. A voz rouca e robusta do padre encheu a nave.
O Armindo estava sentado ao lado da avó, sonolento. Não gostava nada daquele calor humano perfumado de incenso que lhe dava sono. O seu olhar passeava, indiferente, pelos rostos pios e idiotas. A sua avó não parava de cheirar o raminho de sálvia que trazia sempre no bolso. O incenso também a incomodava. Atrás, alguém tossiu roucamente. O rapaz tentava distraír-se reparando em tudo excepto na homilia. Portanto, o padre arengava cada vez mais alto e, sob a sua voz tonitruante, as velhotas, desdenhosas, cabeceavam como se estivessem na casa.
O padre, que parecia olhar olhar para eles, falava de pecado, cada vez mais furioso. “Contra quem está ô home zangado ?”– perguntou-se o Armindo.
— Satanás só vos oferece o pecado; Deus, na sua bondade, oferece-vos a virtude, a paz da alma ! Podeis escolher libremente mas, depois, virá a hora da expiação.
A Delfina apertou o braço do rapaz que olhou para ela, no momento em que o padre continuou a falar das pessoas más, das mulheres culpadas.
— Nunca é tarde para entrar no bom caminho ! – gritava – Se estas criaturas se perdem no meio de vós, tendes que repeli-las sem hesitação, assim como o Senhor as repelirá do seu trono para o fundo do inferno !...
Sentiu-se um movimento na igreja. A voz do padre assobiou, cava, até ao fundo da igreja.
— As más mulheres estragam os homens corajosos e honestos e desonram as famílias; podem esconder-se dos outros, mas nunca se poderão esconder de Deus!
Atrapalhado e enraivecido com as palavras cuspidas pelo padre, o Armindo olhou disfarçadamente para a mãe. Estava de olhos fechados, branca, não como um morto, mas quase como a própria morte. Fazia um esforço monstruoso para não desatar a chorar.
O sermão acabara. O padre ficou direito, ofegante, à espera que a respiração voltasse à normalidade, antes de pôr termo à missa. O Senhor nasceu e morreu no altar, com precipitação.
Os olhos do rapaz fixaram-se no Cristo, deteriorado pelas inclemências do tempo, que se elevava diante das filas de bancos e estendia os seus dois braços feridos na cruz com um ar de triste misericórdia. Enquanto olhava para o Salvador, que tanto amara o mundo, sentia um ódio abrasador pelo padre, por todos os que ali se encontravam.
Os que estavam no fundo dirigiram-se para a saída. Depois, foi nos primeiros bancos que começou a agitação. Do ar requecido voltou a exalar o cheiro a chamusco, a pomada rançosa. Dirigiam-se devagar para fora, empurrando suavemente, o rapaz, a avó e, de cabeça baixa, a mãe. A sua cara continuava pálida, os cantos da boca enrijecidos. O rapaz, com os olhos vazios, olhava para as costas redondas das pessoas que se puxavam para a claridade da porta, mas não via nada.
Fora, faziam-se grupos de três ou quatro que depressa se desfaziam para ir formar outros mais adiante. A Delfina, como sempre, não teve dificuldade em arranjar um lugar num banco ao lado de outras pessoas. O neto e a filha ficaram por detrás dela, de pé. O ritual costumeiro começou. A gente vinha saudá-los amigavelmente mas a Palmira, cujas palavras lhe saíam espontaneamente, não estava ali. O seu rosto não tinha pinta de doçura e permanecia vago e frio.
É natural que, quando um incidente ou um súbito terror nos surpreende indevidamente, a impressão seja mais forte do que se fosse noutras ocasiões, seja por ser inesperado, seja porque os nossos sentidos, estando alerta, são mais susceptíveis de sentir uma emoção forte e rápida. As palavras do padre tinham-na incomodado solidamente e fizeram-lhe perder a pouca vontade que lhe restava. Na cabeça, sentia um tumulto surdo que a impedia de pensar e lhe dava a impressão que tinha recebido uma enorme pancada no peito e cuja dor ainda era confusa. Estava mergulhada num desânimo que a fazia sentir-se inquieta e agitada.
A mãe virou-se e deitou-lhe um olhar de terna compreensão e da mais doce compaixão. Não sabia se queria consolar a filha ou se se queria consolar a ela própria.
— Bamo-nos, minha filha ! – pediu-lhe.
Não foi ouvida. A alma da filha estava tão agitada que era surda a qualquer exortação exterior. Agarrou-lhe na mão, que apertou, e repetiu-lhe o pedido. A gente discutia sem fim, saboreando aqueles curtos e raros momentos de convívio. Cuidadosamente, puseram-se a caminho da casa, evitando as poças de água que a chuva fizera durante a noite e nas quais o sol principiara a tomar banho.
(continua)
A Áurea, consciente da hora, resolveu parar diante do mostrador da pastelaria onde, às vezes, isto é, quase sempre, sucumbia à sua insuperável fraqueza: os mil-folhas. Pediu dois para ela, dois de coco para a mãe da Natália e mais dois de nata para o pai. À tarde, se estivessem disponíveis, podia tomar um chá com eles e passar uns agradáveis momentos de convivência. A vendedora, uma moça simpática que já a conhecia, preparou-lhe a caixinha de papel que atou com uma linda fita avermelhada de plástico. No preciso momento em que se virou com o fim de prosseguir o caminho, sentiu alguém chocar contra ela, projectando-lhe a caixa com os pastéis para o chão. Não teve tempo de baixar-se para apanhá-la. Um homem jovem, com poucos mais anos do que ela, recuperou-a prontamente e devolveu-lha desculpando-se apressadamente.
— Lamento muito o acontecido, minha menina ! Sou um cabeça no ar ! Peço-lhe mil vezes perdão pelo imenso incómodo que lhe causei.
A Áurea, confusa, não conseguiu articular uma palavra. Ficara suspensa no profundo e insinuante olhar do jovem que a subjugava agradavelmente. De aparência ordinária, com um palmo a mais do que ela, só a vasta cabeleira frisada cor de castanha o distinguia, dando-lhe um ar de intelectual. Antes que pudesse recobrar o sangue-frio que regularmente a caracterizava, ouviu-o dizer que se chamava Pedro e pedir-lhe afavelmente que, para se fazer perdoar o gesto condenável de que fora o culpado, aceitasse tomar um café ou qualquer outra coisa na sua companhia. Sem saber como, sentiu os lábios mexer e um “está bem” tímido, quase que aflitivo, escapou-lhe da garganta.
Agarrou-lhe delicadamente no braço e entraram na pastelaria. Perdida, sentou-se na primeira mesa vazia que encontrou. Não se sentia bem nem mal, sem contudo saber o que realmente a tinha perturbado tanto. Tivera que obedecer, involuntariamente não pudera resistir. E, ao mesmo tempo, sentia-se segura e satisfeita interiormente, como se fosse qualquer coisa há muito decidida, predestinada. Distraidamente, respirou profundamente para evacuar o stress inicial. Tinha que dominar-se.
— Chamo-me Pedro, mas creio que já lho disse. Você é que ainda não me disse como se chamava ou fui eu que não ouvi ?
Não queria levantar os olhos. Tinha medo de enfrentar aquele olhar tão profundo e enigmático que penetrara nela intimamente mas que, ao mesmo tempo, libertava uma confiança suavizante, aquietante. Conseguiu esboçar um tímido sorriso para lhe responder.
Pediram um café e um carioca de limão. Reparando no seu nervisismo, no seu temor, foi ele que falou. Pausada e distraidamente, contou-lhe que era fotógrafo e tinha o estúdio do outro lado do rio, na estrada de Novelhos. Fazia o que todo fotógrafo faz : casamentos, baptizados, comunhões, fotos para os bilhetes de identidade, passaportes, recordações, etc. No entanto, o seu íntimo desejo era, num curto futuro, ter possibilidades de dar asas à sua grande paixão : a fotografia de arte. Tinha vinte e oito anos e era solteiro. Nascera na Barca mas fora criado por uns tios na casa dos Arcos onde residia e tinha o estúdio. Calou-se. Pegou na chávena que até ali desleixara e foi tomando o café já tépido aos golinhos.
Ela, que inicialmente agarrara a chávena com as duas mãos, tal era a tensão que a afligia, deixara-se distender gradualmente à medida que ele se ia exprimindo. Os seus reflexos, até ali confusos e desordenados, foram retomando o curso normal, depreendido. “Já chega, disse para si, pareço uma criança diante do pai natal !” Sentia-se ressentida consigo mesma. Que lhe passara ? Riu-se interiormente. Se era a isto que os românticos franceses, que ela conhecia modestamente, apesar de ter lido alguns, chamavam o “coup de foudre”, tinha recebido uma forte descarga, pensou jovialmente. Decidiu refrear-se de vez. Não fazia parte dos seus princípios subjugar-se a quem quer que fosse, sobretudo quando acabara de o conhecer. Olhou para ele no momento que pousava a chávena. Os olhares cruzaram-se e cumpliciaram-se com ternura. Voltava a ser a Áurea escrutadora, curiosa, que tinha vontade de fazer estudos de sociologia.
— E você ? – inquiriu ele sorrindo-lhe.
Já sossegada, disse-lhe de onde era, que exercia como professora em Penacova, onde vivia e que tinha vinte e quatro anos. Desleixadamente, omitiu de dizer que era solteira, coisa que ele não lhe perguntou. Fôra breve propositadamente. As impressões tinham que ser amadurecidas antes de ela se empenhar. Olhou para o relógio e desculpou-se, dizendo-lhe que tinha que volver à casa. Levantaram-se e foi no passeio, antes de se despedirem, que ele lhe perguntou:
— Foi um imenso prazer para mim conhecê-la, Áurea. Acha que podemos voltar a ver-nos ?
Sorriu-lhe uns instantes fixando-o bem e, finalmente, acabou por abanar a cabeça afirmativamente. Marcaram encontro ali mesmo para o próximo domingo de tarde. Pôs-se a caminho da casa. O saco plástico com as meias e o cachecol, assim como a caixa com os pastéis, ficaram esquecidos por cima da mesa da pastelaria.
Em poucos minutos, a alameda ficara practicamente deserta. Os feirantes, com um tachinho de comida no regaço, que muitos deles iam guarnecer às pensões, iam comendo ao lado ou dentro das tendas. Havia sempre pessoas que aproveitavam esta hora de pouco movimento para fazerem compras.
XVI
Eram oito da noite quando o Armindo empurrou o portão e penetrou no quinteiro. Trazia na mão a cana de pesca com o carreto Mitchell que o Salvador tinha reparado. Na janela da cozinha, havia luz. O Fedelho, como se não o visse há muito, e apesar da escuridão, foi ter com ele a meio do quintal e, satisfeito, esfregou o minúsculo focinho contra as suas pernas. O rapaz, encantado, pôs um joelho no chão e fez-lhe umas festas na cabeça e no pescoço. À mãe tinha-lhe devoção, como a um patrão, a ele tinha-lhe amizade, como a um irmão. Ao chegarem às escadas da casa, o animal ficou a vê-lo subi-las, abanando o exíguo rabo e piscando os olhos à vista dos fachos da sua lanterna de bolso, antes de regressar para o quente sossego da casota.
Receoso do ambiente que ia encontrar, e apesar de sentir uma energia intensa que naturalmente lhe devia facilitar ou, no pior dos casos, condicionar os esforços que estava prestes a consentir-se, preservava uma determinação prudente.
Abriu a porta da casa que chiou e a primeira visão e sensação com que ficou ao entrar tranquilizaram-no. Teve a impressão de que o esperavam. A avó, imparável, instalada na sua cadeira de balanço, ao vê-lo, sorriu-lhe com afecto. Tinha cara de quem estivera a dormitar. Devia ter acordado com a lamúria da porta. Para o Armindo, o seu gesto foi uma maneira de sossegá-lo e de lhe dar confiança. Arrimou o pau ao muro ladeiro da porta e pousou a lanterna e a cana por cima do comprido móvel.
A mãe, de costas para ele, acabava de lavar a louça que ela e a avó tinham utilizado para cear e que se compunha de dois pratos fundos e dois copos. Por cima da mesa, à qual o moço se tinha sentado, havia um pedaço de pão fresco que ele agarrou e começou a mordiscar sem dizer uma palavra. Na lareira, ardente, o caldo esperava pela colher que o liberasse do calor do braseiro e o deixasse saborear uns momentos de agradável amenidade num prato.
— Côm’algo, Mindo ! Ô pam sim mais nom t’ench’a barriga, meu netinho ! – instigou-o a avó.
O rapaz, ferido, confuso e cansado como se sentia, limitou-se a esboçar uma careta de agradecimento. Durante uns segundos, instalou-se um silêncio pesado. Um silêncio daqueles que não eram mais do que um interregno. Ouviam-se estalar as achas de carvalho, ainda verdes, das quais se desprendiam fortuitamente fagulhas com cores tão matizadas que faziam pensar num fogo de artifício.
— Quêres que te faça algo, Mindo ?
Fora a mãe que, inesperadamente, sem se virar, num tom intermediário, lhe fizera a pergunta. Desconcertado, o rapaz olhou para a avó e descobriu no seu rosto, no seu olhar, cheios de ternura, um encorajamento e, sobretudo, uma amostra de que, apesar de velha, não deixava de ser a pessoa com mais autoridade moral.
Teriam falado as duas ? Em todo caso, vista a atmosfera, não tinha havido altercação.
— Nom senhor, nom quero nada. Chega-m’ô caldo.
Não conseguiu pronunciar o vocativo, “minha mãe”. Novo silêncio. Sem uma palavra, a Palmira pegou no candeeiro de louça que acendeu e, como fazia diariamente, acompanhou a mãe à retrete, levou-a para o quarto, ajudou-a a vestir a camisa de noite e a deitar-se. Encostou-lhe a porta e, com o candeeiro na mão, foi para o seu quarto silenciosamente.
O Arminto suspirou. Sentia-se mais extenuado do que se tivesse passado o dia a cortar feno sob um sol ardente. Mexeu bem o caldo com a grande colher e pegou numa malga que encheu até não caber mais. Verificou se havia vinho na caneca e encheu uma tigela. Sentou-se e, por uma vez, comeu vagarosamente, saboreando delicadamente o caldo. Estava a retardar a hora de se deitar. Tinha receio da noite.
(continua)
Antes de chegar ao cruzeiro, distinguiu imediatamente três vultos. Eram sempre os mesmos. Não se atrapalhou. Se por azar o provocassem, iam ficar a saber com que lenha se aquecia. Escolhiam mal o momento de o importunar ou de lhe procurar pulgas na cabeça. Quando chegou junto deles, disse-lhes, sem parar:
— Que boa bida tedes ! Atê parêce que bibides nô cruzeiro !
Surpreendidos, riram e um deles convidou-o:
— Aonde bás a esta hora, Mindo ? Fica aqui c’ôs homes, connosco é que tu estás bem, anda !
— Bô ! S’inda aprendesse algo ! – e, sem lhes prestar mais atenção, continuou pelo meio do lugar.
Passou diante da igreja. Duas velhas tílias, com galhos frondosos, cobriam a pequena praça e os quatro bancos de pedra que ali havia. Continuou até ao fim do lugar. Do lado direito, um lindo fontanário de granito, marcava o fim do lugar e o princípio do caminho de Cubalhão. A lua nascente emergia das montanhas sem pressa. Andou até avistar um agregado de sombras, o pinheiral, através do qual mal se distinguia o caminho que continuava para Cubalhão. Do lado direito, de onde o horizonte se descobria, deixando ver aqui e ali, ao longe, umas lânguidas reverberações de luzes nas Cortelhas e em Parada, descia uma vereda sinuosa com aspecto de ser pouco usitada. Tirou a lanterna do bolso e, auxiliando-se com o pau, foi descendo calmamente.
Ao cabo de uns metros, ouvia-se o ruído irregular de água a caír para um tanque. A frescura e a vegetação, favorecida pela primeira, eram predominantes nas paragens. Poucos metros a seguir ao tanque, do lado esquerdo, perdurava um carvalho extraordinário, velho de vários séculos, maquilhado, sabe-se lá por quantas temporadas acumuladas e bronzeado por dezenas de trovoadas. A casca era rugosa, espessa, como que mineral. Parecia um tronco cortado num penedo. Indefinidos e inextricáveis galhos brotavam deste tronco, engendravam-se uns nos outros, multiplicando-se constantemente. Ao lado, quase que dissimulada pela gigantesca árvore, a casa do Salvador.
Era uma casa pequenita, com um imponente lilás que se esbanjava por cima da única porta e lhe dava um ar irrealista. Tinha duas janelas, mas só numa luzia uma fraca luz. Os muros, autênticas miscelâneas, estavam remendados com materiais que, para outros, seriam inutilizáveis. Dum lado e doutro, a sucata, o ferro-velho, as madeiras, pedaços de cancelas, de arados, rodas e outros materiais, de toda natureza e formas, amontoados, davam ao conjunto a aparência de uma escultura moderna. Da pequena cheminé, saíam pequenas nuvens de fumo. O Armindo não compreendia como ele podia viver sozinho num sítio tão isolado, sem mesmo ter um cão. Achava impossível que uma tal solidão conviesse a um homem da sua idade. Apagou a lanterna, que meteu no bolso, e deu duas pancadas leves na porta. Esta abriu-se imediatamente, como se o homem estivesse por detrás da porta à espera. Ao deparar com o rapaz, o rosto fendeu-se-lhe num sorriso leal e prazeroso.
Tinha o físico de um homem de mais de cinquenta anos, pequeno, atarracado, de largos e sólidos ombros. Tinha a pele tostada e curtida pelo sol, uns olhos pequenos e penetrantes e uma bela cabeleira grisalha. Apenas tinha barba no queixo e, nos dois lados da boca, tinha aquelas duas grandes rugas, que mais pareciam sulcos, e que revelam os longos mutismos dos solitários. Vivia sossegado. Chegara ali como um infeliz que, sob o peso esmagador do seu fardo, se arrasta no caminho sem desanimar, unicamente interessado em contemplar libremente a luz do céu. Tinha construido nele próprio um mundo só para ele. Era feliz por ser um homem que, por mínimo que fosse o seu poder, tinha conservado o suave sentimento de liberdade nas profundezas do coração. Dali, com um simples olhar, podia abraçar os vales no fundo e, logo a seguir, os montes que tentavam fazer barreira aos ventos carregados de humidade que vinham do mar. Só alguém como ele, que tivesse dado alguns passos na vida, podia conhecer as secretas influências exercidas por um lugar na disposição da alma. Só alguém como ele podia conhecer os mugidos, os lamentos, os uivos dos montes. Eram as suas entranhas, o seu paraíso.
Mandou-o entrar e sentar-se à pequena mesa que tinha no meio da peça. O primeiro olhar bastara-lhe para descobrir no rosto do rapaz que alguma coisa o afligia. Sentaram-se um diante do outro. O Salvador falava pouco, como todos os homens do monte. As palavras, os gestos tinham uma grande importância. Tudo se ouvia, se via ao longe.
O Armindo não ousava olhá-lo nos olhos. O que se passara com a mãe instigara-o a vir ver o amigo. Não que fosse para lhe pedir conselho, mas, como lhe tinha dito a avó, para saber se o que a mãe fazia há muitos anos era assim tão excitante, inevitável, fatal.
— Entôm, Mindo, que te passa ? Algo t’atormenta, nom ?
O rapaz não sabia como começar. O que o Salvador lhe tinha prometido fora há bastante tempo e, agora, receava a sua resposta. Perguntou-se por que é que nã tinha ficado na casa. Era demasiado espontâneo e, depois, quando já era tarde, arrependia-se.
— Tem algo de beber, Salbador ? Uma copa d’augardente ?
— Si, home, si ! – retorquiu.
Lembrou-se de um pedinte que vira pela primeira vez quando ainda era miudo e que vinha de vez em quando mendigar a Orjás. Gostava muito de aguardente e então contava que, quando Deus criou o frio, a fome e a velhice, teve piedade dos homens e, para lhes dar algo de bom, criou a aguardente porque, com ela, podemos esquecer o frio, a fome e a velhice.
O homem levantou-se e foi a um pequeno armário, todo de madeira, de onde tirou uma garrafa e dois cálices. Apenas acabara de encher o primeiro e já o rapaz o levava à boca, esvaziando-o de uma só vez. Ficou uns instantes com a boca aberta. A aguardente, por onde passara, queimara-o, liberando umas baforadas de calor que lhe deram coragem para falar.
XV
Havia muita mais gente do que quando a Áurea chegara à feira. Era natural. De bom humor, quase que sorrindo, bolsa a tiracolo e o pequeno saco plástico na mão, passeava com normalidade o olhar perscrutador pelas pessoas que ia cruzando. O sol e o azul do céu continuavam preponderantes ainda que algumas nuvens acinzentadas viessem intrometer-se, momentaneamente, diante dos raios amarelados.
Os deliciosos odores, que se propagavam das abundantes pensões e cafés que havia daquele lado da alameda, faziam crescer a água na boca. Entre eles, o cheiro do prato mais apreciado e consumido pelos arcuenses no dia de feira, as tripas. Até a dona da casa onde ela estava hospedada, quando a preguiça a entorpecia, ia a uma tasca junto da estação das camionetas buscar um tacho de tripas e outro mais pequeno de arroz seco para comerem todos à noite. Era um costume nos Arcos.
Passava das onze. O pessoal dos numerosos restaurantes principiara a atarefar-se em volta das mesas. Os preparativos deviam ficar findos a tempo. O meio dia estava próximo e umas centenas de bocas famintas não tardariam em precipitar-se para os restaurantes de toda a vila. Os da alameda, que estavam melhor situados, não eram suficientes para restaurar, ao mesmo tempo, tanta gente. Para alguns camponeses e montanheses, para os quais a vida ordinária custosa não era portadora do mais pequeno momento de folguedo, a vinda à feira ocasional era um dia de festança, cujo auge era o momento do repasto na pensão. Regalavam-se com iguarias que, ou por razões financeiras, ou por falta delas nas lojas da aldeia, não podiam degustar periodicamente.
(continua)
Os raios de sol tímidos, mas ainda tépidos, que entravam pela janela fizeram-no pensar noutra coisa e deram-lhe coragem para se levantar. Quando passou diante da porta entreaberta do quarto da avó, ouviu-a ressonar profundamente. “Devia-se ter deitado tarde, coitada”- pensou. Havia muito que a avó lhes tinha dito que, às noites, quando ela o chamava, o seu Bilinho vinha ter com ela e passavam horas a falar. Só ela o podia ouvir. E, claro, ela punha-o ao corrente de tudo que se passava na casa. Sabia que não acreditavam nela, que faziam de conta e era-lhe igual. Tinha-lhes dito: “Hai cousas que nom se podem ber nim entender; hai que bibir-las, que sentir-las.”
Foi para a cozinha e, depois de lavar a cara, preparou as sopas. Já decidira como utilizar o dia. Levava o gado até ao monte e, de tarde, trazia-o de volta antes das horas habituais para ir à casa do Salvador. Meteu uma peça de pão no saco de pano, pegou numa faca e na garrafa que habitualmente levava e, com o pau na mão, foi à adega. Encheu-a de vinho, cortou um pequeno pedaço num dos presuntos ali dependurados e pegou numa chouriça de carne. Pôs o saco a tiracolo e foi abrir a porta das vacas e das cabras. Tanto umas como outras, depois de terem passado um dia sem ver o sol, manifestaram-lhe agrado balando e mugindo e apressando-se de sair. As cabras diante, as vacas no meio e o Armindo atrás, ritmados pelo som discordante dos chocalhos, começaram a percorrer com enorme prazer o caminho que há muito conheciam e os levava ao lugar onde sentiam um pouco de liberdade.
Depois de deixar as vacas no campo, cuja erva tinha revigorado graças à fina chuva, continuou molemente até ao azinhal. As cabras, ao sentirem-se no meio natural de que gostavam, atiraram-se como loucas aos pilriteiros, amoreiras e espinheiros.
Encostou-se ao eucalípto e tentou afugentar as nefastas palavras que todavia lhe martelavam o cérebro. Com as impressões que se sucediam a um ritmo infernal no seu cérebro sensível, e que lhe exasperavam os frágeis nervos, pouco lhe faltava para pensar que era o instrumento de uma maldade desconhecida ou da ira divina. O seu espírito abandonado tinha-se enchido, pouco a pouco, da horrível imagem da ferida que, embora invisível, teria que, a partir dali, tentar esconder como uma desonra. Percebeu que o pouco de harmonia inteligente que lhe restava na cabeça tinha sido completamente destruido. Um fogo interno e violento, que minava todas as suas faculdades, umas através das outras, produzia os mais funestos efeitos e acabaria por lhe deixar uma opressão ainda mais penosa de aguentar do que todos os males contra os quais tinha lutado até agora. Os chocalhos e os estalos dos galhos secos, provocados pelo sol, eram os únicos ruídos que ouvia. Sentia uma perturbação desconhecida por detrás da fronte. Nunca imaginara que houvesse tantos pensamentos no mundo que lhe pudessem invadir a cabeça. Até ali, não tinha havido quase nada na sua vida, à parte os montes, o gado, a missa do domingo, o frio, o calor, o moinho, os gracejos dos amigos... Presentemente, tudo estava incompreensivelmente mudado. Apetecia-lhe devolver a alma ao Criador.
XIV
Regressou à casa por volta das cinco. Depois de prender os animais, seguido pelo Fedelho que gostava de mostrar às cabras que era ele o dono, subiu à casa arrumar o saco do farnel. Apenas conseguira comer meia peça de pão e umas finas fatias de presunto. Tinha um nó no estômago que o impedia de engolir a comida. No entanto, a garrafa de três quartos de litro de vinho esvaziara-a.
A avó estava sentada na cadeira. Ia ficando cada vez mais pequena e encolhida. O garruço de pano branco que tinha na cabeça, e que, habitualmente, punha para dormir, relevava-lhe as rugas da cara e dava-lhe ao rosto de velha uns tons delicados de cera. Tricotava mais um par de meias. Apesar da idade avançada e de ver menos do que há uns anos, não precisava de óculos. Naquele momento, a alegria que lhe deu a visão de serenidade da avó fê-lo realmente sentir por ela um puro respeito filial, talvez o que tinha perdido à mãe. Aproximou-se dela, agarrou-lhe delicadamente a frágil cabeça com as duas mãos e deu-lhe um prolongado beijo na testa como não se lembrava de lhe ter dado. Ela sorriu-lhe, mostrando a boca desdentada, mas não parou de tricotar. Ainda que os sofrimentos tivessem sido marcantes, a jovialidade e a vivacidade nunca a abandonavam.
Aquele gesto automático, repetido centenas de vezes sem parar, permitia-lhe relaxar-se fisicamente ao mesmo tempo que, mexendo apenas os lábios, rezava com constância.
— Êl você tem frio na cabeça, minh’àbó ?
— Nooom ! - respondeu-lhe com firmeza – Ê que m’esquêci de tirá-lo êsta manham, mêu home.
Parecia-lhe que não havia mais ninguém na casa e isso intrigava-o, mas não ousava sequer perguntar pela mãe. Hesitou, sem saber que dizer ou fazer. No momento em que ia abrir a boca, foi a avó que, vendo que era o momento propício, o informou:
— Tua mai está na cama a descançar. O que se passou onte pujo-a mi mal.
— É nom s’ocupou de bocê ? – perguntou aflito.
— Si, meu home, ocupou ! Nom t’atrapalhes !
Ficou com dúvidas por ela trazer o garruço, mas não insistiu. A Delfina parou de tricotar e pediu-lhe que se sentasse, precisava de lhe falar. Puxou uma cadeira e colocou-se quase em frente dela.
— Sabemos qu’ô que tua mai fijo nom se faz, mas hai que ber, é eu bi-o onte, qu’estaba mais cargada do qu’eu pensaba é qu’a bida lhe tem comido ôs nerbos, a razôm. Nom conseguiu dominar os desejos, àpetência, que foram mais fortes do qu’ela, é que lhe podem desgraçar a bida é mesmo matá-la. Precisa muito de ser protegida.
O Armindo ouvia-a sem tirar os olhos dela. Sentia-se ultrapassado pelos acontecimentos e pelo que a avó lhe dizia.
— Nós, as mulhêres é ós homes, temos marcos. Atê um certo punto, podemos auguentar a alegria, a pena é a dor. Passado este punto, sucumbe-se. A questom nom ê de saber se se ê bô ou nom, se nom se tem bergonha, se se ê uma perdida, mas se se tem forças pr’auguentar o peso dos sofrimentos causados pela falta do home, pola falta de bida, tanto na cabeça como no corpo, sim se lhes baixar. É tua mai nom pudo, meu home ! Tu tês que lhe falar, sinom inda s’interra mais. Sei que te bai custar muito, porque tês razom de pensar como pensas, mas hai que ber qu’ela nom soube o que fazia. Ô cio ê algo que já matou homes é mulhêres. Ê um capricho que te tolhe é que te pom com’uma criança. Q’ando a bontade te tenta, as entranhas reboltam-se, pêrdes a cabeça é nom sabes siquêr quem ês nim onde estás. Enq’anto nom satisfizêres esse diabo que te molesta, nom tês descanso, meu home ! Tu nom bás tardar im sabê-lo !
Calou-se e ficou a olhar para ele, abanando afirmativamente a cabeça, como para convencê-lo ou como para lhe provar a veracidade das suas palavras. O rapaz soltou um gemido impreciso. Não sabia se teria forças suficientes para derramar uma gota de consolo na alma agitada e ressequida da mãe. A avó era sempre a mesma : continuava a ser aquele ser benigno, sempre pronto a perdoar, e cujo olhar aliviava os sofrimentos e fazia afortunados. Ficou encantado com a verdade, com a bondade que ela pusera no que lhe contara. Era o amor maternal que, mais uma vez, triunfava. Se tivesse tido uma mãe como a avó...
— Nom hai nada no mundo que seja mais precioso pr’ôs outros qu’àfeiçom que lhes poidamos dar. Tu, que tês sido a risada dôs labregos dô lugar, é lebado pontapês por seres como Deus te fijo, bem no sabes, meu home. Nom hai nada com’à bença dos outros. A compaixôm ê ô mais precioso dom que Deus nos pode dar. Por que bamos nós cambiar ô nosso destino é causar tormentos à gente, q’ando êl ê de lhes dar reconforto é alegria ?
O rapaz estava completamente embaralhado pela emoção extraordinária e violenta que a avó conseguia fazer-lhe sentir. Num instante, foi arrancado da melancolia, do desânimo e da sua sombria apatia. Uma última força consumiu-lhe os receios e as angústias, despertando-lhe o espírito, a vivacidade e a sagacidade.
— Nom lhe prometo nada, bó, só q’ando a bir.
— Sei quê duro mas tem que ser, Mindo. Pide a Deus que t’ajude. Bem sabes que, com Deus, tudo; sim Deus, nada.
Pegou nas agulhas e pôs-se novamente a tricotar e a orar. O rapaz olhou para a janela. O sol não ia tardar em esconder-se por detrás dos montes galegos que, de Orjás, se entreviam ao longe.
— Bou ir-me à casa do Salbador num pronto. Quêr que lhe faça algo, bó ?
— Nom, meu netinho. Espero por ti. Tu bás é bês... Ô melhôr, tua mai inda se pôm a pê. Bota uma acha ô lume é pom-m’aqui ô copo com auga fresca. Despois podes ir com Deus. Bai sossegado qu’eu estou bem aqui. Fiquei contente por me teres oubido, Mindo.
O rapaz sorriu-lhe, fez o que a avó lhe pediu rapidamente e, depois de pegar na lanterna de bolso e na vara, pôs-se a caminho da casa do Salvador.
(continua)
Apertou a mão do rapaz com a força que lhe restava. Ele, apático, não desviava os olhos do rosto esquelético da avó. Percebia muito bem o que ela lhe queria dizer. Já se tinha esquecido, mas realizou por fim por que razão a lareira não fôra acesa.
— Eu nunca dei por ela, bó. É quem ê ô... ?
Não sabia como lhe chamar. A Delfina alçou os ombros. Quem quer que fosse, para ela, era-lhe totalmente indiferente. Preferia não sabê-lo.
— Como quêres qu’eu saiba, Mindo ? Eu nom posso ir atrás dela. Ô qu’eu sei ê qu’ela bai sempre q’ando tu estás no monte. É nom ê aqui, em Orjás, porque bem sempre a suar. Dêbe d’ir longe. Sabes, ô cio faz-t’andar, somos com’ôs animais.
Nunca tivera uma conversa destas com ela nem a avó lhe falara com tanta sinceridade. Sentiu uma satisfação enorme por a avó o considerar digno. Por sua vez, apertou-lhe a mão e fechou os olhos como se não quisesse que as palavras o invadissem.
— Atê aqui, - continuou a mulher, depois de uma curta pausa - sempre lhe perdoei tudo, bem ô sabes. Bês a bida dura, insuportable qu’ela me tem sempre feito. Nunca dei pio, mas hoje pola manham achei que chegaba. Ô mal que me fijo estes anos todos bai-m’empedrando. Ê-m’igual ô qu’ela faça da bida dela mas, q’ando penso nô teu pai, tenho que chorar. Êl qu’ê tam bô home ! Se sabe, mat’à. Agôra que mostrou mesmo no estado qu’está, nom sei que fazer. Se a contrariamos, bai ser piôr. Bai haber que ter pacência. Bai ser duro, mi duro, mêu home.
O Armindo enguliu a saliva com dificuldade. Virou a cara e deparou, preso no muro, com o único quadro fotográfico da casa. Era o avô, um homem corpulento, com um grande bigode esbranquiçado.
Estava furioso. Necessitava de tempo. Não era preciso nem achava prudente continuar a ouvir a avó. Aproximou-se dela e abraçou-a com meiguice. Estava quase a chorar.
— Nom digas nada à tua irmam sinom bai-s’enerbar é nom bal’a pena, meu hominho – segredou-lhe ao ouvido – Há-de sabê-lo numa melhôr ôcasiom, no debido tempo, se fijêr falta.
Abanou a cabeça afirmativamente e foi para a cozinha. Sabia por que razão a avó era a mulher mais respeitada, mais admirada, de todas as mulheres de Orjás. Sem exagerar, podia dizer que quase a veneravam como uma santa. Sempre mostrou, enquanto pôde, uma infinita e infatigável caridade pelos mais pobres, pelos mais fracos do lugar. Era de uma rara delicadeza e de um raro bom senso, apenas demasiado devota, talvez. Por muito triste que o seu coração estivesse, por sofrer há muito, tinha sempre nos lábios um sorriso de simpatia que atirava a confiança, a adoração. E portanto, quantas lágrimas, lágrimas de criança, lágrimas de mulher, lágrimas de mãe, lágrimas de velha, o seu rosto, já murcho, vira escorrer !
Era noite. Acendeu uma lanterna. A chuva martelava ligeiramente os vidros da janela. Agarrou na caneca do vinho e, ao ver que estava vazia, pegou na lanterna e foi à adega enchê-la. Fora, o vento começara a soprar, fazendo retinir o arvoredo do outro lado do caminho. O Fedelho, como se percebesse o ambiente tenso que reinava na casa, limitou-se a tirar o focinho e a olhar, sem abandonar a casota.
De volta, sentou-se à mesa, encheu a tigela de tinto fresco e pousou a caneca ao lado dele, à mão. A angústia ressequira-lhe a boca. Esvaziou a tigela de uma só vez e, como se habituara a fazer, fez estalar a língua com força no céu da boca. Ficou pensativo. Passara-lhe a vontade de ir falar com o Salvador. “Manham ê dia”- pensou. As palavras da mãe e da avó não lhe abandonavam a cabeça. Levantou-se e acendeu a lareira. A humidade sentia-se bem numa casa daquelas que não sabia o que era isolação. Encheu mais uma tigela que esvaziou em seguida. Com as costas da mão limpou os lábios. Prendeu o pote do caldo no fundo da corrente e foi perguntar à avó o que queria comer. Além do caldo, propôs-lhe ovos fritos. Não quis nada.
Sentou-se à mesa e encheu outra tigela que bebeu imediatamente. Não sabia que fazer. Tinha os nervos à flor da pele. Apetecia-lhe abrir a porta e berrar como um desalmado, como um condenado à morte, para que o lugar inteiro fosse testemunha da sua dor e do seu sofrimento. Durante mais de uma hora, ficou ali, sem mexer, sem pensar, a cabeça pesada, as pernas esquartejadas, as ideias destroçadas de tal modo que tinha dificuldades em conciliar os pensamentos. Nascera para padecer com resignação, com tolerância, estava visto. O destino perseverava, sem descanso e sem lástima, em perturbar-lhe a cabeça e acabar por destrui-lo.
Prendeu o pote, no qual a sopa estava a ferver, no meio da corrente e encheu mais uma tigela de vinho que livrou. Acabou por sentar-se na cadeira da avó e fechou os olhos. Vagarosamente, foi-se bambeando até que acabou por adormecer. Acordou umas horas depois, ainda noite. Doía-lhe a cabeça e sentia-se enjoado. O torpor invadira-o, sentia uma necessidade irresistível de dormir e experimentava uma espécie de volúpia narcótica em deixar-se escorregar no vago, no esquecimento, nas profundezas do nada. Levantou-se e foi deitar-se. Estendeu-se por cima da cama, vestido, como um vagabundo, e adormeceu profundamente.
XIII
O dia levantou-se com um céu azul clarinho, como se a chuva miúda do dia e da noite precedentes o tivesse purificado. O sol, ainda mal acordado, tratava de consertar o solo desembaraçando-o do excesso de água. Contentes por verem o sol regressar depois de um dia de chuva interminável, os galos do lugar cantavam ao desafio como se fosse um folguedo sertanejo.
A Palmira levantou-se à hora habitual e principiou a ocupar-se das tarefas que lhe permitiam lograr os pensamentos, os males que a achacavam diariamente. Lavou a tigela e arrumou a caneca ainda com vinho que tinham ficado por cima da mesa. De testa franzida, comeu as sopas de cevada com leite. Cogitava nas palavras absurdas que não devia ter deixado escapar da boca. Demasiado tarde. Gostaria tanto que Deus lhe fizesse desaparecer o passado para que pudesse recomeçar de novo a vida... Sabia que era impossível, que o epílogo seria fatal mas, quando uma pessoa se sente arrastada pelo desespero, só lhe restam os milagres. Não podia nem era razoável que se deixasse exceder por isso. Com certeza que ia passar uns maus momentos enquanto não conseguisse levantar a cabeça. A culpa fôra toda dela, reconhecia sensatamente.
Desceu as escadas ainda com mais vagar do que das outras vezes, foi à corte buscar a foucinha e a corda, e com o Fedelho que lhe seguia os passos ritmados mas ociosos, foram caminho fora em direcção das verdejantes leiras.
O Armindo sentira a mãe levantar-se mas, coisa que não se lembrava de ter feito, deixou-se estar na cama, embora acordado, até ela saír. Tivera um sono agitado e constantemente entrecortado de pesadelos. Sonhara que as pernas lhe tremiam desmedidamente e que todas as forças do corpo o tinham abandonado. Acordou, sentou-se na cama e deu um grande suspiro de redenção. O coração começou a bater-lhe mais depressa mas com um movimento regular, agradável, que lhe dava a sensação de um gozo físico, muito suave. Deitou-se mas depressa a escuridão lhe pareceu terrível, povoada de imagens que o horrorizavam e de fantasmas que se riam dele e lhe chamavam bastardo. Quando acordou, ainda tinha presente a aversão que lhe causara o último pesadelo: nuvens, de formas esquisitas e cambiantes, flutuavam no céu, avermelhadas pelos derradeiros clarões do pôr do sol, e que lhe pareciam sexos monstruosos que se procuravam e se acasalavam, rasgando-se num mar de sangue.
Não queria nem tinha vontade nenhuma de ver a cara da mãe. Como iria ser a vida dali em diante ? Não poderia, ainda que quisesse, voltar a ser como era, voltar a olhar para ela como dantes ou simplesmente voltar a cruzar o olhar com o dela. Era-lhe impossível. Havia qualquer coisa que o atrapalhava, que o impedia e que era mais forte do que a sua própria vontade. Uma vergonha, uma humilhação que o fazia sentir-se ferido nas suas entranhas, nas suas tripas. A mãe, além de mãe, era o pai, que apenas conhecia, era a sua terra, a sua amiga, a sua mulher... Deus era injusto para com ele. Era mais um fardo que tinha que arrastar, quando o espectro da mãe e do Teitei no moinho, há dez anos, continuava sempre presente e não deixava de importuná-lo, de afligi-lo até ao desespero.
(continua)
— Onde fostedes, minha mai ?
— Fui à minha bida, se quêres saber. – retorquiu de mau humor.
Subiram as escadas pacatamente. O Fedelho, exausto, quase a arrastar-se, dirigiu-se para a casota. Não tinham acabado de sacudir os tamancos e já a Delfina perguntava do quarto :
— Ês tu, Palmira ?
Não obteve resposta da filha. Foi o neto que, enervado com o amuo da mãe, respondeu carinhosamente à avó.
— Somos nós, bó, somos. Quêr algo ?
— Nom quero, nom.
Sentou-se numa cadeira. Sentia que a mãe escondia qualquer coisa e isso fazia-lhe ressurgir fantasmas, espectros, que ele não queria desenterrar. Estava nervoso. A mãe, depois de deitar água numa bacia, lavou repetidamente a cara como se quisesse apagar a expressão colérica que se lhe desenhara no rosto. Algo se tinha passado pois via que estava contrariada. Olhou vagamente para a lareira. Começava a perceber por que razão não estava acesa. Não tinha dúvidas de que se passara algo mas preferiu não perguntar nada. Sabia que não tardaria em sabê-lo. Agora, queria mas era saber o que acontecera à mãe. Depois de respirar profundamente, interpelou com calma :
— Entom, ô que lhe passou, minha mai ?
A Palmira apartara a lenha que não estava completamente queimada e estava a barrer para juntar as cinzas, apanhá-las e acender a lareira. Parou, hesitando uns instantes, antes de, com manifesto custo, atirar com a vassoura e puxar uma cadeira na qual se sentou. Olhou para o filho com um olhar esquisito que ele não se lembrava de lhe ter visto. Fixou-o intensamente e interrogou :
— Êl tu quêres saber onde fui, ê ?
O rapaz, atrapalhado pela firmeza com que a mãe o arrostava, com a cara que lhe via, acanhou-se e duvidou da conveniência da questão. Conhecia-a muito bem. Desconfiou que ia ouvir coisas desagradáveis. Mas era demasiado tarde. Assentiu com a cabeça.
— Fui ber ô touro, meu filho, mas nom me quijo. Já sou belha, sabes ?
E, inesperadamente, desatou a chorar silenciosamente, sem deixar de o fixar. O rapaz, incrédulo, deu um salto na cadeira e, elevando a voz, disse-lhe :
— É ô meu pai que hai tantos anos ê obrigado a trabalhar no fim do mundo, bocê pensa nêl ? Bocê pensa no que pode acontecer s’êl ô cheg’à saber ? É a bergonha qu’ê, tam’em pensou ? Bocê nom está bem, minha mai !
A excitação já o tinha posto a transpirar. Era tudo confusão no seu jovem e tumultuoso espírito. O espectro do moinho fazia-lhe bailar o cérebro e crescer a raiva animalesca que há muito o entretinha e devorava. Naquele momento, tinha vergonha dela, de ser filho dela.
— É tu crês qu’êl pensa em mim ? – defendeu-se ela - Enganas-te, meu home. Hai muitos anos que nom quêr saber de mim. Quem me diz que nom tem lá outra, é ? Em bint’anos nim um ano passou aqui conosco. É eu, comó‘ma parba, passo três ou q’atr’anos à’spera dêl ? Tu nom sabes ô que custa acordar pola manham sozinha na cama, ô que se sofre q’ando nom hai com quem falar, nim o qu’ê nom ter futuro, nom ter esp’ranças em nada, em ninguém. A minha bida nunca tube nim tem sentido. O meu tempo já passou é, inda que manham biêsse cargado d’ouro, nom me serbia p’ra nada, sabes ?
As palavras tinham-lhe saído do fundo da garganta, meias roucas. As lágrimas caíam-lhe por cima da mesa. As angústias, os tormentos interiores, até ali oprimidos, exprimiram-se com descarada insolência. O desespero e os remorsos traziam-na sujeita e devorada há muitos anos. Tirou um lenço enrugado do bolso dianteiro do avental e limpou-se grosseiramente. Estava exausta. Silêncio. As suas palavras, sem rodeios, tinham tronado na cabeça do Armindo, trespassando-lhe, depois, o corpo, como o cuchilho que penetra no coração do porco no tempo da matança e lhe arranca estridentes e insuportáveis guinchos de sofrimento. Os seus eram interiores.
A vida era mais complicada e subjectiva do que ele, modestamente, pensava. Cada qual tem a sua percepção, a sua ideia da existência, da felicidade e do momento mais propício para que estas possam desabrochar. De outro modo, com o tempo, tudo vai minorando, acabando por murchar e alterar o destino primitivo, dando lugar a um desespero, a um desvairo profundo, a um aberrante desgosto que, por sua vez, conduz ao rompimento das inibições e à repugnância da vida rotineira. Dolorosamente, a mãe queria fazer-lhe compreender que, no fundo, não era totalmente culpada, que os detrimentos provocados pela crueldade da vida, pelas diversas carências e pela solidão, assim como pela sua eterna fraqueza, eram tanto ou mais responsáveis do que ela.
Naquele momento, gostaria de sumir-se, de nunca ter existido, de fazer qualquer coisa para impedir aquela infame desgraça. Faltaram-lhe as forças e a coragem. Os ossos tinham-se-lhe dilacerado no corpo e uma debilidade crescente apossara-se dela. Na cabeça e no coração tudo se desmoronava também. Sentia-se incapaz de dirigir decentemente os movimentos mais simples. Levantou-se titubeando e, sem mais uma palavra, dirigiu-se para o seu quarto. A mãe, encostada à cabeceira da cama, sem mexer e sem fala, viu-a passar diante da porta entreaberta do seu quarto.
O rapaz sentia-se atordoado e consternado pelo desabafo inesperado da mãe. Ficara aterrado como quando tinha pesadelos e lhe dava a impressão de estar acordado. Não sabia que, em muitas coisas, as mulheres são mais vulneráveis do que os homens, mais frágeis. Confuso, ficou sentado, cotovelos por cima da mesa, a abanar a cabeça entre as mãos e o olhar no vago, longos instantes. Suspirou. Inesperadamente, deu uma murraça na mesa que saltitou. Ouvia-se o tic-tac do pequeno despertador que estava por cima do comprido móvel. Levantou-se, indiferente, e aproximou-se da janela, mas não via a chuva mansa que começara novamente a caír e escorregava nos vidros como se tivesse pressa de embeber a terra. Daquele momento de expontânea folia devaneadora a que a mãe o submetera, guardava a sensação de um vago e penoso asco, de uma tritura de todo o seu ser físico e moral. Era assim como num sonho febril, no qual as coisas se sucedem, incoerentes, irónicas e dolorosas.
— Ô Mindo, trazes-m’auga ?
Pareceu-lhe ouvir a ressonância duma voz que vinha de longe, sem saber de onde. A cabeça, confusa e desordenada, trabalhava a uma velocidade que nunca lhe conhecera. A raiva animalesca que o habitava era uma tentação difícil de controlar. A maldade latente e manhosa apressava-se por detrás. Não lhe chegava ter que combater para abrandar a fera que o queimava e que lhe roía a cabeça e a alma quotidianamente, não, tinha que suportar o espectro da infidelidade traiçoeira e imunda da mãe ! Estava mais do que farto. Por que diabo, quando a doença o atacou, não lhe acabou com a vida ?
— Ô Mindo, êl tu estás aí ? Trazes-m’auga ?
Desta vez, a Delfina subiu um pouco a voz já trémula. O moço não percebeu e então levantou-se e foi espreitar pela porta entreaberta do quarto da avó que se encontrava na obscuridade. Estava a ficar noite e ele não tinha reparado. A velhota, com um sorriso que lhe fazia entrar os lábios na boca desdentada, fez-lhe sinal com a mão para entrar. A água fora um pretexto. Sabia de que lhe queria falar a avó, pois sem dúvida que ouvira tudo. Tinha-lhe um respeito e um carinho muito grandes. Batendo devagarinho com a mesma mão desguarnecida por cima da cama, ao lado dela, convidou-o a sentar-se. Os seus olhos, agora pequeninos demais para as cavidades grandes que os alojavam, fitaram-no com mágoa. Abanou a cabeça pesadamente para lhe exprimir a sua ponderação. Sentia-se incomodada mas não tanto como o Armindo podia pensar. Agarrou-lhe a mão do braço grande, que lhe foi estreitando de vez em quando, e disse-lhe baixinho:
— Tu bem sabes ô qu’eu gosto de ti é de tua irmam. Sei qu’ô que tua mai fijo nom ê bem mas tês que comprendê-la. Nôs últimos tempos nom anda nada bem. Inda hoje pola manham nôs pegamos. Eu bi logo qu’andaba co’ cio. Digo-te uma cousa, mêu home, é tu nom mo lebes a mal: o qu’ela te contou j’ó eu o desconfiaba hai muito. Sou mi belha é ela ê minha filha, sabes, é sempre bibim co’ ela. Por muito que quijêsse nom podia enganar-me.
(continua)
Cansado e ofegante, pousou o saco por cima dum penedo e aproveitou para recobrar as forças tomando fôlego uns momentos. Encantado, deixou vacar pausadamente o olhar pela imensidão que o assombrava, que o fazia evadir-se e esquecer por uns curtos momentos o que o desgastava psiquicamente.
Chegou à azenha do “tio” Júlio uma hora e um quarto depois de ter saído da casa. Havia um homem cujo segundo saco de milho estava a ser moido e, seguidamente, uma mulher com um único saco. Tinha quase para duas horas de espera. Como não os conhecia e não suportava o ruído irritante que a mó fazia quando triturava o milho ou o centeio, depois de pousar o saco num canto, resolveu saír e sentar-se numa pedra na qual apoiara as nádegas pela primeira vez há muitos anos.
Os antebraços fincados por cima das coxas ficou a olhar para o regato que, devido aos constantes chuviscos das últimas semanas, vira o caudal espessar cada dia mais. Conhecia tão bem aquela corrente, aquelas pedras e aqueles pedregulhos... Os nefastos recordos eram inelutáveis.
Tinha sete anos quando, um dia de tarde, farto de divagar pelas paragens, decidiu juntar-se à mãe no moinho. Não ultrapassou o limiar da porta. Estacou repentinamente de olhos esbugalhados. A mãe e o moleiro, o velho Teitei, estavam sentados por cima duma grande caixa, ao lado da mó, agarrados um ao outro. Ele estava de costas para o miúdo enquanto que ela, de saia e saiote arregaçados, tinha a cara escondida no meio do peito do moleiro. Abafados pelo barulho da mó, ouviu a mãe soltar uns gemidos, umas queixas. O moleiro tinha a mão esquerda enfiada no meio das coxas leitosas da Palmira. Antes que o vissem, deu meia volta e foi sentar-se numa pedra a pensar no que acabara de ver. Sabia muito bem o que vira. A imagem do pai submergiu-lhe imediatamente o espírito. E ainda mais triste ficou por ser esse baboso de Teitei. Nunca gostara dele. Decidiu não voltar mais ao moinho com a mãe. Não queria voltar a ver a cara do moleiro.
No dia em que, pela primeira vez, disse à mãe que não queria acompanhá-la, esta, que não desconfiava absolutamente de nada, insistiu, pensando que não passava de um pequeno capricho e que o rapaz acabaria por se conformar. Ao aperceber-se da sua birrenta oposição, enervou-se e injungiu-o de acompanhá-la. Então, num desabafo colérico, raivoso, o miúdo gritou-lhe por sua vez:
— Nom bou ô moinho que nom quero bôltar a ber o que bi !
A Palmira, inquieta e a pensar o pior, perguntou-lhe o que vira. O miúdo, a chorar, lançou-lhe um olhar suplicante e, com voz mais moderada, disse-lhe:
— Tu bem sabes o que fazes nô moinho q’ando já nom hai ninguém.
Não precisou dizer mais nada. A mãe percebeu imediatamente. À noite, quando o foi deitar, fê-lo prometer que era um segredo que só os dois conheciam e que mais ninguém devia saber. Enquanto o Teitei foi vivo (morreu quatro anos depois), não voltou à azenha. Tinham passado dez anos, sem nunca mais terem falado no assunto. Estava como que enterrado ou, melhor, em suspensão, sem que soubesse por quanto tempo.
Chegou à casa depois da uma da tarde. Esfomeado, empanturrou-se com duas malgas do palatal e nutritivo caldo habitual, que tinha fervilhado horas no pote preto por cima do braseiro, preso a meio da corrente. A mãe não estava e a avó, na cama, dormia profundamente.
Acabou de beber o resto do vinho tinto que tinha na tigela, limpou os beiços com o revés da mão e foi alongar-se por cima da cama. Sentia-se cansado, diminuido. Mais tarde, estava decidido, ia à casa do seu amigo, o Salvador. Era tempo de se afirmar. As pálpebras pesavam-lhe. Não tardou em adormecer.
XII
O rapaz abriu os olhos com calaceirice e virou-se para o lado da janela. Não sabia quanto tempo dormira mas sentia-se muito melhor. Ainda era dia. Agarrou-se com as mãos à cabeceira de ferro da cama e espreguiçou-se com indolência. Que bem lhe soube aquela soneca ! Repentinamente, os olhos raiaram-lhe e um belo sorriso iluminou-lhe o rosto. Sonhara com a Lídia, que vivia com ele na casa mas que era sua irmã. Ai, a Lídia matava-o. O silêncio adormecedor que reinava na casa não o puxava muito a levantar-se. Ficou uns minutos a raciocinar, olhando para uma mosca que explorava o tecto acastanhado do quarto. Pensou no que contava ir fazer à casa do Salvador e sentiu-se intimidado. Não era o primeiro a fazer o que, finalmente, se podia considerar uma coisa ordinária mas necessária. A sua dificuldade consistia em ter que passar por ele. Portanto, fora ele que, involuntariamente, lhe pedira ajuda. O homem, sem qualquer preconceito, propôs-se imediatamente para ser intermediário. Não, tinha razões para se sentir atribulado. Ele não tinha coragem para fazê-lo directamente. Por causa da enfermidade, temia encontrar-se perante uma relutância. Os desvios, as diferenças sempre amedrontaram as pessoas. Sobretudo nos lugares onde a compreensão e os conhecimentos são tão reduzidos como o meio.
Sentou-se na beira da cama e esfregou os olhos com satisfação. Calçou as botas ainda húmidas da chuva e pôs o chapéu na cabeça. Ao passar diante do quarto da avó, reparou, através da porta entreaberta, que estava acordada.
— Ô bó, onde foi minha mai ?
— Eu nom sei, meu home. Hai muito que saiu. – respondeu-lhe a mulher que, antes de ele falar, já tinha dado pela sua presença.
— Bocê quêr algo ?
— Nom senhor, meu hominho. – disse-lhe com voz gratificadora.
Foi sentar-se no limiar da porta de entrada. Onde diabo teria ido a mãe ? Quando ele chegara já ela não estava e, desde aí, tinham passado mais de três horas. Quando chegou do moinho, o Fedelho não estava deitado no seu posto. Como o tempo estava de chuva, podia estar na casota. Mas, depois de se sentar à porta, ficou certo que também tinha ido com a mãe, de outro modo, e ainda que chovesse, tinha vindo ter com ele e deitar-se ao seu lado.
O dia estava nebuloso mas a chuva, de momento, sossegara. Se persistisse nos dias seguintes, também lhe estragava o projecto que tinha em mente. Levantou-se e foi às cortes visitar os seus amigos, os animais. Entre eles, havia uma cumplicidade lhana e expansiva. A insensibilidade que as pessoas lhe manifestavam, e que ele considerava como desdém, fê-lo aproximar-se e agarrar-se, cada vez mais, aos animais. Às vacas, às cabras e ao porco deu-lhes umas palmadinhas amigáveis na garupa. Acariciou-os a todos, dando umas cenouras e batatas a uns e feno e erva a outros. Ficou uns minutos a observá-los, contente. Fechou a porta das cortes à chave e foi ao lado, à adega. Junto do pipote que estava encetado, tinha sempre uma pequena caneca de lata virada por causa do pó. Encheu-a de vinho, que espumou, e bebeu-o com imenso prazer. Ah ! – exclamou-se, ao mesmo tempo que fazia estalar a língua no céu da boca. Gostava de uma boa pinga com agulha, de vez em quando. Foi fora, ao lado da porta, e passou a caneca pela água da chuva que enchia um velho pipote ali encostado. Fechou a porta e dirigiu-se para as escadas no momento em que o portão de ferro se abria e dava passagem à sua mãe e ao Fedelho.
Esperou por eles, observando-os. O cão trazia as patas enlameadas, a dona, os tamancos. Pelo andar, mais penoso do que habitualmente, via-se que vinham ambos de dar uma longa caminhada. Pareciam lassos. Quando a mãe se lhe juntou, reparou que suava.
(continua)
X
A manhã começou com uma chuva miudinha mas persistente. A Palmira ocupou-se da mãe com a habitual negligência. Depois de lhe dar as sopas, que a Delfina ingurgitou paulatinamente, acendeu a lareira cuja pedra ainda estava morna e, depois de a vestir, sentou-a na consumida cadeira.
Ocupou-se seguidamente das tarefas diárias habituais. Mas, quando depois da chuva ter parado quis ir passear com a mãe para o quinteiro, deparou com uma ferronha resistência da sua parte. Não tinha as forças suficientes para tal, argumentou. Não se sentia mal nem estava doente. Uma simples baixa de forma, concluiu. A filha, desconfiada e contrariada, não cessou de ralar, de importuná-la, até que a mulher, cansada de ouvi-la, disse-lhe que queria ir deitar-se.
— Nom tem nada qu’ir p’rà cama. Nom está doente é inda hai pouco que se lebantou. Está mi bem aí sentada.
Não falou mais. Como se ela não estivesse ali, e com a languidez de ânimo inveterado que a distinguia, ocupou-se a preparar a lavadura para o suíno.
A pobre Delfina parecia fixar a lareira mas, através da cortina colorida das chamas, imaginava um rosto impreciso que a confortava, uma mão familiar aberta que se avançava para ela como se quisesse consolá-la... O desleixe, a incompreensão, o fastio e a desafeição que a filha lhe exprimia causavam-lhe uma pena, um sofrimento atroz. Não só a feria mas parecia ter prazer em fazê-lo e em mostrar-lhe que era intencional. Arranhava como os gatos. Esta maneira de ser germinara nela tão naturalmente como os efeitos da sua triste vida se reproduziram nas suas feições. Tornou-se áspera e pesarosa porque uma pessoa que é infeliz na vida sofre e o sofrimento engendra a amargura, a malvadez. E em vez de se vitimizar pessoalmente, virou-se contra a mãe que era a mais indefesa. As lágrimas chegaram-lhe à porta dos olhos mas compeliu-as a ficarem por ali. Então, escorreram-lhe interiormente, fazendo-a tremer ligeiramente. Nem chorar diante dela podia sem correr o risco de ter que sujeitar-se às suas ignomínias.
Estática na cadeira, lembrava-se do gosto, do amor que sempre tivera e tinha por ela. Quando ela e o Abílio, ainda novos, souberam que não podiam ter mais filhos, redobraram de carinhos e de atenção para com a Palmira que ainda era uma miudinha com pouco mais de quatro anos. Foi crescendo como uma moça sensível, impenetrável que, talvez por ser morgada, já lutava contra as fortes decepções da vida. A sua doçura inicial foi-se transformando numa indiferença egoista, num baluarte contra a dureza da vida, numa capacidade espantosa que consistia em preservar e proteger “a sua vida, a sua pequena vida.” Fora a maior riqueza que Deus lhes dera e tudo fizeram para se mostrarem dignos do dom. Os anos foram passando e, depois de casar e ser mãe, o seu carácter foi degenerando lentamente, até chegar a este ponto de abdicação, de negligência moral e amorosa. Ela e o Abílio nunca tiveram nada e nunca nada lhes faltou. Viveram felizes. A filha e o homem tinham uma casa em condições, tinham comprado um grande campo, um bom monte, tinham estudado a filha que ganhava bem a vida, tinham bom dinheiro no banco na vila, mas não era suficiente para serem felizes. Tinham muito e faltava-lhes tudo. A vida decerto que tinha uma grande parte de culpa mas não era uma razão para se vingar nos outros.
— Bou dar de comer ôs animais.
Entretida no passado, só ao reparar no balde e no cesto que a filha tinha nas mãos, é que a Delfina percebeu o que ela lhe tinha dito. Sentiu um frio descer por ela e apertar-lhe o coração dorido. Não respondeu nem olhou para ela. Voltou a fixar as chamas da lareira. Decidiu ignorá-la, como ela lhe fazia constantemente. Hesitava entre o desejo sensual de mãe e a revolta contra a maldade pérfida da filha. Decidiu desafiá-la, importuná-la e, embora com muito custo, deixar de refugiar-se no amor maternal para tudo lhe perdoar. Estava farta da tirania ambígua que a filha sustentava havia anos, desta tirania perfeitamente incorporada na sua vida, na sua substância. O seu olhar demonstrava repreensão, os gestos, desprezo e as suas palavras eram uma alusão penosa à sua velhice. A vida, que para ela tinha sido de uma longa docilidade, em dez anos, tornara-se uma súplica constante e muda. A crueldade até os remorsos lhe havia de comer. Ouviu a porta guinchar duas vezes. Saíra e, para castigá-la, não lhe perguntara, como costumava, se queria ir deitar-se. “Ai que bid’à minha ! Já hai tanto que nom ando a fazer nada neste mundo, Senhor. Êl bós esquecestes-bos de mim !” Desde que o Abílio ficara doente, a vida foi-se-lhe tornando pouco a pouco mais dolorosa. Quantas vezes pediu a Deus que a levasse para a sua beira ! Sabia, por experiência, que a acção de morrer era penosa pois ainda é vida, mas não tinha medo. A morte é outra coisa, é boa, pensava, é apaziguadora. Com os dias que passavam, cada vez mais fastidiosos, ia aprendendo a morrer. Deixou duas pesadas lágrimas sairem-lhe dos olhos.
Nunca desejara tanto a vinda do Belardo. Tinha muito que lhe contar da vida ruim a que a filha a obrigava a abaixar-se. “Ê bô home, ô Belardo. A sorte dele foi ter andado sempre por fora”, pensou. De outro modo, a filha era mulher para o transtornar e acabar por convertê-lo.
Ajeitou-se na cadeira e, com a ponta dos pés, baloiçou-se ternamente. Pensou na neta que estava nos Arcos. Não tinha nada da mãe e alegrava-se por isso. Orgulhava-se por lhe ver as qualidades e os sentimentos que herdara dela. Era por estas razões que ela e a mãe não podiam entender-se. Já se tinham disputado ambas várias vezes por causa do ambiente discordante, sinistro e asfixiante em que trazia a avó mergulhada. “Ê mi boa moça.” A sua sorte também foi viver fora da mãe senão já tinha havido uma desgraça naquela casa.
O Mindo, coitado, esse era corajoso, trabalhador e, como o pai, bom e habitado por uma extraordinária força de vontade. Tivera má sorte, o mal não o poupara mas, ao contrário da Palmira, sofria em silêncio sem embaraçar ninguém. Saber sofrer em silêncio, ao avesso do que se pensa, acaba por aliviar. Com o tempo, acabamos por conhecer as nossas doenças, os nossos sofrimentos e habituamo-nos a viver com eles. Cada qual arrasta a sua infelicidade, os seus defeitos, a sua cruz. A vida é uma doença, mais ou menos longa, incurável, uma sucessão de grandes ou pequenos sofrimentos, aos quais só a morte pode pôr fim.
Adormeceu com a cara virada para o lado da lareira e as mãos cruzadas por cima do regaço.
XI
Quando o Armindo saiu da casa, havia muito que a chuva fininha começara a caír. O chão do caminho da azenha estava ensopado e, em determinados sítios, escorregadiço. Com o saco de milho às costas e a vara na mão, o rapaz foi encurtando a distância que o separava do regato. Conhecia os buracos, as pedras e as bossas que o caminho tinha, tantas vezes o percorrera.
Quando era miúdo e que o tempo estava quente e de sol, gostava de acompanhar a mãe. Depois, enquanto que ela esperava pela sua vez para moer o milho ou o centeio, conversando com as outras pessoas presentes, deambulava à volta do moinho observado, fascinado, as coloridas libelinhas, abundantes por ali, que arrasavam os poços de água pouco profundos em busca de alimento. Ou, então, pulava como um saltimbanco pelas graúdas pedras que atravancavam o curso da água do regato, cantando, até que a mãe chamasse por ele.
Chegou a um sítio onde o caminho iniciava uma descida abrupta. Era uma vertente vertiginosa, duma beleza rara. Ao fundo, ainda que o céu estivesse agrisalhado e uma determinada humidade pairasse no ar, viam-se vários lugares espalhados e rodeados de campos magnificamente lavrados.
(continua)
Levantou-se e, depois de lavar as mãos, pôs-se a caminho da feira. Passou diante da estação de camionetas que despejavam rebanhos de pessoas azafamadas, vindas das inúmeras aldeias do concelho. Desceu em seguida, mais à frente, uma rua onde já havia algumas tendas e que desaguava na alameda cuja metade esquerda estava totalmente invadida pelas barracas de cores extravagantes e garridas dos tendeiros. Gostava de ir cedo à feira para evitar os errantes ociosos, os madraços que, a partir de determinada hora, passeavam pela feira brincando e namoriscando e estorvavam quem verdadeiramente lá ia para comprar. E, ao mesmo tempo, podia contemplar, passear o olhar e escolher calmamente, quando realmente queria fazer compras.
Estava um belo dia de sol outonal com um céu completamente azul. Contudo, devido à proximidade do rio e à presença das numerosas e densas tílias que faziam o charme da alameda, as pessoas sentiam um pequeno frio ambiente. Ela, que estava acostumada desde sempre ao frio extremo, quase que podia dizer que era um dia lenitivo, de princípio de primavera.
Misturou-se à multidão de camponeses, carregados de sacos e de embrulhos sumários, que se moviam em todos os sentidos e que eram o grosso dos feirantes. Caminhava lentamente, reparando mais nas pessoas do que nos artigos, nos objectos ou nas roupas que os vendedores expunham por cima das bancas ou dependuravam em cabides. Só passados uns breves momentos constatou e se lembrou que não era uma feira como as outras. Havia muita mais gente e diferente do que nas feiras habituais por ter calhado um feriado. Inumeráveis pessoas, que habitualmente trabalhavam, tinham aproveitado a aprazível manhã para percorrerem familiarmente a alameda e farejarem os bons artigos.
Não tinha em mente nenhuma intenção de comprar, como sempre, mas, por último, acabava por encontrar graça ou utilidade a qualquer bugiganga ou peça de lingerie. O seu prazer era escrutar, fitar atentamente os rostos, avaliar o carácter através das roupas, da fala, distinguir os tiques, o feitio, as alegrias e as tristezas, a miséria, os provincianismos... Era como o olho da consciência ao qual nada escapa, mas que não expele qualquer julgamento. Com que júbilo tentava penetrar naquelas modestas consciências tão comuns, tão pouco diferentes de aspecto ! Era um mundo de aparência, de carnaval e de ilusão, onde a verdade dificilmente era acessível. No meio de tanta gente que se parece, encontram-se por vezes pessoas das quais dizemos : “parece fulano ou beltrano” e, quase que imediatamente, reparamos que não é verdade, que estamos a brincar connosco, com o nosso sonho, como um gato com o rabo. “Não vou tardar em fazer estudos de sociologia”, pensou, ao mesmo tempo que deitava uma visada distraida a uma blusa.
Pôs-se novamente em marcha, ao reparar que a vendedora se precipitava sobre ela. Era-lhe insuportável esta mania que os comerciantes tinham de coagir as pessoas.
Tinha percorrido as barracas que se encontravam do lado do rio. Mais para diante, era a feira dos animais: vacas, porcos, todo género de ovinos, galináceos, coelhos... Atravessou a estrada com cuidado e principiou, em sentido contrário, a visita de outras tantas tendas, estendais e alguns quiosques. Daquele lado, a multidão era mais densa pois ali se encontravam numerosos comércios, armazéns, restaurantes e cafés.
As folhas mortas que, apesar de não haver vento, se desprendiam das grandiosas tílias já meias carecas, alinhadas dos dois lados da alameda, depositavam-se, torbilhonando, rapidamente e em quantidade, por cima das barracas montadas há poucas horas. O inverno estava cada vez mais perto e o outono afastava-se cada vez mais.
O olhar estagnou-lhe numa tenda de lanifícios na qual vendiam meias, camisolas, luvas, cachecóis, garruços, coisas simples mas prácticas e cada ano diferentes. É claro que a tendeira, que se encontrava no outro lado com duas clientas, notou de imediato o seu interesse e lançou-lhe :
— Escolha, minha linda senhora, escolha que eu vendo mais barato do que dado. Só um momentinho que já sou sua.
Riu-se, era a filosofia popular que se exprimia da maneira mais simples e vernácula. Olhou para a tendeira, coberta de lã (a melhor maneira de publicitar o que vendia), com as luvas (punhetes) cortadas na ponta dos dedos, história de poder manejar comodamente as moedas e as notas. Tinha cara de descendente de mongol. O olhar sagaz da Áurea não devia enganá-la. Conseguia ver para lá das aparências. Procurava compreender a alma, o espírito e a fisionomia das coisas e dos seres cujos efeitos são os acidentes da vida e não a própria vida. Uma mão não está apenas presa a um corpo mas exprime e continua um pensamento que há que compreender e completar. O dom de ler nas consciências provinha-lhe do sentimento de que a realidade que lhe era dada a contemplar parecia-lhe bem mais verdadeira do que aquela a que só os sentidos acediam. “Onde estariam as suas raízes? Quantos povos estiveram ou passaram pelo nosso país? Quantos descendentes deixaram ficar?”A maioria das pessoas não reparava nas diferenças morfológicas que as distinguia e que são como um carimbo num passaporte, como um objecto que tem marcado por detrás made in. Muitas gerações passaram e o país acabou por ser um mosaico de raças. A mais marcante e numerosa, a que mais se retardou no nosso país, e que, por isso, mais descendentes deixou no condado, é a que os portugueses menos apreciam. É certo que ninguém pode escolher os seus pais, mas abjurar as suas origens, as suas raízes... é como renegar-se a si próprio. “Tenho mesmo que fazer estudos de antropologia... e, se calhar, talvez de psicologia, também.”, voltou a dizer-se.
Pegou num par de meias de lã bem grossas, à sua medida, e procurou, no meio dum grande monte, um cachecol que não fosse muito comprido e que não tivesse cores muito berrantes. Acabou por encontrar um não muito grande, dum branco pálido que lhe agradou.
— Escolha, escolha, minha linda senhora ! Se calhar estou enganada e ainda é menina...
— É verdade, ainda sou menina – respondeu a Áurea com um agradável sorriso.
— Desculpe-me mas como as lindas meninas não ficam solteiras muito tempo...
A jovem mulher corou timidamente. Caíra na ratoeira. “Patifona !” – pensou.
— Atão não compra mais nada? – à negativa da Áurea, continuou – Compre umas luvinhas, menina, você tem umas mãozinhas tão delicadas !
A rapariga sorriu-lhe amavelmente e pagou sem regatear ao constatar que o que lhe pedia não era exagerado. Despediu-se. Mas o diabo da tendeira não pôde ficar por ali.
— Atão continuação de um bom dia e a ver se p’rà próxima lhe posso chamar senhora, tá bem ?
A rapariga assentiu abanando a cabeça. “Tremenda mulher ! - pensou, respeitosamente - Com um moral e um humor destes não devia ser fácil que se deixasse abater. Pelo menos, aparentemente.” Quanto mais convivia com as pessoas, mais gostava delas e de sociologia.
Com o pequeno saco plástico, no qual a mulher lhe metera o cachecol e as meias, continuou, mais alegre ainda, o passeio matinal pela feira. Gostara da mulher. Gostava das pessoas alegres, com força e humor inabaláveis, que possuiam um determinado sentido da vida. Embora nativa, era muito nova para conhecer profundamente a “filosofia”, a “psicologia” comportamental montês. À primeira vista, a dos feirantes, dos ciganos era mais subtil, mais efusiva. Seguramente que o viajar foi um factor preponderante, senão principal.
(continua)
VIII
O Armindo, a mãe e a avó acabaram de cear. A Palmira ajudou a mãe a sentar-se na cadeira, junto da lareira, enquanto lavava a louça com a água bem quente que pusera a ferver no lume. O rapaz, ainda sentado à mesa, olhava para a tigela meia de vinho que tinha diante dele. Gostava de guardar uns bons golos para o fim. Era uma mania que agarrara já não sabia quando.
O dia de hoje fora excepcional, o mais feliz que o Armindo tivera. Riu-se. Pensava na Lídia. “Ê tam bonita, ê tam...”, suspirou interiormente. Não conseguiu acabar a frase. Ele compreendia-se. Tinha a sensação de planar, como quando admirava as aves que vagueavam libremente por cima da sua cabeça, nas alturas celestes. Estava ansioso por que chegasse a madrugada. A noite anunciava-se duradoura.
O candeeiro a petróleo de lata preso no tecto iluminava moderadamente a espaciosa cozinha. Na lareira, no meio de um manto de brasas enrubescidas, uma derradeira acha, que ainda tinha longa vida, fazia saracotear num vira uma labareda luzidia e multicolor. A imagem dos três naquela lúgubre e silenciosa cozinha era duns tempos avelhentados e esquecidos.
A Palmira acabou de lavar a louça e acendeu o pesado candeeiro de cerâmica cor de rosa para levar para o quarto. Acordou a mãe, que toscanejara um pouco enquanto ela estivera ocupada, e, como sempre, só a levou para o quarto depois de ela fazer as necessidades na retrete. Ajudou-a a vestir a camisa de dormir de flanela e deitou-a na cama, aconchegando-lhe bem os cobertores que, depois, prendeu dos lados. Voltou novamente à retrete buscar o bacio para deixar junto da cama da mãe. Simples precaução. Nunca o utilizara. Apesar da idade adiantada da mãe, tinha uma grande sorte por ela não sofrer de incontinência. Pegou no candeeiro e, sem dirigir uma última palavra à mãe, foi para o seu quarto, ao lado, do qual fechou a porta sem barulho.
O Armindo, frenético, quando sentiu a mãe entrar no quarto, apagou o candeeiro, abriu a porta da casa e sentou-se na soleira. O ar fresquinho e puro surpreendeu-o agradavelmente. O silêncio, fortuitamente entrecortado pelo ladro abafado de um cão, era profundo. A lua, quarto crescente, arrojava sombras prateadas e errantes sobre o denso arvoredo que havia do outro lado do caminho.
Sentiu um ligeiro ruido do lado direito e, ao virar a cara, deparou com o Fedelho que subia as escadas vagarosamente, agitando o curto rabo. Veio enrolar-se ao seu lado, encostando-se-lhe aos pés. Pousou-lhe a mão no focinho e acariciou-o demoradamente, dizendo-lhe baixinho: “É, meu Fedelho, êl tu nom estabas bém a dormir, é ?” A casota dele ficava por debaixo das escadas. Fora o Belardo que lha construira com tijolos, há muitos anos.
Deixou-se estar bastante tempo sem mexer. Insensivelmente, acabou por se enterrar num estado de dormência que o fez esquecer momentaneamente a brutal realidade da sua consternante vida e reviver os adoráveis momentos que passara com a Lídia. Ah ! Se pudesse mergulhar eternamente na profundidade destes líricos pensamentos... Lembrou-se do que lhe dissera uma vez o Salvador: “Pensar no que se gosta ê bibê-lo .” Tinha que falar com ele. Estava disposto a enfrentar a realidade, prestes a devorar tudo, a renegar-se para viver uma existência comum. Era o seu direito elementar. Acabara por se ver como um moribundo que só vê a maldade latente e manhosa da vida diante dele. A noite, embora dolorosamente, permitia-lhe dar vazão, através dos sonhos, dos pesadelos, ao desencadeamento da violência íntima, da animalidade. Na noite, reina um mundo inquietante, uma solidão insuportável que nos permite manifestar, exteriorizar os nossos males e os nossos conflitos físicos e morais. Se a vida era um obstáculo a forçar, forçá-la-ia, ainda que saisse espumado, sangrado e de rastos. Ai, maldita infância, que não quer morrer ! Era tempo de ser homem. Quanto mais depressa, melhor. “Hai que bater ô ferro enq’anto está quente”, pensou, decidido. Se não visse o Salvador, ia à casa dele.
Levantou-se e pôs-se a mijar do cimo das escadas. Mandou o Fedelho embora, fechou a porta que chiou fugazmente e foi meter-se na cama. Naquela noite, não precisou das revistas da irmã para poder ter um pequeno mas extático e singular momento íntimo de prazer.
Às sete, como fazia diariamente nesta época, o Armindo estava de pé. Ainda era noite. A mãe já estava na cozinha a preparar a cevada. A Delfina acordava bem mais tarde. Não era que tivessem que fazer mas as noites eram cada vez mais longas e insuportáveis. Antes das dez estavam na cama. Descansar demasiado tornava-se aborrecedor, num cansaço cada vez mais fatigante.
Lavou a cara e foi apressadamente para a retrete. A cena repetia-se todas as manhãs. Passava um tempo infinito a aliviar-se. Desde que principiou a fazer as necessidades livremente, ainda pequenino, habituou-se a cantar na retrete, coisa que a mãe, apesar de se ter acostumado, achava disparatada.
Esfarrapou depois para uma das grandes malgas brancas, repleta de cevada com leite, quase meia peça de pão. Tragou a malga de sopas em poucos instantes.
— Tês q’ir à ‘zenha moer um saco de milho, Mindo, hai pouca farinha.
— É quêr que ba pola manham ?
— Ê-m’igual, mêu filho.
Na capoeira, o galo anunciava as primeiras claridades da alvorada que principiavam a manifestar-se com timidez. O céu estava encoberto. Não sabia o que fazer. Queria falar com o Salvador mas... Talvez fosse melhor ir ao moinho de manhã e dar um salto de tarde à casa do amigo.
— Tam’ém tenho qu’ir ber s’ô Salbador m’arranjou a cana de pesca.
O velho amigo era um enorme amador que conhecia como ninguém os melhores recantos de pesca do riacho. Havia bastantes dias que o rapaz lhe levara a cana que o pai lhe trouxera da França para lhe reparar o carreto que se blocava. A mãe não lhe respondera, sinal de que tanto lhe dava. Ela evitava sempre contrariá-lo. Tinha as suas razões. Os animais podiam passar o dia na corte. Não era a primeira vez nem era o feno que faltava para lhes dar de comer. Assim decidiu.
IX
Quarta-feira, feriado e feira nos Arcos. A Áurea, que se levantava sempre cedo para ir trabalhar, aproveitava, como cada vez que tinha um dia de descanso, para calacear sossegadamente um bocado na cama. Corrigia alguns deveres ou então mergulhava-se na leitura de um dos numerosos livros da biblioteca que tinha sempre à mão e que eram o seu instrumento predilecto de repouso.
Tomara o pequeno-almoço e continuara, preguiçosamente, sentada à mesa, meditativa. A casa onde estava hospedada situava-se na pitoresca parte histórica da vila. Quando não tinha que ir trabalhar, o pequeno-almoço proporcionava-lhe uns momentos de considerável préstimo. Da galeria, onde estava e tomava todas as refeições, via nascer o dia e entrevia uma larga parte do rio que ladeava a estrada de Monção, através dos grandes vidros das diversas janelas. Os raios do sol, ainda fracos, depois de se refractarem nas águas límpidas e serenas do Vez, penetravam os vidros das janelas, acariciando-lhe e aquecendo-lhe modestamente o rosto. Sentia-se bem.
Na casa, viviam os pais da Natália e ela. O pai era funcionário municipal e não estava longe da reforma. A mãe ocupava-se da casa e duns campinhos situados do outro lado do rio, que tinham comprado há muito para poderem economizar nos legumes. O sossego era digno dum mosteiro. A liberdade e o respeito eram totais.
(continua)
VII
O Armindo, apoiado ao eucalípto que já tinha a marca das suas costas, falava sozinho e ria de satisfação. Sentia-se leve, diferente. Tivera oportunidade de ver o mais perto possível a linda cara da Lídia, a sua pele rosada, os seus olhos mordazes. Havia tanto tempo que pensava nela, que sonhava com ela ! Era verdade que sempre manifestara amizade por ele mas, hoje, pensou descobrir nela, nos seus gestos, no modo como olhava para ele ou como lhe falava, um prazer manifesto e contagioso que nunca lhe tinha visto. Pareceu-lhe ver no seu convite, na sua presença jovial, um preâmbulo, qualquer coisa mais séria, mais sólida. “Quem dera”, ideou, contente.
Nunca vira uma rapariga nua nem nunca tivera relações. A irmã trazia dos Arcos revistas de moda ordinárias e ele, que lhe subtraira duas, regalava-se olhando para os belos manequins de calcinhas e sutiã. Certas noites, na cama, acariciando-se, imaginava que fazia amor com elas. No verão, chegara a espreitar as moças que, às vezes, iam refrescar-se para uma poça que havia no regato, antes das azenhas. Não vira nada pois ficavam com uns saiotes que lhes chegavam aos tornozelos e que, mesmo depois de molhados, apenas deixavam trespassar umas sombras confusas. Portanto, a excitação não era menor. Quando ouvia os outros falar nisso, ficava atrapalhado. Era coisa que evitava para não ser propósito de risadas.
A Rosa, a “rota” do lugar, manifestava uma irresistível perdição pelos homens e especialmente pelos jovens adolescentes que acuava constantemente. Tinha-os desvirgado a todos à excepção do Armindo. Talvez o facto de ser como era, a tivesse premunido de tentar tirar-lhe o virgo. Andava pelos quarenta. Mulher madura, de comportamento ofensivo, provocante, ainda bastante excitante, mexia-se com uma destreza felina e, quando falava com os homens, devorava-os, lançando-lhes desconcertantes olhares de impudência. Umas simples e meigas palavras chegavam-lhe para pôr um homem de pau feito, diziam. Os rapazes contavam que era mais quente do que um braseiro no inverno. Se pudesse, passava o dia por cima dum. Contavam que andava sempre sem calcinhas e que mijava de pé afastando as pernas. Por andar sempre de preto apesar de nunca ter casado, chamavam-lhe a Viúva.
Este pecado polposo, este desejo ardente do corpo levava-a a uma concupiscência animal. E, às que por detrás a criticavam pela sua luxúria, respondia que se se ocupassem melhor dos maridos, estes não teriam razão para andar atrás dela. Frequentava os homens, e não o contrário, que ela queria e quando queria, gabava-se. Vivia com a mãe que nunca saía da casa e, pecado inexpiável, nem à missa iam. O padre do lugar, na sua surda revolta contra o desejo e os prazeres carnais, tentara incutir-lhes o medo do Inferno, alimentado há séculos pela religião, astuta servidora do legislador e do juiz. Tempo perdido. As línguas contavam que, sem ninguém suspeitar, tinha andado grávida duas vezes e duas vezes dera à luz, vendendo seguidamente os filhos. O Salvador, havia alguns meses, dissera-lhe que era mentira. E o Armindo, sem pestanejar, acreditava nele. Até lhe fizera uma promessa que um dia destes lhe pediria para cumprir. Para já, hesitava.
Subitamente, a triste realidade voltou a impor-se-lhe. A deficiência manifestou-se asperamente, lembrando-lhe que não poderia ter quaisquer possibilidades nem que fosse simplesmente de namorar. O rosto tornou-se uma máscara de revolta raivosa contra o infortúnio, contra o mundo. Uma risada nervosa de asco escapou-lhe ao lembrar-se do que a avó Delfina dissera quando, pequenino, ficara aleijado: “Ê como Deus o fijo.” Quantas vezes, quando ao domingo ia à missa com a mãe e a avó, perguntara ao Senhor por que razão o fizera diferente dos outros ! Nunca obtivera resposta. Se fora o Senhor que o fizera assim, nada tinha que lhe agradecer. Pensara mesmo em deixar de ir à missa, se não fosse a imcompreensão e a intolerância da mãe e da avó.
Suspirou. A vida dele, até ali, fora feita de suspiros, de troça e de amargura.
Ainda não tinha vontade de voltar para a casa. Tirou o tabaco e as mortalhas e, meticulosamente, enrolou o segundo cigarro do dia. Ia fazer-lhe bem, ia relaxá-lo. Acendeu o cigarro, fechou os olhos e tentou exorcismar os funestos pensamentos que não cessavam de o importunar e de lhe corromper a vida.
O lindo rosto da Lídia voltou a assediá-lo. Tinha fé mas, mesmo que não passasse de uma quimera pessoal, para ele tinha um significado extraordinário, indescritível. Os rapazes, que tinham mais ou menos a sua idade, disputavam-se para saber qual deles seria o primeiro a namorar ou até a ir mais longe com a Lídia. Era considerada a moça mais bonita do lugar. Como os pais eram carenciados, os filhos dos mais abastados do lugar consideravam-na como uma presa encurralada, fácil. Quem lhe dera poder mostrar àqueles bazófias, àqueles fabuladores, que sempre o diminuiram e lhe apontaram sem vergonha nem indulgência os defeitos, que tinha outras qualidades, outros sentimentos e outras vontades. Não fora ele o causador da sua imperfeição, e estes, se fossem criaturas de boa vontade e o quisessem ver, deviam minimizar, tolerar e até esquecer as suas anomalias corporais. As lágrimas, amargas, escorreram-lhe pelas faces.
O balido das cabras fê-lo abrir os olhos e voltar à realidade. Eram horas de regressar. Os animais não precisavam de relógio, a natureza regia-os. Reagrupou-as sem dificuldades. Depois de terem passado o dia a apascentar, estavam ansiosas por regressar ao estábulo. Pegou no saco de pano azul escuro onde trazia o farnel e pô-lo a tiracolo. Enfiou o chapéu usado na cabeça e pegou na vara, que eram um complemento da sua personalidade, e pôs-se a caminho. O balido das cabras encantava-o. Quando estavam satisfeitas, abanavam o chocalho, como os cães abanam o rabo.
Foi calcorreando calmamente o caminho de regresso. As duas vacas, que tinham passado o dia a pastar no campo, ao ouvirem ao longe o tlintlim das cabras que já conheciam, aproximaram-se da grande cancela de madeira, descorada pela chuva e pelo sol, que servia de porta, e esperaram que o rapaz viesse abri-la. Depois, serenamente, como acontecia há vários anos, sem nenhuma injunção, juntavam-se ao cortejo, interpondo-se entre ele e as cabras. A chocalhada, que os animais orquestravam, cadenciava a marcha até ao estábulo.
Quando avistou o cruzeiro, onde os caminhos da azenha e de Lubiô se uniam, deparou com os três súcios do lugar, os mais torcidos. Estavam sentados na base do cruzeiro que formava um quadrado de pedra, e onde, habitualmente, se encontravam. Era o centro “cultural” dos jovens locais. As feições transformaram-se-lhe numa ríspida careta que tentou disfarçar. Andara na escola com eles. O pior era o António, o filho do Rogério, antigo imigrante, que tinha na mão os outros dois. Obedeciam-lhe como se fosse o messias. Um era o filho do Beites, que tinha a única loja do lugar, e o outro era o filho do sacristão, o Gaspar. O António e o Beites estudavam em Melgaço. Os campos e os seus trabalhos, assim como os animais e o estrume, não foram feitos para eles, gabavam-se. Era trabalho de primitivos. Passavam o tempo a limpar o nariz e a contar histórias abjectas que enjoavam o Armindo. Para eles, o Armindo não tinha apenas uma deficiência física; era atrasado, simplesmente.
Mesmo assim, fez os possíveis por esboçar um tímido sorriso que, finalmente, não passou de um ricto.
— Olhade quem bem ali ! Êl ê o Mindo, rapazes ! Bém cô’as namoradas ! – começou o António.
Andavam a estudar há quase cinco anos mas tinham enorme dificuldade em abandonar a fala do monte. Tinham-na tão arraigada como a estupidez.
— É já traz uma prenhada – licitou o Gaspar.
As estrondosas gargalhadas dos outros dois fizeram eco no interior da cabeça do rapaz, ao mesmo tempo que uma raiva animalesca o exortava a reagir abruptamente. A cólera bestial fez-lhe surgir um velho fundo instintivo, mau e brutal. O sangue, a ferver, inundara-lhe o rosto. Conseguiu controlar-se a tempo, reagindo com as mesmas armas que eles, as palavras. Não parou, ao passar por eles. Não tinha medo deles, era uma maneira de marcar o desprezo com que os considerava.
— Bós, enq’anto tuberdes quem trabalhe p’ra bos manter é p’ra bos bestir, sobra-bos tempo p’ra dizerdes baboseiras. Continuade !
Os três energúmenos, assombrados com a inesperada e ultrajante réplica do Armindo, não souberam como reagir, ficando embasbacados, sem fala.
Continuando no mesmo rítmo descontraído que até ali trouxera, juntando-lhe apenas uma pitada de desenvoltura, seguiu em direcção da casa. Sentia-se como um jogador que ganhara uma cartada difícil e inesperada. Os calores que do seu corpo se libertavam fizeram-no tomar a decisão de, a partir dali, não baixar mais a orelha nem deixar-se pisar o rabo por esses asnos. Estava farto de ouvir zombarias, de ser ridicularizado. Iria até ao fim, aguentaria, sem virar a cara, as afrontas e o desprezo desta gente. E, isto, fossem quais fossem as consequências.
Quando entrou no quinteiro, voltavam a cair umas grossas gotas de água. Desta vez não olhou para o céu. Podia cair a cântaros, estava na casa.
(continua)
Ao cabo de meia dúzia de voltas no quinteiro, a Delfina queixou-se que estava cansada e que não podia andar mais. A filha, para que não se habituasse a fazer cada vez menos, forçou-a a dar mais uma volta e, depois, “subiu-a” para a casa. “Nom hai meios, pensava a Palmira, cando se lhe mête uma na cabeça, nom lhe sai enq’anto nom bencer a dela !” Sentou-a na cadeira e fê-la beber um pouco de água. Deu, em seguida, uma mexedela ao caldo que fervia como a caldeira de uma locomotiva e subiu o pote de meia dúzia de elos. Agora, ferver lentamente, chegava-lhe. Era a combinação da longura do tempo com a fragilidade do calor que fazia daquilo um caldo delicioso.
As grossas achas de carvalho, vindas do azinhal, faziam um caloroso braseiro avermelhado e duradouro. Para um balde que tinha a água gordurenta de lavar a louça, deitou as cascas das cenouras e das batatas que descascara para o caldo, assim como os caroços mais grossos das couves. Estava quase pronta a lavadura, o caldo do porco. Jamais utilizara sabão ou outros produtos para lavar a louça. Acrescentou-lhe mais um pouco de água, até cobrir largamente os desperdícios dos legumes. Por cima do comprido móvel e, de dentro de um saco plástico, tirou dois punhados de farinha que deitou no balde e que, seguidamente, mexeu bem com a mão. “Tenho que mandar o Mindo c’um saco de milho à ‘zenha”, lembrou-se, reparando na pouca farinha que lhe restava.
Olhou para a mãe discretamente. A Delfina, agradavelmente encostada à cadeira, baloiçava-se imperceptivelmente com a ponta dos pés. Como a grande maioria dos velhos, vivia no passado. Era o seu futuro. Os seus pensamentos estavam noutra época, estavam nos tempos em que era nova, feliz. Nos tempos em que o seu Abílio, às noites, depois de um dia no campo ou no monte, dava descanso ao corpo estafado nessa mesma cadeira, enquanto que ela preparava de comer. O seu odor agreste, de terra, ficara incrustado na madeira e havia alturas que lhe dava a impressão de o sentir. Gostava tanto daquela cadeira !
Tinha o olhar fixo na lareira. Mas, de repente, como se o olhar da filha a tivesse atingido, virou a cara para ela.
— Bou dar de comer ôs animais. Bôcê fica sentada na cadeira ou quêr que a ba meter na cama, é ?
— Nom, mulhêr, nom ! Bai tranquila qu’êu estou bem aqui sentada.
A Palmira não gostava muito de deixá-la sozinha, tinha medo que se levantasse e se desequilibrasse. Nunca se sabe, ao chegar a certa idade, as pessoas são imprevisíveis e inconscientes.
Pegou no balde e num pequeno cesto com asa que estava por cima do móvel e tomou a direcção da porta. Mal a entreabriu e já o Fedelho estava de pé, à espera. Sabia muito bem qual era o percurso, quais eram os destinos da dona. Deixou-a passar diante e, com as calmas comuns habituais, começaram a descer as escadas um atrás do outro. A maneira pausada de andar, semelhante, assim como o conhecimento mútuo, era o manifesto de um longo concubinato, de uma velha cumplicidade rotineira.
Havia muito que a Palmira fazia tudo inconscientemente. O prazer que sentia nas coisas do dia a dia foi murchando até desaparecer por completo. Tinha acalentado e desenvolvido uma disposição ao aborrecimento do qual se sentia vítima. Se tivesse tido alguma paixão ou pesares abomináveis, que é nisso que acabam as futilidades das lembranças, podia ter sido uma presa para os seus pensamentos ou para os seus sentimentos. Não tinha o interesse profundo e imaterial que algumas almas orgulhosas tiram delas. O aborrecimento era o seu mal. Infelizmente, era o seu mal de todos os dias. Não só um aborrecimento cansado, nervoso, entorpecido, que vem dos outros, mas o que certas almas trazem nelas, como uma nativa enfermidade. Nunca tivera um coração para ouvir nele o eco dos seus sofrimentos, das suas alegrias e, quando esta íntima fraternidade, esgotada de lassidão, cede e alui, o aborrecimento abate-se sobre as pessoas como os rapaces sobre as presas. O tempo da esperança, da confiança, foi pouco duradouro. Quando se casou com o Belardo, passara dos trinta. Não tinha nada, não era nada bonita e nunca se preocupara em compensar este inconveniente por uma outra qualidade qualquer. Não casara por gosto, mas por necessidade, como ele, apesar de ser um homem bem mais apresentável do que ela. Havia bastante que a mãe lhe dizia: “Bem sabes qu’as bacas, qu’anto mais belhas, menos balem é menos aquêcem ôs bois”. De outro modo, por ser filha única, nem para tia ficava. O Belardo apenas tinha uma coisa a mais do que ela : a vontade incansável de trabalhar e conseguir ter o mínimo indispensável. A precariedade em que vivera com os pais desenvolvera-lhe os atributos da humildade mas, sobretudo, os do empenho pela vida.
Cinco anos depois de terem casado, a vida difícil, sem qualquer possibilidade ou expectativa de melhoras, forçou o Belardo a ir trabalhar para o estrangeiro. Foi logo a seguir ao fim da segunda grande guerra. A Áurea ainda não tinha quatro anos. Veio pela primeira vez três anos depois passar um mês a Orjás. Quando regressou para França, a mulher ficou embaraçada pela segunda vez. Pouco a pouco, foi mandando dinheiro para aumentar a casa que apenas tinha dois quartos insignificantes e uma cozinha e que mais parecia um casebre. Compraram duas leiras ali perto e a vida melhorou muito.
Sete anos depois da Áurea, nasceu o Armindo. A partir dali, o tempo das estadias na França foi aumentando. Uma vez a primária feita, os frutos do trabalho do Belardo começaram a financiar exclusivamente os dispendiosos estudos da rapariga, primeiro na Vila e, em seguida, em Braga. Ia fazer sessenta e três anos e a questão do seu regresso definitivo nunca fora abordada. Era uma falta de respeito. O homem sempre foi o senhor das decisões.
E a Palmira usava-se nesta vida triste e rotineira com os filhos e a mãe, havia mais de vinte anos. Desiludida pela enfermidade do filho, a dureza do coração substituiu-se ao orgulho natural. Já não sabia dar uma gargalhada, o que era gostar, fazer carinhos, recebê-los ou ter compaixão. Vivia numa indiferença cega, alheia, total. Nunca tivera confiança nas suas qualidades, pensava-se estúpida e então desenvolveu uma passividade, um ar furtivo para proteger a ferida incurável de solidão, de infelicidade, no meio da indiferença familiar. Os olhos vidrados, sem qualquer lustro, reflectiam a frialdade na qual repousava a sua alma. A vida miserável que levava pesava-lhe mais do que o que podia suportar e estremeceu ao pensar que tinha que continuar nisto amanhã, depois e sempre, até ir para debaixo da terra. “Pareço uma belha árbore podre, cheia de serrim”, pensou. Deu aos ombros e continuou o caminho ousadamente.
Não acabara de descer as escadas quando começou a sentir umas grossas gotas de chuva caír-lhe por cima do lenço da cabeça. Olhou para o céu. Estava cheio de nuvens escuras pelo meio das quais os raios de sol, já pálidos, tinham dificuldades em sorrir. Não havia perigo de borrasca. Era coisa passageira, predisse sabiamente.
A casa era em forma de L. Os fundos da parte em que viviam serviam de celeiro e de adega; neles estavam depositadas diversas provisões, suspenso o fumeiro, guardada a lenha seca, etc. A outra parte da casa, que fora acrescentada, era formada por duas divisões com duas portas pequenas. O primeiro compartimento servia de corte às vacas e às cabras ; o segundo, ao porco e aos coelhos.
A Palmira torneou a rústica chave na fechadura da porta do compartimento do suíno e dos coelhos. O Fedelho ficou de pé, abanando o curto rabo, à espera. Por experiência, não ignorava que a espera seria curta. Depois de deitar a lavadura ao porco, foi ao outro lado buscar meia dúzia de batatas e de cenouras que tinha numa grande caixa sem tampa e, juntamente com uns bons punhados da erva fresca que havia pouco trouxera do campo, deitou-as aos coelhos. “Deixa-me meter o resto da erba dentro da corte sinom logo as cabras...” Por fim, encheu o balde de milho no celeiro e, depois de fechar as portas, dirigiu-se para as traseiras da casa. A meia centena de galináceos esperava por ela na capoeira. Lá foram os dois, com manifesta indolência, um diante do outro.
Dispersou o milho pelo recinto, às punhadas, para evitar que os animais se amontoassem e se atropelassem. Arrancou um bom monte de folhas dos pés de couve, das mais velhas, que também espalhou pelos quatro cantos do galinheiro. Enxaguou os seis latões que estavam quase vazios e encheu-os de àgua fresca do bidão que ali havia e que recolhia a água da chuva. Foi às capoeiras e recolheu uma dúzia de ovos que depositou delicadamente no cesto. Prontos ! Estavam arrumadas, até ao outro dia. Olhou para o céu, as nuvens tinham-se dissipado.
Languidamente, sempre um atrás do outro, regressaram à casa. Embora o balde que levava na mão estivesse vazio, subiu as escadas com bastante mais dificuldade do que quando as desceu. “Ê bem berdade que, p’ra baixo, todo los santos ajudam.” Abriu a porta da casa cujos gonzos chiaram, pedindo um pouco de óleo. O Fedelho, como sempre, esperou que a patroa sacudisse a terra dos tamancos antes de se sentar no seu posto.
A Delfina encontrava-se exactamente na mesma posição, baloiçando-se com uma notável lentidão. Apenas virou os olhos na direcção da filha. O braseiro parecia inalterável. Naquela casa tudo parecia postergado, adiado, em suspensão.
— Cheguei, minha mai !
— J’ó sei ! Tenho olhos, nom ?
Não fez caso, ignorou a provocação da mãe, como ignorava tudo que não lhe convinha. Se lhe respondesse cada vez que a provocava, passavam o dia em altercações. Não era dia de gana para isso. Pegou na longa colher de alumínio e foi mexer o caldo. Mal tirou a tampa, um cheiro delicioso, do qual se destacava o do pernicho, inundou-lhe as narinas. Estava bom, como devia estar.
(continua)
A Lídia era mais nova do que ele um ano mas, físicamente, não o parecia. Pouco mais baixa do que ele, que era bem grande, não trazia lenço na cabeça, ao contrário da maioria das mulheres e das moças. A cabeça, sustenta por um pescoço de uma energia escultural, estava coberta de cabelos castanhos, que tanto caím em onda encrespada dos dois lados do rosto, como, por vezes, divididos em duas faixas e presos por uma fita trabalhada, como hoje, contrastando com todas as outras raparigas. Era bem proporcionada e, para a idade, possuia uns seios bastante desenvolvidos. Sempre bem disposta, era de uma rara beleza rústica. Seduzia quem a aproximasse pela extraordinaria nobreza do rosto com linhas tão simples, tão puras que nem a idade, nem o tempo alterariam a profunda benevolência, a expressão de calmo e lúcido agrado. Depois da escola primária, embora tivesse vontade, não pôde continuar os estudos. O pai, além de trabalhar nos campos, era capador mas não ganhava o suficiente para poder pagar-lhos. A mãe havia muito que lutava contra a doença e ela, como mulher, tinha a obrigação de se ocupar deles. Os dois irmão, mais velhos, estavam casados fora dali e tinham família.
Regressaram do moinho três boas horas mais tarde. O Mindo trazia o saco com cerca de vinte quilos de farinha às costas. Pousou-o por cima do muro e foi verificar prontamente se faltava alguma cabra. Estas, ao senti-lo, barregaram em grupo, como se quisessem sossegá-lo. Ficou aliviado e voltou logo para junto da Lídia que se sentara no muro, ao lado do saco.
— Estás a ber como nom fugiram ? Ê de dia é ô lobo nunca bem, j’ó sabes.
Não respondeu. Só ele sabia o que teria que suportar se perdesse uma cabra por negligência. Agora queria aproveitar o mais que podia o gosto inebriante que a sua deslumbrante presença lhe proporcionava, devorando com um olhar alienado aquele angélico rosto inocente que o excitava desmedidamente. “Que linda ê !” Se, casualmente, se tocavam, o seu sangue era fogo. O impacto que a ingénua e cândida conversa da rapariga exercia sobre ele, arrojava-o para um mundo no qual gostaria de ficar eternamente, berçado pela sua voz cativante e repousante. Só ela falava. Ele não a ouvia. A sua inocência, a pureza da sua alma, não lhe permitiam conceber quanto a sua familiaridade o torturava. Quando ela falava, o rapaz não tirava os olhos dos seus lábios. Perturbavam-no. Podia sentir o seu hálito adocicado no seu rosto e então pensava que ia desmaiar ou ser reduzido a cinzas, como se tivesse sido atingido por um lampejo. Cada palavra que pronunciava era como uma baforada de ar fresco em dia de estio. Quando o silêncio se instalou, desviou, sem saber, o olhar, que permaneceu profundamente concentrado nos seus singelos olhos, sorrindo-lhe inocentemente.
— Ai, êl atê parêce que nunca me bistes – disse-lhe sorrindo por sua vez, ao reparar no seu olhar fixo e persistente.
Sem esperar resposta, saltou do muro fazendo prova de uma autêntica agilidade de cabrita. Pôs o saco de farinha às costas com perfeita maestria e perguntou-lhe:
— É tu por que nom bés tamém ?
— ‘Ind’ ê cedo p’ra mim.
— Bô, já tinha bisto que tu nom m’estabas’ oubir ! – disse ela, levemente contrariada.
E pôs-se a caminho, cantando serenamente. O Armindo, sem perceber, ficou a olhar para ela até desaparecer na curva do caminho. Ainda perturbado pelo passeio inesperado mas quanto aprazível, voltou para junto das cabras, sorridente. Encostou-se ao eucalípto e tirou o chapéu da cabeça. Estava a suar e não sabia porquê. O sonho fora curto, para o seu gosto, mas excepcionalmente marcante. Fechou os olhos para reviver aqueles radiosos momentos e tentar assim prolongá-los o mais que podia.
V
A Áurea estudou no colégio da Vila até ao quinto ano. Seguidamente, frequentou o magistério em Braga, saindo professora com distinção. Era o orgulho do pai que, como presente, deu-lhe dinheiro para tirar a carta e comprar um modesto automóvel, necessário para poder deslocar-se a fim de exercer o trabalho que escolhera e do qual gostava imenso. Foi colocada pela primeira vez numa aldeia cerca dos Arcos de Valdevez onde as suas raizes montesas se familiarizaram de imediato e onde todavia se encontrava. Exercia a profissão com considerável paixão. Tinha imensa paciência, adorava a canalha e esta retribuía-lho fortemente. Os pais dos alunos prezavam-na dignamente, acariciando-a frequentemente com frutas, doçaria, bolos e queijinhos caseiros.
No entanto, à primeira vista, ninguém diria que aquela rapariga miúda, delicada e frágil, era portadora das qualidades essenciais a uma boa educadora. Magra, de altura média e de cabelos pretos cortados à rapaz, coisa que a mãe, embebida nos costumes, reprovara categoricamente, era bem feita e tinha um rosto bastante aprazível. Não era bonita mas tinha qualquer coisa que retinha o olhar. Dela emanava um sentimento de bondade infantil. Os redondos olhos pretos reflectiam uma fonte inesgotável de meiguice. Parecia-se muito com o pai, fisicamente. O carácter e o feitio circunspecto vinha inteiramente da avó Delfina.
Vivia para o trabalho e o tempo que tinha disponível dedicava-o a afazeres simples. O terceiro ou o quarto fim-de-semana de cada mês, na medida do possível, ia passá-lo a Orjás, junto da família. Das outras vezes, o cinema era o seu passatempo favorito. Se não lhe agradava o filme proposto ao domingo de tarde no único cinema da vila, o seu divertimento habitual consistia em passar horas a ler no quarto ou, se o tempo era propício, sentada na relva, por debaixo das copadas tílias que ladeavam o rio Vez. Adorava e preferia os autores que a faziam reencontrar o mundo em que vivia e que retraçavam o que a envolvia e cujas narrações lhe faziam bater o coração e a fascinavam tanto como a sua vida diária que, sem ser um paraíso, era, apesar de tudo, uma fonte de felicidade indizível. Senão, passeava tranquilamente pela verdejante alameda, apropriada naquele dia pelos jovens casais de namorados. Tinha vinte e quatro anos e ainda não encontrara nenhum homem que a tivesse entusiasmado. Não tinha pressa, deixava o destino operar libremente. Como nunca se deixara corromper pelos frívolos prazeres da vanidade e pelo namorico, os seus desejos eram concretos. Sempre creu que as coisas atiladas eram as mais sensatas. Considerava a ignorância como a causa da infelicidade de muita gente. Talvez fosse isto que a incentivara a ser professora.
A meio da tarde, no café mais recente da alameda, degustava o mil-folhas habitual e o copo de leite com canela, o seu pecado aconchegante, ao mesmo tempo que estudava as pessoas à sua volta. Tinha uma distinta tendência e um gosto requintado pelo estudo da fisionomia das pessoas. Dizia que o conhecimento dos outros era o melhor caminho para se conhecer a si próprio. Sentia-se bem nesta vila.
Em Braga, estivera hospedada na mesma casa com a Natália, uma colega de magistério que era dos Arcos. Os anos que passaram juntas fizeram delas duas amigas leais e inerentes. A Natália fora colocada em Trás-os-Montes e, quando soube que a amiga vinha para a sua terra, propôs-lhe imediatamente albergue na casa familiar. Ali, a Áurea encontrou um ambiente caloroso e e afectuoso. Agradecia o destino pela sorte que tivera, pois era melhor do que o que tinha na casa familiar em Orjás.
(continua)
A Palmira ajudara a mãe a sentar-se na cadeira de balanço, desbotada pelos anos e pelo fumo, que estava ao lado da lareira, depois de esta se ter asseado. Resmungava sempre um bocado para se lavar ou fazer outra coisa qualquer. Com a idade, começava a ficar calaceira, desleixada. Não tinha ânimo para nada. O único esforço que consentia com agrado, e ainda bem, pois era-lhe necessário andar, era ao domingo, para ir à igreja. Mas a filha não a deixava descurar-se e, como o doutor lhe tinha dito, todos os dias a fazia dar umas voltas no quinteiro. Era bom para as pernas e para o coração, dizia-lhe.
A Delfina sentia-se bem, quentinha, ao lado das flâmulas coloridas, companheiras da sua achacosa solidão, que, havia anos, ritmavam os seus frescos e intermináveis dias outonais e invernais.
A filha preparava o caldo para pôr ao lume no pesado pote preto. Batatas inteiras que esfarrapava com o garfo uma vez cozidas, feijões, cenouras cortadas em grossas rodelas, uns grãos de arroz, meio copo de massa de cotovelos muito pequenos, couves esfarrapadas, um pouco de farinha milha, um fio de azeite, sal e um pedaço do fundo do pernil afumado (ou uma chouriça ou um naco de presunto ou unto) eram os ingredientes invariáveis deste excelente e nutritivo caldo que, diariamente, comiam. O único desvio era quando matava uma galinha para a mãe, que gostava muito, e aproveitava para fazer uma deliciosa canja com os miúdos. Uma boa malga, do que se podia considerar uma refeição completa, era mais do que suficiente para cada um deles.
Cozinhava sempre na lareira. Portanto, tinha uma boa cozinha de ferro que lhe comprara o marido em Braga. Os velhos hábitos, enraizados, são difíceis de cambiar. Fazia sempre caldo para dois dias. Era mais cómodo e, como a feijoada, também era mais saboroso quando requecido.
Do tecto, pendia por cima do lume a cadeia de ferro e o gancho em forma de S que servia para prender os potes. Pegou nele e, depois de o prender na alça do pote, enganchou-o num elo do fundo da corrente. Assim, as chamas, mais libres do que se o pote estivesse pousado por cima das brasas, eram maiores e lambiam-lhe o cu vigorosamente.
Olhou para a mãe fortuitamente, que parecia estar irrequieta, e perguntou-lhe se estava bem, quentinha, ao que ela assentiu. Estava bem, estava. Só que os dias, quanto mais passavam, mais longos lhe pareciam. A última carta que receberam da França excitara-a desmedidamente. Nela, o genro deixava planar a possibilidade da sua vinda no Natal. Ainda que assim fosse, faltavam mais de dois meses e ele só costumava certificar verdadeiramente a sua presença o máximo uma semana antes. Entretanto, não desesperava e pedia a ajuda de Deus.
A Delfina gostava muito do Belardo. Talvez mais do que da filha que, quantas vezes, a desdizia, chegando a pisar o limiar do desacato. Ele, sim, era um homem de palavra, de princípios e de respeito. Só tinha uma cara. Na frente dele, a filha remoia bem as palavras antes de abrir a boca. “Home” ! Sabia pô-la no devido lugar quando disparatava. Um simples olhar seu era suficiente para que a mulher o compreendesse imediatamente. “Coitado Belardo pensava. Trabalha tanto, hai tantos anos é tam longe da terra !” Mas, fosse como fosse, tinha fé de que não morreria sem voltar a abraçá-lo. Com ele na casa, os dias tinham mais sol, mas eram demasiado curtos. A última vez que viera fora no ano em que a filha Áurea acabara os estudos no magistério. Ficara contente como um cuco. Que evento ! “Como se fosse onte”, lembrava-se a Delfina, melancólica. Nunca pensara que tal coisa pudesse fazer dele um pai tão feliz. Tinha de quê. Era a primeira e a única professora que o lugar dera. Tinha sido há mais de três anos.
— Bamos, minha mai, bamos dar umas boltinhas p'rô quinteiro.
A pobre mulher, interronpida repentinamente nas suas aprazíveis reminiscências, sobressaltou e olhou para a filha, interrogadora.
— Nom seja manhôsa, minha mai ! Bamos p'rô quinteiro enq’anto nom chobe ou já estab'à dormir ?
Fez uma careta. Eram estes preconceitos insultuosos, estes comentários indecentes da filha que denunciavam a sua pouca paciência para com ela, que desgustavam e nauseavam a Delfina. Há pessoas que irradiam, que aquecem; ela absorbia todo esplendor, todo calor, como um pote ao lume. Levantou-se contrariada e, com a filha que a agarrava pelo braço, desceu as escadas diante do Fedelho, tão contrariado como ela.
IV
O Armindo, de olhos abertos, encostado ao eucalipto, não parava de sonhar. Com a idade dele, tinham ido muitos ganhar a vida para outros lados. Ele não podia ir para lado nenhum. Não avistava escapatória concebível. Avidez tinha ele, faltavam-lhe as possibilidades. Estava condenado a guardar gado e a suportar os olhares e as palavras de abandono, de falsa compaixão. Desconfiava da piedade que exaltava nele um prazer indecente, sentimentos um tanto indignos, uma comichão nas feridas da alma. Sentia-se doente. A sua doença não era a que ele via, mas sim a que lhe mostravam, que lhe impunham. Sentia uma desesperante solidão, um abandono assustador. “Estou bazio”, pensava. Via-se despejado. Nada o impedia de se ver e, portanto, havia anos que não se punha diante dum espelho. Inchava de desejos em vez de saciar-se. Não incorporava nada, nem bem, nem mal, e a sua alma não era mais do que um odre cheio de vento. Via-se fundido, aspirado, desaparecer num estômago voraz que lhe feria os ossos. Fechou os olhos para constranger os pensamentos incongruentes, incoerentes e insuportáveis que há muito o remoíam, o rasgavam lentamente.
— Ô Mindo, el tu dormes ?
O rapaz estremeceu. A voz fez-lhe abalar qualquer coisa dentro dele, qualquer coisa que só aquela voz podia atingir e avivar. Reconheceu imediatamente a voz melodiosa da Lídia que o fez sorrir e abrir os olhos com enorme prazer. Para ele, ela era como o orvalho da manhã que revigorava as plantas. Foi um balde de água fria que o reavivou e lhe aliviou, momentaneamente, a queimadura que continuamente o abrasava.
A miúda estava parada por debaixo do carvalho que cobria e ensombrava aquele pedaço do caminho, encostada às pedras do muro, um saco ao ombro e fincada graciosamente na típica vara. Olhava para ele sorrindo, com um ar prazeroso e provocador que demonstrava o degrau de carinho com que o considerava. Com a irmã dele e a avó, fazia parte das pessoas que sempre tiveram uma relação franca com ele, que jamais pronunciaram uma simples palavra de travesso ou lhe lançaram um olhar que o pudesse ferir ou mesmo lembrar-lhe o seu martírio. Era um espelho que reflectia a sua imagem melhorada.
Ficava desatinado quando via a rapariga. Só ela conseguia suscitar-lhe um pouco de gosto, de desejo ou de interesse pela vida. O sangue invadia-lhe o rosto e aquecia-lhe as bochechas. Contente mas confuso, tremia e tinha enorme dificuldade em coordenar e articular as palavras que lhe saíam fragmentadas com uma fluência incontrolável. Dava-lhe a impressão que, consciente disso, não desagradava à moça e que até a divertia.
— Nom... nom sei ! Enfado-me... aqui sozinho. É tu, onde bás ? À ‘zenha ?
— Si ! Bou moer um saco de centeio. Quêres bir comigo ?
Ficou pasmado, sem fala, durante uns segundos. A moça passava ali de vez em quando e falava-lhe sempre, amistosamente, mas era a primeira vez que o convidava para ir com ela. Ganhava uns tostões indo ao moinho moer o centeio ou o milho das pessoas que não tinham tempo ou não podiam fazê-lo. Não hesitou. Não devia deixar as cabras ao abandono mas o prazer inefável que a sua presença lhe proporcionava e a vontade de poder acompanhá-la à azenha do tio Júlio foi mais forte do que a razão. Pela rapariga, era homem para correr qualquer risco. Quantas vezes sonhara que eram namorados !
— É às cabras, que lhes faço ? – perguntou precipitadamente.
— As cabras nom te bam fugir, home !
Era a resposta que esperava. Nem percebera por que razão perguntara tal coisa. Não podia conter o júbilo que o invadira e perturbava. Sem pensar duas vezes, levantou-se de um salto. Aproximou-se das cabras e disse-lhes com voz forte :
— Nom saiades daqui, oubistes? Nom me criedes problemas, é ?
A rapariga deu uma vibrante gargalhada descobrindo os lindos dentes brancos, bem alinhados, e perguntou-lhe :
— Êl tu crês qu’elas t’entendem?
— Claro que si, mulhêr ! – confirmou com seriedade.
Agarrou no seu pau e, com um entusiasmo encantador, pegou no saco que a rapariga trazia às costas e foram andando e conversando negligentemente pelo caminho fora, em direcção do regato, da azenha. Sentia-se eufórico como nunca se sentira.
(continua)
Portanto, a vida não a tinha galardoado. Aos doze anos, a tuberculose levou-lhe os pais e o irmão que era mais novo do que ela e que adorava. Recolhida por uma tia, começou por ir para o monte guardar cabras, seguindo-se depois, dia a dia, a rija escola do campo e do monte. Ainda não tinha dezoito anos quando conheceu o Abílio na festa de Cubalhão. Começou um namoro que não tardou em casamento. Pareciam feitos um para o outro e os anos deram-lhes razão. Apenas puderam dar vida a uma filha e com muita dificuldade. Fora um grande desgosto não poderem ter muitos filhos.
O pouco que tinham foi o Abílio que o ganhou no negócio das ovelhas e das cabras. Era mais do que suficiente para as exigências deles, pois tinham sido criados no nada. Viveram contentes e mesmo felizes, segundo o que eles entendiam por felicidade. Viviam um no outro. Chegaram a um ponto que quase nunca se falavam. Não precisavam de se interrogar para conhecerem os seus pensamentos. Compreendiam-se em tudo, estavam habituados aos mesmos gestos, às mesmas vontades, a viver as mesmas impressões, as mesmas dificuldades e como não conheciam o romantismo, não precisavam das palavras. Até que o Abílio, na sequência de um ataque cerebral, ficou gravemente enfermo. As sequelas eram irreversíveis. Foi o prelúdio de um cruel sofrimento. Tinha sessenta e cinco anos e a mulher menos cinco. Não podia falar nem mover-se. Durante cinco anos, não mais se levantou da cama, ocasionando um monte de desagradáveis encargos e dificuldades à pobre Delfina, que os enfrentou com tanta coragem e dedicação como de amor tinha por ele. Fazia tudo para estar junto dele a qualquer hora e dava-lhe todo o carinho que podia para aliviá-lo do inesperado pesadelo. Uma manhã, encontraram-no sem vida. A partir dali, todas as noites, a mulherzinha implorava Santa Rita para que lhe desse uma horinha breve e, sobretudo, que não acabasse acamada como o seu “Bilinho”. Antes de tudo, queria evitar de ser um fardo para a pequena família.
— Ai que bid’à minha, meu Deus ! – lastimou-se, estendendo a malga à filha.
“A minha pouco melhôr ê !”, murmurou-se esta, levantando-se e recolhendo a malga que foi pousar na cozinha. Regressou com meio copo de água e dois comprimidos que deu à mãe. Havia dez anos que o desditoso cenário se reproduzia diariamente.
— Bou acender a lareira, minha mai.
Foi para a cozinha. Numa panela fina de alumínio, pôs uma pouca de água a aquecer por cima do fogareiro para a mãe se poder lavar mais tarde. A Delfina, a idade ajudando, era muito friorenta. Com uma pinha seca e uma "carqueija" depressa pôs o lume a puxar.
II
O Armindo saíra da casa ao romper do dia com as cabras e com as vacas. Deixou estas a pascentar num grande campo, que se cobria de erva tenra de abril a outubro, situado junto do caminho do regato, e continuou até ao monte, mais adiante, onde as cabras podiam tosar no grande azinhal montanhês que tinham comprado ao tio Vitorino.
Era um belo rapaz, atlético, como o pode ser um aldeão cujo rosto está à mercê das vicissitudes do ar agreste do monte e dos rijos trabalhos do campo. Pacato, introvertido, tinha ares de viver contente no meio da natureza e dos animais. Portanto, tinha passado e passava uma vida difícil, dolorosa, constantamente magoado pela rudeza da gente e pela crassidade dos hábitos. Ia no quinto ano de vida quando teve o ataque de um “mal estranho” que o deixou com um defeito nos dois membros destros : o braço ficou-lhe como quando tinha cinco anos, diminuto, atrofiado, e o pé, igualmente deformado, obrigava-o a coxear. Desde então, experimentou constantemente motejos e trejeitos dos rapazes da sua idade que, ajudados pela ignorância, consideravam mais o seu infortúnio como um sortilégio. A verdadeira mágoa começou a senti-la muito antes do início da adolescência. Morosamente, foi incrementando, roendo-o e confiscando-lhe todo sonho que pudesse ter. Sentia-se preso num beco sombrio, doloroso e sem fim. Dentro e fora dele tudo tinha o sinal da cólera. Sabe Deus quantas vezes se foi deitar com o desejo, com a esperança de não mais acordar e, de manhã, ao abrir os olhos e ao ver o sol, sentia uma tristeza e uma frustração inconsoláveis. O desânimo e a mágoa tinham ganho raízes cada vez mais profundas na sua alma e, pouco a pouco, tinham-se tornado donos de todo o seu ser. Os amigos eram inexistentes e tampouco os procurava. Tinha, simplesmente, alguns raros rapazes com os quais trocava umas palavras quando calhava, sobretudo para tentar minorar as diferenças físicas que os outros não deixavam de lhe relevar incessantemente.
Já não tinham conta as noites que sonhava que era como os outros, que corria, que saltava e até que namorava. Sonhara que tinha uma vida extraordinária, sonhara com tudo o que, certamente, nunca poderia ser, ter ou fazer. A desilusão fora igualmente imensa para toda a família que não pôde senão remeter-se ao destino e a Deus. “Ê como Deus o fijo", consolava-o a avó, meia atordoada pela enfermidade do neto.
Passava os dias a falar e a brincar com as cabras como amigas que as considerava. Às oito que possuiam, tinha-lhes posto um nome. Era da Rabugenta, um cabrito acastanhado, que mais gostava por ser recalcitrante e o contrariar continuamente. As horas que tinha que guardá-las, passava-as sentado a observar os lindos vales bem moldados que dali se podiam divisar ao longe. Desenrascava-se como podia para não se aborrecer. No verão, o voo das moscas, o zumbido das vespas, as borboletas e os insectos atraídos pelo cheiro das flores eram suficientes para lhe distrair o espírito. Outras vezes, deitava-se de costas no chão a observar o céu azul. A sensação de grandeza, de liberdade e de avulsão física que sentia era assombrosa e punha-o num estado de semi levitação. Quando via uma ave de rapina em busca de presa descrever grandes círculos no céu, fechava os olhos e sonhava que voava ao seu lado, livre dos seus movimentos. O sonho era a sua verdadeira realidade.
“O dia nom está mui católico”, pensou o rapaz, olhando para o céu. Este, tanto se encobria de nuvens escuras, ameaçadoras de chuva, como deixava transpassar os raios do sol já combalidos.
Deitou uma olhadela às cabras, disseminadas pelo azinhal e, uma vez assegurado, sentou-se encostando-se a um majestoso eucalipto. Para aquela região montanhosa, era uma árvore inabitual. Apreciava o cheiro que dele emanava porque, além de ser agradável, também era "mi bô" para limpar os pulmões, dizia a sua avó. Tirou o tabaco e as mortalhas e enrolou um fino cigarro calmamente. Fumava um ou dois por dia, quando fumava. Já tinha dezassete anos mas não queria imaginar o que se passaria se os pais chegassem a sabê-lo. O pai nunca o fizera e várias foram as alturas que o magoara, recordando-lhe irresponsavelmente a deficiência, ao dizer-lhe que, para se ter vícios, há que poder assumi-los. Para não dar nas vistas indo à loja do Beites comprar o tabaco, pedia a um “velhote” seu amigo, o Salvador, para lho trazer de Melgaço quando ia à feira. Tinha confiança nele pois provara-lhe, mais do que uma vez, que podia ter. Era o seu maior amigo, apesar da enorme diferença de idade. “Ê co’s mais belhos que s’aprende”, disse, quando os seus “colegas” lhe fizeram a observação.
O Salvador era um homem enigmático que sabia fazer de tudo. Além de campónio, desenrascava-se como carpinteiro, como ferreiro, como pedreiro e mesmo como veterinário. Estava sempre pronto para ajudar quando necessário. O lugar não podia passar nem era o que é sem ele. Apareceu um dia remoto, ainda um jovem homem, ao lugar e ali ficou. Começou por comprar um velho e abandonado cortelho, um pouco apartado do lugar, que, pouco a pouco, foi remendando. Tanto à volta como por dentro, era um autêntico bazar. Guardava e coleccionava tudo meticulosamente. Aquele barraco era o símbolo da sua existência, onde o passado se manifestava com endiabrada tenacidade. Sério, inimigo dos desvios e da espontaneidade, vivia sozinho conservando misteriosamente o segredo sobre a sua origem e as razões da sua vinda para um lugar perdido como aquele. Particularmente enigmático, como se estivesse fora do Bem e do Mal, apesar de não ir à igreja, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse a favor ou contra a religião. Toda a gente lhe tinha um enorme respeito e lhe expressava grande gratidão pelos serviços prestados.
Encostado ao eucalípto, o Armindo saboreava o cigarro com lentor, fazendo render ao máximo o prazer que este lhe exalava a cada chupadela. Lembrou-se duma promessa que lhe fizera o Salvador e riu-se. Como que perdidas, grossas gotas de chuva, que faziam estalar as folhas meias secas do eucalípto, caiam-lhe, esporadicamente, no velho chapéu de feltro que lhe cobria a cabeça.
(continua)
Desenho de Manuel Igrejas
Foi em 9/11/2007 que a aventura na teia principiou. Festejamos, pois, o 3° aniversário.
RETALHOS DE MELGAÇO NOS ANOS XXX
O frenesi na Vila de Melgaço devia-se à visita do Presidente da República, prestes a acontecer. Como por certo acontecera em outras localidades, o povo mantinha-se em nervosa ansiedade. As crianças da escola davam os últimos retoques nos exercícios de postura e nas roupas. Todos vestiam o melhor que tinham. No quintal da Escola Conde de Ferreira faziam os exercícios finais. Era verão, o calor insuportável, àquela hora, uma da tarde, o sol abrasador em cima da cabeça das crianças! O cabo da Guarda-Fiscal que estava instruindo a criançada, como ainda havia tempo, mandou que fossem a casa buscar algum tipo de chapéu para cobrir a cabeça. Todos moravam perto. O Manuelzinho que estava naquele meio por andar na escola oficial, também foi. O seu irmão Gú improvisou-lhe um gorro com a pala de um sobretudo que estava sendo feito. Na cabeça do garoto parecia um bivaque cinza como o dos militares. Todos acharam interessante aquele chapéu improvisado.
O cabo instrutor recomendou que quando fossem para o terreiro todos tinham de se desfazer dos chapéus. Tinham desde chapéus de palha a chapéus de papel de jornal. O Manel podia conservar o dele na cabeça por ser inusitado.
As autoridades da terra, vestidas a rigor ou, de gala quem era militar, estavam em Penso, freguesia limite entre os concelhos de Monção e Melgaço, aguardando a caravana. O Dr. Durães e o Dr. Sá, com suas fardas verdes de oficiais da Legião, o tenente Lopes, e o tenente do Posto da Guarda Fiscal, cheio de cordões brancos, talabarte e dragonas nos ombros. O sargento da Marinha, elegantíssimo, na farda branca. Todos de luvas. Os automóveis da terra também estavam lá. O carro do Pires e do Emiliano estavam com Cruzes de Aviz, emblema da Legião Portuguesa, recortadas, coladas no pára-brisas e nas portas. Os outros carros também enfeitados com bandeiras nacionais.
Cerca das três horas da tarde chegou a Penso o cortejo. Foi saudado com foguetes, palmas e vivas e seguiu adiante engrossando com os carros da terra. Desde a Loja Nova até ao Terreiro, pela Calçada, o povo ovacionou e acompanhou os automóveis. Na Praça da República estavam formados os Legionários com as espingardas, mas à paisana, os marinheiros do Posto, o efectivo da Guarda-Fiscal, os Bombeiros com os seus fulgurantes capacetes, e as crianças da escola, todas formadas impecavelmente. As autoridades da terra, após apresentarem seus cumprimentos a Sua Excelência, ao descer do automóvel, também foram formar no centro do Terreiro para a revista da praxe. A maioria dos habitantes do concelho estava à volta da praça. Ao descer do carro, o Presidente foi ovacionado delirantemente. Das varandas e janelas caíram cascatas de pétalas de flores. Tudo pronto para a revista de honra. O João Cataluna pôs toda a sua alma de português no potente sopro de seus pulmões, que no clarim tirou os mais vibrantes sons no toque de sentido. Todos se postaram firmes inclusive o povo em volta. O silêncio caiu absoluto sobre tudo e sobre todos no mais profundo respeito e emoção. Só se escutava o cair da água no tanque por detrás do chafariz no cimo do terreiro. Sua Excelência movimentou-se e o João Cataluna soprou o toque de continência. Os oficiais militares levaram a mão à testa. Os militares e legionários, armados, apresentaram as suas armas, os Bombeiros apresentaram os seus machados e machadinhas, os oficiais legionários e as crianças estenderam o braço direito na saudação romana da legião Portuguesa e Mocidade. Vagarosamente, acompanhado do seu Estado-Maior, o Presidente da República começou a passar em revista as ‘’tropas’’ formadas em sua honra.
Vestidos à paisana, com um fato cinzento que lhe caía impecavelmente, a estatura mediana e porte elegante, rosto oval e com o cabelo bem penteado e já quase todo branco e o inconfundível e imponente bigode, irradiando simpatia e ternura, Sua Excelência, o Presidente da República Portuguesa, General António Óscar de Fragoso Carmona, com expressão séria, com muita atenção ia olhando todos. O povo de Melgaço tinha respeito e admiração por aquele homem, como de resto toda a população simples do País. O povo continuava no mais profundo silêncio. Chegando às crianças da escola, Sua Excelência reparou no Manuelzinho com seu inusitado barrete e, sorrindo, tocou duas vezes com a mão no rosto do garoto, dizendo: - Muito bem, muito bem!
O rapazinho estava firme como uma rocha, braço estendido, encarnando naquele momento todos os heróis da Pátria de que já ouvira falar. Quando sentiu as mãos e as palavras do Presidente continuou na mesma firmeza mas as lágrimas da emoção escorreram rosto abaixo e um tremendo soluço sufocou-o.
Após a revista no Terreiro, o Presidente e a comitiva foram ao edifício dos Paços do Concelho. Pouco demoraram e dali foram a São Gregório, à ponte internacional que liga Portugal à Espanha. Uma hora mais tarde passavam novamente pela Vila directos a outras paragens. No dia seguinte o António da Loja Nova foi chamado ao Porto para dar explicações à Policia Internacional e Defesa do Estado. Na ânsia de participar nas homenagens, ele, que era vice-cônsul honorário da Espanha. Hasteara em sua casa comercial a bandeira daquele País. Reconhecida a sua ignorância em protocolo, foi mandado de volta apenas com advertência.
Melgaço, durante bastante tempo, viveu da emoção daquele acontecimento, retalho feliz na existência daquela gente.
MANUEL FELIX IGREJAS
Sofrimentos insensatos
I
A Palmira empurrou o portão de ferro e puxou-se para o lado. O Fedelho, que a seguia, indiferente, entrou no vasto quinteiro e dirigiu-se para a porta das cortes com passo lento, próprio dum cão de idade avançada – apesar de, aparentemente, ainda conservar um focinho de cachorro – que sabia o que fazia. Era totalmente branco, albino, diziam. Sentou-se, língua de fora, e esperou que a dona, depois de fechar o portão vagarosamente, viesse atirar para o chão o feixe de erva que trazia às costas. Estava longe o tempo em que ia com ela à erva, buscar faúlha ou tojo ao monte, e explorava incessantemente as proximidades do caminho de focinho no chão, à procura de um rasto odorífero de coelho ! Era rafeiro mas fora treinado para a caça, pois tinha um faro anormal. Hoje, custava-lhe fazer o trajecto de ida e volta da casa à leira, distante de algumas centenas de metros.
A Palmira vivera sempre em Orjás. O lugar situava-se na chapada duma pequena encosta. As poucas casas, dispostas de cada um dos lados do caminho, que por uma grande abertura no arvoredo saía da floresta, a um quilómetro dali, vindo de Cubalhão, e que continuava depois até Cavaleiro Alvo e Lubiô, eram majoritariamente antigas e de construção rudimentar. No meio, a velha igreja, toucada com um campanário bicudo em forma de gorro de lã ; por detrás, o cemitério com os muros meios derrubados, algumas cruzes degradadas e tombas enverdecidas. Em frente, ficava a minúscula escola. Mais adiante, uns bons metros, um largo com um vulgar cruzeiro de granito de onde o caminho bifurcava, indo um para Lubiô, passando por Cavaleiro Alvo, e o outro para o moinho do “tio” Júlio. A Palmira vivia numa ampla casa, a cem metros do cruzeiro, no caminho de Lubiô.
Deixou escorrer lentamente o verde feixe de erva para o chão, diante duma grande porta, e sacudiu as costas com uma mão para tirar as ervas que se agarravam à roupa.
Desde que casara e que o homem, o Belardo, fora para a França andava vestida de preto da cabeça aos pés. Só durante as poucas semanas de descanso que, de tempos a outros, ele vinha gozar à terra, é que ela se vestia de cor. Era a tradição. Na região, quando os homens se ausentavam para trabalhar no estrangeiro, as mulheres vestiam-se de preto. Era uma forma de manifestar a mágoa, a tristeza.
Um suspiro silencioso, inconsciente, escapou-lhe impulsivamente. Era uma reacção habitual, rotineira. Embora ainda não fosse velha, tinha feito sessenta anos em maio, a ausência do homem e a vida ríspida do monte começavam a pesar-lhe cada vez mais. Dirigiu-se para as traseiras da casa. Ali, na metade dum grande campo cercada de rede, tinha os galinheiros e, no resto, uns belos tacos com os principais legumes de que gostava. O cão não mexeu, sabia o que ela ia fazer e já não lhe apetecia acompanhá-la. Quando voltou, trazia nos braços umas folhas de boa couve verde. Sentia-se cansada. Seguida pelo Fedelho, subiu as escadas de pedra grosseira, desgastadas pelo atrito, e abriu a porta da casa que rangeu.
— Ês tu, Palmira ? – ouviu, enquanto sacudia a terra dos socos na soleira.
Era a voz, já trémula, da mãe que dormia no quarto ao lado da cozinha. Acordava sempre depois dela. A filha deixava-lhe a porta do quarto entreaberta continuamente.
O Fedelho deitou-se no chão, no pequeno patamar, como era hábito seu. A Palmira entrou, pousou as couves por cima da mesa da cozinha e respondeu desleixadamente:
— Sou eu, mai, sou.
A cozinha ficava na maior peça da casa que desempenhava duas funções : cozinha e sala de jantar. A parte desta era do lado direito da porta de entrada. A mobília compunha-se de uma grande e maciça mesa central que podia acolher confortavelmente uma dúzia de pessoas, ainda que só tivesse seis cadeiras. Contra a parede interior, quase a meio, estava encostado um enorme armário de ébano, como a mesa e as cadeiras, cuja metade superior vidrada se encontrava entulhada de louça, testemunha de uma época remota. À primeira vista, via-se que havia muito que não era tirada do imponente armário. De um dos lados deste, um quadro do Sagrado Coração de Jesus, do outro, um de Santa Rita. Os dois muros exteriores eram cortados cada um por uma enorme janela. O amarelo das paredes, que o tempo tinha envelhecido, descorado como os mármores expostos ao ar, dava à sala um aspecto demasiado estático, desleixado. Apenas se serviam da sala de jantar quando o padre, na Páscoa, trazia a Cruz para beijarem ou quando o Belardo estava presente.
Do lado esquerdo, encontrava-se a cozinha. De elevadas dimensões, era a vida da casa. A grande laje da lareira ficava encostada ao muro lateral. Junto do lume, a cadeira de balanço da Delfina, há muitos anos no mesmo lugar, imutável, como se estivesse cravada no solo. Contra a parede de divisão, havia um lava-louça, a cozinha de ferro e um móvel comprido, no qual se guardava de tudo e que ocupava quase a metade da parede. Por cima deste, havia uma mixórdia medonha de produtos cerealíferos, de condimentos, de adubos, de oleaginosos, etc. Encostada ao muro exterior restante, que tinha igualmente uma janela como as da sala, havia uma pequena mesa com quatro cadeiras onde comiam o filho, ela e a mãe, ou, quando a Áurea, a filha, estava, os quatro. Era na cozinha que o quotidiano se passava.
Entre a cozinha e a sala de jantar, encontrava-se a porta que dava acesso aos quartos e à retrete, uma simples dependência com um buraco no chão que despejava directamente os dejectos na corte das vacas.
O sol já não aquecia o suficiente todos os dias. Enquanto não acendia a lareira, a Palmira não tirava a mãe da cama. Como acordava bastante mais tarde do que ela, aproveitava para fazer alguns dos labores habituais da casa. Pôs a cevada com leite a aquecer no pequeno fogareiro a petróleo. Esfarrapou em seguida pão até encher uma grande malga branca com flores avermelhadas pintadas à volta. Era uma malga que a mãe conservara desde o seu casamento e pela qual tinha um apego exagerado. Deitou-lhe depois a cevada que não deixara ferver e acrescentou-lhe duas grandes colheres de açúcar moreno, antes de mexer bem as sopas. Gostava delas bem docinhas. Pôs-lhe um prato por debaixo e foi ao quarto ao lado, onde ela dormia, levar-lhas. Era um antigo quarto de arrumos que, por estar ao lado da cozinha e da lareira, fora arranjado para ela lá poder dormir. A lareira era o único aquecimento que a casa possuia. Pousou as sopas na mesinha de cabeceira e ajudou a mãe a sentar-se na cama. Deitou-lhe um velho xaile de lã pelas costas e pôs-lhe as sopas no regaço.
— Ô mulhêr, isto ê muito p’ra mim !
Não a ouviu. Havia muito que deixara de ouvi-la. Dizia sempre a mesma coisa e sempre a mesma coisa fazia: a malga ficava limpa. Sentou-se aos pés da cama de ferro, que chiou com o seu peso, e, como que hipnotizada, ficou a olhar para a mãe. Não a via. O seu olhar traspassava-a. Esta, sem lhe prestar qualquer atenção, como se estivesse sózinha, comia a um ritmo cadenciado mas contínuo. A pele curtida pelas intempéries, que contrastava com o branco da camisa de dormir, dava-lhe um ar de sagacidade e de consideração.
A Delfina tinha oitenta e cinco anos e, graças a Deus, não se podia queixar. Comia bem, a horas certas, e a saúdinha ia-se entendendo com ela. A única contrariedade eram as pernas que, às vezes, emperravam um pouco e não lhe permitiam ir dar as voltas que ela desejaria à igreja ou ao cruzeiro. Tinha-se afastado de um mundo escabroso que todavia continuava a ver, embora cada vez menos. Deixava raramente o aconchego caseiro, as pantufas cinzentas de seda e o roupão preto que lhe tinha trazido o Belardo da França. Contudo, aos domingos, ia com a filha, com o neto e, quando presente, com a neta assistir ao ofício religioso. Fora naquela capela que a tinham baptizado e que, havia sessenta e seis anos, se tinha casado. Ao fim da missa, gostava de sentar-se num dos bancos de pedra que havia no adro e trocar umas palavras com as pessoas presentes que não deixavam de ir saudá-la e de lhe apertar a mão afectuosamente. Era o único contacto que tinha com o exterior e o seu momento privilegiado.
(continua)
A.E.C.
FRONTEIRAS PORTUGUESAS E LEONESAS
NOS FINS DO SEC. XII
O que dizemos no texto, relativamente aos limites de Portugal, estriba-se nos fundamentos que vamos apontar.
Linha da foz do Minho a Melgaço. No Arch. Nacion., M. 12 de For. Ant., nº 3, f. 22 v. acha-se o foral de Melgaço dado em 1181, e na carta de repovoação de Lapella de 1208 renovam-se a este logar os fóros com que tinha sido povoado in diebus regis D. Alfonsi (Liv.2 de Alem-douro, f. 269). Os povoadores de Melgaço pediram para si os foros de Ribadavia, concelho limitrophe na Galliza. Lê-se no preambulo deste diploma que a nova povoação era fundada na terra ou districto de Valadares, districto que, como hoje vemos da situação desta ultima villa, se dilatava ao longo do Minho para o lado de Monção. Affonso I incluiu nos termos do novo municipio metade de Chaviães, logar exactamente situado no ângulo que a linha de Melgaço a Lindoso fórma com o rio Minho, caíndo quasi perpendicularmente sobre elle. Na restauração de Contrasta (Valença) por Affonso II (Liv. de Affonso III, f. 64 v.) affirma el-rei que seu pae já tinha dado um foral áquelle logar, o qual, portanto, remonta á epocha de Sancho I e, talvez, á de Affonso I, porque nem sempre a carta municipal coincide com a origem das povoações, podendo ellas existir anteriormente e, até, terem tido outro foral, hoje perdido. Isto se vê do fraguemento da demanda de Affonso II e suas irmans (lançado no Liv. 3º de Aff. III, f.26), donde consta existir já o castello de Contrasta por morte de Sancho I, porque logo começaram as discordias de Affonso II com as infantas, durante as quaes foi Contrasta tomada pelos leoneses. Que por este lado o districto mais meridional da Galliza (Toronho) vinha intestar com o Minho é o que se deduz da restituição feita por Fernando II em 1170 á igreja de Tuy de algumas propriedades sitas no seu reino, de que estava desapossada desde o reino antecedente. Entre ellas figura o lugar de Tominho, a menos de uma legua da margem direita do Minho e a pouca maior distancia das bordas do mar (Docum. Da Esp. Sagr., T. 22, Append. XV). Finalmente, o testemunho de R. de Hoveden nos mostra ser então geralmente sabido, que, ao longo da costa, a foz do Minho formava a divisão entre os dous reinos de Leão e Portugal (Hoved. Ann. apud Savile, p. 672).
Linha de Melgaço e Lindoso. De dous documentos do cartulario de Feães (Sandoval, Ygles. de Tuy, f. 132 e 137), provavelmente destruído no incendio que devorou aquelle mosteiro no seculo passado, se conhece que pelos annos de 1166 a 1174 este mosteiro era um territorio português; porque, posto aquelles documentos sejam de particulares, nelles se diz que reinava em Portugal Affonso I, não mencionando o rei de Leão. Que as cercanias do logar onde depois se fundou Lindoso pertenciam a Portugal pelos annos de 1160 resulta evidentemente do relatorio da transladação das reliquias de Sancta Eufemia, as quaes por essa epocha foram levadas a Orense. A ermida de Sancta Marinha, onde ellas se achavam estava já então sobre a fronteira e perto de Manin, ultima povoação sobre o rio Lima do lado de Galliza, como Lindoso é do lado de Portugal.
RETIRADO DA NET; INFELIZMENTE NÃO SEI INDICAR O NOME DO AUTOR DO TEXTO NEM A ENTIDADE QUE O PUBLICOU. AS MINHAS DESCULPAS.
ILIDIO SOUSA
Festa da Cultura - Melgaço
É ISTO Ê O PORTUGUÉS…? PERO SE FALAM COMA NÓS!
Jesus Garcia Sousa, Luís Martín Agrelo, Cármen Alvarez e Isaac Forján
No pasado mes de abril, grazas ao Proxecto Terra o alumnado do 3º e 4º da ESO realizamos unha excursión a Portugal, en concreto á vila de Melgaço. Durante o transcurrir da excursión tivémonos que comunicar en mais dunha ocasión cos portugueses e ofrecéusenos a oportunidade para comprobar que realmente non existe gran diferenza entre estas duas línguas irmás.
A maioria dos orixinarios cós que falamos eran guías ou persoal da pousada polo que xa podían estar afeitos a tratar com galegos e sabían que non era conveninte falar moi rápido, pero de todos xeitos sempre se lles entendia case todo. Os portugueses son en xeral, xente moi aberta e simpática e en níngun momento a língua foi um obstaculo de entendemento. No caso dos guias en moitas ocasións parámonos a falar tranquilamente com eles sobre calquera tema e era neses momentos cando se facía máis presente a nosa uníon cultural e linguistíca.
En particular unha guía contounos que nhuna ocasión viñeran a visitar Portugal un grupo de excursionistas vascos e que non se entendían case nada entre uns e outros, o que levou a gran cantidade de malentendidos.
Pero cando saímos a rua e nos puxemos en contacto coa a xente de a pé vimos unha situación máis real e descubrimos que Melgaço podería facerse pasar case perfectamente por calquera vila galega. En practicamente todas as tendas te entendían perfectamente se lles falabas en galego e o mesmo pasaba na rúa se lle perguntabas a alguén.
Como non fixemos ningunha gravación, transcribimos un texto dun dos escritores máis destacados da literatura portuguesa para que vexades que a comprensión é total.
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Fernando Pessoa, 5-08-1921
Depois de ler este texto déixase claro que apesar de algunhas diferenzas ortográficas o galego e o português son duas linguas moi unidas o que, ademais de nos ofrecer a posibilidade de relacionarnos con outra cultura, ábrenos a todos os falantes do galego as portas cara a unha gran comunidade, a lusófona.
Retirado do site da Revista Aquis / Maio 2009
Camborio Refugiado
A CAPITAL
DIARIO REPUBLICANO DA NOITE
SABADO, 20 DE SETEMBRO DE 1924
COISAS NOSSAS
O CONTRABANDO, NA FRONTEIRA DO RIO MINHO,
EXERCE-SE EM LARGA ESCALA DEIXANDO LUCROS
MAGNÍFICOS E A GUARDA FISCAL, OU RECEBE
GRATIFICAÇÕES, OU TEM NELE PARTICIPAÇÃO DIRECTA
Monsao, 16 – Como já tive ocasião de dizer, a fronteira do Minho é porta aberta, para a saída de vários géneros para Espanha, o que está causando grandes prejuízos ás classes menos abastadas, que teem de os adquirir por preços eguaes áqueles por que os pagam os contrabandistas.
No nosso regresso de Vigo o acaso deparou-nos o encontro com um desses contrbandistas, com quem trocámos impressões.
Devido ao adeantado da hora o nosso informador prometeu-nos varias informações assim como ensinar-nos os locaes mais próprios para a passagem do contrabando, marcando-nos um encontro às Portas do Sol, em Monsão para hontem.
À hora combinada lá estávamos, dispostos a saber como era possível a sahida diária para Espanha dos productos que aparecem nos mercados.
O nosso cicerone convida-nos a acompanharl-o para a beira do rio, indicando-nos, aqui e ali, os locais onde, pela calada da noite, atracam os barcos galegos que veem buscar o contrabando.
— E a vigilancia da Guarda Fiscal? – interrogámos.
— A fronteira está muito mal guarnecida de guarda fiscal. Além disso muitos guardas tambem trazem as mulheres e os filhos no negocio. Como vê, estão comprometidos e teem receio de serem denunciados.
Imagine que não são só os soldados os implicados na passagem do contrabando; são tambem sargentos e oficiais. Mas estes não se dedicam ao contrabando baixo; andam mais alto e recebem grossas luvas.
— ! ?
— Sim. Porque, por aqui, não se passam só ovos, galinhas, carnes e outros generos de passagem facil; passam-se tambem sacas de cacau, gado etc.
E compreende que estas coisas não se fazem sem prévio acordo com quem está encarregado de vigiar a fronteira.
Mas isto por aqui ainda não é nada. Vá até Melgaço, onde o rio se atravessa a pé e começa a raia seca, e então terá ocasião de vêr o que é passar contrabando em pleno dia e nas barbas da autoridade.
— Qual é o negocio mais rentoso do contrabando?
— Tem epocas. Nesta ocasião são os ovos e as carnes secas. Em Portugal, a duzia de ovos custa 5$50 a 6$00, e nós vendemos em Espanha cada duas dúzias por um duro, que ao cambio do dia regula entre 24$00 a 25$00, deixando-nos assim um lucro de 12$00 a 13$00 em cada duas duzias.
É verdade que muitas vezes temos que gratificar os guardas; mas quando isso acontece é nos dias de grande passagem. Depois, não ha apalpadeiras para as mulheres que se dedicam ao negocio, sendo-lhe assim facil fazer a passagem.
— Quando é o melhor dia para o contrabando?
— O dia das feiras. Como sabe, nesse dia é que nós adquirimos maior quantidade de generos. A fronteira fica tambem completamente desguarnecida, porque a Guarda Fiscal vae prestar serviços à Companhia dos Fósforos.
— À Companhia dos Fósforos?
— Sim. É nos dias de feira que os aldeões veem às vilas fazer o seu negocio, e a guarda fiscal, em vez de estar a vigiar a fronteira, vae para as estradas que dão para as aldeias apalpar os tranzeuntes, a fim de lhes caçar a isca e os isqueiros prendendo e autuando aqueles que os trazem, devido a terem metade da multa.
— Mas não teem eles tambem participação no contrabando apreendido?
— Teem, mas como já lhe disse, falta-lhes autoridade para procederem, devido a viverem do contrabando, alegando que o Estado não lhes paga o suficiente para se sustentarem e sustentarem as familias.
— E as autoridades administrativas?
— Ainda o ano passado a imprensa local e varias entidades fizeram ver ao administrador do concelho as irregularidades que se davam na fronteira. Foi então ordenado um inquerito que deu o resultado de todos os outros: negligencia, falta de capacidade, terminando com a transferencia de alguns guardas.
Mas ha ainda outro contrabando, tambem importante, e com o qual a guarda fiscal nada tem.
— Qual é?
— A emigração clandestina.
Quizemos averiguar o que se passa com a emigração e os agentes encarregados de velarem na fronteira para que ela não se faça. Mas o nosso informador marca-nos outro encontro, em que nos explicará quem são os responsáveis pela sahida diaria de centenas de emigrantes sem documentos, para a América, França e Brazil.
ABREU VIEIRA
Camborio Refugiado
A CAPITAL
DIARIO REPUBLICANO DA NOITE
3ª feira, 2 de Outubro de 1923
CARTAS DO MINHO
FEIRA DO GADO - CONTRABANDO PARA A ESPANHA – CASTELO EM RUINAS - AO ABANDONO – BATOTA – O PREÇO DO DURO
MELGAÇO, 27 – Na povoação próxima desta vila, denominada Paderne, realizou-se hoje a feira mensal de gado, que é por assim dizer a mais concorrida, dos concelhos de Melgaço, Valença e Monsão, afluindo ali grande numero de vendedores e compradores, dos Arcos de Val de Vez, Ponte da Barca e Ponte de Lima.
Os lavradores que teem já concluídas as colheitas do vinho e do milho aproveitaram a ocasião para venderem o gado que tinham adquirido antes, e que durante o ano vão criando e engordando, para o ano próximo, lhes fazer os trabalhos dos campos.
O numero de compradores, foi grande sendo a maioria absoluta de espanhoes, que compravam o gado por todo o preço, fazendo-o depois, transportar para a Galiza, pela raia seca, da serra de Castro Laboreiro.
Os espanhoes não se limitavam à compra de gado bovino; adquiriram também bastantes galinhas, que chegaram a atingir os preços de 20$00 e 22$00, certos da impunidade do crime de levarem para fora do paiz, aquilo que cá nos está fazendo bastante falta.
Na feira tive ocasião de trocar algumas palavras com um lavrador, pelas quês se vê a ignorancia deste povo que pouco se importa que os seus compatriotas de outras regiões morram de fome.
— Quanto quer pela junta de bois – perguntei?
— Cinco contos.
— Mas o cambio?
— Que me importa a mim o cambio? O que eu quero é que o gado dê dinheiro?
— E o paiz?...
— Eu não percebo dessas coisas. O que sei é que de ano para ano pago mais contribuições.
Se tivesse falado com muitos outros lavradores, teriam dito a mesma coisa. O que eles pretendem é dinheiro, não olhando ao seu valor.
XXXXXXXXXXXXXX
De volta para Melgaço tive ocasião de falar com o Sr. João Pires Teixeira, presidente da Camara Municipal; que teve a amabilidade, de me mostrar os pontos mais interessantes da vila.
Da velha muralha do castelo, que outrora, marcavam os pontos de resistência às invasões estrangeiras, apenas restam umas pequenas pedras dispersas aqui e alem.
O castelo, esse ainda conserva o seu velho relogio, que é secular.
Nas caves que serviram para deposito de material de guerra, esta agora instalada uma cocheira e no pavimento superior um armazém de palha.
— O concelho de Melgaço – diz-nos o sr. presidente da C. M – está completamente ao abandono; aqui não há hotel e temos um café apenas. Não há coisa alguma. O estado tem-se desinteressado completamente deste concelho…
— Iniciativas particulares?
— Não há. Aqui há mezes é que se fundou para ahi uma sociedade, onde se joga a batota descaradamente, sem que as autoridades intervenham.
Melgaço tem uma velha aspiração, que bastante viria a desenvolver o seu comercio e sua agricultura; é o caminho de ferro. Note que são apenas 15 a 17 kilometros de Monção aqui. Pouca despesa se faria. O povo do concelho, para isso, pagaria de bom grado mais 2% sobre as suas contribuições.
— Quantos habitantes tem o concelho?
— O ultimo censo deu-nos uma população de cerca 16 000 habitantes. O nosso concelho é rico. É dos concelhos do Minho que mais dinheiro dá ao estado e que menos recebe. Para terminar, acrescentou o sr. Pires Teixeira, dir-lhe-ei que no próximo inverno vamos ficar sem correio para aqui. A estrada está intranzitavel. Há bastantes anos que não é reparada e o carro que traz o correio, do Monsão não poderá passar do Pezo para cima.
— Porque não reclamam?
— Junto de quem? Aqui só ha energia, vida e atividade, nos tempos de eleições, quando precisam de nós. Servidos, esquecem-nos por completo.
XXXXXXXXXXXXXX
Durante a feira de Paderne, a única casa de cambio que aqui existe, fez um excelente negocio, chegando a vender o duro a 22$00.
A. V.
Camborio Refugiado
Peneda
ENTRE A PENEDA E O BARROSO
UMA FRONTEIRA GALAICO-MINHOTA EM MEADOS DE DUZENTOS
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Assim também entre a Galiza e Portugal. A Norte ninguém tinha dúvidas sobre por onde se corria a divisória. Era o Rio Minho que a marcava, um traço suficiente forte e estável da paisagem, para se impor, desde logo, sem reservas. Aliás, do lado português, uma linha de povoações fortificadas, quase sobre a margem do rio, a balizar as linhas de comunicação, os locais de passagem para a outra banda, eram, desde Afonso III e seu filho Dinis, a clara afirmação de uma soberania que até aí se dilatava e não sofria contestação. Pelo menos sem a resposta adequada.
Mas a fronteira óbvia terminava na foz do Trancoso. A partir daí, se esse pequeno rio, com, mais ao Sul, o Laboreiro, ofereciam ainda alguma possibilidade de um claro registo de demarcação, no terreno, fizeram-no sem a força e imponência do Minho e, para lá deles, toda a separação se fez por serras, galgando encostas, caminhando por cumieiras, descendo a precipícios – como na Portela do Homem, o exemplo mais marcante – numa indefinição de linhas que a natureza do terreno, a fraca densidade populacional, o modo de vida dos seus habitantes, largamente dedicado à montaria de ursos, javalis ou cervos, ajudaria a manter. Aliás, os homens de Cabreiro, de Soajo ou de Castro Laboreiro, não perguntariam se era por terras da Galiza ou do Minho que perseguiam a sua presa. Possivelmente ser-lhes-ia quase tão indiferente como a ela, saber de que lado da fronteira se encontravam. Esta era uma larga franja de terreno, tão larga quanto o seu distanciamento das estruturas fortificadas que a apoiavam, com os respectivos territórios de controle a envolverem-nas. Fortalezas que haviam de ser vigiadas, defendidas, em caso de conflito armado, lactente ou efectivo…………………………
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No extremo Norte, a praça forte de Melgaço erguia-se, por assim dizer, numa primeira demarcação do território português. Mas Melgaço estava mais virada sobre o Minho. Era uma fortaleza do Minho. Na serra o Castelo de Castro Laboreiro era o que mais a Norte proclamava a soberania de Portugal e o primeiro a sofrer os embates, numa eventual entrada de Leão por esta fronteira. Isolado e servido por um pequeno grupo de homens, precisava de auxílio das populações vizinhas, em caso de perigo. Por isso, os homens de S. Pedro de Mou, “se ouvirem voz d apelido do Castello de Leboreiro deven li a correr “ , mas, em contrapartida, o seu Alcaide, “se os vir in coita deve os acoler no Castello e inparal os”. Para isso lá estava a grande cerca, que fora construída, como outras no século XII.
REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS
Por IRIA GONÇALVES
Seixas - Foto de rapazao
Era a segunda vez que íamos tocar à AAS, Associação dos Amigos de Seixas. A primeira vez fora no carnaval do mesmo ano e, aparentemente, a gente gostara da nossa música. Por isso, naquele dia, dia da festa de São Bento, padroeiro da vila, lá estávamos nós a tocar novamente.
Seixas é uma linda vila da margem esquerda do rio Minho. A largueza do rio mostra que a foz não está longe e que os efeitos das marés chegam ali.
Nas ruas, a multidão movia-se como duas ondas, uma de cada lado e em sentido contrario.
A sala da associação era no primeiro andar de uma antiga fabrica. Estava cheia. Ao ar livre, num largo da vila, havia outro baile com um grupo que se podia considerar uma orquestra: eram uma duzia.
Foi durante o nosso intervalo, quando estávamos a ver e a apreciar o outro grupo tocar, que se começou a ouvir uma enorme aclamação: “Amália, Amália !” A singular e adorada fadista portuguesa passeava, descontraidamente, pela festa, xale preto pelas costas, em companhia de um homem de certa idade que, pelo estilo, devia ser seu secretário ou empresário. “Amália, Amália !” Era natural que estivesse de visita à zona pois, se tivesse familia ou amizades por ali, não andaria unicamente na companhia de um secretario. Toda a gente gostaria de se mostrar ao lado da grande Amalia. A multidão era cada vez mais numerosa a entoar o seu nome. Os membros do conjunto que actuava, quando perceberam que ela se encontrava na festa, pararam, anunciaram amavelmente a sua presença ali e, incitados pelas aclamações ensurdecedoras da multidão, convidaram-na a subir ao palco para interpretar uma canção. Depois de uma rapida concertação com o acompanhante, subiu ao palco sob uma torrente de aplausos. Foi um delirio total por parte da gente que, indubitavelmente, não imaginava nem podia acreditar que a maior, mais conhecida e considerada cantora portuguesa os honrasse com a sua presença e os gratificasse, improvisadamente, com uma canção. O reconhecimento que os portugueses lhe tinham estava à altura do seu talento de fadista. Interpretou o velho “Malhão, malhão” e, em dois segundos, pôs as pessoas alegres, a saltar, como se fossem todas crianças. Foi um momento enternecedor, de sincera amizade partilhada. Só foi pena não termos sido nós a acompanhá-la. Tinha ficado para a história.
Regressamos à nossa sala e tocamos mais uma hora. Intervalo. Uma da manhã. O estômago dava sinal. Desci e fui à cantina tentar alivia-lo. Numa das mesas estava o Chancas sentado.
Cada vez que íamos fazer um baile a qualquer lado, havia sempre quem se propusesse como carregador voluntário com a única finalidade de entrar gratuitamente no baile. Mas também tínhamos meia dúzia de amigos que, quando podiam, se organizavam e não falhavam uma saída nossa. O Chancas fazia parte destes.
Dirigi-me para o balcão. Havia caldo-verde, coisa boa para satisfazer e acalmar o estômago. “Olha, Coxo, se vais pedir um caldo-verde, pede outro para mim.” Era o Chancas, sentado a uma das numerosas mesas que havia na grande sala. Com as duas malgas na mão, fui instalar-me na sua mesa. Estava numa de caldos-verdes. Já não sabia quantos tinha ingurgitado, disse-me. Além disso, a gaja que os servia estava a ficar danada com ele porque, malandro guloso, fora várias vezes pedir-lhe uma rodela de chouriço, pretextando que ela se tinha esquecido de lha meter no caldo. Estávamos a saborer a deliciosa sopa devagarinho, com um pedacinho de broa, quando entrou o André, nosso amigo, que se dirigiu para o balcão do bar pedir alguma coisa. “Queres ver que o Cabecinhas (alcunha do André) vai apanhar uma boa seca ?”- inquiriu o Chancas. Sem esperar resposta minha, fez-lhe sinal e perguntou-lhe: “André, vais pedir um caldo-verde ?” Não, vou pedir um sumo”, disse. “Olha, não te importas de pedir uma rodela de chouriço para mim ?” - disse-lhe, gentilmente, o Chancas. “A gaja esqueceu-se de meter chouriço no meu caldo, pá.” O André deu aos ombros, aproximou-se do balcão e quando chegou a sua vez, pediu um Sumol e uma rodela de chouriço, dizendo à mulher que se tinha esquecido de deitá-la no seu caldo. A mulher, vermelha de calor, no meio da confusão que, em geral, reina no bar de um recinto de espectaculos durante o intervalo, mal ouviu pedir mais uma rodela de chouriço, fitou atentamente o André e, simultaneamente, num tom de franca irritação, de reprimenda e de contentamento, como se já estivesse à espera, ironisou. “Ai sim ? Desta vez não me leva, não ! Tive muito cuidado em meter-lhe a rodela de chouriço quando lhe dei o caldo-verde há pouco, sabe ? Andava a brincar comigo, mas acabou-se-lhe a brincadeira, meu amigo. Só tem direito a uma rodela, como toda a gente e mais nada. Agora deixe o lugar a outros, se faz o favor !” O André, estupefacto, sem perceber nada do que lhe tinha acontecido, olhava para nós com um ar inocente. O Chancas, malandro, ria e fazia-lhe sinal com a mão para que cagasse, que não fizesse caso da gaja. “Eu não te disse ?”, gracejou divertido, virando-se para mim. Não sei se o Chancas, alguma vez, lhe explicou a brincadeira.
Julho de 2010.
A. E. C.
COMISSÃO ADMINISTRATIVA CÂMARA MUNICIPAL MELGAÇO
REQUERIMENTOS DE MUNICIPES APRESENTADOS EM SESSÃO
De Erminda Fernandes Carvalho, solteira, do lugar de S. Gregório, freguesia de Cristóval, pedindo o internamento em um dos hospitais visto necessitar ser submetida a tratamento. O Sr. Presidente, acerca deste assunto, disse que como se trata de um caso de doença de tratamento inadiável, já tinha autorizado o internamento no Hospital Geral de Santo António – Porto, a expensas deste município, visto ser pobre. Foi deliberado aprovar a resolução já tomada pelo Sr. Presidente;
De Emiliano Augusto Igrejas, arrematante dos impostos indirectos municipais, expondo os prejuízos que teve com as cobranças dos referidos impostos sobre farinha, sêmea e carnes e pedindo uma indemnização na importância de dez mil seiscentos e oitenta escudos. Deliberado proceder-se ao estudo do assunto, para ser resolvido em ocasião oportuna.
Camborio Refugiado
Exército Português
Regimento de Infantaria Nº 8
Braga
Soldado 404/40
Caderneta Militar
1ª Página
Alberto Caetano de Sousa
Classe 1940 – C.H – 158
2ª Página
Estado Civil
Nasceu a 4 de Abril de 1919
Freguesia de Melgaço
Concelho de Melgaço
Filho de Ilídio de Sousa
e de Amândia Augusta Igrejas
Estado solteiro
Ocupação Funileiro
Ultimo domicilio, freguesia d Melgaço
Concelho d Melgaço
3ª Página
Estado Militar
Alistado em 10 de Julho de 1939 como recrutado
……………………………………………………
para servir por 25 anos.
Incorporado em 4 de Abril de 1940
Pronto da escola de recrutas em 15 de Julho de 1940
para Serv. Metr m/938
Licenciado em 4 de Fevereiro de 1941
Passou à reserva activa em 31de Dezembro de 1946 e à re-
serva territorial em 1 de Janeiro de 1960
Baixa de serviço em 1 de Janeiro de 1965 por ter
completado toda a obrigação de serviço
Altura
1,605
Sinais particulares
Vacina anti T.H.B.
1ª dose 8-5-940
2ª dose 27-5-940
3ª dose 21-6-940
Habilitações literárias e profissionais
Antes de alistado
Ler escrever e contar
Correctamente (4º grupo)
Página 4 e 5
Colocações durante o serviço
Unidades R. Infª 8 Número 404 Dia 4 Mês Abril Ano 1940
C. M. I. 8 404 31 Dezembro 1946
D. R.M. 8 404 1 Janeiro 1960
Página 6
Data dos diversos postos
Postos soldado Dia 4 Mês Abril Ano 1940
Página 7
Alterações em tempo de serviço
Liquidação anual do tempo de serviço
No ano de 1940 Anos N Dias 253
1941 N 34
“ “ 261
1942 1 -
1943 - 364
Diminuição
1941 – Discip. Ano N Dias 5
Página 8
Ocorrências extraordinárias
Tirou no sorteio o nº 272. Continua no serviço efectivo nos termos D” C. Confidencial da 3ª Rep. da 1º D. G. do M. da Guerra nº 11201/122, de 8-6-940, desde 15 de Julho de 1940. Passou à disponibilidade em 4 de Fevereiro de 1941. Destacou para os Açores fazendo parte do1ª Batalhão Expedicionário do R. I. 8 nos termos da circular da 3ª Rep.Da 3ª D.G.M.G. nº 324/MT de 26/3/941 em 24 de Abril. Desembarcou na cidade da Horta em 28. Embarcou no Faial de regresso ao Continente em 18 (a). Desembarcou em Lisboa em 27. Considerado alistado no 1ª Escalão da Legião Portuguesa desde 15 de Abril de 1959. (O.S. do R.I.8,nº 185 de 1945).
(a) de Dezembro de 1943.)
Página 11
Domicílios durante o licenciamento e reserva
Lugar Melgaço Freguesia Melgaço Concelho Melgaço Dia 4 Mês Fevereiro Ano 1941
Rua Direita S. Paio e Vila Melgaço “ 21 Dezembro 1943
Página 12
Apresentações durante o licenciamento e reserva
Motivo
Convª Extraoª
Desde
Dia 10 Mês Abril Ano 1941
Até
Dia 30 Mês Dezembro Ano 1943
Página 13
Condecorações e louvores
Louvado pelo Comandante do 1º Bat. Exp. Do R.I.8 por voluntária e desinteressadamente se ter oferecido a dar sangue, para salvar da morte, um doente, não pertencente à família militar, demonstrando com este acto possuir um alto grau de altruísmo e de boas qualidades (G.R. de 19/12/41). Louvado em 4 de Outubro de 1943 pelo Ex.mo Comandante do Bat. pela maneira valente como trabalhou para extinguir um incêndio que se declarou na noite de 24 de Setembro último no abrigo Central de Metralhadoras conseguindo com o auxílio de outros seus camaradas salvarem o material de guerra ali existente. (G.R. 18/11/943).
Página 14
Tempo de licença registada
1940 – vinte dias
Licença por motivos de moléstia, tratamento nas enfermarias e convalescença
1940 – Na enfª 10 dias. C.te 4 dias.
Página 15
Classificação
Ano 1940 Com espingarda mauser No tiro 2ª classe
Página 16
Registo disciplinar
Crime ou infracção
Colocado na 2ª classe de comportamento nos termos do artº 188 do R.D.M. 4 Abril 1940
Por hontem por volta das 22.30 ter alterado o silêncio e responder com modos pouco respeitosos a um 1º cabo que o mandava deitar, infringindo assim os nº 2 e 4 do artº 4º do R. D. M.
Pena imposta
Dez dias de detenção
Tribunal ou autoridade
Com.te do 1º B. Expº do R.I.8
Dia 28 Mês Agosto Ano 1941
Crime ou infracção
Baixa à 3ª classe de comportamento nos termos do artº 192º do D. R. M.
Por não estar com a devida compostura à formatura do recolher do dia 2 do corrente e não acatar uma ordem dada pelo sargento que presidia à mesma quando este lhe determinou que avançasse para a frente da companhia, o que deu origem a provocar riso a todos os praças presentes infringindo assim os Reg. 1º e 12º do artº 4º do D.R.M.
Pena imposta
Cinco dias de prisão disciplinar (a)
Tribunal ou autoridade
Com.te do 1º B. Exp. Do R. I. 8 Dia 3 Mês Dezembro Ano 1941
(a) Amnistiadas nos termos do decreto nº 45467 de 27-12-963 –
Página 24 e 25
Conta de fardamento (a)
(a) só referidos os anexos devido à individualização das peças de fardamento.
Conta Corrente
Foi-lhe feito espólio de todos os artigos de fardamento que lhe estavam distribuídos com excepção dos abaixo designados”
Quartel em Braga, 3 de Fevereiro de 1941
O comandante da Companhia
Por ter sido mobilizado foi-lhe feito o espólio de todos os artigos de fardamento que possuía.
R.I. em Braga 18-4-941
Pel’ O Comt-de da Compª.
Página 26 e 27
Conta de Fardamento (a)
(a) devido à sua extensão não foi transcrita a lista
Página 39
Apresentação nas revistas de inspecção
R.A.L. nº 5
28 de Maio de 1944
R. I. 8 Braga
16/6/1945
(…..) de recrutamento e mobilização nº 8 Arquivo
Foram cortadas 12 folhas das requisições de transportes em c/ferro
Quartel em Braga 16/5/73
O chefe do arquivo,
AS PÁGINAS NÃO MENCIONADAS ENCONTRAM-SE EM BRANCO
- IMPRESSO COLADO NA CAPA DA CADERNETA MILITAR DO SOLDADO 404/40 –
Unidade C.M.I. nº 8
Nº 404 Classe de 1940
Nome Alberto Caetano de Sousa
Pôsto Soldado
LEGIÃO PORTUGUESA
Comando Distrital de Viana do Castelo
Legionário do 1º Escalão
Nº 3070/32214
Concelho de Melgaço
S. Paio da Vila
Roga-se a devolução
Camborio Refugiado
A lareira na cozinha quase não se fazia sentir tal era o frio que entrava pelas frinchas de portas e janelas, mal calafetadas com folhas de jornal. Na sala, duas braseiras aqueciam um pouco os pés enregelados; na parede principal, duas litografias, a Rainha D. Amélia numa, seu filho Rei D. Manuel II noutra.
— Os meus primos, diria Amália, - filha de Félix Igrejas, neta bastarda de condessa – a visitante mais curioso.
A mesa, nessa noite de Consoada, estava posta para os oito da família. Amália e Ilídio presidiam, em volta os cinco filhos; Ernestina e Guisele, Ná, Tó e Mi. Faltava um, Bé o mais novo, que a guerra levou p’ra longe, levou-o p’rás ilhas dos Açores – como ele diz -, dizia mãe Amália na conversa de vizinhas.
Não bastava a guerra que tinha acabado na Galiza e no resto da Espanha, que arrasou a terra de sua mãe Conceição, Santa Cristina de Baleixo na Galiza, e que tão mal os tinha feito passar – o irmão Emiliano, Meliano p’rá família e amigos chegados, não diria o mesmo, mas isso era o trabalho dele, na frota -, agora levaram o Bé p’ra outra guerra, para um sítio que ela não conseguia imaginar e isso enchia-a de raiva.
Guerra sim, mas guerra onde ela controlasse o filho, do frio ao calor, do caldo d’unto ao naco de broa. Foi ela que o pariu!... e agora?
— Uns montes metidos no meio da auga – berrava p’rás vizinhas.
Na mesa, o lugar do Bé era ocupado por uma grande fotografia emoldurada do filho soldado, sorriso irreverente, a ler uma carta – quem sabe da namorada?, que a mãe não sabia escrever – devidamente fardado, sob o sol do Faial.
Debaixo do sorriso benevolente do Ilídio, Amália serviu os pratos dos filhos, Bé incluído.
Foi-lhes servido o polvo com couves, as tostas e o geremú no fim. Não lhes faltou o tinto do novo, vertido no copo, que naquela noite não se usava tigela.
A fotografia teve o mesmo tratamento da família, o Bé estava presente.
Amália, dormiu descansada, sabia que o seu Carricinho estava bem e com eles comungava de um Santo Natal, as raparigas deitadas e o seu Ilídio estava em segurança em casa do Meliano a dar umas voltas de dança e a beber uma tigela, com a musica do rádio que no Inverno era um gaguejo, em vez da concertina de que ela tanto gostava.
O irmão também gostava, mas desde que se meteu com o maluco do Pires, deu-lhe para a modernice, e agora era o rádio. E até cinema!... Claro que a casa era grande, com garagem e quintal onde não faltava o tanque das lampreias e as uvas colhão de galo. Tinha até aquecimento sem precisar de braseiras, onde é que já se viu!
No carro, um Ford que o Meliano alugava a quem de médico precisava, ou a senhor p’rás suas voltas, isso sim, gostava ela de andar.
Chegou a ir a Viana, ver as moças com aquelas voltas, ouro tão rico, nem as mais ricas que apareciam na senhora da Peneda tinham coisa assim; ver o mar – água tanta que o rio parece uma levada – e uma ponte de ferro que parecia um bordado.
E ao Bom Jesus de Braga, onde faltava a festa, só missa e o farnel, mas tão bonito com aquelas capelinhas todas.
E São Bento da Porta Aberta… e São Bento do Cando que ficou ali tão perto; até junto de Fiães no S. Bento ficamos, que os ovos cozidos e a lampreia seca ainda estavam quentes e o vinho fresco. Até às carvalheiras de Lordelo em Tangil, na festa do Senhor do Bomfim onde prendiam com alfinetes as notas no manto do santo e davam conta do barril até chegar a hora da Procissão.
A frota dava-lhe dinheiro mas também muito trabalho, agora estava aqui, logo acolá, o Tó e o Ná ainda davam uma mão nas cobranças do imposto indirecto sobre a mercadoria entrada no concelho – que ele arrematou à Câmara -, mas transportar os galegos fugidos da guerra, com a PIDE e a Guarda sempre atrás, era um risco. Ao pé da casa sabia ele o que fazer, mas quando passava o Douro…
E a Aninhas cada vez mais tísica deitada naquela cama, só a beber a água da Fonte da Vila, que a outra a matava.
Mas naquela noite do Menino Jesus, a Amália, nem homem nem frota lhe tiravam o sorriso.
O seu menino estivera com eles.
Ninguém cantava o Malhão como ela, e depois de uma malga, atirava o cabelo p’ra trás e saía aquela modinha que não deixava ninguém parado. E foi o que fez.
Amália, encheu a tigela, olhou para os primos reis pregados na parede, atirou o cabelo para trás, fechou os olhos até ver o filho na guerra e cantou:
Oh Malhão, Malhão,
Que vida é a tua
Comer e beber
Oh de repimpim
Passear na rua
O Ilídio parecia gozar a essa hora das delícias que o dinheiro da frota proporcionava ao Meliano. Delícias amargas, que o cunhado de bom olho percebeu. O Bé, não estava, o Bé andava p’ra lá.
As malgas encheram-se e a um chiuuu do Meliano, a rádio calou. Um abraço ao cunhado, um abanão e – não te esqueças que também é meu.
— Viva o Carriço!
— Viva!
— Viva o Carriço!
— Viva!
As malgas voltaram a encher-se, outro viva saiu.
A concertina atirada para um canto por mor da música da rádio, fez a sua entrada a sinal do dono da casa. Logo saltou daquelas gargantas o Ó Oliveira da Serra para em seguida se fazer silêncio e deixar o Ilídio gargantear:
Ó vai ó linda
Só a mim ninguém me leva
Ó vai ó linda
P’r’ onde vai o meu amor
Longe, nuns montes no meio da água, o soldado 404/40 era o rei da Consoada na Vila.
(continua)
Carta de mestre António El Cambório a seu amigo e compadre Dom Cambório Refugiado Lusitanus ou como viviam uns melgacenses em terras de Bracara Augusta nos idos de 972.
Caro amigo: as suas perguntas são verdadeiramente interessantes e impertinentes. Agradeço-lhe imenso por ter pensado em mim para esclarecê-lo.
Se a minha memória me não atraiçoa, creio que esses singulares companheiros de uma época muito apreciada por nós eram três: dois irmãos e um primo, nativos da modesta vila de Vinhais, terras dos nossos progenitores da Casa de Bragança.
Pessoas simplórias, bastante rudes, eram possuidoras daquele vilão lapso distintivo das criaturas primitivas que tentam, claudicantemente, modelar e escamotear as maneiras grosseiras que as caracterizam.
Um deles, como Vossa Senhoria legitimamente mencionou, permitia-se conceber uma hipotética integração no restrito círculo do universo espacial assim como uma improvável presença nos jogos olímpicos de Munique. Pobre plebeu!
Mas o mais vil, o mais apócrifo era, sem controvérsia, o primo. Havia que ver como ele agarrava nos talheres mal a Dona Adelaide, ex-rameira no chique bairro da nossa graciosa Sé, pousava a travessa com o restrito conteúdo de massa com frango habitual! Que Vossa Senhoria me perdoe, mas parecia o toureiro que esperava o animal para lhe cravar as “banderillas” no lombo. Depois do “Sirvam-se” consuetudinário, ao qual nós respondíamos com a devida e reverente cortesia : “Primeiro vocês”, o ignominioso indivíduo, sem hesitar, cravava o forcado nas duas pernas de frango como se fossem dois trofeus merecidos. Assim passaram semanas sem sabermos qual era o prazer proporcionado pela delicada e refinada carne das pernas dos galináceos. Nem pelos seus congéneres que, como nós, apenas as viam passar, formulava a mais sucinta consideração. Mas para nós, pessoas com princípios e cultas, que vínhamos de terras onde a deferência é rainha, a afronta não podia perdurar.
Foi graças à perspicácia de Vossa Senhoria que, determinado dia, não podendo suportar mais o seu arrojo grosseiro, usou as mesmas armas que o vil indivíduo, ou seja, não retribuiu a gentileza ao túrbido plebeu e apropriou-se das duas suculentas gambetas do galináceo servindo-se prioritariamente. Lembro-me da careta de contrariedade, de exasperação incontidas que a sua desprezível fisionomia exteriorizou naquele instante e que se traduziu por uma ausência deliberada de vénias para connosco durante um período assaz longo. Coisa que não foi nada desagradável nem perturbadora para pessoas discretas, de valores e de nobre linhagem como nós.
Ah! A graciosa donzela, a filha da Dona Adelaide, estava no coração de todos nós sem excepção. Quantas vezes a minha frágil mão direita cedeu aos caprichos de uma verga escaldada e endurecida pela atracção que esta excitante e inebriante polposa criatura exercia sobre o meu instável equilíbrio libidinal! Apesar da sua errónea e frígida indiferença, éramos todos escravos do seu charme.
Vossa Senhoria, as minhas humildes e limitadas reminiscências têm, apesar de tudo, uma distante ideia do amigo da Dona Adelaide que eu, modestamente, designaria de proxeneta, título honorífico nas camadas da plebe.
Espero sinceramente ter trazido todos os esclarecimentos às delicadas questões que importunavam Vossa Senhoria. Fico, todavia, à Vossa inteira disposição se por acaso uma das respostas o não satistaz.
Rogo-lhe, Vossa Senhoria, que acredite na expressão das minhas mais sinceras e cordiais saudações de benevolência.
Seu vassalo, António El Cambório, Conde de Parada do Monte.
A. E. C. correu a Europa a nosso pedido e com cartas de Sua Majestade Senhor de Melgaço e afins. A passagem por Bracara Augusta levou-o a terras de Santiago e, mais tarde, às terras Gaulesas onde desenvolveu a arte da escrita e da musica e, em seguida, a de fazer filhos em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Encontrou na sua viagem grandes nomes como Carlos de Valença, Arturinho de Monção ou Zé Pequeno de Cousso, todos eles destacados e irrefragáveis botânicos, pioneiros na exploração e na experimentação das plantas canabináceas, com os quais celebrou tratados herbáceos, culminando estes na classificação das subespécies do canábis sativa L. e, por conseguinte, no desenvolvimento da kaya em terras da hespaniola. Actualmente, recolhido em terras de Val-de-Marne.
António El Cambório
SÍNTESE DA MORAL MELGACENSE
IMPRESSÕES DUM FRADE
I
NO CÚ DE PORTUGAL, NARIZ DE ESPANHA
LÁ ONDE O MINHO A COBRA IMITA
ONDE ATÉ ÀS NUVENS SE ARREBITA
DUM E DOUTRO LADO ÁSPERA MONTANHA,
JAZ UM FEIO CURRAL QUE A VISTA ACANHA.
È VILA (O POVO DIZ QUE DENTRO HABITA
E QUE NOUTROS TEMPOS BEM BONITA)
MAS QUEM PODE ENGULIR ESTA PATRANHA?...
AQUI DE GENTE BOA POUCA RESTA.
QUASE TODA A PISA ESTE ESPAÇO
É VIL, MALDIZENTE E DESONESTA.
LEITOR, PELA PINTURA QUE AQUI FAÇO,
NÃO SABES QUE TERRA É ESTA?
É TERRA DE PUTAS, É MELGAÇO.
II
TU DAS TERRAS DO MINHO A MAIS DANADA
Ó ESFARRAPADA VIL, TORPE MELGAÇO,
AINDA TENS MAIS PUTAS QUE BAGAÇO
TODAS AO DEUS BACO CONSAGRADAS
DE MAROTOS ALBERGAS TAL MANADA
TAMANHO MANDRIÃO, TANTO MADRAÇO
QUE A CONTA POR BARATO QUE LHES FAÇO
SÃO TANTOS COMO MILHO A NÃO SER NADA…
E QUE LÍNGUAS… QUE PÉRFIDA GENTALHA
EM TODOS MORDE, EM TODOS FERRA O DENTE
ESTA FUTRAGEM, ESTA VIL CANALHA.
QUASE TUDO O QUE DIZ É MALDIZENTE
AQUI POR GÉNIO SE MURMURA E RALHA.
MALDITA CONDIÇÃO, MALDITA GENTE.
RESPOSTA AOS VERSOS DO FRADE PELO JUIZ
CÂNDIDO FURTADO DANTAS EM 1798
FRADE ILUSTRE, PRIMAZ DOS FRADALHÕES,
DE S. BERNARDO O FILHO MAIS PRESTANTE
TONSURADO CAMBRONE, ASTRO BRILHANTE,
TROVADOR DE SOTAINA, FREI CAMÕES.
TU. Ó FRADE, QUE ENCHENDO OS TEUS PULMÕES
CANTAR SOUBESTE EM VERSO ALTISSONANTE.
MELGAÇO É UMA CORTE RADIANTE
DE ASNOS, FUTRES, PATIFES E LADRÕES.
QUE NOVO REDENTOR TU FOSTE. Ó FRADE!
TU QUE DISSESTES AOS TRISTES QUE AQUI VEM:
ISTO É MELGAÇO, UM BRADO À SOCIEDADE…
TAL BRADO UM ENVANGELHO EM SI CONTEM
SEM O QUAL ESTARIA A HUMANIDADE
SEM HONRA, SEM CAMISA E SEM VINTÉM.
Texto fornecido pelo amigo melgacense Arlindo Vilas Júnior
Camborio Refugiado
Castro Laboreiro
Ángel Rodríguez Gallardo y María Victoria Martinez Rodríguez
UNIVERSIDAD DE VIGO
………………………………………………….......
Un grupo de cinco refugiados gallegos presos en la cárcel lusa de Ponte da Barca escriben dos cartas de modo conjunto al cónsul de Gran Bretaña en Oporto. Ambas son interceptadas por la policía portuguesa. Es un discurso controlado autorialmente por el ‘’nosotros’’, por la identidad de grupo (‘’somos gubernamentales’’) enfrentada a un enemigo (‘’Fascio’’) que emplea mecanismos ilegales (incumplir los acuerdos internacionales de no intervención en la guerra de España com la expulsión de los refugiados):
Fuemos detenidos ayer dia cinco del actual en el termino de Crasto Laboreiro y traídos e esta villa de donde dicen nos sacaran para Oporto, pero nos tememos nos quieran entregar a la fronteira al Fascio y nosotros somos gubernamentales. Ponemos en su conecimiento por si quiseran cometer con nosotros dicha arbitrariedad, visto que hay un fiscalizador de sú país para visar las fronteras.
…………………………………………………........
Texto integral em http://investigadoresfranquismo.com/pdf/comunicacion
Camborio Refugiado
Castro Laboreiro
Algúns dos fuxidos do concello de Entrimo e dos concellos limitrofes foron asesinados perto da Pena da Anamán, un morro de pedra cargado de lendas e historia que xa utilizaran como tobeira ó pricipio do século XIX unha cuadrilla de bandoleiros capitaneada por Tomás das Congostras. Trás pasar a aldea montañosa de Quegas está A Chan, una chaira por riba dos mil metros de altitude transitada daquela por pastores galegos e portugueses. Nese enclave atópase un dólmen coñecido como a ‘’Casa da Moura’’. Tanto na Chan como na Casa da Moura os falanxistas mantiveron postos de control para evitar o paso de españois ás brandas portuguesas.
A mobilidade era fundamental para que os refuxios resultasen seguros, pero os refuxiados mantiñam lugares de referencia onde regresar se se alixeiraba a présion policial. No lugar fixo de Ribeiro de Cima concentráronse boa parte dos fuxidos do concello ourensán de Entrimo. Alí foron a parar, como xa dixemos, o exalcalde Ubaldo González González e o seu irmán, Ricardo, quen fora xuíz municipal, xa que o comercio e a fonda que rexentaron procuroulles unha extensa rede de coñecidos no país viciño – moitos dos cales lle debian cartos, dado o réxime de fiado que tiñan estabelecido - , especialmente na capital da freguesia, Castro Laboreiro, pêro tamén nas inverneiras (Ameijoeira e Cainheiras), nalgúns lugares fixos (Ribeiro de Cima e de Baixo, Portelinha), ou nas brandas (Seara, Portos), veciñas. Aproveitando a migración anual dos habitantes de brandas e inverneiras, os fuxidos favorecéronse dos lugares que quedaban abandonados tras esa marcha. Outros preferiron como refuxio as illadas aldeas galegas do mesmo concello de Entrimo, como José González, concelleiro na última corporación republicana, que se agachou en vários lugares da aldeia de Quegas.
A raia, a fronteira galego-portuguesa, terminou por desaparecer baixo da vixilância exercida polas diversas policias. Nesse território operaron desde o principio da guerra grupos de fuxidos e contrabandistas, axudados pólos habitantes das brandas e inverneiras, que estabeleceron unha rede de axuda humanitária, pêro tamén económica, cos refuxiados, ós que lles recibían correspondencia, protexiannos do acoso policial ou, como tamén ocorriu, denunciábonos, colaborando así coa reprezíon das forzas policiais.
……………………………………………………………………………
No primeiro semestre de guerra civil, o número de refuxiados españois na freguesia de Castro Laboreiro, se bem de xeito non estable, acadou, según testemuñas orais unha cifra entre catrocentas ou oitocentas persoas, cifra que debeu covertirse nunha preocupación, especialmente para os falanxistas da zona que coñecian á prefeición o território e mantiñan vínculo………………………………moi especialmente a PVDE.
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A PVDE sabe da presencia en Castro Laboreiro de vários refuxiados na inverneira de Cainheiras, lugar fixo de Portelinhas,etc. Os falanxistas españois introducíranse en território portugués com asiduidade desde as primeiras datas da sublevación, mesmo obrigando a intervencíon da Comandancia Militar de Ourense que se viu na necesidade de castigar preventivamente a eses elementos incontrolados.
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Dá um salto à realidade da 1936, guerra civil, dos nossos vizinhos galegos e da solidariedade dos habitantes de Castro Laboreiro (freguesia) perante a adversidade de amigos de séculos.
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Camborio Refugiado
José Saramago
Como o azeite vem ao cimo na água, também o excremento não deixa de cheirar mal. Um tal Lara acabou na prisão, o de Boliqueime não sei onde vai acabar.
Fui teu adversário nos idos de 75, teu admirador nas páginas douradas da literatura que nos deixaste, na grande obra que obrigaste O Bando a produzir em terras de Palmela. Nesse palco vi grandes da cultura a homenagear-te, os meus amigos João Brites, o Horácio, a Natércia – que vais encontrar além – a Tita e a Lai-Lai a mostrarem como era um mundo de cegueira.
Fizeste que abrisse os olhos passeando na passarola de Bartolomeu e como o povo sofreu porque uma tal Austríaca pariu.
Ai Belimunda, eu queria ser teu Sete-Sóis.
O de Boliqueime, qual rei João V, não construiu um convento em Mafra, antes uns caixotes que em Belém escondem a obra do nosso grande Emanuel o Venturoso e se à pira não te agarrou é porque há votos e o chefe do Santo Oficio que tantos dos nossos grandes matou para tal não tem poder.
Fosse vivo Damião e ao teu lado estaria amigo Zé a sofrer a ignominia dos poderosos que não são mais que mal cheiro de latrina.
Luís Vaz escreveu – aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertado.
E se a arte e o engenho me permitisse também mestre Gil copiava, mas para tal o meu intelecto não chega.
Não repouses em paz amigo, continua lá para onde foste a gritar: Levanta-te
do Chão.
Para a forca hia um homem: e outro
que o encontrou lhe dice: Que he isto
senhor fulano, assim vay v. m.? E o en-
forcado respondeo: Yo no voy, estes me
lleban.
P.e Manuel Velho
A JOSÉ SARAMAGO, ESPÍRITO INDEPENDENTE
Resolvi regressar a Melgaço onde, se tudo corresse bem, o Moisés me preveniria por telegrama, e aproveitar para reconstituir o meu capital bancário que tinha sofrido um desgaste considerável durante aquelas duas semanas. Assim foi.
Uma semana depois do Ano Novo, recebi o telegrama tão esperado que confirmava o meu ingesso nos TLP.
Regresso à capital e à rua da Emenda, onde fiquei quase cinco meses. Não ganhava grande coisa, mas chegava para comer e sobrava para ninharias. Os tios do meu amigo nunca quiseram dinheiro por estar no mesmo quarto que o sobrinho e dormirmos na mesma cama.
O pai do Moisés era sócio da gráfica que havia em Melgaço, onde era imprimido um jornal local, o Notícias de Melgaço e na qual trabalhava. Então, mensalmente, recebia convites para visionar os filmes mais importantes em estreia em Portugal a fim de poder fazer a respectiva crítica no jornal. Como não tinha tempo, enviava os bilhetes para o filho em Lisboa. Durante os poucos meses que estive na capital, vi mais filmes do que no resto da minha vida.
Uma tarde, depois de uma sessão no São Jorge, descemos a avenida pelo mesmo lado até ao fundo dos Restauradores e fomos merendar a um grande café que ali havia. Já não era a primeira vez e, portanto, conhecíamos bastante bem o ambiente e o género de pessoas que o frequentavam. Havia de tudo: casais de namorados, pseudo-intelectuais, prostitutas, chulos, aposentados, junkies, larápios e pessoas banais, sem interesse, como nós. Era a mistura destas diversidades que nos atraía para aquele café de vez em quando.
Na mesa ao lado da que nós estávamos sentados, encontravam-se recreados três indivíduos com pouco mais de vinte anos, bem vestidos, camisa com os dois últimos botões desapertados e colarinhos por fora dos casacos, exibindo cordões e pulseiras onerosos e dourados. De cabelos bem penteados e lacados, tinham todo o aspecto de chulos. Mas não o eram.
Nesse momento, aproximou-se da mesa outro indivíduo igualmente pimpante mas com ar contrariado, quase irritado. Puxou a quarta cadeira e, apenas sentado, perguntou aos outros três com um ar importunado:
— Ó pá, qual de vós trabalhou ontem à noite na calçada da Estrela ?
Os três homens olharam uns para os outros, intrigados com a pergunta, e, por fim, um deles pronunciou-se.
— Fui eu, pá, por quê ?
— Não gamaste um Opel 1604 S branco com jantes especiais ?
— Gamei, pois, e foi precisamente por causa das jantes, pá !
— Pois olha, vais pô-lo no mesmo sítio o mais rapidamente possível porque roubaste o carro da minha irmã, pá ! Estava tão bem na cama hoje de manhã, depois de ter passado uma noite atroz a trabalhar, pá, quando a minha irmã, a chorar, me vem dizer que lhe roubaram o automóvel ! Ó pá, é uma chatice do diabo ! Tem que haver respeito pelos amigos, carambas !
Eu e o Moisés, que não perdêramos uma migalha da conversa, tínhamos grandes dificuldades em controlar a vontade incoercível de rir.
— Concordo contigo, pá, é muito aborrecido, tens toda a razão, mas também deves perceber que eu não podia adivinhar que o carro era da tua irmã, pá !
— Prontos, o assunto está arrumado. Quando saires daqui vais pôr o carro no sítio e não se fala mais no caso.
O outro, contrariado com a facécia, e para temperar o mau humor do colega, disse-lhe alegremente:
— Não penses mais nisso e vamos mas é tomar alguma coisa. Só é corte porque me encomendaram jantes deste modelo há muito tempo e, para encontrá-las, pá, é um inferno do caraças !
O outro, que acendera um SG gigante e o guardara no canto da boca, deu duas grandes chupadelas e respondeu-lhe, cansado:
— Não mo digas, meu ! Por isso fiquei chateado. Nem imaginas as voltas que tive que dar por Lisboa para encontrar estas para a minha irmã, pá ! Isto é um problema...
Não pudemos aguentar mais. Como se não tivesse nada que ver com a conversa deles, rimos descaradamente, durante uns bons momentos. Estava visto que a profissão de larápio era bem mais difícil e contrariante do que nós pensávamos. Pagámos e regressámos à rua da Emenda.
Março de 2010.
A. E. C.
Depois de quatro anos de vadiagem, devassidão e declínio intelectual pela capital provincial, Braga, cidade epónima e muito mais, regressei à terra que me viu crescer, Melgaço. Ali, sendo as actividades laborais mais do que limitadas, e as restantes muito pouco regulamentares, escolhi a mais rentável, menos penível e punível, para a qual possuía as melhores competências: o jogo da lerpa.
Na Cidade Augusta, tivera como mestres e modelos o Lino e o Batata, batoteiros profissionais que exerciam nos dois maiores cafés da cidade, Sport e O Nosso Café, na avenida da Liberdade. Arvorando sempre fatos de corte e gosto irrepreensíveis, iam diariamente ao cabeleireiro-barbeiro-manicura fazer o penteado, escanhoar a barba e dispensar atentos cuidados aos longos dedos, seus valorosos instrumentos de trabalho, depondo, nas aparadas unhas, uma fina e brilhante camada de verniz transparente.
Durante meses, o dinheiro que ganhava aos clientes (parceiros) serviu para comer, às noites, depois do trabalho, bons pratos no snack do Mini Sport, rua do Carvalhal, com os amigos. Mas isto é um capítulo de outra história.
Forte da experiência de quase um ano nas mesas empanadas d’O Nosso Café, as noitadas de lerpa com os clientes de Melgaço, bastante mais simplórios e cuja parada era bem mais digna, permitiram-me, ao cabo de poucas semanas, abrir a minha primeira conta bancária.
No dia 30 de novembro de 1973, quando passei a ser considerado um homem pela administração, tinha mais de 17 000 escudos na minha conta. Para festejar a maioridade, convidei um amigo a vir comer uns doces secos e a beber uma taça de vinho espumoso à minha casa. Entre dois doces, contou-me que arrancava no dia seguinte de carro com o pai para Santarém onde, com os seus conhecimentos, tinha a certeza de obter a carta de condução. E, se a coisa corresse como esperava, ia em seguida passar um dia a Lisboa, para festejar o sucesso.
Farto de passar noitadas a deitar-me quando a minha mãe se levantava, decidi aproveitar a boleia, segui-lo até à capital e, em seguida, procurar lá um emprego.
Só que de manhã, quando acordei, já eles tinham percorrido uns bons quilómetros. Sem me desencorajar, apanhei o comboio em Monção rumo a Lisboa. Cheguei à estação de Santarém de noite, sem imaginar que a cidade ficava no cimo de um morro. Meia hora depois de um taxi me ter deixado no centro e de ter visitado algumas pensões à procura do meu colega, comia à mesa com ele na pensão onde tinha um quarto alugado para a noite e onde dormi. Na tarde do dia seguinte, depois de passar favoravelmente o exame, seguimos de comboio para a capital.
Ali, fomos visitar um amigo melgacense, o Moisés, que ia no terceiro ano de direito. Depois de arranjarmos um quarto e uma boa mesa para aquela noite, serviu-nos de guia e mostrou-nos Lisboa by night. Deitamo-nos tarde, como era de prever.
Passámos duas noites e um dia delirantes. No terceiro dia de manhã, o meu amigo apanhou o foguete para o Porto. O Moisés, que eu tinha posto ao corrente da razão da minha vinda a Lisboa, propôs-me albergue com ele na casa dos tios que, havia muitos anos, viviam na rua da Emenda, ao lado do Camões.
No dia seguinte comecei um calvário através da cidade que ia durar mais de duas semanas. Era verdade que o cabelo comprido que tinha também não me facilitava a tarefa para arranjar emprego em determinados postos que postulava. Por fim, o que consegui, depois de uns curtos testes, foi um possível lugar como ajudante de guarda-fios nos TLP. Seria contactado mais tarde por correio, no caso de a minha candidatura ser retida.
(continua)
Peso
LA LAMPREA RUBIA
Cuentan los más viejos del lugar que en noches de luna llena en la orilla del Miño frente a Arbo, en la parte portuguesa, se puede ver una moura de largos cabellos rubios que acarecia con un gran peine de oro mientras se mira en las aguas del río. En realidad se veía antes, cuando aún se andaban a pie los caminos, pero desde que las carreteras y los puentes internacionales cruzan por encima de las aguas no hay noticias de esta aparicíon.
Cuentan que era tal su belleza (tan grande el valor del peine de oro, dicen los más materialistas) que los más audaces de Melgaço, y también los de Arbo, que cruzaban el rio en una barca, andaban en las noches de luna llena por las orillas del Miño a la búsqueda de la aparición, unos para enamorar a la moura de cabellos rubios y otros con el nunca confesado objetivo de marchar con el peine de oro al primer despiste de aquella belleza.
Pero nunca nadie fue capaz de acercarse a la rubia que se peinaba junto al río. Muchos la vieron, es cierto, o por lo menos aseguraron en la taberna haberla mirado en la lejanía, con el cabello y el peine brillando bajo los rayos blancos de la luna. Pero nadie tuvo nunca testigos de tal cosa, y menos pruebas de que la moura existiera. Un simple cabello dorado sería suficiente para convencer de su existencia a todo un pueblo que se devidía entre los que pasaban las noches de luna acechando el río, aquellos que los tenían por locos y los que mostraban más miedo que atraccíon por el encanto, porque en definitiva la aparicíon no podia ser más que un encanto.
Una noche de luna llena de agosto Rui, un joven de la parte portuguesa del río, desapareció. Al dia seguiente los amigos declararon que habían estado en la taberna tomando unas chiquitas y que Rui, algo achispado, había decidido coger un candil y echarse a recorrer las riberas del Miño en la búsqueda de aquella aparición con el firme propósito de enamorarla y estabelecerse por su cuenta con el fruto de la venta del peine, montando una fonda en la que su enamorada cocinaría y él atendería la mucha clientela que de una y otra orilla del río habría de llegar hasta allí para comprobar com sus proprios ojos la existencia de aquella rubia encantada que tantos habían buscado sin éxito.
El candil del Rui apareció encima de una rocas junto al río. Y días después aboyó su cadáver algo más abajo. Los que lo sacaran del río dejeron que ténia en la garganta unas marcas de dientes que formaban círculos concêntricos, semejantes a la boca de una lamprea. Y en la cara un extraño gesto de satisfacción.
Nadie quiso enseñarme el sitio donde aparecieron el candil y el cadáver.
Retirado de:
Colineta, blog de Miguel Vila
Camborio Refugiado
Alminhas em Cevide
Memória paroquial
Desde o Sítio de Cevide , em S. Gregório (Melgaço), onde se encontra o nicho das alminhas mesmo onde o afluente Trancoso desagua no rio Minho, até ao planalto de Castro Laboreiro, com o seu conjunto dolménico expressivo, e atravessando litoral minhoto, encontramos o dólmen e a mamoa da Eireira, bem como a pedra do repouso em Cardielos, constituindo testemunhos significativos aos mortos.
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Consultando os registos paroquiais da freguesia raiana de Chaviães (Melgaço), localizamos o livro misto de 1597, presentemente retirado à consulta devido ao mau estado de conservação.
É de mencionar que, em 1662, o Abade Francisco de Lyra Castro narrou o seguinte registo de óbito: ‘’aos vinte e oito dias do mês de Outubro do ano de mil seiscentos e sessenta e dois faleceu, com todos os Sacramentos, Domingos Rodrigues, de Portela do Couto, meu freguês, de uma bala com que foi passado, saindo da Praça de Melgaço a pelejar com o inimigo, o galego, que ao tal tempo veio aos arrebaldes de dita Praça. Seu corpo foi sepultado nesta Igreja. Fez testamento em que dispôs por sua alma dezoito missas repartidas em três ofícios. E para que conste de tudo fiz e assinei. Francisco de Lyra Castro, Abb’’. À margem: ‘’Registado – 1º Estado 6; 2º Estado 6; 3º outros 6 – Domingos Rodrigues’’.
O mesmo abade ‘’lavrou’’, ainda, em 1666 o seguinte assento: ‘’ aos dezoito dias do mês de Junho do ano de mil seiscentos e sessenta e seis faleceu, com todos os Sacramentos, Isabel Rodrigues, viúva da Tapada desta freguesia. Fez testamento em que dispôs por sua alma doze missas, em três ofícios; em cada um missa cantada e os últimos ofertados a cem réis cada um; mais duas missas votivas: uma a Nossa Senhora da Peneda e outra à Senhora da Orada. Esmolas: à Confraria do Santíssimo um cabaço de vinho; à das almas outro cabaço de vinho; à Confraria do Nome de Deus, de Nossa Senhora e de S. Sebastião, a cada uma meio cabaço de vinho. E para que conste foi, digo, seu corpo foi sepultado dentro da Igreja. E para que conste fiz e assinei, Era ut supra. Francisco de Lyra Castro’’.
Podemos constatar que naquela paróquia rural e raiana, bem como noutras, os registos de óbitos estão repletos de informações acerca de vontades testamentárias relativas aos, denominados ‘’bens de alma’’ e esmolas oferecidas para sufrágios.
Afogados do rio Minho
Do espólio das Confrarias das Almas, da paróquia de Chaviães (Melgaço), para além dos livros das actas, com referencias que vão desde ‘’o beberete da irmandade’’, o milho recebido, os juros do dinheiro emprestado, até aos estandartes, encontramos a singular ‘’tumba’’ que serviu para transportar muitos afogados no rio Minho, aquando a Guerra Civil de Espanha e a emigração clandestina, também denominada a ‘’salto’’.
A comunidade dos crentes de Chaviães, nestes casos, cumpria com os próprios rituais devido aos irmãos da confraria, praticando a obra ou misericórdia que ‘’ensina a enterrar os mortos’’. Assim testemunhava a caridade cristã, num sentimento de solidariedade profunda, e manifestando respeito por ‘’afogados desconhecidos’’.
As famílias doridas, por vezes, só tinham notícia da triste ocorrência passado algum tempo. E de registar, como pormenor, que muitas das vítimas afogadas aquando a Guerra Civil Espanhola eram deitadas ao rio Minho na ponte de Castrelos, junto a Ribadávia. Dos que tentaram emigração clandestina, atravessando o rio, e aí morreram afogados, um era natural dos Açores.
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Fonte: texto de J. Rodrigues publicado no jornal ‘’A Aurora do Lima’’ de 12/11/08
Texto integral em www.marforum.org
Camborio Refugiado
PAULA GODINHO
FSFH/UNL e CRIA
Apesar do desanuviamento das relações entre Portugal e Espanha, com escassos seis anos de premeio, duas obras foram publicadas com uma preocupação similar, em 1758 e em 1764. A primeira, da autoria de Gonçalo da Silva Brandão, denomina-se ‘’Topografia da fronteira, praças e seus contornos, raia seca, costa e fortes da província de Entre Douro e Minho delineada por Gonçalo da Silva Brandão’’, e a segunda, da autoria de D. José Cornide, é uma ‘’Descripcion circunstanciada de la costa de Galicia y raya por onde confina con ele inmediato reino de Portugal hecha en el año de 1764’’.
No texto de Gonçalo Brandão, a topografia enfatiza as praças-fortes das vilas de fronteira, num itinerário defensivo que circunscreve a raia norte. Na legenda da carta topográfica do rio Minho entre Valença e Melgaço o autor anota que ‘’Continua o rio até Melgaço, onde não há cousa de notar mais que o Salto, penedos de uma e outra parte, por entre os quais corre o rio, e qualquer homem salta de um reino a outro, e por isso se lhe deu o nome de Salto’’. (Brandão, 1758: 10). Alheio à vida local, salienta a vertente de ligação das populações dum e doutro lado do rio que, tal como se notará nas suas observações acerca do castelo de Castro Laboreiro, lhe parece reprovável:
‘’Sobre uma serra inacessível está situado o tal castelo, em forma prolongada, diviso em dous de pedra de cantaria. Não sei quem possa defender entrada, nem passagem, e o préstimo que lhe julgo é servir para ninhos de águias (onde há muitas) e covil de ladrões. Os moradores de Castro, gente indómita e intratável, estão aliançados com os galegos’’ Brandão, 1758: 14’’.
Nas preocupações deste engenheiro, a quem o marquês de Pombal encomendara a inspecção da raia, é evidente a perspectiva exterior, de um Estado que quer conhecer-se a partir do centro, com a finalidade de identificar as potencialidades e as riquezas.
Da mesma época é a obra de D. José Carnide (1764). Enquanto na do português Brandão encontramos laivos regionalistas, este é um texto caracteristicamente iluminista, assente na discrição enciclopédica da geografia e com idênticas preocupações de cariz militar.(7)
No texto de Cornide assume uma feição paradoxal a atenção dada parágrafos sucessivos à existência de lugares mistos (de convivência entre portugueses e espanhóis) e a intransponibilidade da fronteira em termos militares. Se nas duas obras se enumeram e caracterizam as barras, atalaias, castelos e fortificações, Cornide descreve-os em ambos os países, enquanto na obra de Brandão só o lado português era alvo de atenção circunstanciada.
(7) Estes cuidados ficam patentes acerca de um convento em Verín que ‘’pode surgir numa urgência como hospital de campanha (Cornide , 1564: 159), em considerações acerca de Castro Laboreiro: ‘’Na parte de Portugal há um castelo antigo de pouca defesa e menos fortaleza: mas está situado num cerro tão empinado, escabroso e rodeado de montanhas tão inacessíveis que parece impossível atacá-lo, nem depois serviria de muito.’’ (Cornide, 1764: 147), ou na avaliação que faz da disponibilidade de homens robustos para a guerra a quem só faltariam as armas e os chefes para poderem conter os inimigos (Cornide 1764: 154).
Texto integral em www.euskomedia.org
Camborio Refugiado
O BANDOLA E EU
NÃO HAVIA FRUTA QUE NÃO ESTIVESSE DEBAIXO DE OLHO. ELE CONTROLAVA O QUE HAVIA P’RA BAIXO DO CONVENTO SEMPRE QUE LEVAVA A SACA DO MILHO P’R´0 MOINHO DO MASCANHO EU FICAVA-ME PELO QUE HAVIA NA VILA E ARREDORES. NO MEIO DESTAS FITAS, SACAVAMOS UMAS GASOSAS E LARANJADAS AO SR. CASTRO, CASTANHAS NO TEMPO DELAS,TODOS ESTICADOS NA MURALHA DO CASTELO QUE OURIÇO APANHADO ERA TROFEU. PASSÁVAMOS AS DE CRISTO NO INVERNO COM OS PÉS GELADOS E DEDOS QUASE A PARTIR QUE UM PROFESSOR DE REGUA NA MÃO AQUECIA. TEMPOS DEPOIS, LIBERTOS DOS PARNÓICOS CATÓLICOS QUE DERAM PORRADA ATÉ FICAREM SEM FORÇAS EM NOME DUM CRISTO QUE O P. JUSTINO APOIAVA COM LISTAS DOS FALTOSOS À DOUTRINA SEM PENSAR QUE HAVIA ALUNOS QUE SÓ TINHAM UM BAGAÇO NO ESTOMAGO E DOIS CESTOS DE ERVA JÁ APANHADOS.
ENTRAMOS NO COLÉGIO, EXTERNATO LHE CHAMAVAM, CRIAMOS O NOSSO CLUBE, XWK DE BAPTISMO, ONDE MAIO DE 68, GREVE E LIBERDADE ERAM PALAVRA CORRENTE.
NO INICIO DO ANO LECTIVO DE 1972 PARTE DA TURMA DO 5º ANO SE REVOLTOU. CHEGA DE BATAS ABAIXO DO JOELHO, CHEGA DO CONTROLE DO CABELO DOS RAPAZES, CHEGA DE LEVAR PORRADA DOS PROFESSORES; ENTÃO O COSTA ARAUJO ERA ESPECIAL NEM QUE FOSSE A DAR CANADAS NA LURDES QUE NA ALTURA ESTAVA GRÁVIDA.
DURANTE UMA TARDE, UMA DEZENA DE ALUNOS, NÃO FORAM ÀS AULAS E GRITARAM BEM ALTO O QUE NÃO QUERIAM – PORRADA. NO FINAL DAS AULAS, OS CONTESTATÁRIOS ENTRARAM NO ESPAÇO DAS AULAS PARA RECUPERAREM OS LIVROS E SEGUIR PARA CASA.
EU, APRESSADO QUE ESTAVA, SEGUIA À CABEÇA DO NOSSO GRUPO QUANDO SOU AGARRADO PELO CORTES:
- ENTRA NA SECRETARIA
- NA SECRETARIA EU? VOU MAS É PARA CASA.
O ENG ARTUR RODRIGUES ACABOU COM A CONFUSÃO OU, DIRIA EU, SALVOU O CORTES.
QUANDO O CORTES COVARDE ME ATINGIU PELAS COSTAS O BANDOLA AGARRO-LHE OS COLARINHOS E ALÇOU O PUNHO:
- AI FILHO QUE É A TUA DESGRAÇA, GANIU O CORTES.
TRÊZ DIAS DE SUSPENSÃO PARA CURAR O CORPO DA COÇA QUE LEVÁMOS. REGRESSAMOS AO CURRAL CHAMADO EXTERNATO.
TENTARAM HIMILHAR-NOS NO DIA SEGUINTE EM FRENTE DOS NOSSOS COLEGAS. SERMOS OBRIGADOS A AJOELHAR E ESTICAR O BRAÇO FASCISTA-NAZI-SALAZARISTA FOI PARA NÓS UM GOZO. QUANDO NOS OBRIGARAM A PEDIR DESCULPA AOS COLEGAS AINDA HOJE O CORTES ESTÁ À ESPERA.
EU, A LUZ E A FERNANDA, O RESTO DOS NOSSOS COMPANHEIROS AMIGOS, AGRADECEMOS AO HOMEM QUE FOSTE E, SE MAIS NÃO FIZEMOS,PELO MENOS ACABÁMOS COM A PORRADA NO EXTERNATO EM MELGAÇO.
ATÉ SEMPRE BANDOLA, ATÉ SEMPRE EDUARDO CASTRO
TRIPA
MORREU O MEU AMIGO BANDOLA
EDUARDO DE CASTRO, AMIGO DA CONCHA E DO PIÃO, DO PÉ CALÇADO DE SOCOS, DAS VOLTAS NO BURRO QUE TRAZIA O CARVÃO P’RÁ AVÓ. DAS AMEIXAS ÀS CEREJAS, DAS UVAS ÀS MAÇÃS, DO RIO AO MONTE DO PRADO, DO LEVANTAMENTO E GREVE NO COLÉGIO CONTRA AS PREPOTÊNCIAS DE SIDONIO, CORTES E COMPANHIA. COMPANHEIRO DO 25 DE ABRIL, DO SINDICATO DOS CORREIOS, DAS LUTAS PELA DEMOCRACIA. COMPANHEIRO DO COPO EM QUE AFOGÁVAMOS AS MÁGOAS PELOS ROUBOS AO F C PORTO NOS CAMPOS DA KAPITAL. AMIGO E COMPANHEIRO, HOMEM DA CHAVE E DE MODIFICAR POSTURAS DA NOSSA SOCIEDADE EM MELGAÇO OU NA KAPITAL.
POR TUDO O QUE FOSTE, O QUE LUTASTE, OBRIGADO AMIGO E COMPANHEIRO.
REPOUSA EM PAZ QUE NOS NÃO TE ESQUECEMOS
Ilídio Sousa
MACEDO, Diogo de
Iconografia Tumular Portuguesa. Subsídios para a formação de um museu de arte comparada. Lisboa, 1934
15
refere:
… No Porto, arquivadas hoje no claustro de São Lázaro, existem duas coberturas de urna …, que Rocha Peixoto … trouxe de Melgaço, da … igreja de Paderne. Dúvidas há sobre a data e identidade dessas imagens. Uns a incluem na arte castreja e nelas presumem as figuras do Conde Hermenegildo, conde de Tuy, e da Condessa D. Paterna, cónega de Santo Agostinho, falecida em 1140; outros, porém, vêem ali um cavaleiro e um abade, de era mais recente, o que não queremos acertado…
11/12/97
O nome e opinião de Diogo de Macedo e Rocha Peixoto terão que ser levados em consideração como muito válidos e as diversas formas como tem sido distinguidos ao longo dos anos provam o seu valor a nível de investigação e divulgação da nossa história .
Será que para a Junta de Freguesia de Paderne ou para a vereação da Cultura da C. M. Melgaço este texto deverá ser levado em conta? O Núcleo Museológico de Melgaço? Conhecerão a Foz do Rio Trancoso 42’ 9’15’’? Eu gostava que sim.
Camborio Refugiado
Antiga loja do Zequinha e antigo quartel da guarda-civil – Ponte Barxas
Começo dos anos setenta. O mundo estava em pleno "peace and love". Nós, em plena adolescência. Como todos sabem, é uma etapa, um período difícil. Queremos afirmar-nos, principiamos a formatar o nosso carácter, a criar uma certa independência, a mostrar as nossas preferências, as nossas escolhas contraditórias e, em geral, é quando a ruptura com a precedente geração se manifesta. Nós não infringimos as regras. Deixamo-nos arrastar alegremente pela enorme vaga de pacifismo e de amor, vinda do outro lado do Atlântico e que, como quase tudo o que de lá vinha, agitava uma grande parte da Europa. O seu princípio seduzira-nos e contribuía para que nos arrebatássemos da nossa personalidade, das nossas veleidades e exibíssemos, cautelosamente, uma relativa liberdade. As diferentes influências provinham de formas e de fontes diversas. A televisão, as revistas, a música, as cidades onde alguns prosseguiam os estudos e as viagens ao estrangeiro que eu efectuava anualmente e de onde trazia matéria para alimentar o nosso "trip" filosófico, formavam o conteúdo donde nós extraíamos tudo o que tinha que ver de perto ou de longe com o nosso singular mas quão quimérico sonho.
Éramos um bando de cinco adolescentes. Entre os mais novos e o mais velho, havia uma digressão de dois anos. Partilháramos, practicamente todos, as brincadeiras da infância pelos campos, pelos caminhos do rio, pelas ruas da Vila e pelas muralhas do castelo, assim como as aflitivas angústias nos bancos safados da escola. Tivéramos que abordar a adolescência por caminhos divergentes, pois nem as vontades pessoais nem as capacidades familiares eram similares. Foi o influxo desta corrente de doçura, vinda de tão longe, que contribuiu para que fortalecêssemos intensamente a nossa amizade e continuássemos sempre unidos.
Descobrimos os inúmeros grupos de rock anglo-americanos. A música passou a fazer parte de nós a tal ponto que decidimos montar um grupo imaginário. Chamámos-lhe "A Chave". Eu era o guitarra solo, o Costa Velho, o guitarra baixo, o Tónio da Dores, o baterista e o Bandola, o organista. Como todo grupo que se respeitava, também tínhamos um sonoplasta, o Ilídio Carriço. Só eu sabia fazer uns acordes numa guitarra seca que tinha. Os "ensaios" fazíamo-los à força de grandes rugidos e enorme inferneira na casa do meu pai, na Calçada, à qual passámos a chamar o "Clube Chateau d'Eau". Foi naquela época que vieram a Melgaço, ao Cine Pelicano, dois conjuntos espanhóis que nos impressionaram grandemente (o termo de banda, naquela altura, era utilizado unicamente para designar um número bastante elevado de músicos que, geralmente, interpretavam partituras populares nas festas): o Nueva Generación e o Edison. Este último tinha um sonoplasta ao qual chamavam Tripa, por ser magricela. O Zé Castro, grande trocista melgacense, reparando que o Ilídio Carriço, questão magreza, nada tinha a invejar ao técnico dos Edison, encontrou-lhe imediatamente a alcunha apropriada. A partir dali, o sonoplasta d'A Chave também se chamaria Tripa ! Nunca mais lhe saiu. Nesse mesmo ano, estava instalado no largo diante da câmara municipal o Circo Merito, por todos totalmente desconhecido, ignorado, sem interesse algum. No cimo do capitel, os altifalantes espalhavam vezes sem conta durante o dia o Proud Mary e o Suzie Q, versões dos CCR, grupo californiano que tinha um sucesso esmagador. Ficámos petrificados de emoção e de prazer ! Era esta a nossa música, a que nos fazia vibrar no nosso íntimo profundo, que nos procurava um bem estar imensurável e que nos estimulava na procura da nossa via. Agiu sobre nós como uma forma de deliquescência.
Deixamos crescer o cabelo, mas não com excesso. E, para nos parecermos mais que tudo com os nossos ídolos, tivemos que usar de artimanha. Assim, os jeans americanos que compráramos em Espanha, depois de diversas lavadelas, foram manchados com lexívia diluida em água. Em seguida, ainda molhados, para lhes inculcar um aspecto de grande desgaste, esfregamo-los com areia das obras, servindo-nos duma pedra. Quanto mais esfarrapados e ar de velhos tinham, melhor. A finalidade era mostrar que éramos hippies mas não da última hora. A camisa às flores, que todo verdadeiro baba cool devia exibir com aparato, e as camisolas interiores brancas, totalmente escritas com nomes de grupos e com os mundialmente conhecidos make love, not war, peace and love, faziam parte da vestimenta. E, como não podíamos andar descalços, as sapatilhas de corda espanholas eram o mais indicado.
Aos sábados à noite, ainda que o bando não estivesse completo, encontrávamo-nos no Café Central que funcionava como o nosso quartel geral. Quaisquer que fossem as decisões ou as orientações a seguir, eram tomadas lá. Regra geral, apenas saíamos quando havia um baile nos arredores. Se por casualidade não se apresentasse uma alternativa melhor, ficávamos por ali, na conversa, deitando um olho de vez em quanto à televisão espanhola que, além de ter uns programas mais ou menos potáveis, era a única que se captava correctamente. E, alternadamente, um batendo com as mãos por cima da mesa fazendo a bateria e os outros imitando os seus instrumentos com a boca, armávamos a discórdia e a zizânia entre a gente que não largava do olhar os maço de notas de mil pesetas que o apresentador do jogo Um, dos, três, responda otra vez distribuia sem cessar aos participantes. Então, o Zidro, com o dedo aberto diante do nariz, fazia-nos cheee! Interrompíamos o sonho a pessoas que sabiam que naquela vila, em toda a vida, nunca ganhariam, a trabalhar, metade do dinheiro que naqueles maços viam. A cena reproduzia-se várias vezes na noite. Não havendo na Vila outro sujeito de distracção que não fosse o cinema e a televisão nos cafés, as pessoas repartiam-se por ambos.
Aos domingos de manhã, antes de almoçar, e consoante as vontades de cada um, o Tónio da Dores espontáva-nos o cabelo e fazia-nos o respectivo penteado na barbearia do Gildo onde trabalhava. Estava bem visto, faziam-lhe confiança. À tarde, para onde quer que fosse a nossa partida, estávamos apresentáveis, bem lambidinhos. Em princípio, íamos até ao Peso, ao café do Luis onde se bailava toda a tarde. Ou então, no verão, aproveitávamos a refrescante sombra das Águas (as termas) e galanteávamos as meninas convidando-as a dar um passeio nos pequenos barcos ali existentes num modesto lago, feito com a retenção da água de um arroio e de um rego que por ali passavam. O local era propício para cortejar. O denso e razoável aglomerado de árvores e arbustos, onde os verdes se sucediam sem se parecerem, era considerado o paraiso do bem-estar, do repouso e do apaziguamento interior. Nós sentíamo-nos demasiado novos, sem suficiente serenidade para passarmos horas sentados num banco a falar dum passado que apenas principiáramos a construir. Quando encontrávamos moças que simpatizavam connosco, organizávamos pequenos bailes num montículo frente ao lago. Um dos dois bancos de espessa pedra que ali se encontravam servia para pousar meia dúzia de discos e o pequeno gira-discos a pilhas que minha irmã me oferecera e que, de vez em quando, levávamos. No outro, sentavam-se as donzelas.
A grande maioria dos nossos deslocamentos era feita a pé. Tanto de dia como de noite. Era um intenso prazer. Cantávamos, brincávamos, falávamos com as pessoas que por ventura encotrávamos... Gozávamos os momentos em qualquer momento. Mas isto apenas quando as distâncias faziam parte dos nossos limites. Nos outros casos, a boleia, que era uma componente da filosofia hippie, era por nós plebiscitada.
Havia uns tempos que não sulcávamos as estradas da vizinha Espanha. Para nós, não era ir ao estrangeiro. A Galiza era a continuação do Minho. Desde pequeninos que nos apropriáramos reciprocamente. Quantos homens e mulheres cruzaram, nos dois sentidos, as margens do Minho, do Trancoso e da raia seca para formarem família ! Uma colega de escola disse-me há uns tempos, e com muito discernimento, que todos tínhamos uma costela galega. Havia e há uma determinada emulação entre nós, como há entre países, cidades, vilas, aldeias ou lugares mas nunca se sentiu necessidade de demarcar limites. Também houve sempre troca de palavras de escárnio, de gozo mas sempre com um determinado respeito. Nunca tivemos reacções racistas, de repúdio ou injúria.
Usualmente, quando íamos visitar os nossos vizinhos, era em dia de festa, numerosas no ano. Também acompanhávamos o nosso clube de futebol, o SCM, quando lá ia enfrentar uma equipa local. Senão, acabávamos sempre na Notária. Era para lá que, nos dias de pausa festiva, convergia a juventude da zona. Havia um cinema e o Club Nuestro Lar que fora fundado pelo padre da aldeia. Podia-se jogar aos matraquilhos, ao ping-pong, ficar sentado a uma mesa a discutir, ler um livro da biblioteca do clube e mesmo dançar. O ambiente em Espanha era particular. Tínhamos decidido lá ir, depois de uns meses de ausência.
Era domingo. Encontrámo-nos, como sempre, no Central. Depois de tomarmos café, pusemo-nos a caminho de S. Gregório. Estava um belo dia de sol. Apenas havia nove quilómetros e fomos a pé, assim tínhamos resolvido. Calmamente e na brincadeira, íamos progredindo. Ao sairmos da curva da Portela, ultrapassou-nos na sua motorizada o patrão do Tónio da Dores, o Gildo. Acenámos-lhe, como fazíamos a toda a gente, conhecida ou não. Víamo-lo passar cada vez que nos movíamos para aqueles sítios, mais ou menos à mesma hora. Sabíamos que ia à Espanha mas, a que sítio, nunca o soubemos nem nunca lá o encontrámos.
Continuámos a nossa andadura e chegámos à "recta do Val". Num campo, por cima da estrada, estava um fenómeno nosso conhecido a quem chamavam o Bombeiro. Andava a sulfatar na companhia da mulher que era quem trazia a máquina às costas e accionava a manivela. Ele, com a lança, limitava-se a dispersar o sulfato pelas vinhas. O Tripa, virando-se para nós, comentou em voz alta:
— O gajo não é burro. A mulher é que aguenta o peso da máquina !
O Bombeiro, que ouviu, virou o olhar para o intrometido que se permitira fazer um comentário sobre a sua ardileza e lamentou:
— É muito triste ser ignorante !
Demos umas boas gargalhadas. Claro que o homem tinha razão ! Suportar o peso da máquina cheia, custa, mas não é preciso frequentar a escola das Belas Artes. O difícil é saber onde se deve deitar o sulfato. A isto se resumia, visivelmente, o raciocínio do Bombeiro, sem se poder afastar uma ponta de malandrice da sua parte. Este sucesso fomentara a nossa boa disposição. Em Paços, fizemos uma alta na tasca do tio Abílio Soutulho para refrescar as goelas, antes de continuarmos até à fronteira.
Em São Gregório passámos diante da alfândega e descemos a estrada até ao fundo da rua Verde onde, em frente, metade do caminho empedrado que ia até ao regato, descia a pique. Quando chegámos ao fundo, ficámos parados observando as casas em ruinas junto do riacho, discutindo como se fôssemos turistas e, ao mesmo tempo, com um olho no outro lado. Era o nosso método para sabermos se algum guarda fiscal ou civil se encontrava pelas paragens. Não havia sinais de presença policial em nenhum dos lados. Saltámos as pedras que ali tinham sido postas para facilitar a passagem e encontrámo-nos no lado espanhol. Subimos o caminho que conduzia à estrada, quase em frente do quartel da guarda civil. Ficámos a transpirar. Sentámo-nos à sombra, numas pedras junto da loja do Zéquinha, antes de continuarmos até à Notária.
E foi nesse momento que um grupo de raparigas vindo do lado do Pueblado se foi aproximando de nós. Eram todas umas mais bonitas do que as outras mas, no meado, uma delas destacava-se. Perfeita, fisicamente, era morena, tinha uma cabeleira preta bem farta e uma linda cara de cigana. Eram quatro e não tivemos dificuldades em engendrar conversa. Apresentaram-se como sendo dali, umas filhas de guardas civis e outras filhas de trabalhadores especializados da barragem que viviam no Pueblado. Nós, gabarolas, éramos os componentes de um grupo de rock do Porto, A Chave. Estávamos em Melgaço gozando uns dias de férias. Sentaram-se na nossa frente e fomos falando e rindo com elas. Estávamos os cinco pendentes dos lábios da gitana que era a que mais falava. Chamava-se Maria Rodriguez. Não fomos mais além. A Notária ficaria para outra vez. Ali passámos a tarde dando uns passeios pela estrada. À tardinha, regressámos a Melgaço depois de lhes termos prometido que brevemente volveríamos a visitá-las.
Passaram-se duas semanas. Um dia, no terreiro, um de nós encontrou o Bolas, nosso amigo, que lhe disse que tinha ido à Espanha e que encontrara umas raparigas que lhe perguntaram por uns gajos assim e assim, que diziam tocar num conjunto e ser do Porto. “Claro que lhes disse que conhecia tais rapazes mas que não eram do Porto mas sim de Melgaço e que nem tocavam em conjunto nenhum. Estais lixados. Agora não podeis ir lá.“ E ria-se. Estragara-nos o repolho ! Tivemos que começar a evita-lo pois, cada vez que nos encontrava repetia-nos a história. Ficámos furibundos mas tivemos que conformar-nos. Eram assim as patifarias na Vila. E tivemos igualmente que evitar de ir ao outro lado durante uns tempos.
Dezembro de 2009.
A. El Cambório.
BICENTENARIO DE BATALLA EN EL PUENTE DE MOURENTÁN
ARBO (1809 – 2009)
La batalla de Mourentán tuvo lugar los dias 16, 17 y 18 de febrero, participaron más de 10 000 personas, donde los gallegos contaron com la ayuda de portugueses de otro lado del Miño.
Los franceses llegaron a incendiar Mourentán y todavia hay como las dejaron ellos.
Los franceses consiguieron avanzar a pesar de que perdieron muchos soldados.
El enfrentamiento fue dirigido polo abad del Couto Maurício Troncoso. De esta batalla nació la gloriosa ‘División Miño’ que llegó a perseguir a los franceses hasta Francia.
Camborio Refugiado
Rio, 26 de Setembro de 2009
Primo Ilídio.
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Sobre o Tio EMILIANO: alfaiate como obrigatoriamente todos os filhos homens do Félix Igrejas, quando mais espigadote foi ser fiel (empregado de confiança) do Júlio Esteves, filho mais velho do António da Loja Nova, que, após estudar e não sei com que capital, montou um armazém atacadista. Aquele mesmo do Artur Teixeira na garagem da Calçada. Aliás o Artur Teixeira (contavam) como empregado de escritório passou o dono para trás assumindo o negócio.
O Emiliano na condição de funcionário da confiança fazia e desfazia tirando bom proveito, contrabandeando por conta própria, tanto como no tempo do Teixeira o Manuel da Garagem (Manuel Lourenço) fez a mesma coisa. Daí que, (conclusão minha) o Emiliano teve capital para comprar e reformar a casa da avenida e comprar automóvel à sociedade com o Pires, e depois o próprio carro. Alguma coisa grave aconteceu, pois que, eu garoto, na faixa dos oito anos e vivendo com o tio Emiliano, verifiquei que este manifestava grande rancor pelo Júlio Esteves.
Eu já manifestava pendor artístico e o tio Emiliano mandou que eu copiasse uma figura caricata da banda desenhada que vinha no Primeiro de Janeiro, parecida com o Júlio Esteves, para fazer chacota do mesmo. Curioso, tendo grande aversão ao dito Júlio Esteves (por que havia descoberto alguma tramóia e o despedido) , quando aquele faleceu, o Emiliano vestiu o seu fato azul marinho e gravata preta indo ao enterro, porém, mantendo-se no final do cortejo fúnebre, em atitude de respeito e não de vingança.
O Emiliano teve relativo sucesso nessa fase da vida pois arrematou o direito de cobrar o imposto indirecto da Câmara Municipal (arrematante como era conhecido?). O Lucas rapazote nessa altura, era uma espécie de almocreve (sem besta) do Emiliano, daí o relacionamento com a minha irmã que acabou em casamento contra a vontade do pai, por o rapaz ser um sem eira nem beira aprendiz de carpinteiro.
A par da actividade de arrematante tinha o carro de praça. Durante a guerra civil espanhola e já antes, a situação politica naquela país era tormentosa com perseguições e crimes. Daí que, nos cochichos entre contrabandistas, sabia-se de espanhóis que queriam se refugiar em Portugal, Lisboa, onde podiam passar despercebidos. O Emiliano engajou-se nesse transporte que lhe rendia bom dinheiro. Vez por outra não conseguia burlar a polícia no trajecto, o que lhe causou várias prisões que cumpriu na penitenciária do Porto. Num desses fretes aconteceu de, em Alenquer, ser abalroado por uma camionete que lhe amassou o guarda lamas dianteiro direito do ‘’Andorinha’’. O chaufer da camionete verificando não haver vitimas (o Emiliano e o espanhol) fez menção de fugir com o seu veículo, uma vez que fora o culpado. O Emiliano pegou o punhal que sempre carregava debaixo do banco dianteiro, com que ameaçou o outro motorista tirando a chave de ignição aguardando a chegada da autoridade. Quando chegou a polícia de trânsito o motorista da camionete acusou o Emiliano de agressão física com arma branca. O guarda pediu documentos e o Emiliano exibiu a carteira da Legião Portuguesa. Ao ver aquele documento replicou ao acusador: ‘’ele pode usar a arma que quiser’’. Desde esse acontecimento, lembro bem, o Emiliano não ia para mais longe sem levar a carteirinha e por na lapela o emblema da Legião. Daquele acidente deixou o carro em Alenquer para ser recuperado, o que aconteceu e ficou bom, indo apanhá-lo mais tarde algumas semanas. O que aconteceu ao passageiro clandestino não sei, acho que chegou ao destino.
Ser da Legião Portuguesa, logo no início dessa invenção ‘’patriótica’’, era moda que dava status. Todas as pessoas gradas se filiaram e os pretensiosos imitaram. Jamais vi estes personagens participarem dos exercícios, apenas a ráia miúda e os que almejavam emprego público e os já empregados. Lembro sim, desses ditos personagens participarem da fotografia ‘’histórica’’ que o Pires tirou de toda a tropa, fardados e paisanos, formados na avenida. Levou toda uma manhã de domingo postando-se em vários trechos até o Pires achar ser o ângulo ideal e luz apropriada.
Excerto de carta escrita por Manuel Igrejas a Ilídio de Sousa, Setembro 2009
Camborio Refugiado
PARA HISTA
O que pedes não está ao meu alcance, não faço ideia que alguém se tenha debruçado sobre o assunto. O Paiva Couceiro, além de monárquico empedernido, corrido do nosso Portugal na 1ª Republica, regressou e logo virou costas ao de Santa Comba Dão, ao Cerejeira e companhia. Homem de guerras, África ou Europa, ia a todas, passou o tempo em jogos de guerra, digo eu, e foi aproveitado pelas forças anti-salazaristas para, pelo menos, chatear o regime.
Vou transcrever parte de uma carta, correspondência pessoal, datada de Rio de Janeiro, 6 de Fevereiro de 1997, escrita pelo Sr. Manuel Igrejas que por certo não se zangará por esta pequena traição:
É realmente lamentável que a produção cultural do Vasco tenha-se extraviado. Se bem que, me parece ele não deve ter muita coisa guardada. A não ser as revistas teatrais que eram dactilografadas e devia ter cópias, os demais escritos ele os fazia sobre qualquer papel que estivesse à mão, de embrulho e até jornal. Não era muito organizado e o que escrevia em prosa ou verso em momentos de inspiração, deixava ao Deus-dará. Ele mesmo perdia as coisas.
Durante quase três anos em que fui seu ajudante na Central, muita coisa aprendi. Só não conseguiu catequizar-me quanto à sua pseudo ideologia comunista; isso porquê, acho que nem ele acreditava no que dizia, produto da convivência na prisão com intelectuais, activistas profissionais também reclusos.
Esteve preso, acho, mais que uma vez por motivos políticos. A última vez, bastantes anos, foi maltratado perdendo quase totalmente seu vigor físico. Quando moço era robusto; suspendia um saco de farinha de 60 kg só com um braço. Nessa altura da juventude ele ajudava num forno de pão (não sei qual).
Na época que convivi com ele beirava os cinquenta anos, para afirmar o que dizia fez braço-de-ferro na minha presença, ou seja, suspendeu-se na bandeira da porta só com um braço.
A última prisão dele e mais prolongada deveu-se ao flagrante, transportando em seu carro (Fiat de praça) o Paiva Couceiro, que da fronteira dirigia-se, creio, ao Porto, afim de encabeçar uma insurreição.
Embora soubesse doutros elementos envolvidos na conspiração não denunciou ninguém. Alegou que fora contratado para fazer o frete. Na altura era casado com a Zinda (Ermezinda) e tinham quatro filhos, o António (alcunha Charlot), o Francisco, a Maria Tereza e a Elsa. Estas duas vieram para o Brasil e em 1970 visitei-as em Santos, São Paulo.
O nosso amigo Vasco na prisão fez um filho a uma assistente social. Ele me contou que apareciam na penitenciária grupos incumbidos de fazer palestras sobre religião e especialmente comportamento cívico (maneiras de agradar ao governo). Com uma das garotas ele estendia o assunto acabando em atracção física. Julgado sobre esse incidente foi absolvido pois a moça é que se foi oferecer. Dessa atracção nasceu um filho chamado Vasco. Quando a Zinda faleceu, vítima, ao que falavam as más línguas, dum aborto mal sucedido, a tal Assistente Social, que já era casada, escreveu-lhe propondo juntarem-se; abandonaria o marido. Eu li essa carta. Ele não respondeu. Após alguns anos de viuvez deu-se o romance com a Biti e esse deve ter sido o período mais fértil do seu génio artístico. Ele a conquistou com cartas românticas e poesias apaixonadas.
Curioso, nas nossas palestras em tardes de pasmaceira ele falava-me sobre filosofia socialista, sobre a igualdade que imperava na União Soviética, onde todos eram camaradas, os direitos sagrados da cada cidadão, etc.etc., ou seja, o ideal da humanidade materialista. Enquanto isso de vez em quando se contradizia pois além de ter comportamento burguês demonstrava grande sentimento religioso. Respeitava e era respeitado por todos os padres da região. Falava sobre teologia e acreditava nos fundamentos do catolicismo.
Tive informação de fonte directa que os companheiros anti-salazaristas do Vasco em Melgaço estavam muito bem organizados, constituíam uma rede cujos elementos pertenciam a uma classe média respeitada, trabalhadora, acima de qualquer suspeita. Será que o teu avô se enquadra neste cenário (Melgaço, fins dos anos trinta)? Não tens mais pistas, nomes, etc.?
Um abraço
Ilídio Sousa
Paiva Couceiro
O CHAUFER VASQUITO
Paiva Couceiro, figura militar monárquica, homem de intentonas e inventonas, levou as nossas terras serranas atrás da quimérica Monarquia do Norte em 1912, Melgaço incluído; exilado para terras de Espanha pela Republica, não era para mim figura totalmente desconhecida, já que o Manuel Igrejas me tinha falado de uma relação entre a prisão de Paiva Couceiro – Arbo 1938 – e um amigo comum de Melgaço.
Há coisas, vidas, que deixam de ser nossas e são história, são o pão do povo, são pedras das nossas muralhas que nunca vergaram.
O texto que segue foi retirado da net
El Filandar O Fiadeiro
Memórias de um barbeiro do Alto Minho (1894/1938)
Paiva Couceiro. Na noite de 8 para 9 de Março de 1938 foi preso Paiva Couceiro, na passagem de Arbo para Portugal. Ficou da banda de Espanha. O chaufer Vasquito que o ia buscar também foi preso da banda de cá.
O VASQUITO, O VASQUINHO DA CENTRAL, O VASCO DO NOSSO AUDITÓRIO DA CASA DA CULTURA, O CRIADOR DOS SIMPLES, O ANTI-SALAZARISTA, O DEMOCRATA, O MEU AMIGO.
Só podia ser ele.
Camborio Refugiado
TOMÁS DAS QUINGOSTAS NO IMAGINÁRIO GALEGO
XAN DAS CONGOSTRAS
Bandoleiro mítico do que se asegura que estivo activo polo século XVI e seguintes, mesmo ata no século XIX. Para algúns era galego, nacerí en Pereira, o Entrimo (Ourense), e para outros portugués. Tralos seus roubos soía irse agachar á Pena de Anamán que está nos lindes de Galicia, na Serra do Leboreiro, pêro en térreo portugués. As súas victimas eran sobre todo os cregos e gostaba de curtarlles as orellas. Tamén se di que el e a súa banda foron reducidos nun lugar chamado A Picada.
Xan das Congostras e os seus compinches regresaban de roubar a rectoral de Terrachán. Os gardas esperábanos en Ferreiros trás dunha lata (entramado sobre o que se estenden as parras) e cando pasou Xan das Congostras e a súa cuadrilla por alí derrobaron a lata enriba deles e apresáronos a todos.
Na Pena de Anamán quedou memoria deste bandoleiro. Refítise unha lenda escrita sobre ele para que a lesen os camiñantes que por alí pasában e que dicía:
Os pobres non o tem
e os ricos non o dan;
quen quixer asentar praza
veña á Pena de Anamán.
Algúns engádenlle dous versos máis que serian:
con dous pesos diários
e un trabuco na man.
Próximo de á Pene de Anamán hai unha capela dedicada a Santa Ana e un dito:
Eu hei de subir ó céo
por unha cinta de la;
teño de levar comigo
á Senhora de Anamán.
BIBLIOGRAFIA
Risco, V., Geografia General del Reino de Galicia. Província de Ourense, (dirixida por F. Carreiras Candi), Casa editorial Alberto Martin, Barcelona.
Galicia Encantada
Enciclopédia de Fantasia Popular de Galicia
PARA RECORDAR A OBRA DE JOSÉ ALFREDO CERDEIRA
O TOMAZ DAS QUINGOSTAS EDIÇÃO DO AUTOR JULHO 2007
COM PREFÁCIO DE JOAQUIM ROCHA.
Camborio Refugiado
Vista da Pena de Anamán
TOMÁS DAS QUINGOSTAS NO CANCIONEIRO
POPULAR DA BAIXA LIMIA
a canteira está ben dura
e témola que arrombar
iá ama do señor cura
la tenemos de matar
Conta o pobo que um célebre ladrón, o Tomás das Congostras, que no século XIX andaba por estas terras, foi unha noite com vários compañeiros a roubar a Reitoral de Lobeira; non poideran entrar pola porta e entón comenzaron a abrir un burato na parede e pra que o abade non ouvise o ruído que faguían, cantaban a cantiga trascrita namentras estaban na su a angueira. Iste inxenuo recurso nonlles valeu, xa que o crego espertou e comenzou a tiros coiles deica faguelos fuxir. Engade a lenda que anos despois o Tomás asaltou ao mesmo párroco na Reitoral de San Mamede de Grou, pra onde fora trasladado; colleuno entón e cortoulle as orellas namentras lle decía: ‘’Eiquí non estamos en Lobeira, señor abade’’.
os pobres non o tem
os ricos non o dán;
quen queira sentar plaza
saia á Pedra de Anamán
Esta cantiga refírese ao Tomás de Congostras. Dí a lenda que o Tomás era moi boi mozo e tiña a súa gurida na Pena de Anamán. Tales foran os seus delitos que a raiña de Portugal madóu unha partida contra il; a forza de o precurar atopárano e déronlle morte; pra xustificar o seu feitio, cortáranlle a cabeza e leváronlla á raiña, que en canto o ollóu dixo: ‘’Se soubera que era tan bo mozo nono mandaba matar’’. Esta cantiga servia pra indicar aos seus simpatisantes onde tiñen que iren pra se xuntaren á súa partida..
Texto copiado integramente de Cancioneiro Popular da Baixa Limia, Xoaquin Lorenzo Fernandez. Edita Deputácion de Ourense . 2004
Retirado de www.ourensebaixalimia.com
Camborio Refugiado
TOMÁS DAS QUINGOSTAS NA LITERATURA GALEGA
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Unha, cantouma, coa música do cantar do arrieiro, Eleuterio Cebey, moinante das vellas familias que teñen a residencia de inverno por Coristanco e Carballo. Está enunciada no vello romanó da ambulância galega e di así …
‘’Son capitán de gavilla,
teño gharse de baró,
para chorar polos montes
sem cangó de estaribó.‘’
O cal traduzido a galego direito, reza:
‘’Son capitán de gavilla,
teño caballo de señorito,
para robar polos montes
sem medo da prisión.‘’
Segundo o Cebey, que estivo preso conmigo na cadea da Coruña, a copla fai referencia aos días nos que os moinantes galegos dirixían sociedades de malfeitores, ou gavillas, coas que aterrorizaban o país. A el cantáralla seu avó.
Outra cántiga foime transmitida en Vilanova dos Infantes, por alguén que andou alugado ao contrabando nos principios do século. Reférese a un famoso capitán de ladróns do primeiro tercio de XIX, o Tomas das Congostras, do que se fala na novela de Miranda. Tiña o seu cuartel xeneral na pena de Anamán entre Queguas e Castro Laboreiro (entre ‘’Espanha’’ e ‘’Portugal’’) e xa outras cántigas co mesmo tema foran recollidas e publicadas anteriormente polo Xocas. Di así, en galego esta vez:
‘’Se queres a boa vida
e se queres prosperar
vem conmigo sentar praza,
cá na Pena de Anamán.‘’
Se vostede non ten inconveniente en facer unha viaxe aos lados violentos e crueis do pasado de Galicia, aventúrese por esta novela de Xosé Miranda. Gozará.
ESTE TEXTO FOI RECOLHIDO DE
WWW.XERAIS.ES/CATALOGOS/CUADERNOS_CRITICAS
A RECORDAR O TOMAZ DAS QUINGOSTAS DE JOSÉ ALFREDO CERDEIRA
Camborio Refugiado
Melgaço
Tinham passado quatro dias, desde então. No quinto dia, por volta das dez da manhã, estava o droguista com o nariz mergulhado na contabilidade e o empregado a despejar um produto qualquer em cartuchos que depois pesava e guardava, quando entrou um homem. Queria falar com o patrão. Este levantou o nariz da contabilidade e foi ao seu encontro.
Chamava-se Matos. Tinha trabalhado mais de vinte anos como caixeiro-viajante para a fábrica Cortiças do Norte, S.A., sita em Ovar, e que dera falência. Os dois sócios recuperaram o dinheiro que puderam e debandaram para lugar desconhecido, deixando dívidas por todo lado e três meses de salários sem pagar a cada trabalhador.
— É uma vergonha ! É o que mais se vê nos dias de hoje ! – deplorou o comerciante.
Então, o infeliz e alguns colegas mais corriam as quinquilharias do norte para vender o stock de vários milhares de rolhas que tinha ficado na fábrica e, assim, recuperar uma parte dos salários. Tinha lá fora uma camioneta cheia de rolhas.
O comerciante, apesar de compassivo, não deixou de ver aqui uma boa oportunidade de ganhar umas coroas complementares. Chegaram rapidamente a um preço: quatro tostões a unidade. Mais baratas do que as últimas que tinha comprado. Vendia-as a seis, o que lhe dava um benefício de cinquenta por cento. Nada mal, pensou. O único inconveniente, que, finalmente, não era um, é que não podia repartir o pagamento, devia pagar a totalidade imediatamente. Era compreensível. De todos modos, já estavam vendidas. Além das dez mil, resolveu comprar mais duas mil, pois iam começar as vindimas e de certo que ainda venderia mais umas centenas. As traseiras da quinquilharia ficaram atulhadas de rolhas. Era por poucos dias, pensou. Estava satisfeito. Às vezes, o azar fazia bem as coisas.
Os dias foram passando, passando e o doutor Melo não dava sinais de vida. Decorridas as três semanas de prazo que se tinham fixado, o comerciante perguntou a clientes de Paradela se conheciam o doutor José da Silva e Melo que comprara a Quinta do Moinho Velho. Não, ninguém ouvira falar nesse homem, nem nessa quinta. O droguista, exasperado, principiou a ter pensamentos lúgubres. Pegou no cheque do doutor Melo e foi ao banco Pinto de Magalhães, quase em frente. Os seus pensamentos não tardaram em ser confirmados: era um cheque roubado ! Foi então que percebeu que fora defraudado. Não percebia como não dera pela vigarice ! Nunca fora enganado ! Teve que reconhecer que os homens foram perfeitos. Incumbiu à G.N.R. de tentar esclarecer o caso.
O comerciante vivia um martírio. Não perdera dinheiro, mas ficara com doze milhares de rolhas nos braços. Foi durante alguns anos que as traseiras da loja ficaram atulhadas delas.
O empregado ressentido apregoou por toda a Vila o infortúnio do patrão que, para os mais próximos, passou a ser objecto de remoques. O rapaz, cada vez que ia às traseiras buscar qualquer coisa, não se esquecia de refrescar a memória ao patrão, resmungando bem alto: "Tanta rolha, tanto caraças !"
E o engraçado é que, dias depois, soube-se pelo jornal que noticiava e descrevia a artimanha que, tanto o "doutor", como o "infeliz viajante" que lhe vendera as rolhas, faziam parte dum bando de burlões que, havia pouco, exercitava pelo norte do país, fazendo inumeráveis vítimas: o bando das rolhas. Encheram dezenas de comércios nortenhos de rolhas. Os cheques que deixavam como fiança, quando lhes pediam qualquer garantia, eram roubados, claro, e as rolhas, supostamente fabricadas num ateliê clandestino. A intrujice estava bem preparada. A polícia investigava.
Correu também o boato que a burla tocara várias lojas de ferragens da Vila sem, todavia, ter-se confirmado. Certamente que muitos preferiram calar-se para não passar por lorpas. Nunca houvera nem nunca mais houve tanta rolha em Melgaço.
Novembro de 2009
A. El Cambório
Quem precisar de uma rolha
p’ra garrafa ou garrafão,
não precisa andar à solha,
pois na Vila há um milhão.
Aparece uma mulher
a comprar rolhas aos centos.
Ninguém tem as que ela quer,
pedem-lhe todos que espere,
pois vão fazer os intentos.
E eis que no mesmo dia,
um camião carregado,
(uma sorte, quem diria?)
apenas rolhas trazia,
inundou todo o mercado.
Começando na Calçada,
na Loja do Barateiro,
deixou rolhas à pancada,
na cozinha, vão de escada
e até no próprio banheiro.
A Drogaria Central,
vendo o negócio chorudo,
comprou tantas, afinal,
que até o Zé, por sinal,
quer meter a rolha em tudo.
Abílio Afonso, com artes,
de berliques e berloques,
queira Deus que te descartes
pois como nas outras partes,
tem uns centos de batoques.
A Leta do Ferreirinho,
o negócio não perdeu;
e lá comprou com jeitinho,
tantas, que nem adivinho,
mas juntas chegam ao Céu.
O velho Ponte Pedrinha,
comprou por largo e por grosso
e toda a gente adivinha,
que de rolha, baratinha,
ficou até ao pescoço.
E assim Melgaço pecou,
com este negócio à rasca.
mas muita gente lucrou,
pois em casa lhe ficou,
rolhas pró frasco e prá frasca.
Gazetilha As Rolhas
FAIJ 28/3/1965
Este sucesso já tem quarenta anos e nunca teria visto a luz do dia se não fosse a vontade expressa do empregado duma das drogarias lesadas de humilhar o patrão. Com efeito, este rapaz tinha sido por ele repreendido na véspera do início da burla por ter encomendado, sem garantia alguma da parte do cliente, um produto careiro que este nunca mais veio buscar. Ofendido no seu orgulho profissional, quando mediu o estendido da vigarice de que o seu patrão fora alvo, foi com um prazer sem limites que o rapaz propagou a notícia por toda a Vila.
Uma tarde dos primeiros dias de setembro, no fim do dia, entrou na drogaria-quinquilharia da praça da República um homem duns bons cinquenta anos de idade com cabelos e bigode brancos, bem espontados e penteados. Irrepreensivelmente vestido, com roupa de qualidade que lhe dava um ar donairoso e discreto, apresentou-se ao dono da drogaria como sendo o doutor José da Silva e Melo, médico generalista, que exercia em Braga. O amor que sentia pelo campo, pela natureza e, em especial, por tudo o que tocava ao vinho, puxara-o a comprar, no início do ano, uma bela quinta na região: a Quinta do Moinho Velho, em Paradela, perto de Penso. A quinta produzia umas boas pipas de delicioso vinho que ele queria engarrafar para ser comercializado nas principais cidades do norte do país. E, para isso, faziam-lhe falta rolhas, muitas rolhas. Cerca de dez mil !
— Ui ! - inquiriu o comerciante, surpreendido – Tanta rolha, senhor doutor !
— Efectivamente, é muita rolha - concedeu o homem sorrindo - Mas, com as cerca de seis mil que o antigo proprietário deixou e sabendo que algumas boas dezenas estarão defeituosas, creio que devo ter a conta aproximada para as pipas que certamente devo colher.
É claro que o droguista não tinha tanta rolha disponível.
— E o senhor para quando precisava das rolhas ?
— Não é que tenha pressa. Só devo começar as vindimas dentro de oito dias e, em princípio, a engarrafar daqui a três semanas, o mais cedo, ou daqui a quatro, o mais tarde. Mas o problema é, e o senhor convirá comigo, que se deixo para a última hora, sujeito-me a não ser abastecido a tempo, compreende ?
— Absolutamente, senhor doutor. O seguro morreu de velho, como se costuma dizer. Mas, ainda que começasse dentro de quinze dias... Não, não há qualquer problema, senhor doutor. Dentro de uma semana encomendo as rolhas e, o mais tarde, oito dias depois, estão aqui à sua disposição.
— Perfeito ! E quanto ao preço ?
— O preço é de seis tostões a unidade. Para lhe ser sincero, senhor doutor, e vista a quantidade, faço-lhe o mesmo do ano passado. Pode crer que, tanto em Melgaço como noutro lugar, não encontrará mais barato.
— Eu acho que cinco tostões é um preço razoável. Como reparou, são muitas rolhas e, para o ano, se tudo correr bem, comprarei outras tantas Seja modesto, caro senhor, pois ganha um excelente cliente
— Era com grande prazer, senhor doutor, mas acredite que nem eu sei quanto vou pagar por elas. Prometendo-lhas a seis tostões é um risco que corro. É natural que sejam mais caras do que no ano passado, reduzindo-me assim a margem de benefício.
Compreensível e fingindo uns momentos de reflexão, o doutor acabou por aceitar. O comerciante, gentilmente, exigiu-lhe, então, uma garantia, uma fiança da ordem do terço do valor das rolhas. O homem, sem quaisquer reticências, puxou de livro de cheques, duma caneta dourada e preencheu um cheque que entregou ao droguista, dizendo-lhe:
— Deixo-lhe este cheque de dois mil escudos como garantia. Quando vier buscar as rolhas, pago-lhe em dinheiro e recupero-o. Acha bem ?
O droguista deitou um rápido olhar ao cheque, questão de verificar a soma e o nome inscritos, mais por hábito do que por suspeita. Os vigaristas e os caloteiros farejava-os ele ao longe. Orgulhava-se de ser um comerciante sem reproches e com princípios.
— Sem problemas, senhor doutor. As rolhas estarão aqui dentro de quinze dias.
Apertaram as mãos, sorridentes, e o homem saíu como entrara.
Ah! Se houvesse algumas encomendas desta importância durante o ano, acabava rapidamente de construir a casa ! – exclamou-se. Virando-se para o empregado, que ao seu lado tinha seguido a conversa dos dois homens, disse-lhe:
— Estás a ver como se faz, rapaz ? Pede-se sempre uma garantia ao cliente que encomenda artigos acima de certo valor. O seguro morreu de velho e morreu farto !
O moço, rancoroso, baixou a cabeça e não deu pio. Sentia-se melindrado. O ralho da véspera não fora olvidado, ficara-lhe entrancado.
ESTOU FARTO DO PODER DA KAPITAL E SEU IMPÉRIO, DOS CRÁPULAS DESONESTOS AO SERVIÇO DE QUEM LHES PAGA PARA ATINGIR OS FINS. ADVOGADOS, MAGISTRADOS E QUEJANDOS. SÃO PIORES QUE PORCOS, PORQUE ESTES AO MENOS SERVEM PARA ALGUMA COISA. O QUE FAZ FRENTE À KAPITAL É AMESQUINHADO, ROUBADO E ATIRADO PARA A LIXEIRA. TUDO EM NOME DA KAPITAL DO IMPÉRIO. ESCREVO PELO QUE SE PASSA NO FUTEBOL, FOTOCOPIA DO QUE SE PASSA NA NOSSA TERRA COM O PARQUE NACIONAL PENEDA GERES. UM QUALQUER GAJO DE M*RDA RESOLVE NA SECRETÁRIA QUE DEVE SER ASSIM E OS OUTROS QUE AMOCHEM; O PNPG EXISTE HÁ 40 ANOS MAS QUEM LÁ VIVE NÃO SÃO SENHORES DE DINHEIRO COM CASA DE FÉRIAS NA ZONA; O PNPG É HABITADO HÁ MILHARES DE ANOS E SÓ A SUA CULTURA, O SEU TRABALHO E SUA FORMA DE ESTAR COM A TERRA QUE OS VIU NASCER É QUE LEVOU OS DA KAPITAL A OLHAREM PARA ELES. VIVA O PARQUE DAS GENTES E LIXEM-SE AS GENTES DAS SECRETARIAS IMPERIAIS. ESCREVO PORQUE ASSISTO AO ASSALTO FINAL DOS DA KAPITAL CONTRA O FUTEBOL CLUBE DO PORTO. CLARO QUE SOU PORTISTA, NORTISTA, MINHOTO E GALEGO. CLARO QUE SEI O QUE É SOFRER NA PELE SER DRAGÃO NA KAPITAL. CLARO QUE SEI O QUE É A CORRUPÇÃO ENCAPOTADA E BRANQUEADA DE POLICIAS, JUIZES, POLITICOS E AFINS.CLARO QUE SEI O QUE É UM GRUPO DE CIDADÃOS PORTUGUESES SEREM BARRADOS À ENTRADA DA KAPITAL PELA P?S?P? A MANDO DUM TAL VIEIRA. CLARO QUE SEI O QUE FOI MATAR UM HOMEM DURANTE UM JOGO NO ESTADIO DITO NACIONAL POR UM HERÓI VERMELHO. CLARO QUE SEI O QUE FOI UM HOQUISTA FICAR EM ESTADO DE COMA DEPOIS DE LEVAR COM UM TACO DE MADEIRA NA CABEÇA. CLARO QUE SEI QUE O TAL VIEIRA APADRINHA AQUELES QUE NÃO SE LEGALIZAM PARA NÃO SEREM RESPONSABILIZADOS PELOS SEUS ACTOS. CLARO QUE SEI QUE TOCHAS AZUIS SÃO PENALIZADAS E AS VERMELHAS IGNORADAS. CLARO QUE SEI QUE OS DINHEIROS QUE A CAMARA DE LISBOA NÃO TEM PARA PODER PAGAR AO CLUBE DA KAPITAL. CLARO QUE EU SEI QUE UM SENHOR CASADO COM UMA TUNG QUALQUER QUE VAI INFORMAR UM POLITICO QUE ESTÁ CONTROLADO PELA PJ. CLARO QUE EU SEI QUE O QUE SE PASSA ABAIXO DO DOURO É LIMPO E A NORTE É PORCO. CLARO QUE EU SEI QUE A M*RDA É TANTA QUE EU JÁ NÃO SEI. CLARO QUE EU NÃO SEI PORQUE É QUE NÓS CONSTRUIMOS ESTE PAIS. AFONSO ESTÁS PERDOADO, PORQUE EU NÃO SEI.
ILÍDIO DE SOUSA
Castelo de Castro Laboreiro
Avisto Castro Laboreiro, que se encontra numa baixa, dominado pelo castelo, necessitado de restauração, dando um aspecto de vida, embora triste no meio da desolação dos rochedos feros que tudo parecem esmagar. Entre muros de pedra e depois de beber largamente numa fonte de água magnífica, como é próprio da natureza granítica da região, entrei na antiga vila, séde de concelho até 1855, e actualmente aldeia.
Significa Castro Laboreiro, lugar fortificado, castelo, sobre o rio Laboreiro, que lhe passa junto, amenizando com os verdes dos campos de milho, a rudeza formidavel das penedias. No século XVI, Duarte Darmas classificou a região de inóspita e é sem dúvida a melhor designação que se pode dar. É constituído Castro Laboreiro por casas térreas, na sua maioria as mesmas que José Augusto Vieira descreveu no ‘’Minho Pitoresco’’, enquanto uma ou outra têm uma espécie de primeiro andar. Possuem as castrejas habitações para verão e para inverno, denominadas brandas e inverneiras, a que se referiu o Sr. Prof. Doutor Orlando Ribeiro num interessante estudo.
Simples a igreja paroquial e sem comodidade, porém melhorada pelo actual pároco, que a mandou sobradar em 1920, pois até o então era terra batida como nalguns lugares em África. Digna de apreço é a praça, que infelizmente perdeu o antigo pelourinho, com a escóla primária bastante razoável e de edificação moderna, tendo perto o único estabelecimento comercial, vulgar destas povoações, aonde tudo se vende. Praça bem portuguesa, retrocede-se alguns séculos na sua contemplação, tal o aspecto antigo e ao mesmo tempo pitoresco, com casas de perpeanho e de apresentação regular. O castelo, reedificado por D. Dinis, assenta nas rochas, dominando a povoação, enquanto o escuro das penedias lhe dá maior severidade e tristeza.
Não parece de maneira alguma que se esteja no Minho, risonho e belo, mas na serra da Estrela, existindo semelhanças com o castelo de Monsanto na aldeia mais portuguesa do país.
A-pesar-da atracção que o ineditismo da região me provocava, bem diferente do que até então, o tempo não admitia delongas, e, a cavalo, abandonei Castro Laboreiro, para subir a serra, descer a encosta áspera do penedo Lagarto, nome dado pela sua forma, e penetrar na suave chã de Lamas de Mouro.
O silêncio serrano impressionava, a noção de isolamento tinha sabor primitivo.
Percorri caminhos velhos até avistar Cobalhão, lugar nessa época alcançado pela estrada e onde um automóvel de Melgaço me esperava. A povoação é superior a Castro Laboreiro, com escóla moderna, igreja melhorada pelo pároco, e, facto interessante a dar uma noção de arranjo, as portas todas numeradas. Na véspera, em Melgaço, dissera que estaria em Cobalhão às 18 horas e, com atrazo de cinco minutos apenas, cumpria o prometido, depois de percorrer ásperos e rudes caminhos. Não faltei à minha costumada exactidão e só compreendi a importância da estrada, quando o automóvel começou a vencer rapidamente o percurso até Melgaço.
(1) José Leite de Vasconcelos, Opúsculos, Coimbra 1928, vol. II pág. 363
a 372 e Revista Lusitana, vol. XIX, pág. 270 a 280.
(2) Braga 1940.
(3) Porto 1941, pág. 34 a 40.
ESTE TRABALHO FOI RETIRADO DE:
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
Camborio Refugiado
Castrejas típicas
RECORDAÇÕES DE VIAGEM
CASTRO LABOREIRO
Pelo Dr. Busquets de Aguilar
GAZETA DOS CAMINHOS DE FERRO
Lisboa 16 de Agosto de 1946
O caminho de ferro do Minho termina em Monção. Encontra-se projectado o seu prolongamento até Melgaço pelo plano de 1930, o que se justifica plenamente dada a importância da região, onde se encontra a estância termal do Peso. A camionagem por si só não é suficiente para servir com utilidade a região.
O vale do rio Minho vai-se estreitando gradualmente, e, do lado da encosta sul, desenvolvem-se os contrafortes ásperos de granito escuro da serra da Peneda. Nesta direcção ficam alguns lugares dos mais atrazados do país, devido ao isolamento a que foram votados durante muito tempo. Aqui se localisa Castro Laboreiro e a freguesia da Gavieira com o santuário da Nossa Senhora da Peneda.
O país conhece Castro Laboreiro pela raça dos seus cães e da Peneda tem a vaga noção de uma serra cujo nome se aprende na instrução primária, região quase inacessível durante largos anos. Todavia trata-se de localidades que necessitam de protecção oficial para um maior desenvolvimento. Leite de Vasconcelos, mestre entre os cientistas europeus, estudou (1) a linguagem e a etnografia de Castro Laboreiro e o erudito escritor A. Luís Vaz escreveu a notável monografia ‘’ O Santuário de Nossa Senhora da Peneda’’(2). Também estudando as danças regionais, o dr. Pedro Homem de Melo, se referiu a Castro Laboreiro no livro ‘’ A Poesia nas Danças e nos Cantares do Povo Português ‘’.(3)
Hoje para chegar a Castro Laboreiro, a estrada nacional de Melgaço aos Arcos de Vale de Vez, (concluída até Lamas de Mouro) tem em construção um ramal para Castro Laboreiro e com ligação para Espanha, sendo já um cómodo passeio de automóvel, bem diferente das dificuldades que ainda conheci. Por isso creio não ser de todo descabido descrever aqui as impressões da minha visita a Castro Laboreiro em 1938, pois sempre me atraíram estes lugares isolados, destinados a um rápido nivelamento civilizador provocado pela abertura de estradas, que, aliás, é indispensável construir.
Foi por um dia de Agosto de 1938, que, de madrugada, abandonei as comodidades do Grande Hotel do Peso, estância termal repleta de aquistas, para percorrer a distancia de 4 horas até Melgaço e seguir pelo caminho velho de Castro, pois a estrada de Peneda, que liga com Castro Laboreiro, estava em construção e não passava de Cobalhão. O ar fresco da madrugada dava saúde e energia.
Na companhia do guia comecei a afastar-me de Melgaço, avistando durante largo tempo o castelo com a sua torre de menagem, enquanto em baixo corriam serenas e calmas as águas azulíneas do Minho. Caminhava, voltando-me constantemente, para observar a margem galega do rio, de um aspecto semelhante à nossa, ao mesmo tempo que o piso calçado à portuguesa se tornava cada vez mais áspero e difícil. Longe de me diminuir o entusiasmo, avançava apressadamente ao lado do guia, que me ia descrevendo diversos lugares cada vez mais modestos, as casas menos cuidadas, até que a caiação desapareceu para serem apenas de pedra à vista.
Alcançando o alto da encosta da Rolha, continuei até Fiães, antigo e importante mosteiro beneditino, de sólido granito, com uma avenida de Carvalhos na frente.
Depois de Fiães, mais modesta ainda, Alcobaça, a aldeia com casas de colmo e em que os seus habitantes olham receosos para quem passa. A fronteira corre perto, dominando-se, de um vale muito apertado, o rio Trancoso, fio de água que banha uma região muito pobre.
Vencida a encosta da Portelinha, e, por um caminho tão estreito que não é acessível aos carros de bois, comecei a descer. As penedias diminuíram e as areias provenientes da desagregação provocada pelos agentes térmicos, excesso de frio no inverno, calor forte no verão, aparecem-me com côr branca, melhorando a aspereza da paisagem.
(continua)
Batela do rio Minho
Entes dos rios, mui topadas entre Arbo e Melgaço, representam o desejo tentador pelo inexplorado – a riqueza e o prazer, também a fatalidade – em oposição ao controlado – a ordem, mas com a escassez de cada dia -, o pagão antagonista do cristão.
A primeira vez que passavam, sobre todo ós rapaces da montanha, diciamos-lhe:
- Mete uma pedra na boca e nom a quites hasta chegar ó outro lado. Tes que meter um coio senom afunde-se a lancha …
Barcas do Minho
… a primeira ponte erguida, a da língua comum, para combater o mito das feiticeiras engaioladoras que viven no rio Miño, entre Arbo e Melgaço, que intentan seducir a quen quere pasar a nado dun a outro país. Antes, os mozos que tal pretendían tiñan que meter um coio na boca para non verse obrigados a responder á provocacion….
… a cuarta ponte, a da xustiza, se cadra para rememorar as fazañas fo mítico bandoleiro galego-portugués Xan das Congostras, quen roubaba a quen tiña para aliviar a quen no tiña. Na Pena de Anamán, na raia, que nos xurge pola serra do Leboreiro, hai un epígrafe que di:
Os pobres non o tem
e os ricos non o dan,
quen quixer asentar praza
veña á Pena de Anamán.
www.vieiros.com
A ideia de atravessar rios, inicialmente sacrílega, cotinuou a inquietar até tarde a alma do povo, porque nas ‘’constituições’’ episcopais de Évora, de 1534, ordena-se que não se pratiquem bênções mágicas com epada que atravessa-se o Douro e Minho três vezes. Aqui a superstição estendia-se pois a outros rios interamnenses, e entra nela o numero três, sempre fatídico. Há anos ouvi contar no Peso de Melgaço que quando uma pessoa precisa de atravessar o rio Minho, para ir a Arbo, povoação galega que faz fronteira, há-de levar até lá um seixinho na bôca, para durante a travessia não poder falar, senão as Feiticeiras metem-se com ela. O ‘’silencio’’ é outro grande agente ritual nas cousas da magia e da religião.
J. Leite de Vasconcellos
Revista Lusitana
http://cvc.instituto-camões.pt
Camborio Refugiado
Parada do Monte
Ô minha bela Parada,
Nobre terra deleitosa,
Deixa-te ser abraçada
Só por gente donairosa.
Aí, minha mai m'aleitou
Côs peitos de garraninha,
Aí, minha alma ficou,
Ô linda aldeia minha.
Na bossa Barroca naci,
Nô basto eido galhofei,
Atrás das galinhas corri,
É contr'às pedras m'arranhei.
Nôs teus caminhos dibaguei,
Nas tuas nacentes bebi,
Na tua terra m'entranhei,
É teus odores absorbi.
Tuas searas douradas
Ôs pês da montanha estam,
Temos qu'as ter bem regadas
Sinom nom nos dam tanto pam.
De comer me dêstes canhas,
É do teu néctar eu bebi,
Ô majestosas montanhas,
Nas bossas entranhas creci.
A boa gente da serra
Nom gosta do fingimento,
Diz qu'ê só da boa terra
Qu'ô home tir'ó sustento.
É cando cheg'à giada,
Nô campo nom hai que fazer,
Sim bulir quêda Parada,
Enqant'ô calor nom biêr.
Ai, formosa Minhoteira,
Tanta gente biste passar,
Sonhabas a noit'inteira
Oubind'ô regato cantar.
P'rà sombra da azinheira
O passant'ia descançar,
Fost'a grande companheira
Dôs qu'iam aí p'ra rezar.
Tua capela idosa,
Acabaram por esquecer,
Ai, tu qu'eras tam baidosa,
Sozinha, estás a sofrer.
Ô fontes d'auga limpinha,
Nunca deixedes de correr,
Fazei qu'a Parada minha,
Nom mais acabe por morrer.
Carinhos à minha terra.
Dezembro de 2009
A. El Cambório.
Em Fiães
(conclusão)
Quase um mês depois da catástrofe, o pároco fazia um relatório ao Administrador do Concelho, inventariando o desastre de S. João: 15 casas ‘’com todos os seus apparatos’’, 6 pontes, 5 moinhos, 16 cabeças de gado grosso, 200 de gado miúdo, 10 porcos, 30 ‘’carros de pão’’(cereal), canastros de milhos, forão louvados em 16 000 cruzados’’ O total geral é avaliado em 45 000 cruzados. O número de mortos elevou-se a 14 pessoas, afectando 6 família, uma das quais perdeu 6 membros.
Organizava-se entretanto a ajuda às famílias atingidas. Primeiro é o Administrador Geral do Distrito de Viana do Castelo que propõe uma subscrição nos diferentes concelhos da sua jurisdição, depois a notícia chegou à capital. Em Lisboa, A Revolução de Setembro parece ter sido o primeiro periódico a divulgar o acontecimento, quase um mês depois, mas as providências por parte do Governo tardarão muito mais. Só em Março do ano seguinte, D. Maria II assina um documento encarregando as comissões de recolherem donativos a favor das vítimas de S. João. Em Dezembro de 1842 os donativos chegam ainda a Melgaço.
S. João não voltou a ser reconstruído. Os sobreviventes, recolhidos nos lugares mais próximos, por aí ficaram refazendo a vida e guardando a memória do que tinha acontecido. Mas, de facto, o que tinha acontecido? E porque tinha acontecido?
Hoje, a catástrofe de 1841 sobrevive na recordação dos mais velhos, que a ouviram contar aos avós: depois de uma grande tempestade com muitos ‘’ raios que caíram no monte’’, deu-se o ‘’terramoto’’ que trouxe muita terra e muitas pedras para baixo, fechando a passagem e formando uma grande ‘’bexiga de água’’ que acabou por rebentar, destruindo tudo pelo caminho.
A recordação da catástrofe sobreviveu também através da veneração da iamagem de S. João, recolhida na Igreja de Porto Carreiro. Quase século e meio depois, por iniciativa do Padre Manuel Lourenço, pároco do Fiães, foi construída no local do desastre (onde existiam umas ‘’alminhas’’) uma pequena capela para onde foi levado o orago do desaparecido lugar. Lê-se na entrada: ‘’Monumento evocativo aos mortos do terrível desastre de 17 de Novembro de 1841. Fiães 1988’’.
Documento I
‘’ O nosso correspondente de Villa nova de Cerveira participa-nos com data de 25 do passado o funesto acontecimento, que abaixo transcrevemos.
………………………………
Um funesto acontecimento soffreram no dia 17 os habitantes do logar de S. João, freguezia de Fiães, o qual não só estimula a nossa filantropia, mas também provoca nossas lágrimas. Naquelle dia á uma hora da tarde desabou uma nuvem de agoa sobre o monte das Anturas, sobranceiro ao logar de Porto-Carreiro, freguezia de Fiães, conselho de Melgaço; e abrindo parte do mesmo monte despediu delle monstruosos penhascos, que vieram rolar sobre o logar de S. João, lançando por terra 15 casas, ficando abaixo das ruínas 14 pessoas. Esta catástrofe além daquele lastimoso estrago reduziu á miséria muitas mais famílias pela perda de gados de todas as classes, fructos colhidos e por colher, que a violencia das agoas e o desabamento da collina entulhou no valle. Esperamos da habitual beneficência dos nossos concidadãos, ver minorada por uma subscripção (já aberta) a pungente miseria a que ficou reduzido aquelle infeliz povo.’’ (27)
(27) A Revolução de Setembro, Lisboa, 11.12.1841
O Atleta, Porto, 14.12.1841
Documento II
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino
Merecendo-me a maior solicitude o desastroso accidente occorrido ha pouco em o districto administrativo de Vianna, no logar de S. João, freguezia de Fiães, concelho de Melgaço, onde, por effeito de huma impetuosa torrente de chuva, que por longo espaço de tempo cahíra sobre o monte denominado Anteira, sobranceiro ao logar de Porto Carreiro, abrindo parte do mesmo monte, vierão a deslocar-se delle enormíssimos penhascos que, despedidos violentamente sobre o dito logar de S. João, o deixarão quasi todo arrasado, ficando demolidas quinze casas, seis pequenas pontes, e cinco moinhos, e sepultadas sob as ruínas quinze pessoas, além da perda de mais de duzentas cabeças de gado ……………………...................
Paço das Necessidades, em 5 de Março de 1842
Este trabalho, está publicado na sua totalidade em www.letras.up.pt ou www.apgeo.pt/files/docs/inforgeo
Camborio Refugiado
Convento de Fiães
III CONGRESSO DA GEOGRAFIA PORTUGUESA,
PORTO, SETEMBRO 1997
O ‘’TERRAMOTO’’ DE S. JOÃO (MELGAÇO) EM 1841:
UM PERCURSO PELA GEOMORFOLOGIA HISTÓRICA.
Carlos Bateira – Instituto de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade Porto
Laura Soares - ‘’ ‘’
João Carlos Garcia - ‘’ ‘’
…………………..
A Freguesia de Fiães em meados do século XIX.
No início da conturbada década de 1840, no extremo norte do Alto Minho, a freguesia de Fiães contaria no seu conjunto com quase duas centenas e meia de fogos e perto de 800 habitantes. No quadro do concelho de Melgaço, pode dizer-se que a organização do seu espaço ……a freguesia correspondia ao couto do antigo Mosteiro de Fiães, instituição cisterciense (com existência documentada desde o séc. XII), então há pouco desaparecida no contexto da extinção das ordens religiosas.(2)
(2) Cfr. José Marques – O Mosteiro de Fiães (notas para a sua história), Braga, ed. Autor, 1990. pg 41.
………………………………….
………………………………….
O ‘’Terramoto’’ de S. João.
Um importante núcleo existia no lugar de S. João, muito próximo de Porto Carreiro, num local a meia vertente onde convergiam vários pequenos ribeiros mas todos com algum caudal. S. João cresceu como um tentáculo de Porto Carreiro, para cima ao longo da vertente, mas encaixado na apertada garganta do pequeno afluente do Trancoso. Uma das suas riquezas era essa força motriz que alimentava as suas azenhas: 5 num aglomerado de apenas cerca de duas dezenas de casas. Mas, uma das fortes razões da sua existência explicará o seu desaparecimento.
A 17 de Novembro de 1841, depois de dois meses de intenso mau tempo, com muita chuva, um terrível ‘desmoronamento de terras’ destrói em momentos a povoação, morrendo soterrados muitos dos habitantes. Os prejuízos materiais revelam-se catastróficos para a pequena comunidade.
Logo no dia seguinte, o regedor Manuel do Rego lança um apelo ao Administrador do Concelho, depois de relatar sumariamente o ocorrido. ‘’ Participo a Vª. Exª. Que hontem pela huma ora da tarde reventou uma parte do monte denominado Anteiro e veio ao lugar de S.João/Porto Carreiro e arrazou e levou 9 cazas com muita gente e gado foi uma desgraça muito grande. Ora hé precezo q Vª Sª dê providencias mandando vir gente do Con.º pª ajudar a desenterrar a gente e gados e frutos e aparattos q ficarão debaxo dos rochedos.’’
A ajuda chegou principalmente dos lugares vizinhos, onde se recolheram os sobreviventes e donde partiram os grupos de homens a desenterrarem os cadáveres e a dar-lhes sepultura junto ao Mosteiro de Fiães. A grande torrente de pedras, terra e lama atingira também Porto Carreiro, chegando mesmo ao leito do Trancoso. Na tradição oral, ao chegar à Igreja de Nossa Senhora da Vista a torrente dividira-se em duas, salvando-se milagrosamente o templo, que ainda hoje se encontra parcialmente soterrado. As consequências foram contudo destruidoras nos campos, que levarão muitos anos a limpar e reconstituir.
(continua)
— A instrução é uma razão e uma obrigação suplementares para não violarem as leis. A instrução e a cultura são uma grande chance, que nem todos têm, para podermos perceber o Mundo e vivermos em harmonia e comunhão. Como é que vocês querem, um dia mais tarde, ser eventualmente chamados para desempenhar funções relevantes, no seio de instituições que hoje desrespeitam ? Não pode ser ! Creio que sou claro, ou não ?
— Como a água – retorquiu o João.
Tive de desviar o olhar da cara do tipo e esforçar-me para reter o riso que me tentava.
Bufou docilmente. Seria pela resposta ou por estar a exaurir ? Tanto nos dava. Silenciosos, esperámos. Fez estalar os dedos das mãos. A missa estava dita. Respirou profundamente e cruzou os dedos, por cima da secretária desta vez. Levantou em seguida a cabeça e estudou atentamente o tecto, à procura de uma solução, como se estivesse face a um dilema. Lembrei-me que já vira esta cena múltiplas vezes em diversos filmes policiais. Era a hora da verdade. Tinha uma importante sentença a arbitrar.
— Errar é próprio do homem, como devem saber. Toda a gente tem direito a uma segunda oportunidade. Espero, para vocês, que seja a primeira e a última vez. De outro modo, as consequências seriam bem mais fastidiosas. Perceberão que não vale a pena perguntar-lhes se fui claro.
O homem tinha humor. Não valia a pena, não. Consentimos com a cabeça. Já sabíamos qual era a repercussão.
— Não sei se é a decisão mais adequada, mas vou ser clemente com vocês. Desejo, unicamente, não ter de deplorá-la um dia. Mas isso, só o tempo mo dirá.
Esperou uma reacção de reconhecimento ou, pelo menos, de alívio da nossa parte. Nada. Ficámos inexpressivos, como até ali.
— É evidente que conto com a vossa absoluta discrição relativamente à minha determinação. Creio que é inutil dizer-lhes que nada deve transpirar daqui. Nem há razões para tal, não é verdade ?
Aquiescemos naturalmente. Nada tínhamos que agradecer. O favor era vendido bastante caro. Para o Pachorrego e para o Pepe o preço fora o mesmo: o primeiro vira o seu açambarcamento pelos pides aumentar e o segundo sabia que, um dia, estava sujeito a ter de exercer os seus talentos como pintor de automóveis gratuitamente. No nosso caso, era como um investimento a longo prazo que não necessitava de capital inicial. Um futuro engenheiro e um futuro qualquer coisa eram sempre uns bons trunfos nos momentos propícios ou necessários.
Com a mão aberta, indicou-nos a porta. Levantamo-nos e saimos sem uma palavra. O móvel que estava por detrás dele ia ter mais duas fichas nas gavetas com as letras C e L.
Nenhum de nós imaginava que, dentro de um ano, a instituição que ele representava e outras que defendia, deixariam de existir, levando-lhe por água abaixo a rede de interesses.
Passados uns dias, eu e o Pepe encontramo-nos à noite no café Estrela com o Pacho. A conversa depressa derrapou para a peripécia que, na adega do Telmo, o tinha contrariado.
— Num tens vergonha, és um chupista de merda. Num poupas ninguém. Mas, agora, se t'apanham em Arbo Alfredo... – preveniu-o o Pepe.
— E, por cima, estragou um quilo de café – acrescentei.
Acabou a aguardente que lhe restava e disse-nos seguro de si:
— Num vos preocupeis comigo qu'eu sei desenrascar-me. Ide mas é perguntar ó Daniel quanto pagou pela lampreia e, depois, dai-me notícias. Ainda tendes muito qu'aprender, rapazes – concluiu.
A intonação da voz e o cintilar malicioso dos olhos lembravam-me qualquer coisa. E, curvado como sempre, saiu do café.
Olhei para o Pepe, receoso. Creio que, nesse momento, compartilhava comigo o abominável pressentimento que me invadira.
— Ai, ai, tu queres ver qu'ele fodeu-nos ?
O Pepe não imaginava quanto estava certo.
No outro dia, fui à loja do Daniel. As lampreias não custavam mais de seiscentas pesetas. Vígaro maquiavélico ! Confessou-nos, mais tarde, que combinara tudo com os indivíduos dos dois bares enquanto nós ficáramos na praça a admirar os ranchos. Comeu lampreia à nossa custa ! Lembrei-me, então, das palavras que ele pronunciara quando estávamos com o Daniel no café: "... o último que me fodeu num nasceu onte..." Nesse momento, já a burla estava em marcha. Em parte, a culpa fora nossa pois não cessáramos de provocá-lo. Não obstante, o Pepe tinha mais do que razão quando dizia: "este gajo é mesm'um cabróm".
Não sabiamos por que razão ainda o frequentávamos. Já tínhamos dado voltas e mais voltas à cabeça para tentarmos elucidar a perseverança e o gosto que tinha pela vigarice sem obtermos resultado algum.
Foram os anos, unicamente, que o amainaram. Hoje, passa os dias à porta do que foi a sua barbearia, sentado numa cadeira. É um ponto estratégico por onde quase toda a gente é obrigada a passar. Vive com o rico passado, com as reminiscências e com a visita ocasional dos numerosos amigos que, apesar de tudo, lhe são fiéis. Para nós que o frequentámos, faz parte de uma espécie endémica. Ele e o castelo são os dois monumentos de Melgaço mais conhecidos. Os seus numerosos feitos de dolo, únicos no género, contribuiram para difundir o nome da Vila e mereciam, consequentemente, uma homenagem e um reconhecimento sem par da parte dos melgacenses.
Junho de 2009
A. El Cambório