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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA VIII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Bomba de gasolina do Pigarra

 

 

   Em menos de meia hora deixou-nos junto da bomba do Pigarra, em frente do posto fronteiriço espanhol. Não havia ninguém. Do lado  português, na casota colada à pontinha, encontrava-se um guarda fiscal. Viu o Pachorrego e riu-se. Dissemos-lhe de onde vínhamos e, sem mais, mandou-nos seguir.

   Subimos, rumo a São Gregório, acompanhados pelo canto refrescante da água do regato. A rua Verde levou-nos à capela. Fomos bater à porta do senhor Augusto Seixo, o taxista do lugar.  Disponível de dia e de noite, não conhecia domingos nem feriados. Dizia-se mesmo que dormia vestido. Às três da madrugada estávamos na Vila.

   Quando me levantei na terça-feira de manhã, a minha mãe deu-me o recado. Tinha vindo um guarda republicano dizer-lhe que me devia apresentar de tarde no posto fronteiriço do Peso, munido do passe que pedira no domingo passado. O passe ! Esquecera-me completamente dele.

   Fui apanhar a camioneta das duas à Calçada. A barbearia do Pacho estava fechada. Ao fundo da camioneta sentado, o João. Também se esquecera de dar a entrada ao passe. Estávamos apreensivos. Nunca se sabia do que eram capazes os pides.

   Íamos na recta final da estrada do rio, donde já se avistava o posto, quando discernimos o Pacho e o Pepe que desciam as escadas. O esquecimento fora geral. Uns metros antes de nos cruzarmos e sempre em andamento, o Pacho mormurou-nos :

   — Passastes sozinhos pelo regato, percebestes ? Id'ide, qu'ides ouvir sermóm e missa cantada.

   A mixórdia não devia ser muito problemática, senão tinha-nos prevenido. Quanto a dizermos que passáramos no regato era evidente que não íamos incriminar o amável guarda fiscal.

   Subimos as escadas e pouco ou nada gostamos do olhar que o polícia nos deitou quando entramos. Não era o mesmo que nos tinha feito os passes. Devia ter uns trinta anos. A idade de querer ganhar galões. Acompanhamo-lo para um reduzido compartimento, situado por detrás do balcão onde carimbavam os passaportes. Sentou-se numa confortável cadeira de braços, por detrás de uma secretária, e indicou-nos duas outras, normais, para nós. Detrás dele, do lado direito, uma cómoda com uma dúzia de gavetas. Pela fachada, via-se que o conteúdo estava guardado por ordem alfabética. O ficheiro, certamente.

   — Vocês sabem porque é que estão aqui, não é verdade ?

   Abanamos a cabeça afirmativamente. Mostrou-nos os passes que lhe tínhamos dado quando chegamos e, apontando com o dedo uma linha do fundo, perguntou :

   — O que é que diz aqui ? - não esperou resposta - Sabem ler ou não ? "Este passe é válido vinte e quatro horas" ! - e martelou bem "vinte e quatro horas".

   Silêncio. Optamos pela táctica do simplório. Pegou numa das várias esferográficas que, juntamente com alguns carimbos, decoravam a secretária, e fê-la deslizar entre os dedos da mão direita.

   — Por onde passaram ?

   Deixei responder o João, era o mais velho. Respondeu o que o Pachorrego nos dissera.

   — Pelo regato ? - admirou-se - Com o Alfredo Pachorrego, sem dúvida.

   Devia ter uma séria contenda com este. Fixou atentamente o João que, antes de responder, deixou propositadamente o silêncio prolongar-se. Queria que o polícia vacilasse, fazendo-lhe crer uns instantes que o silêncio era  sinal de resposta afirmativa.

   — Eu e o meu colega só conhecemos o Pachorrego de vista. Não temos confiança com ele. Passámos unicamente os dois no regato.

   Ainda bem que no dia anterior o polícia de serviço não nos quis fazer um passe para todos! Dissera não em vez de "num" ou "nam", à maneira da Vila. O efeito procurado foi alcançado. Deu uma ligeira tossida. Ajeitou-se na cadeira, pousou os cotovelos nos braços desta e cruzou as mãos, brincando com os polegares. O olhar passava lentamente de um para o outro. Sustentando-lho, esperamos com calma e indiferença. Tínhamos tempo.

   — Recapitulemos. Um, não deram entrada aos passes no prazo estipulado. Dois, entraram ilegalmente no território nacional – fez uma curta pausa – Neste país existem instituições com leis que há que respeitar, que honrar. Eu faço parte de uma delas e a minha função é velar para que assim seja. Por causa de uma festa, infringiram a lei e arriscaram-se a uma multa consistente. Não sei se me fiz perceber. Que seria de nós se cada um pudesse fazer o que lhe apetece ? Digam-me !

   Calou-se. Fora o sermão. O seu mestre, o indígena de Santa Comba, podia repousar consolado. Os discípulos asseveravam elegantemente. Dei aos ombros. Que percebesse o que  quisesse. O João ia  deitar a mão aos caracois  da nuca  mas desistiu. Era  uma  falta de  atenção,  devia  ter pensado. Limitou-se a coçar a cabeça e a bocejar imperceptivelmente.

   — O que é que vocês fazem ? - indagou, ao constatar a nossa inércia.

   — Eu ando em engenharia, no Porto - disse o João.

   — E eu no liceu, em Braga.

   Pegou novamente na esferográfica e, pausadamente, bateu com ela na escrivaninha uns longos segundos. Era dono da situação. De certo que procurava as palavras para ripostar. Não tardou em encontrá-las.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA VII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Foi a vez do cabo da guarda civil que, logicamente, levou a conversa para o contrabando.

   — Si no fuese España, en Portugal se moría de hambre, no ?

   Perante o nosso ar abstruso, incrédulo deu uma estridente gargalhada, mostrando uns dentes amarelados pelo tabaco e, com um franco sorriso, disse para nos sossegar:

   — Bueno, estoy bromeando, no será así tanto. Pero mucha cosa marcha hacia allá.

   Ocupava o bom cargo para saber do que estava a falar. O escudo valia quase o dobro da peseta,  fazendo com que muitas coisas  fossem mais baratas em Espanha. Por isso, bastantes produtos, principalmente alimentares, vinham de lá, de contrabando. Era o caso do azeite, da pescada e do polvo congelados, entre outros. No outro sentido, camiões de café Sical passavam à noite pela fronteira de São Gregório, depois desta fechar para o comum dos mortais. De ambos lados do rio, e havia longos anos, o contrabando, além de ser muito mais rentável do que o trabalho dos campos, fazia parte da essência imutável dos raianos.

   O "alcalde" tirou um maço de notas do bolso para pagar os seis conhaques. O Alfredo empurrou-lhe o braço com firmeza.

   — Quem convidou fui eu, quem paga sou eu. E num vale a pena insistir, "alcalde". Pagará quando for a Melgaço.

   Ui ! Eu, o Pepe e o João olhamos uns para os outros, intrigados.  Não acreditávamos no que ouvíramos. Depois duns momentos, os dois homens estenderam-nos a mão afavelmente e foram-se. Ninguém falou. Inquietos, estávamos longe de perceber o intento do "jornalista". Não íamos tardar em sabê-lo. A única certeza que tínhamos era que, quando o "alcalde" fosse à Vila, o Pacho não deixaria de o depenar.

   — Num é nada mau o Carlos I. Quereis outro, rapazes ? Aproveitai qu'é festa e a lampreia pôs-me bem disposto.

   Não quisemos. Pediu outro conhaque. Estávamos na expectativa, intrigados. Em dois tragos expediu-o. Deu uma olhadela à sala e disse-nos, distraídamente :

   — Sai um de cada vez, pessoal, como se nada fosse.

   A apreensão evaporara-se tão rápido como se instalara. Este indivíduo era mesmo pérfido, indigno, impossível ! Não sabia, ou não queria saber, o que era um princípio, o que era ser honesto. A vigarice devia ser um culto, a sua religião. Era verdadeiramente impenitente !

   A confusão era tanta que, provavelmente, os do café não dariam por ela. Mas também imagino a cara do "alcalde," ou a do cabo da guarda civil, se no dia seguinte lhes dizem que ninguém pagou. Ri-me, nervosamente. Apetecia-me esbofetea-lo. O João, sério, sem lhe tirar os olhos de cima, começou a enrolar a mecha de cabelo à volta do dedo. Se calhar, nem o via. Como a mim, pensamentos insípidos deviam encher-lhe a cabeça.

   — Ai, ai, este gajo é mesm'um cabróm !

   O Pepe não ia por quatro caminhos.  Seguiu-se o riso do pica-pau, mais alto desta vez. Algumas caras viraram-se. Não sabíamos que decidir. Respondeu-lhe o João, desdenhosamente, depois de nos lançar um olhar furtivo.

   — És incorrigível, pá, num há meios ! Sai um de cada vez, mas tu és o último, Alfredo !

   — Num há problemas. Toc'ándar, pessoal.

   Não hesitou. Assim foi. Saímos sem qualquer dificuldade. A meia noite não estava longe. Fundimo-nos no baile. Foi um martírio. Na praça, devia haver cinco vezes a população total de Arbo. Ainda que descontentasse de novo os automobilistas, até na estrada se dançava. Só lhes abriam a passagem depois de várias apitadelas e berros. Então, batiam-lhes na capota com a mão aberta  ao mesmo tempo que os  apupavam.  Choviam  as injúrias. E, como de tarde, chegava a haver pancada. Brincadeiras sem quaisquer consequências aparentes. O Pacho rapidamente desapareceu com alguém. Fomos ondulando de um lado para o outro, segundo os  empurrões que nos iam impingindo.

   Os "Cunters" interpretavam todo género de música. Da cúmbia ao paso-doble, passando pelo chachachá, o tango, o rock'n'roll, a rumba, a rancherada, a variedade espanhola... O que tocavam, tocavam-no bem. Eram quase vinte em cima do palco. Uma verdadeira orquesta.

   À meia noite, interromperam o baile e deitaram um belo fogo de artifício que admirámos com manifesto agrado. No final, ficou-me a doer a nuca uns minutos. Quase que deitaram o fogo por cima da praça... Recomeçou o baile. Mal sabíamos dançar mas, aproveitando a confusão e os empurrões, pudemos "botar" umas cúmbias e uma rancherada sem passar por paralíticos. O resto era grego, para nós. Dei uns bons arrotos. Dançar facilitara-me a digestão.

   O Pachorrego não tardou muito em aparecer. Passava da uma e,  pausadamente, começamos a não sentir as pernas. Dentro de pouco, descampávamos. O Gúlin não tardaria em aparecer, mas não dava para arriscar e voltar ao café. Amaldiçoamos o Pachorrego. Foi procura-lo enquanto esperávamos no "San Jenjo".

   Estávamos a ficar inquietos e a imaginar o pior quando os vimos  passar a porta. Um colega do Gúlin tinha-se ausentado com uma "chavala" para um canto sossegado. Num caso destes, a espera é justificada.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA VI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Alfredo do Paço mais conhecido por Pachorrego

 

 

   — Que bem me soub'esta lampreia, rapazes ! – disse-nos com aparente êxtase e admiração o Alfredo – Nem podeis imaginar ! Num me lembra de me ter sabido tanto !

   Ninguém respondeu. Estávamos em letargia, estávamos a digerir. Eu não ouvia ninguém, pensava. A gente passava diante do café e, automaticamente, olhava para quem lá estava. Eram pessoas simples, trabalhadoras, que só mudavam de roupa aos domingos. As mais idosas de entre elas eram camponeses. Para estes casais e para os pais, quando estes ainda podiam andar, as festas e a missa dominical eram a única ocasião de sairem juntos. A partida de cartas semanal entre amigos, num bar do "pueblo", aos domingos de tarde, era o exclusivo  e o mais apreciado momento dos homens.  Entre duas partidas, falavam das dificuldades que um ou outro encontrava na vida diária e aconselhavam-se mutuamente. Apesar das terras ali serem mais generosas do que noutros lados, o trabalho dos campos não passava de um paliativo; o remédio era migrar ou imigrar. Assim, muitos jovens iam trabalhar para as cidades galegas mais importantes ou para as outras grandes cidades espanholas. Os mais corajosos, desenraizavam-se e iam enfrentar todas as dificuldades que se podiam encontrar numa terra alheia e com uma língua desconhecida. Por isto, muitas famílias passavam as festas incompletas. As coisas eram similares de ambos lados do rio.

   Ouviu-se o "un dos, un dos" característico das orquestas e dos grupos musicais. Estavam a regular o som dos microfones e o baile não ia tardar em recomeçar. Principiei a sair da minha letargia. A praça estava a encher-se novamente. Apesar do alarido, as andorinhas, numerosas na praça, passavam por cima da gente em vôo planado e faziam um chilreio enorme. O sol deitara-se mas a gente estava mais quente do que de tarde. O verdinho, em qualquer lado, fazia andar e cantar toda a gente.

   O entorpecimento provocado pela lampreiada e do qual acabara de me liberar lentamente, impedira-me de reparar na ausência do Pachorrego. Estava encostado ao balcão a falar com o Gúlin de Padrenda e uns amigos. Conhecia-o da Notária. Vira-o repetidas vezes no bar do cinema. Diante do Pacho, uma copa. Não havia dúvidas sobre o pagador. O Pepe disse-me que lhe tinha ido pedir boleia para todos. Claro ! Nada fazia ao acaso e sem proveito. O Gúlin era carteiro em Padrenda. Sucedera ao pai que, agora, ajudava a mulher na "tienda" que lá possuiam. Quando havia uma festa (estava em todas) ou que o filho queria sair com uns amigos, emprestava-lhe a carrinha que, ordinariamente, utilizava para os serviços da loja. Alto e forte, sempre de  peito bem saido, era um grande e provocante brincalhão. O pai tinha imenso gosto nele. Além de ser filho único e tardio, contava que se casasse com a "maestra" da aldeia, com quem namoriscava há tempos.

   O Alfredo veio sentar-se.

   — Está tud'arranjado, pessoal. À uma e meia, encontramo-nos aqui no café. Deixa-nos ficar na Ponte, junto da bomba do Pigarra. Os conhecimentos têm de servir pr'alguma coisa, num achais ? –  gostava de mostrar que tinha relações, amizades.

   O Pepe respondeu-lhe com o riso trocista do Woody Woodpecker, o pica-pau dos desenhos animados, que imitava perfeitamente. No meio da algazarra geral, passou despercebido.

   Fui pagar, era a minha rodada. Eu a sentar-me e o Alfredo a chamar bem alto, virado para a porta:

   — "Alcalde", "alcalde", por aqui !

   Dois homens sorridentes, um deles cabo da Guardia Civil, de chapéu de três bicos na cabeça, aproximaram-se de nós. Pelo estilo, via-se que estavam abituados a apertar mãos e a olhar de cima. Entre os dedos fumegava-lhes um bruto "puro". Tinham os olhos brilhantes e a tez rosadinha, premissas de nobre funçanada. O "alcalde", ao mesmo tempo que cumprimentava o Pacho, informava o guarda civil.

   — Es Alfredo, el "periodista" de Melgaço ! Qué tal, hombre ?

   À medida que o "alcalde" nos apertava a mão, o Pacho ia fazendo as apresentações. O João já era engenheiro, o Pepe era proprietário de um stande de venda de automóveis na Vila (coisa que nem existia) e eu andava na faculdade de direito, em Coimbra. Não piamos, tanta foi a surpresa. Depois das cerimónias de cortesia, insistiu com as duas autoridades para que se sentassem e tomassem algo na nossa companhia, o que os dois homens, complacentes, aceitaram amavelmente.

   Vieram seis conhaques Carlos I, o melhor do género. Entre os golinhos do famoso conhaque e as chupadas no não menos conhecido havano, os dois dignitários escutaram o Pachorrego expor-lhes o trabalho que executara como jornalista correspondente do jornal "A Voz de  Melgaço". O programa dos dias de festa fora publicado na edição do dia quinze. Conjuntamente, um artigo que fazia um majestoso e destacado elogio a Arbo e à região,  à sua gastronomia e, em particular, à lampreia do rio Minho. No início de maio, outro artigo daria conta do desenrolamento e da afluência das festas. O "alcalde" ficou hipnotizado pelo relato, movendo apenas o traseiro na cadeira, com o qual fazia um balé. Os elogios que fez ao Pacho eram superlativados. Até gaguejava ao procurar as palavras para lhe exaltar e gratificar o trabalho. O Pacho comprometeu-se a enviar-lhe as duas edições do jornal. A figura não sabia que os seus favores tinham um gosto amargo. Era tarde, o que tinha comido e o que tinha bebido saciara-lhe o estômago, mas, quando o apanhasse na Vila, até a alma lhe havia de comer.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

  

Arroz de lampreia à minhota

 

 

   Chegámos à praça com a barriga sossegada. Havia menos gente e a banda deixara o lugar aos "Cunters", conhecida orquesta galega que já fora a Melgaço. Ali, encontrámos o Daniel Pita, fundador da primeira loja de móveis em Melgaço, em companhia dos irmãos Sentados, de Chaviães. Impecável, como de costume, vestira um fato azul escuro às riscas, o último que mandara confeccionar. O cabelo parecia palha d'aço. Compridinho e bem penteado, ainda que houvesse um vendaval, não mexia de um milímetro, graças à laca que por ele espalhava. Um amigo nosso dizia que, quando o cabelo lhe caisse, caia-lhe todo junto, como um capacete. Já tinham comido uma boa lampreia. O mais tarde às onze e meia, tinham de ir embora pois vieram de carro e a fronteira em São Gregório fechava à meia noite. Era um grande amigo... Lá fomos todos para o café. O Daniel ia pagar a rodada. Contámos-lhes a do café Sical e o corte que fizéramos ao Alfredo. Riram-se de  boa vontade e repetiram-lhe várias vezes para chateá-lo :

   "Bem te lixaram, Alfredo." "Estás a ficar velho, caramba, quem te via e quem te vê !" "Nem parece de ti, pá !"

   Toda a gente se ria, excepto o Pachorrego que se mantinha sério como um guarda republicano e batia ligeiramente com o calcanhar da perna direita no chão, sinal de desagrado. Esperou que nos calássemos e, olhando para nós com um ar velhaco e pérfido, preveniu-nos solenemente:

   — Sabeis, rapazes, o último que me fodeu num nasceu onte, há muitos anos que tem a barba branca !

   Mau vaticínio! Não soube porquê, mas não gostei da segurança, da intonação com que se exprimira, nem do cintilar malicioso dos olhos. Seria dos copos ? Era possível, mas tinha a impressão que tramava qualquer coisa. À medida que o fora conhecendo, aprendera a ter um pé atrás, a não ignorar as suas palavras quando falava deste modo.

   Ficámos mais uns minutos a ouvir os "Cunters". Estavam a fazer uma demonstração que se prolongaria até às dez. Das dez às onze iriam jantar. O sol deitara-se. A  hora de comer a lampreia ia aproximando. Deixámos os nossos amigos e encaminhámo-nos para o bar. Chamava-se "San Jenjo", nome de uma vilita galega à beira mar. Estava quase cheio. As poucas mesas inocupadas de certo que estavam reservadas. Ao balcão, empurravam-se uns aos outros, tanto para beber como para comer umas "tapas". O barulho, que foi uma das duas coisas que mais me marcaram em Espanha, era atordoante. Toda a gente falava alto e ao mesmo tempo. Quem queria ser ouvido, tinha de falar mais alto do que o vizinho e assim sucessivamente. Estavam habituados aos berros, ao barulho e, consequentemente, creio que também estavam imunizados contra a dor de cabeça. A segunda, foi o tutear. Os novos aos velhos, aos conhecidos como aos desconhecidos, todos se tratavam por tu. Para mim, era uma obscenidade. Desde pequeno que me incutiram o respeito pelos mais idosos (era incapaz de tratar o Pacho por tu) e que tratei os meus pais por você. No início, quando nos cafés e nos comércios me perguntavam "Que te pongo?", contrariava-me consideravelmente; depois, fui-me acostumando.

   A travessa estava bem fornecida. A lampreia, sem cortar, para vermos que nem um padacinho lhe faltava. Se não fosse suficiente, havia mais arroz na panela, disseram-nos. Não ficou nada nem foi preciso mais. Comemos como os padres, sem falar. A minha mãe dizia: "Ovelha que berra, bocado que perde." Ficamos empanturrados. A maioria das  pessoas cozinhava as lampreias com bocadinhos de presunto. Ainda assim, e talvez por eu ser do monte, preferia quando estas levavam uma pitadinha de unto fresco. Enfim!  Estava "de p*ta madre" (muito boa), tinham dito os dois casais da mesa do lado. Acabámos com a segunda garrafa de branco e pedimos a conta. Oitocentas e oitenta pesetas com o vinho. O pão era gratuito. Duzentas e vinte pesetas cada um. Perguntámos o câmbio, fizemos a conta em escudos e demos o dinheiro ao Pacho que foi pagar. Comprámos (comprou o Pepe) uma pequena caixa de cigarrilhos para fumarmos enquanto tomávamos café.

   A praça pouco mais de meia estava. Muita gente ainda se encontrava a jantar. Sentámo-nos a meio do café pois à entrada não havia mesas disponíveis. Tomamos café, se tal se lhe podia chamar, e, para ajudar a digestão, uma copa de Soberano que, como a publicidade dizia, "es cosa de hombres". Acendemos os cigarrilhos e aproveitámos aqueles momentos de agradável e efémero usufruto. Fumámos num silêncio eclesiástico, apenas interrompido por um grande arroto do João. Ao Alfredo, com as mãos por cima da pança, como de costume, apenas lhe faltava a sotaina  para parecer um verdadeiro padre. Os altifalantes dos modestos carrosseis e de algumas barracas de tiro, instalados numa pequena rua paralela à praça, propagavam uma música disparate e esganiçada.

 

(continua)

 

MAIS UM ANIVERSÁRIO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

FOZ DO RIO TRANCOSO 42º 9’ 15’’ FAZ 2 ANOS DE VIDA

 

 

 

MELGAÇO NOS ANOS 30

 

 

   O inverno deixava pouco que contar, apenas muitas frieiras nos pés e nas mãos, o nariz sempre pingando fazendo com que a gola e os punhos do casaco ficassem lustrosos de tanto enxugar o pingue. Veio outro verão. Os homens mais novos andavam empolgados com uma grande novidade. A Legião Portuguesa instalava um núcleo em Melgaço para combater o comunismo, grande praga que se alastrava pelo mundo, e na vizinha Espanha já andava fazendo das suas, diziam as pessoas mais velhas. O tenente Lopes, oficial da Guarda-fiscal, foi destacado para instrutor da nova tropa em Melgaço.

   Aos domingos na Feira Nova, os futuros ‘’heróis’’ exercitavam-se na marcha e no manejo as armas, grandes, pesadas e antigas espingardas que vieram de Lisboa. Muita gente ficava de longe apreciando a rapaziada, e a canalha miúda, assanhada, imitava o exército de paisanos. No início não tinham fardamento, era cada um com sua roupa. O João Cataluna, primeiro cornetim da banda de música, passou a ser o cornetim da Legião. Foi grande a empolgação inicial com a adesão de todos os ‘’papo-secos’’, principalmente aqueles que haviam sido dispensados de ir à tropa e desejavam mostrar-se úteis à Pátria. O tenente Lopes decidiu que o adestramento passaria a ser feito exclusivamente nas manhãs dos domingos. Essa deliberação esfriou os ânimos, pois a monotonia da rotina, e logo nas manhãs de domingo, quando todos gostavam de ficar na cama um pouco mais. A frequência diminuía a cada domingo ao ponto de só aparecerem meia dúzia. Revoltado, o tenente Lopes, sentia perigar a sua autoridade e seu cargo. No domingo daquela meia dúzia, foi com eles, armados, de casa em casa, tira da cama os faltosos e levou todos presos para o quartel, que era nos baixos da Câmara, onde passaram o dia.

   Após essa pequena e doméstica contra-revolução, a situação definiu-se: o Gui do António Fernandes, o Franklin da Carneira, o Arnaldo Guimarães, o Manéco do Simão, o Quique do Dr. Augusto, o Lélo do Sr. Aurélio e outros meninos bonitos da terra que tinham aderido pela curiosidade da novidade, desligaram-se, outros, também se desligaram ou abandonaram ou por falta de vocação e só ficaram os idealistas, os empregados públicos, os que pretendiam algum cargo oficial e os registados no Fundo do Desemprego.

   Na vizinha Espanha onde muitos melgacenses iam ganhar seu sustento, estourou uma guerra. Desde algum tempo que a gente mais velha comentava que as coisas por lá não andavam nada boas. As criaturas não se entendiam e o resultado foi aquele. Os tais comunistas, hereges que queriam o que era dos outros, estavam tomando conta do país vizinho e os nacionalistas opuseram-se à pretensão. Era esta a ideia que circulava entre a gente simples, resultado da propaganda oficial. Para os portugueses da raia, a não ser os que tinham familiares no outro lado e por isso se preocupavam, a maioria não deu grande importância. O cenário de guerra era lá no centro da Espanha, e ali perto, na Galiza, sob o poder dos nacionalistas, as coisas estavam mais ou menos calmas. Passou, sim, a haver grande agitação nas relações comerciais informais. O contrabando tornou-se fonte e renda exclusiva daquela gente. Agora era de Portugal que ia para Espanha tudo que representasse alimentação. Melgaço tornou-se grande escoadouro de galinhas e ovos vindos em camiões directos a S. Gregório. Na estrada normalmente deserta até há pouco tempo, agora era uma romaria. Aquela actividade gerava lucros a muita gente, mas directamente nada representava para o Município. O Dr. João Durães, administrador do concelho, mandou que seus fiscais fossem rigorosos na cobrança do imposto indirecto que incidia sobre todas as mercadorias e beneficiava o Município.

   Os donos das mercadorias negavam-se a pagar a liquidar tal imposto, pois alegavam que os produtos transportados não eram para consumo local, estavam em transporte para outro destino, o que era verdade.

   O impasse instalava-se com argumentos de cá e argumentos de lá.

   A guerra civil espanhola recrudescia, as notícias orais de quem conseguia escapar desmentiam as noticias oficiais que os jornais censurados transmitiam. Na Galiza, onde oficialmente não havia embate de tropas, havia fuzilamentos e vinganças por motivos mesquinhos, contava-se. O povo ingénuo de Melgaço só passou a acreditar no que diziam que se passava na Galiza, quando os cadáveres, num cortejo tétrico desciam o Rio Minho, vindos de Espanha. Alguns desses corpos ficavam presos nas pesqueiras, numa tremenda contradição à sua finalidade. Construídas pelos homens para aprisionar os peixes que sobem o rio a fim de se perpetuarem, serviam agora para capturar os cadáveres de homens vítimas da insanidade humana.

   Tinha dias de aparecer dois e três cadáveres. As autoridades melgacenses, interpretando o sentimento cristão do povo da terra, a todos esses infelizes, alguns em adiantado estado de decomposição, proporcionava um funeral religioso como a qualquer cidadão da terra.

   Triste fase do povo do outro lado do rio que a titulo de idealismos políticos, aproveitavam para assassinarem em vinganças por motivos mesquinhos. Mas, apesar da lamentável situação, os portugueses da raia tiravam proveito. Como o dinheiro espanhol estava desvalorizado, o pagamento das mercadorias contrabandeadas, após acabarem os duros de prata, era em ouro e objectos de valor.

 

 

FÉLIX IGREJAS

 

Publicado em A Voz de Melgaço

 

ESTRELLA MORIBUNDA

 

Aquella Rosa branca, a flor mais viva

Dos jardins olorosos de Granada,

Já não parece a flor enamorada,

Triste por viver só, viver captiva.

 

Outr’ora, em seu mirante, pensativa,

Muitas vezes a luz da madrugada

A via entre boninas, enlevada

Nos sons d’uma guitarra fugitiva.

 

Agora, a Beatriz do Poeta abstruso,

A Elleonora das canções do Tarso,

A Natércia gentil do cantor luso,

Sol perdido em nevoeiro escuro e baço,

A cîtharas prefere a roca e o fuso,

Aos meus cantos presuntos de Melgaço

 

Publicado em A Folha (1868/1873) 

 

Coimbra 1872 por João Penha

 

Recolhido da net: http--purl.pt

 

ILÍDIO DE SOUSA 

 

 

  

Praça principal de Arbo

 

 

Festa da lampreia IV

 

 

   Levámos uns minutos para conseguir uma mesa bem colocada. Sentámo-nos, finalmente, à entrada, junto duma das portas do café. Dali, podíamos observar a multidão amontoada na praça e uma parte do palco, no qual os ranchos  espanhóis e estrangeiros iam suceder-se alternadamente. Estava-se bem.

   O ambiente festivo, extraordinariamente aberrante, não deixava ninguém indiferente. Grupos de esplêndidas "muchachas", radiantes de vida, maquilhadas apenas para fazer sobressair a beleza do rosto e não para dissimular os defeitos ou a fealdade, atraíam mesmo a atenção dos mais pacatos ou distantes. O olhar sorridente e excitado saltitava em todas as direcções. Procuravam namorisco. A mulher espanhola tinha uma certa soberba, qualquer coisa de singular. Bastava apreciar os casais de meia idade, já bem instalados, para constatar a afeição e o gosto que os homens lhes expressavam. Com efeito, não escondiam o regalo ostentoso que sentiam quando passeavam com elas ao domingo, de braço dado na rua. Tinham escolha. A guerra civil fizera bascular bastante o número de homens em Espanha. Aínda hoje se verifica esta desigualdade.

   — Bem ! Como é ? Num viemos a Arbo só p'ra nos emborracharmos... – a boca era do João. O Pacho fez uma carranca e passou os dedos  pelo queixo. Percebeu que, indirectamente, lhe  era dirigida – Log'à noite, comemos uma lampreia ou nam?

   — Ai ai ! Entam que viemos fazer aqui ? – perguntou por sua vez o Pepe – Mas cada um pag'á sua parte, num é ? Tu tam'ém alinhas, Alfredo? 

   — Se calhar gastou o dinheiro todo no Sical e agora está teso com'um carapau fresco ! – fustiguei.

   Não podia ser mais directo. Rimos. O Alfredo, as costas bem apoiadas na cadeira e os dedos das mãos cruzados por cima da barriga, estava a ficar irritado perante os nossos risos.  Além de lhe  termos feito abortar  o projecto, aínda era alvo de gozo ! Como todos, gostava de gozar, mas não gostava de sê-lo. Não pôde aguentar mais e, colérico, preveniu-nos, metade em português e metade em espanhol:

   — Ide-vos foder mas é. "Ya vos caeréis, como dice el  xicano !"

   Mudamos de conversa e pedimos mais uma San Miguel, pois a primeira não fora suficiente para afogar a sede. O "cuba libre" que, indubitavelmente e havia muitos anos, era a bebida preferida da juventude espanhola, proliferava até saturar por cima das mesas e do balcão do café. Calámo-nos e deixámo-nos estar a ouvir a música e a apreciar o pessoal. Mais logo, encomendaríamos a lampreia, pois não queríamos chegar à hora e apanhar uma decepção.

   Resolvemos ir dar uma volta pela praça, ver as "chiquitas". O Pacho ficou. Aínda estava "cheio de sede" e esperava, sem dúvidas, encontrar alguém que lhe pagasse uns copos. Precisava recuperar o perdido. Lá fomos, mas depressa nos arrependemos. Tivemos de abandonar prontamente e ficar por ali, pois a tarefa era demasiado árdua e tédia. Além disso, certos espanhóis, com os copos, eram indelicados, nada obsequiosos. Ficamos a pouco mais da metade da praça. No palco, actuava um grupo de "mariachis", músicos mexicanos. Mais tarde, segundo o cartaz que víramos à entrada da vila, poderíamos apreciar o rancho regional "Os Esticadinhos", de Cantanhede. Tínhamo-nos rido ao ler o nome que achávamos cómico. Acabaria com a dinámica Banda de Música Municipal de Marin.

   Ali permanecemos de braços cruzados, sem reparar na hora. Grandes aplausos para os mexicanos. Começou o rancho português. Os trajes típicos que os componentes dos ranchos vestiam eram de uma fineza e uma beleza inigualável. Com a música, os trajes, as danças e os instrumentos, tentavam manter a tradição, a cultura ancestral. Lutavam contra o esquecimento. Calmamente, foi correndo a tarde. Sob os aplausos, o rancho deixou o lugar à banda de música, o rock  dos mais idosos. Ia a banda na segunda música quando vimos o Pacho diante de nós, sem sabermos de onde saíra. Tinha ares de quem estava melhor, mais distendido.

   Fomos encomendar a lampreia. O Alfredo acabou por também alinhar. Entrámos  num bar onde, segundo o Alfredo, faziam uma boa lampreia com arroz (a maioria fazia-a à bordalesa). Pediram-nos oitocentas pesetas. O Pacho achou que era um bocado mais cara do que no passado ano. Nós não tínhamos a mínima ideia, pois era a primeira vez que vínhamos à festa da lampreia. Em todo caso, que nada baixava, já se sabia. Dirigimo-nos a outro bar. Exactamente o mesmo preço. Achámos que não valia a pena procurar mais e voltámos ao primeiro. Encomendámo-la para as nove e meia (em Espanha era uma hora mais e os espanhóis só começavam a comer a partir das dez) mas, para termos a certeza de que  comeríamos o arroz a fugir, como tem de ser, estaríamos ali um quarto de hora antes. Passava  das sete e meia espanholas. A cerveja pusera-nos as tripas a gargarejar. Tivemos tempo de saborear sossegadamente umas finas fatias de "xamón" que o homem dizia ser da Cañiza (?). Não pudemos contradizê-lo pois não éramos assaz conhecedores para podermos determinar a origem. O tinto com que o acompanhámos, da região, pintava bem o interior da tigela, mas não valia o do Telmo.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   O cabrão ! Era esse o plano. Um quilo de café que cravara ou pifara ao Zé António do Manuel da Garagem para lhe fazer abrir as portas da adega ! Não era homem para gastar dinheiro com quem quer que fosse. O Pepe fez uma careta. O João começara a encaracolar, com o dedo, uma mecha de cabelo na nuca. Reagia sempre assim quando se sentia contrariado ou enervado. Estava visto que não lhes agradava o rumo que o Pacho dera à visita.

   Ficámos os três indignados e irritados com o Pachorrego. Queria embebedar-se à custa do irmão do Pepe ! Pelo visto, tinha premeditado a comédia na sua totalidade. Portanto, havia tempos que tentávamos fazê-lo conter e superar a tentação ávida e depravada que sentia pela vigarice. Em vão ! A existência crítica que tivera e que, em menor parte, ainda tinha, não bastava para justificar o ardor pela trapaça que tinha arraigado.  

   Entrámos para a adega. Ai não ! Apenas o Telmo subiu as escadas, o cão, de orelhas erguidas em sinal de apreensão, saíu da casota e sentou-se a meio do quintal, não tirando mais os olhos de nós. O mais pequeno dos nossos gestos era por ele acatado. Estava bem domado.

   Bebemos uma tigela de tinto (bem bom, diga-se de passagem) e ouvimos o Telmo contar-nos que o trabalho para a serração apenas consistia em ir ao monte cortar e acarretar os pinheiros. Era um trabalho temporário que conjugava com o do campo. Depois de um simples olhar, sem trocarmos uma palavra, resolvemos boicotar o cenário mesquinho que o Pacho preparara. Exprimimos o nosso reconhecimento ao Telmo, o gosto que tivéramos em visita-lo e decidimos arrancar para a festa. Não queríamos ser cúmplices da manha do Pacho. Bastara termos perturbado uma reunião familiar num dia de festa. Não foi do seu agrado pois queria beber mais. Jogou a carta do ingênuo admirado. Em vão. Foi o seu turno de ser surpreendido. Amuou mas, apesar de contrariado, acabou por seguir-nos. O amuo não duraria muito tempo.

   Pusemo-nos a caminho. O silêncio só era entrecortado pelo estalar das pinhas e pela respiração agitada e ruidosa do Pacho.  Pouco depois, campos de milho e de batata substituiram o pinheiral que ladeava o caminho. A partir dali, o sol não nos falhou. Latadas mais baixas do que nos nossos lados, carregadas de enormes cachos verdes sulfatados, esposavam a forma dos campos. Para chegarmos à estrada que vem de Orense e atravessa Arbo, continuando em seguida para Vigo, tivemos para quinze minutos e mais cinco, depois, para atingirmos o centro. A roupa aderia ao corpo. O Alfredo, que passara metade do caminho a espanar a fronte com um lenço amarrotado, devia estar ensopado até aos pés.

   Passamos da quietude apaziguada do caminho deserto, à balbúrdia borrascosa da rua principal, abarrotada de gente, que falava, ria, berrava e empurrava. Os automobilistas que necessitavam atravessar Arbo, faziam uma algazarra infernal com o "klaxon" para que as pessoas lhes abrissem caminho. Os insultos mais correntes que faziam parte do quotidiano e da cultura dos espanhois como  "maricón", "hijo de p*ta",  "me cago en la Virgen", "joder, tio"... eram proferidos assiduamente. Estas expressões ofensivas e grosseiras são, porém, ambivalentes, conforme o contexto em que são empregues e o acento com que se pronunciam. Por isso, a sua importância ofensiva era relativizada. A bagunça era total. Ninguém estranhava que, de vez em quando, alguns andassem ao murro. Era isto, talvez, que fazia das festas espanholas e, em especial, das galegas, umas festas atraentes e cativantes.

   Na rua principal que ia dar à praça do Concelho, a única e grande praça de Arbo,  só havia bares e restaurantes. Nos dias da festa, mesmo os particulares faziam dos fundos restaurantes e bares. Em todas as portas se viam cartazes onde se lia : "Hay lampreas". Tanto as vendiam para comer ali como para levar e cozinhar na casa. O cheiro predominante e que inundava profundamente as narinas era, sem dúvida alguma, o do famoso e delicado peixe. Todavia, para os que não gostavam (e havia!), que não tinham meios suficientes para dispender ou que se encontravam sozinhos (vendiam a lampreia inteira, unicamente), os pratos de substituição,  também afixados nas portas, não faltavam : "orella de cerdo cocida, pulpo, chuletas de ternera, calamares, callos, cordero asado a la parrilla, angulas al ajito..." A escolha é que era embaraçosa. Os vinhos não tinham qualquer defeito. De salientar o branco de que todos gostavam e bebiam. Era Alvarinho mas, naqueles tempos,  muito poucos o conheciam. Ninguém podia adivinhar que, em pouco mais de uma década, o cultivo do Alvarinho invadiria as margens do rio Minho, substituindo-se a antigas culturas.

   Dirigimo-nos para a praça onde a horda de gente se deixara enfeitiçar pela actuação de um típico rancho galego. As pessoas deleitavam-se ao som das gaitas de foles e dos bombos que faziam dançar uma dúzia de parelhas num amplo palco. O nosso destino era um café (o único de Arbo, digno do nome) que ali se situava. Tínhamos a boca ressequida. Umas San Miguel fresquinhas e umas cadeiras para nos sentarmos e repousarmos as pernas uns momentos, eram a nossa prioridade.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Ao empreendermos a segunda curva a partir dali, avistamos, do lado esquerdo, vários carros estacionados diante de um alto e comprido muro de pedra que escondia uma casa deixando unicamente entrever uma parte do telhado.

    Quase a meio do muro, um imponente portão de ferro forjado. A casa estava isolada no meio do pinheiral. Apenas nos tínhamos aproximado do portão que um cão se pôs a ladrar delatando a nossa presença. No interior, um amplo quintal onde o mostrengo, de pêlo curto e preto, preso por uma corrente a um arame, podia correr de um lado para o outro do pátio. Devia pesar perto de cinquenta quilos. Impunha respeito. Ao fundo, a casa, também de pedra. No rez-do-chão, três grandes portas duplas das quais duas estavam escancaradas. Por uma, via-se um carro de bois, um arado moderno, um monte de lenha cortada e sêca e diversos utensílios do campo; pela outra, várias pipas e pipotes, de dimensões sortidas, dispostos lado a lado e a meia altura. Do tecto pendiam dois presuntos e algumas lampreias secas. A adega estava guarnecida. A terceira porta, pelos restos de estrume e palha que se podiam ver diante, sem dúvida que era a da corte. Por cima, era onde habitavam.

   Abriu-se uma porta no primeiro andar e vimos aparecer um homem duns quarenta anos, cabeça desguarnecida e queimada pelo sol.

   — Qué passa ?

   Foi o Pacho quem respondeu, falando alto, para ser ouvido, pois o cão não se calava.

   — Nem conheces os amigos nem nada. Estou a ver que num foi só o cabelo que perdestes, "aldeano" !

   O homem, bastante corpulento, ao reconhecê-lo riu-se e, levantando os dois braços, berrou :

   — É portugueses dum caralho ! Entonces os gardas deixaramvos pasar ?

   Ao mesmo tempo desceu e mandou calar o mastodonte, apontando-lhe uma casota que se encontrava na esquina direita do portão. Abriu-o, cumprimentou-nos e mandou-nos entrar.

   — Bem sabes, Telmo, que quem anda comigo pod'andar tranquilo. Onde quer que va, tenho sempre carta branca, meu amigo – sempre o mesmo gabarolas, o Pacho.

   — Bueno,  bueno, deixate de tretas, vacilon, qu'á ti coñeço t'éu ! É logo, venís pr'á festa, ou ? Hombre, claro que si ! – concluiu.

   O homem falava uma miscelânea de galego e de castelhano.

   Olhamos todos para o cão, deitado dentro da casota e que não tirava os olhos de nós. Reparando que hesitávamos, incitou-nos:

   — Entrade, qu'ô can solo morde cando cerr'á boca - e riu, satisfeito do gracejo.

   Entramos timidamente, sem nos afastarmos muito dele.

   — Vimos à festa e resolvemos vir fazer-te uma visita – replicou o Pacho - Olha, conheces este ? – apontou para o Pepe que se pôs a sorrir.

   Não, não o conhecia. Era natural. Vira-o em Melgaço, um par de anos antes deste ir para a Guiné, onde passara perto de três anos. Regressara há mais de um ano. Fisicamente nada tinham em comum, à primeira vista. Portanto, a semente era a mesma, embora se tivesse desenvolvido em terras diferentes. O Jacó era um sementeiro excepcional.

   — É o teu irmam, caralho, o pintor. O que trabalha com o outro teu irmam que tem uma garage, o Alípio...

   Eram os três meios irmãos. E, designando o João:

   — Est'é o teu primo João, o do Horacinho !

   — Coño, que non vos conocia ! Fai tanto tempo... É logo ?

   A emoção e a entoação  não eram fingidas. Via-se-lhe nos olhos. Fazia parte de uma numerosa família, dissipada pelos quatro cantos da Terra que, apenas no outro Mundo, e pela primeira vez, se reuniria na sua integralidade.

   Os dois irmãos e os dois primos voltaram a apertar as mãos, mas, desta vez, com ênfase e amizade, dando mutuamente umas palmadinhas de carinho nas costas.

   — Telmo, temos uma coisa p'ra ti - anunciou o Pacho, prontamente. – É a prova que num viemos por azar.

   Temos ? Mau sinal. Olhou para nós e piscou-nos o olho.  Não foi nada, mas mesmo nada do nosso agrado. Conhecíamo-lo demasiado bem. Retirou o casaco e entregou-o ao João. No sovaco esquerdo, preso com um fio ao ombro, trazia um quilo de Sical. Fez deslizar o fio do ombro até à mão, desfez o nó que atava o saco de café e entregou-o, em seguida, ao Telmo. Este, confuso, agradeceu como pôde. O Pacho apanhara-o de surpresa.

   — Bueno, invitabavos arriba pero xa non cabemos nosoutros... Hay moita xente da família é amigos...

   O homenzinho não sabia como se desculpar. O que podia fazer um quilo de café!

   — Tranquilo, Telmo, tranquilo. Num viemos p'ra t'incomodar. Olha, traz-nos umas tigelinhas qu'a tu'ádega com as portas abertas, parece qu'está  chamar por nós.

 

(continua)

 

FESTA DA LAMPREIA I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Ano modificado

 

   Estávamos a chegar ao final de abril. A primavera manifestava-se com exuberância. O sol, deslumbrante e acariciante, convidava para o passeio. A vegetação, a nossa maior riqueza, já começara a desabrochar e a trajar-se com cores das mais lindas e sortidas.

   Domingo. Combinando a beleza do dia e a voracidade que o pensamento da lampreia nos inculcava, eu e o meu amigo João resolvemos ir à sua festa, a Arbo, em frente ao Peso.

   Às duas da tarde, depois de comermos com ligeireza, apanhamos a camioneta que ia para Monção. Saímos no Peso, junto do café do Castrejo. Fora, havia duas mesas, uma de cada lado da porta de entrada. À sua volta sentados, os habituais fregueses que tiravam proveito da refrescante sombra engendrada pelos idosos e frondosos plátanos. Entramos para tomar café e dar uma vista de olhos, antes de nos metermos a caminho, rumo ao rio. Transpusemos a porta e esperamos uns segundos, tempo necessário para os olhos se adaptarem à penumbra. Numa esquina, sentados à volta duma mesa,  deparamos com o Alfredo Pachorrego e o Pepe do Jacó, primo do João. Abancamos com eles e pedimos café. Também iam à festa e decidimos fazer a caminhada juntos.

   Assim foi. Chegamos ao posto que fazia ofício de fronteira e subimos as escadas. Como ninguém tinha passaporte, pedimos um "passe". Não foi com muita vontade, mas acabaram por nos fazer um a cada. Podiam ter-nos feito um só, para os quatro, que nos ficava mais barato, mas não. Já era um favor deixar-nos passar, disseram. Naquela época (em pleno Caetanismo), como sempre fora, tudo se vendia, principalmente os favores. Por um lado, foi graças à presença do Pachorrego que nos "deram" os passes. Este, além do palavreado, fazia parte da família dos pides, indirectamente. A validade dos passes era de vinte e quatro horas.

   Aproximamo-nos do rio onde havia mais quatro pessoas à espera. A batela estava "arrimada"do lado de lá e dela saía gente.  Uma vez do lado de cá, entramos os oito nela e, sem tomar fôlego, o homem voltou a remar energicamente no sentido contrário. Havia que ser sólido e vigoroso para vencer a robusta corrente provocada pelas numerosas pesqueiras e pelos colossais penhascos que adornavam aquela parte do rio. No lado espanhol, não vimos um único carabineiro. Dia de festa, ao contrário dos portugueses, a passagem era livre.

   A pé, chegamos à estação. O barulho proveniente dos dois bares ali existentes, era uma amostra insignificante do que iríamos encontrar. Dali até à vila, em cima, tínhamos para uma boa caminhada, sempre a subir. Com calma, fomos andando. Havia muito que estávamos habituados às longas marchas. À  frente, o Pepe e o Pacho, sempre curvado. Os braços pendiam-lhe no vazio fazendo-o parecer um gorila quando caminhava. Sempre o conheci com esta postura. Diziam que era devida ao peso da enorme barriga. Tinha a segunda maior da Vila, unicamente ultrapassada pela do Negos. Ninguém se admirava  que tivesse  de se pôr diante dum espelho para poder ver o membro genital. Atrás, eu e o João. Andámos até um sítio onde a estrada bifurcava à esquerda pelo meio de um pinheiral. Era um simples caminho de terra pelo qual dois automóveis teriam grande dificuldade em cruzar-se.

   — É por aqui – disse o Pacho - Por aqui é mais perto, é um atalho.

   Sem qualquer contestação e desleixadamente, seguimos o Pachorrego. No céu  não havia uma núvem e, vista a hora, havia muito pouco que o sol abordara a descida. Os pinheiros iam-nos resguardando dos raios solares. A marcha e o calor, apesar de moderado, não tardariam em humedecer-nos a testa. Aqui e ali, ouviam-se estalar pinhas. O cheiro a resina era pronunciado e omnipresente.

   Pouco mais de dez minutos haveria que tínhamos deixado a estrada quando deparamos com montes de tábuas, dispostas em castelos, a secar. Logo a seguir, um hangar bastante grande onde, ao lado, dezenas de troncos deviam esperar a vez de passar pelos dentes da serra. Um atrelado carregado de troncos cortados para lenha jazia ao lado dos restos da carcaça de um carro cuja marca já não se podia decifrar. Um gigantesco monte de ripas e de cascas de pinheiros completavam o quadro consternador.

   — Ai ai ! Num é pr'áqui que mora o méu irmam Telmo, Alfredo ? – perguntou o Pepe – Tinham-me dito qu'era perto duma serraçam...

   — É pouco mais à frente. Trabalha p'ra esta serraçam. Vamos visitá-lo, nam ? É festa ou que caralho ?

   Faríamos uma paragem na casa do meio irmão do Pepe e, logicamente, meio primo do João. O Jacó não devia saber quantos filhos tinha em Portugal e na Galiza. Os conhecidos ultrapassavam a dúzia.

 

(continua)

 

O SE TÓNIO IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gave

 

   O homem não reagiu. Então, voltou a berrar-lhe ao mesmo tempo que, guardando uma certa distância, lhe mexia na barriga com a ponta do pau. Nunca se sabe ! O homem podia ser imprevisível.

   Acabou por abrir os olhos. Não sabia onde estava. Olhou para a minha mãe que voltou a repetir-lhe a injunção. Lentamente, pôs os pés no chão e sentou-se na cama. Só à segunda tentativa é que se levantou. Conseguiu afastar a cortina e saiu aos tropeços pelo corredor. Apenas transpôs a porta, a minha mãe fechou-a e tirou a chave.

   Foi ao quarto do sr. António apagar a luz. Continuava paralisado, na mesma posição. Disse-lhe:

   — A ber se o home nom bem outra bez, sr. António !

   Não teve resposta. Foi deitar-se.

 

   Teve que limpar os olhos com um guardanapo de papel. Eu vivia a cena com ela. O quadro não podia ser mais explícito e extravagante. Pena não ter acordado!

   — Bê lá tu qu'eu nem esperei qu'o home descesse ! Podia ter caido polas 'cadas abaixo !

   Assenti com a cabeça. Perguntei-lhe:

   — E o sr. António, viu-o, hoje de manhã ?

   — Bi ! Chegou ali à porta é dicho-m'a rir: "Ô home foi-s'embora, sra Esp'rança, mas eu nom dormi em tod'á noite!" Nom podia mais, meu filho! Bia-o deitado co'as mans cruzadas porriba do peito, sim mexer, como se nom estubera ali ! Já muito que me nom ria tanto ! – o riso provocava-lhe tosse - Nom sei como nom cagou na cama!

   Encostava a cabeça no meu braço e ria-se. Não me lembrava de ter visto a minha mãe assim. Comprendia-a. Fora corajosa, como sempre. Não se abandona Parada com seis filhos às costas sem o ser.

   — E quem seria o homem, mãe ?

   — Espera que nom t'acabei de contar !

 

   De manhã, apareceu à pensão a mulher do Justino do "Nosso Café", a Fátima. Tinha umas dúvidas e perguntou à minha mãe se não lhe tinha passado nada de especial naquela noite.

   — É porque me bem a mim perguntar isso ? – inquiriu-lhe admirada.

   Um irmão dela fora convidado pelo Zé Esteves, filho do Zéca da Cabana, para vir, no fim de semana, às festas da Peneda, contou-lhe a Fátima. Tinham-se conhecido na Guiné, durante o serviço militar. A irmã, na casa, não tinha cama para ele. Como o cabo Teixeira e a família iam para a Frieira, na Espanha, terra da mulher, onde possuiam uma casa e umas terras que ela herdara, perguntou-lhes se o irmão podia ir dormir à casa deles naquela noite. Deixaram-lhe, pois, amavelmente, a chave do apartamento. Os dois amigos deviam ter passado a tarde e a noite na Peneda a comer e, sobretudo, a beber. Quando chegaram à Vila, quase às quatro da madrugada, estavam num estado deplorável. O irmão apareceu-lhe à casa a cambalear como nunca tinha visto. Com muita dificuldade, acabou por dizer-lhe que fora à casa do Teixeira para dormir, mas que havia lá gente e que o tinham posto fora.  Impossível, pensou ela. E foi verificar, apesar de saber que ninguém podia lá estar. Foi, então, que a imaginação a fez vir perguntar à minha mãe se ouvira algo de anormal naquela noite.

   A minha mãe contou-lhe o sucedido. Ao descrever o indivíduo, as dúvidas que a Fátima tinha esbanjaram-se. O homem, embriagado como estava, quando se encontrou no patamar, diante das duas portas, enganou-se. Em vez de abrir a porta esquerda, abriu a nossa, a que tinha a chave na porta, e foi ter ao quarto do sr. António. 

    A Fátima, envergonhada, insistiu com a minha mãe para que não fosse dado eco ao acontecido.Ao meio dia, quando o sr António estava a almoçar, veio pedir-lhe que  desculpasse o irmão pois este ainda não estava em condições de poder vir fazê-lo pessoalmente.

   — Aquilo nom tub'importância, mulhêr ! – sossegou-a o sr. António, descontraidamente, e com um enorme sorriso - Atê já me tinha esquecido.

   Não tivera importância, não. Ouvir um desconhecido entrar e senti-lo deitar-se ao seu lado na cama, às quatro da madrugada, é coisa corrente, ordinária, claro.  Matreiiiro, se Tónio ! O susto que apanhara não devia de ter sido pequeno. O mais importante, devia pensar, era que não se soubesse. Nem sequer cagara na cama...

   Tive pena não poder contá-lo ao meu amigo, o Zé Castro.

 

   O tempo foi passando e fez o seu trabalho. Puxado pela terra mãe, regressou à Gave onde ainda viveu agradavelmente uns aninhos. Todos os dias, depois de almoçar, dormia uma sesta numa cadeira de balanço. Um dia, esqueceu-se de acordar. Ficou a sonhar eternamente que ia p'rá Fonte da Vila, p'ra uma sombrinha, com uma mulher um bocado peluda nas pernas...

   Um saudoso abraço, se Tónio !

 

   Agosto do ano 2009.

 

   António El Cambório. 

 

O SE TÓNIO III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Peneda

 

 

   Eram umas festas que sabiam conservar o carácter excepcional que as caracterizava. Gostava delas porque sabia o que ia encontrar. As tendas típicas  de pano com os brinquedos de plástico multicores que me esguicharam a imaginação quimérica da infância, as velhotas que, em barracas improvisadas,  vendiam o café que preparavam e tinham quente por cima de um fogareiro a petróleo e que serviam a aguardente num espesso e enganador cálice (copa), os abundantes cantadores ao desafio e tocadores de concertina que davam a cadência à cana verde...  Nada faltava. À noite, os petromax iluminavam as tendas.

   A minha mãe contou-me que, quando era moça, nas romarias da Peneda, os rapazes, de várias aldeias, desafiavam-se e lutavam com paus para impressionar e conquistar a simpatia  das raparigas. Excitados pelas moças, às vezes, a coisa punha-se séria. Foi a única pessoa que ouvi falar disto.

    Tudo me puxava para aproveitar um dos últimos dias de estio e ir à Peneda. Só ou com colegas, ia saborear uma das muitas apetitosas iguarias, respirando o ar puro das montanhas e observando a onda sem fim de gente hilariante de felicidade.

   O sábio dizia que, para se fazer algo pelo Mundo, devia-se começar por subir à montanha e olhar para ele.

   Passara um fim de tarde e uma noite agradáveis na Peneda. Quando me deitei passava das duas da madrugada de domingo.

   Levantei-me tarde e bebi apenas uma pequena tigela de cevada, na cozinha. Não tinha fome e, além disso, também não tardaria em comer. A minha mãe que estivera a mexer qualquer coisa numa panela, tapou-a, arrumou a escumadeira de que se servira, e a rir-se, disse-me, agarrando-me no braço:

   — Bem-t'assentar ali comigo que te bou contar algo !

   Sentamo-nos ambos lado a lado, num banco de madeira comprido, e esforçando-se para não rir, começou:

   — Olha, inda nom parei desde que me lebantei. Até me deu uma pontada – custava-lhe controlar o riso – Êl tu nom oubistes barulho ont'à noite ?

   Não, não ouvira nada. À noite, a mim e aos hóspedes sentia-nos sempre entrar. Ninguém podia dar um peido sem que ela ouvisse. Eu, apenas me deitava, ficava a dormir. A casa podia cair. Era o desleixo juvenil. Mas, fosse qual fosse a hora a que tivesse que me levantar, o despertador não era necessário.

   Já eu me deitara, contou-me, quando ouviu mexer ruidosamente na porta de entrada. Alguém tinha dificuldade em abri-la. Por fim, conseguiram, fazendo-a bater contra o muro. Quem era, cambaleava e chegou a bater nos lados do corredor. Olhou para o despertador : quatro menos quarto ! A seguir ao quarto dela, do mesmo lado, era o do Sacristão, guarda-fios que fora à terra. E ao fundo do corredor, em frente, o do sr. António Ferreiro que se deitara a seguir a ela. Não havia mais ninguém. Começou a ficar preocupada. Quem fosse, só podia ir para o quarto do sr. António, pois uma cortina servia-lhe de porta. Lembrou-se do filho, o Josué, que viera da França para passar o mês de férias na terra em companhia dos seus. Não era a primeira vez que vinha ficar com o pai, de regresso duma festa. Evitava ir de noite a pé de Pomares à Gave. E como havia a Peneda... Levantou uma orelha e pôs-se à escuta. Normalmente, se fosse ele, falava um pouco com o pai. Nada. Nem uma palavra. Além disso, quem entrou devia vir bêbado. O Josué não era desses. E se tivesse tido um acidente com o carro ? Esperou mais uns instantes, mas, por fim, resolveu ir ver. De outro modo, não podia dormir. Pegou no cabo de uma vassoura que tinha sempre à mão no quarto e, evitando de fazer barulho, foi encostar-se à cortina a ouvir. Grande silêncio. Então perguntou, a meia voz:

   — Êl quem entrou pr'aí, sr. António ?

   Passaram uns curtos segundos.

   — Ôlhe qu'eu nom sei, sra Esp'rança !

   Ainda mais intrigada, afastou a cortina e acendeu a luz do quarto. O sr. António estava deitado de barriga para o ar. Tinha as mãos cruzadas por cima do peito e dos cobertores  que quase lhe chegavam ao pescoço. O olhar tinha-o preso algures no tecto. Não mexia. Parecia um morto.

   Ao lado dele, por cima dos cobertores, e também de barriga ao alto, um homem de menos de trinta anos. Parecia um bicho. Cabelos e barba de vários anos, estava vestido e calçado. Dormia profundamente.

   — Êl quem ê esse home qu'est'aí na cama ? – perguntou a minha mãe.

   — Eu nom lhe sei, sra Esp'rança – respondeu sem mexer.

   Sem hesitar, o cabo de vassoura agarrado com as duas mãos, berrou-lhe:

   — Ponha-se-me lá fora imediatamente, meu senhor, oubiu ?

 

   (continua)

 

O SE TÓNIO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Estranhamos, mas, finalmente, era natural que ficasse admirada. Havia anos que vivia com dois filhos num moinho, perto de Cavaleiros. A indigência em que vivera até que a minha mãe lhe estendeu a mão, tinha-a insensibilizado sentimentalmente. Não podia adivinhar nem imaginar o significado e as consequências que um acontecimento destes podia ter no monte.

   O que ficara a saber permitira-me, mais tarde, compreendê-lo melhor.

   Dois filhos maiores que estavam na França, um casal, tentaram tudo para reuni-los. Chegaram a realizar um encontro entre os dois na pensão. Não conduziu a nada. 

   Fora o Zé Castro que lhe fizera os abreviamentos e começara a tratá-lo por se Tónio quando o cumprimentava, cada vez que o cruzava.

   — É se Tónio, 'tá bom ? – e levantava a mão aberta, como os índios.

   Coisa que não desgostou ao sr. António. Em breve, a juventude tratava-o toda assim.

   Um dia, viu-o em Monção, na rua das Caldas, na companhia de uma mulher. O malandro, logo que o encontrou, aproveitou para caçoá-lo. Estava ele à tardinha no "Nosso Café", sentado diante de um galão, a restaurar-se, depois de ter fechado a loja. O Zé entrou, parou a meio e disse-lhe, prolongando a segunda sílaba da última palavra:

   — É se Tónio, você é um matreiiiro ! 

   E seguiu para a sala adjacente onde se foi sentar ao balcão no primeiro banco. Sabia que o se Tónio não tardaria. Assim foi. Este chegou à entrada da sala e, sério, meio ofendido, inquiriu-lhe num tom seco:

   — Entom que foi, home ?

   O Zé riu ao ver-lhe o ar sisudo e, com simulada expressão admirativa e ciumenta, contou-lhe que o vira em Monção, na companhia de uma boa mulheraça. Então, fez um grande sorriso e respondeu-lhe, querendo mitigar o sucesso:

   — Nom hai nad'áli ! Ê um'ámiga !

   O caso é que este episódio fortuito, mas ufano e lisonjeiro para ele, foi também estimulante. Fê-lo sentir-se normal, idóneo. As cenas  com mulheres iam repetir-se invariavelmente, para a sua e a nossa grande satisfação.

   Uma altura que tínhamos ido tomar café juntos, muito me ri com a que me contou. Disse-me:

   — N'outro dia, estab'eu na loja é beu uma de lá de riba. Qu'ria cumprar uma masseira é nom lhe chegab'ó dinheiro. Er'óm bocado peluda nas pernas, mas papab'ó como sucre ! Entom eu diche-lhe: "Ó mulhêr, dás-m'o que tês é bamos ali pr'a uma sombrinha um pouco é despois lebas a masseira !" Assi foi. Fomos pr'a um campo na Fonte da Bila. Ó rapaz, nom te conto mais!

   Dissera tudo. Deu um toque na parte frontal da aba do chapéu, levantando-o e puxando-o para trás ao mesmo tempo. O sorriso quase lhe fazia tocar os cantos da boca nas desenvolvidas  orelhas. Os olhinhos eram dois traços. Tinha mesmo cara de finório. Tirou um "Provisórios" do maço e acendeu-o. Estava satisfeito, inchado.

   O que acontecera na Gave fora um incidente, um facto acessório do qual ele não tinha responsabilidade alguma. A sua reputação estava feita. Os da Vila sabiam que assegurava. Os gavieiros que ali viviam, de certo que já se tinham encarregado de propagar os seus talentos amorosos até à terra. Que fosse apregoado o mais alto possível e levado às mais longinquas terras gavieiras: a mulher do António Ferreiro pusera-lhe os cornos, mas, por falta de gaita, não fora!

   Não havia três anos que se instalara na Vila e já tinha uma casa quase finda. Situava-se no Rio do Porto e, como que predestinado, ao lado da do Ferreirinho. De dois pisos, preparara a fachada dos fundos com duas enormes montras de espesso vidro. Dariam para establecer qualquer tipo de comércio. Fora para os filhos que mandara construir a casa.

   Passava na Vila o quarto ano. Toda a gente o conhecia, estimava e respeitava. Para mim, era um amigo único. Sabia que podia contar com ele.

   Tinham começado as festas da Peneda. As excursões de portugueses e de espanhóis sucediam-se. O engarrafamento à entrada e à saída do santuário era quotidiano durante os últimos três dias. Os espanhóis, quando regressavam de lá, faziam uma alta no Terreiro da Vila. Como vinham da província de Orense, Melgaço era a única vila que lhes ficava no caminho. A matrícula, assim como o nome lateral da companhia dos autocarros, eram ilegíveis, tanto era o pó. A estrada ainda não fora alcatroada. Os da de Pontevedra paravam em Valença, por onde passavam. Era uma romaria há muito apreciada pelos nossos vizinhos.

   A primeira vez que lá fui, foi com o meu pai. Tinha onze anos. Lembro-me de dormirmos no meio de várias pessoas, num dos cartéis, por cima de um monte de paveia. Éramos todos de Parada.

 

(continua) 

 

O SE TÓNIO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Antiga Pensão Parisiense

 

 

   A Pensão Parisiense situava-se na Rua Velha, num prédio de dois andares pertencente ao Teixeira de Monção, cabo da guarda fiscal. Tinha duas grandes portas duplas e uma vitrina no meio. Uma das portas, de ferro, dava para a sala de comer e para a cozinha, que era contígua. A outra, antiga, era de madeira maciça. Por ela, acedia-se a umas escadas de uma dúzia de degraus que findavam num pequeno patamar com duas portas simples diante e outra do lado direito. Esta dava para o meu quarto. Das da frente, a do lado direito dava para um corredor pelo qual se atingiam mais três quartos. O da minha mãe era a meio, à direita. A chave estava sempre na porta, pelo lado de fora, a fim de os hóspedes poderem entrar e sair libremente. Era o primeiro andar. A do lado esquerdo, subindo mais umas estreitas escadas, dava para um apartamento que ocupava por completo o segundo andar e no qual morava o proprietário do prédio e a família.

   O sr António viera da Gave, de onde era nativo e hospedara-se na nossa pensão. Andava  muito perto dos sessenta. Era um homem pacato e sereno. Ponderado, nunca o ouvi levantar a voz a quem quer que fosse. Raras foram as vezes que consegui discriminar-lhe nos traços uma ponta de preocupação ou de irritação. Do chapéu típico dos do monte às botas, do fato à camisa, andava sempre vestido de preto. A única excepção era a camisola interior branca de algodão no inverno. Não sabia se tinha qualquer significado.

   Poucos dias depois de se ter instalado na Vila, alugou os fundos da casa onde o Ilídio tivera a ourivesaria, junto da residência do padre Justino. Ali, montou um comércio onde vendia mobílias rústicas. Eram móveis de pinho bruto, sem pintar ou envernizar, a preços somenos, imbatíveis. Tinha armários, mesas, bancos, masseiras, arcas, cómodas, cadeiras... O estilo de mobílias que, globalmente, era procurado pelos do monte. Ia com frequência à feira a Braga e procurava estilos diferentes, dentro da mesma qualidade, que pudessem engrossar as vendas. Uma camioneta trazia-lhe, em seguida, tudo a Melgaço.

   Tinha uma vida ordinária regulada e rotineira. A sua mesa favorita estava jornaleiramente reservada pois respeitava escrupolosamente as horas das refeições. Estas terminadas, tanto ao meio dia como à noite, ia tomar café e copa de cachaça ao "Nosso Café", exclusivamente.  Um conterrâneo seu, o Justino, que morava ao lado nosso, por cima da gráfica, era quem o explorava.  Uma coisa devia justificar a outra. Nas longas noites de inverno, quando calhava, gostava de enfrentar comigo outra parelha numas boas partidas de sueca. Passávamos momentos agradáveis. Era uma companhia aprazível.

   A meia dúzia de diários que tínhamos (motoristas, guarda-fios) iam, habitualmente, passar o domingo com a família. Ficávamos eu, a minha mãe, a Rosa do Moinho, ajudante na pensão , e o sr António. De tempos a outros, quando a minha mãe sabia que a comida que fazia para nós não era do seu agrado (não gostava de cozido e era do monte), fazia-lhe a sua guloseima: uma travessa de pataniscas e duas colheres de sopa de arroz do forno sêco. Regalava-se.

   Comíamos os quatro à mesma mesa uma vez por semana. A conversa desenrolava-se, quase sempre, entre a minha mãe e o senhor António. Falavam do monte, da existência que tiveram, das suas aldeias, de pessoas que conheciam mutuamente, com quem tinham negociado ou trabalhado, que ajudaram ou por quem o foram... Falavam da vida e conseguiam fazer-me vivê-la. A conversação continuava mesmo depois de termos comido e a Tia Rosa ter levantado a mesa. Eu escutava atentamente e com enorme satisfação. Ensinavam-me muitas coisas. Para mim estas conversas singelas eram um painel patente, falante. Eram a expressão genuína da imensa afeição que sentiam pela terra ingrata que os viu nascer e pelas pessoas que nela viviam. Só não gostava quando o sr António, durante a conversa, fazia uma curta pausa e, virando-se para mim, dizia: "Tu inda nom tinhas nacido." E quê, apetecia-me perguntar-lhe às vezes ? Tinha-lhe demasiado respeito para tal.

   Na Gave, além de trabalhar as terras que possuia, batia o ferro. Por isso, lá, conheciam-no por António Ferreiro. 

   Portanto, se decidira abandonar a sua terra mãe e viver na Vila, era porque a vida, até ali aprazível, fora cambiada por um infausto e severo destino. No princípio, escassas pessoas conheciam a causa da sua vinda.

   Havia poucas semanas que estava connosco. Uma noite,  acabou  de comer, acendeu o "Provisórios" e saiu para tomar o café e a cachaça habituais. Então, a minha mãe, depois de nos ter rogado para não o repetir, contou-nos, a mim e à Rosa do Moinho, o sofrimento e o rasgo profundos que tinham perturbado o homem e o tinham propendido para a Vila: a mulher "trocara-o" !

   — E, por causa disso, veio viver pr'à Vila ? – perguntou a Tia Rosa, admirada.

 

 

(continua)

 

FIFI EM PARIS

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Era o quarto ou quinto dia que estava em Paris. Frio, frio mesmo para quem vinha da terra agreste das serras galegas. Fim da tarde, Tonio chega ao quarto cozinha sala de estar e salão de fumo (faltava a casa de banho que ficava nas escadas entre o terceiro e quarto andar, buraco no chão) e atira com sorriso:

   — Hoje jantamos em casa do vizinho da frente.

   — Porreiro Tonio (e cá para mim… hoje não aqueço cassoulet). Mas o vizinho da frente não é um algeriano?

   Vizinhos na Rue Lécuyer junto da Porte de La Villete. Rua de emigrantes, portugueses do lado direito e magrebinos do lado esquerdo, duas comunidades divididas por 5 metros de pavée. A boa relação do Tonio com o (descobri mais tarde) Mohammed, tunisino, devia-se ao fechar duma cortina sempre que estávamos em casa e garantíamos a privacidade de quem morava do outro lado da rua.

Nós não olhávamos e eles também não.

   — Tonio, por quê jantar em casa do algeriano se passas o tempo a dizer p’ra num ir ao outro lado da rua?

   — Porque do outro lado são arabes, ainda pior que os pieds noir.

   Encolhi os ombros.

   Arabes, pied noir, mas que raio me importava isso tudo; não conhecia um muito menos o outro.

   Subir ao apartement do Mohammed foi o mesmo que ir chez Tonio. O mesmo cheiro entre andares e a mesma falta de luz. O sol quando nasce é para todos, a luz eléctrica em Aubervilliers é que não.

   Mohammed, para meu espanto, era igual a qualquer outro que passava por mim na rua. Então quando dei um passo e fiquei fora da casa, disse para mim: “São mesmo iguais, até no buraco em que vivem”.

   Rolhas saltaram, nem me lembrei (ou será que já conhecia?) de Alá. Bebemos ao nascimento do quinto filho da família de Mohammed.

   No meio de uma cacofonia, luso-arabe-francês apanhei excertos da conversa entre Tonio e o tunisino. Falavam de mim, que ninguém conhecia na rua, o Tonio a dizer que eu só lá estava havia quatro dias, mais p´ráqui mais p’racolá e eu puxei dos meus galões e meti-me na conversa. Em francês, é claro.

   Tinha dito uma ou duas frases quando Mohammed se levantou, parecia um raio, olha para o Tonio e grita:

   — Toi, t’es un menteur…

   Num flash vi o meu amigo a recuar em direcção à janela, sempre era um quarto andar e tombo de arrepiar. Botei a mão a Mohammed e gritei-lhe ao ouvido:

   — Ça c’est vrai, je ne suis ici que depuis quatre jours.

   O homem parou, olhos faiscaram e …

   — Comment est-ce possible que tu parles comme ça?

   — C’est possible parce que je suis étudiant au Portugal et comme je ne veux pas faire la guerre en Afrique j’habite avec mon frére Tonio.

   Se a festa já estava no auge foi ao rubro com o meu discurso. Um português que não corria atrás da bucha para matar a fome, dele e da família, um português que condenava a guerra na sua terra. Bela bebedeira a da casa do Mohammed tunisino.

   Acabou Setembro e as ruas de Paris enchiam-se de neve. O frio cortava as orelhas, bem pior que as madrugadas na terra. Trabalho nada, tentei nos apanhadores do lixo, mas nem a esses faziam papéis. Os árabes apanhavam tudo, concorríamos a ver quem apanhava primeiro contrato de trabalho. Português com dezoito anos e sem documentos não tinha a vida fácil.

   E continuava eu a dar umas sortidas por Paris, nota só para o metro, compras no mini mercado, grelos e costeletas de porco, cerveja alguma. Depois das oito da noite por o nariz de fora da janela era suicídio. Uma noite, dia alto na minha terra – pensava eu – acabou o tabaco em casa. Preparei-me para sair e o Tonio deu-me as recomendações:

   — Vais ao quiosque no fim da rua e compras dois gaulloise.

   — Mas Tonio, há um bar em frente da casa porque c*ralho vou ao fim da rua com este frio?

   — Faz o que eu te digo, eu é que sei!

   Saí do prédio a dizer mal da vida e de todos os Tonios desta vida e embiquei directo ao bar em frente. Quando abri a porta percebi o que ele queria dizer. Um passo em frente e mergulhei na escuridão, só via olhos pousados em mim e um silencio opressivo.

  Em frente ou fugir. Frio da rua ou o calor do bar?

   — Ei Fifi?

   Voz de Mohammed salvadora que o meu sorriso agradeceu. Segundos depois de eu ter assentado o cú na cadeira já meia dúzia de rostos me espiavam por todos os lados. Olhei todos de frente à espera do que viria a seguir. Latidos de cão, pensei eu, nunca me passou pela cabeça que existissem homens a linguajar daquela maneira.

   Mohammed convidou-me a tomar uma bebida e não pensei duas vezes:

   — Pelfort noir.

   Não demorou a mesa estar cheia de garrafas daquela bela cerveja.

   — Fifi, esta é a tua casa sempre que quiseres, com ou sem dinheiro cerveja e tabaco não te vai faltar.

   Não falei aos meus amigos que me davam guarida o que se tinha passado, apesar deles se interrogarem como eu chegava tão rápido ao quiosque e voltava com o tabaco.

   Nunca souberam que todos os dias ao fim da tarde entrava no bar e ouvia:

   — Eh Fifi, une Pelfort?

   Eram duas ou três, gaulloise e por vezes um cigarro da terra deles, para preparar o jantar como eles diziam; com canções da terra faziam com que eu recordasse o que também deixara para trás.

  

   Um grande abraço para o tunisino Mohammed e seus companheiros do bar escuro do qual nunca soube o nome.

 

Fifi

 

FIFI QUASE... QUASE

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gare de Austerlitz

 

   Acordado com a voz de madame a dizer:

   — Qui êtes-vous, messieurs? Que faites-vous ici?

   Um flash, voltei a mim, e logo arrisquei:

   — Il n'y a pas de problèmes, nous sommes des espagnols arrivés à l'aube en train et on attend pour faire des courses. Il n'y a pas de problèmes!

   — Attendez, j'appelle la police.

   Quando entrou em casa, desaparecemos.

   — Vamos pirar não vá a velha bufar!

   Rua abaixo, em Handaia, com calma e eu é que falo, as luzes em baixo tinham que ser de comboios. Acertamos, era de comboios e tinha bares abertos aquela hora. Sandes e cerveja, cambio à moda do grummet..

   Estava a devorar a baguette com saussichom quando topo caras conhecidas. Eram do monte, Gave ou Parada, caras de sexta-feira na Vila. Eu, clandestino, não tinha interesse em dar nas vistas. Fui ao guichet perguntar as horas e preço de comboio para Paris. A minha nota não chega, f*da-se, f*da-se mil vezes.

   Foi com cara de anjo com que tirei dois bilhetes para Paris, sacando a nota ao companheiro que nada percebia de francos e ainda fiquei com vinte francos no bolso.

   Quando senti o cú a dar um solavanco e o train a andar, jurei a mim próprio que havia de passear debaixo do Moulin Rouge. Bons rapazes os franceses que em vista e obliteração do bilhete me deixavam desfrutar das imagens corrediças que do comboio apanhava.

   Bonito – pensava – parece as serras da minha terra.

   Muito mais tarde, saí na Gare bem dormido, sorriso nos lábios e cheguei ao cubículo do Tonio de táxi; começou outra aventura.

 

Fifi

 

MAIS DO FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gare de Hendaia

 

 

   Cheguei a S. Sebastian e o frio já se fazia sentir. Gente e mais gente como nunca tinha encontrado nas minhas andanças por Portugal. Uma volta e só policias olhar para o mapa e Irun é que interessava. Uns míseros dez quilómetros e estava no local almejado. França em frente, quase palpável mas com a treta dum rio a separarmo-nos.

   Os Bascos não ajudavam em nada, entrava numa bodega e logo eles mudavam de língua. Depois de dois a atirar umas palavras pseudo espanholas resolvi mudar para português legítimo. Mudança radical no comportamento daqueles velhotes; não mudavam de linguajar.

   Com os cartos curtos só dava para olhar as chicas com olhos de predador, e já chegava a hora de atacar o objectivo. Uma volta junto à passagem do caminho-de-ferro deu logo para perceber que por ali não havia safa, e pior ainda, deu direito a uma chamada em voz militar dum guardia civil:

   — Que haces aqui?

   Los cogones se fueram.

   O parceiro que tinha encontrado na viagem, portista da Sé, ia abrir a boca quando perguntei:

   — Es esta la carretera para Bilbao?

   — Esta es la carretera para tu madre se no te vas.

   Dei meia volta e pirei-me que o homem não tinha boa cara. Uns dias antes os bascos da ETA tinham feito o primeiro-ministro saltar acima dum quarto andar:

   — Viva Franco mas alto que Carrero Blanco – palavra de ordem na altura dos martirizados bascos.

   Realmente começamos a calcorrear a estrada de Irun-Bilbao. Meio quilómetro e um camião pára ao sinal de boleia. Corremos e o filho da p*ta arrancou quando nem meio metro nos separava. A berrar contra o corno quase não demos com um guardia civil que do outro lado da estrada nos acenava. Treta, que o porco camionista se desfaça aos bocados. Cabrão, franquista de merda, tu madre non te pariu, tu madre cagoute.

   Primeiro identificação, depois espiolhar o que trazíamos. Quando descobriu na pasta do meu compincha três garrafas de Porto sorriu. Apalpou-me e encontrou a faca de mata que sempre me acompanhou. Um grito e pistola encostada à minha cabeça. Correu connosco depois de ficar com a faca e uma garrafa de vinho fino como o meu companheiro de viagem designava o Porto que transportava e me informou a seguir serviria para corromper um chef de chantier e arranjar trabalho e papéis.

   Depois de muito andar pelas serras pirenaicas chegamos a Hendaia. Cobertos de picos do mato que as constantes passagens de helicópteros nos obrigavam a abraçar.

   Um comboio até Paris e muitos picos para tirar.

 

 Fifi

 

AS VIAGENS DE FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Estação de S. Sebastián - Donostia

 

   S. Sebastian é uma cidade muito bonita e mais bonita se torna se à traça arquitectónica lhe juntarmos os seus habitantes. Só a mudança de linguajar, do espanhol para o basco sempre que entravamos numa taberna ou pequeno bar, as exclamações durante um jogo de cartas ou dómino fascinava-me. As mulheres que por mim passavam eram todas saídas das revistas que a minha prima  punha à disposição das freguesas no salão da Calçada. Belas e distantes, que o companheiro de viagem não se deixava distrair. Sair de S. Sebastian e apanhar a estrada para Irun era o objectivo e passear na cidade não era agradável com toda aquela tropa. Efeitos do voo de Carrero Blanco - pensei na altura.

   Apanhámos a estrada para Irun, uma via rápida e não há boleia p’ra ninguém. Uma placa de paragem de autocarro, suspirei; o fato de macaco que o companheiro usava e a pasta de trabalhador disfarçava o que nos ía na cabeça. França, passar fronteira e França. Na viagem de meia dúzia de milímetros resolvi por as contas em dia, as dezoito notas do Pantera não iam durar muito e só tinha o companheiro de viagem, – desde Chaves - rapaz do Porto, conhecedor da noite de Orense onde pontificava no bar La Toja uma sua irmã, bem mamalhuda por sinal, mas pouco dado a pensar e fazer contas.

   Em Irun fomos direitos à fronteira dar uma vista de olhos na via férrea. Asneira, apanhamos logo com um soldado, alto… papeles… sei lá! Falei em quatro ou cinco línguas de enfiada, as que sabia e as dos filmes, o soldado correu connosco.

   Uns copos na zona iluminada da cidade, olhos arregalados p’rás chicas e senhoras e madames e sei lá que mais e toca a andar p’rá cama. Fiquei a remoer no rio toda a noite. De manhã, depois de me abastecer de roupa de mulher gorda que havia no quarto da pensão onde passámos a noite, assumi a passagem para o outro lado.

   Seguimos pela estrada que vai dar a Bilbao onde eu tinha a certeza que a fronteira deixava o rio e passava a terra firme. Caminhar e boleia, vamos em frente. Uns quartos de hora passados um camião pára. Uma corrida e quando abri a boca o filho da p*ta arrancou.

   — Foda-se, foda-se, foda-se cabrão de merda.

   Um apito soou, caguei-me para ele!

   Outra apitadela e um braço a acenar do outro lado da estrada.

   Um guardia civil em frente de uma guarita, sobre o rio, que eu não tinha visto. Um mal nunca vem só, que se f*da que eu não vou p’ra trás. Braços no ar, quando apalpou as minhas costas recuou e senti uma pancada na cabeça. Sacou-me a faca de mato que trazia no cinto e ladrou, ladrou, o tripeiro abriu a pasta, garrafas de porto direitinhas, a pistola deixou a minha cabeça em paz e eu suspirei. Contentou-se com a melhor garrafa do lote, a conselho do proprietário, ainda deu uma mirada nas carteiras mas apesar de serem uns miles de pelas apontou a estrada e mandou:

   — Só paras em Bilbao.

   A fronteira passava a raia seca e começamos logo a subir. Tanto mato, giestas gigantes, tojo, era igual a Castro só que maior. A meio da tarde, sem comer, ao ouvir as pás de um helicóptero vai em frente seja tojo ou não, um repouso. Sem água, só uma opção. Em frente, em frente, barulho do pássaro de guerra, esconde, avança, em frente, o sol é mais fraco, a sede um tormento, um pé escorrega e deslizo. Passamos a serra, estamos a descer, um regato e estamos em França. Bebemos como rezes, espojamo-nos na erva por minutos. A noite descia, era hora de andar. Descobri uma estrada estreita, terra batida, pensei em contrabando, mas logo alargou e ao fundo via-se um clarão. Luzes, muitas luzes. Até o frio passou quando ouvimos lá longe um puuuu de comboio.

   Irun ou Handaia?

   Espanha ou França?

   Andar, andar mais, o clarão em frente é a estrela de Belém.

   A placa que estava na minha frente deixou-me um sorriso nos lábios. O primeiro objectivo estava alcançado. Estava em França havia que chegar a Handaia , tratar de comboio, dinheiro, comer e dormir. O sol ainda não tinha nascido e chegamos à terra prometida. Uma porta de prédio aberta, um armário vazio no vão de escada. Apertados tentamos dormir. Bem cedo a portinhola abriu-se e uma cara rugosa espreitou para dentro. Não lhe dei tempo para abrir a boca:

   — Pardon madame, on a arrivé dans le dernier train de Espagne, on va acheté des choses.

   — Un moment, je vais appeler pour la gendarmerie.

   Quando a velha virou costas e entrou em casa, desaparecemos. Sempre a descer encontramos uma cerca de arame. Caminho de ferro. Mais à frente a estação.

   Primeiro saber o preço do bilhete, depois, onde cambiar dinheiro. Com o dinheiro dos dois na mão tratei logo de separar o necessário para a viagem. Comprei passagem para os dois e arranjei maneira de ficar com uma nota extra. De Handaia a Paris a viagem foi um sonho e perto do destino resolvi por os pés no chão.

   — Estamos a chegar a Paris, agora que é que vais fazer?

   — Vou apanhar um carro, o meu destino é oitenta milímetros p’rá frente.

   Sorrindo, apresenta-se um fulano a propor transporte para onde for necessário. Saquei o papel que o compagnon de route tinha na mão e atirei ao moinante transportador.

   — C’est combien pour ….

   — Trois cent

   — Je veux aller pour la Villete

   — Plus vingt cinc

   — D’accord!

   Ele quer trezentos?

   — Percebeste, mais vinte e cinco p’ra me deixar a mim.

   Aconcheguei o corpo dorido no assento do carro. Tanto carro e tanta gente, cheguei, apalpei as notas no bolso e descobri que faltavam cinco francos. Que se f*da. Quando paramos em frente do 36 Rue Lécuyer puxei da nota e atirei:

   — Faltam 5 francos, não tenho mais nota.

   O homem saiu do carro e diz-me:

   — Há sempre alguém conhecido. Como se chama a pessoa que vem encontrar?

   — Tonio, Tonio Barbeiro.

   O homem falou logo com dois ou três, eu saí do carro e entrei no prédio, aparece o Tonio de marmita na mão acabado de chegar do trabalho.

   — Tonio, preciso de cinco francos p’ra pagar ao gajo do carro.

   — Toma lá e vamos fazer o jantar.

 

Pantera, foi com as tuas 18 notas de cem que cheguei a Paris.

 

 

Fifi

 

MELGAÇO 1933

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

COMISSÃO  ADMINISTRATIVA  CÂMARA MUNICIPAL MELGAÇO

 

 

COBRANÇA DOS IMPOSTOS INDIRECTOS MUNICIPAIS

 

 

Foram postos em praça os impostos indirectos municipais a cobrar no período de um de Julho a trinta e um de Dezembro do corrente ano, de harmonia com o deliberado em sessão de vinte e três de Maio findo e conforme foi anunciado por editais afixados e publicados no jornal local, verificando-se serem seis os concorrentes à praça, a saber: Avelino Júlio Esteves, António Pedroso de Lima e Emiliano Augusto Igrejas, todos desta vila; Valentim Brandão e Vale e Manuel Fernandes Rocha, de Monção e Manuel Rodrigues da Cunha, da freguesia de Darque, Viana – do – Castelo. Depois de cumpridas todas as formalidades legais foi verificado que o maior lanço oferecido foi o de Emiliano Augusto Igrejas, desta vila, na importância de quarenta mil setecentos e cinquenta escudos, sendo deliberado adjudicar a êste os referidos impostos indirectos pela quantia oferecida. Postas em praça as taxas sobre vendedores ambulantes, verificou-se serem concorrentes Avelino Júlio Esteves, Emiliano Augusto Igrejas e António Pedroso de Lima, todos desta vila; e, como o maior lanço oferecido foi o de Emiliano Augusto Igrejas, na importância de três mil e cinquenta escudos, foi deliberado adjudicar a êste a cobrança das referidas taxas pela quantia que ofereceu. Foram seguidamente postas em praça as taxas por ocupação de terrenos em logares dos mercados e feira, sendo concorrentes António Pedroso de Lima e Emiliano Augusto Igrejas já referidos; e como o maior lanço oferecido foi o deste Emiliano, na importância de mil quatrocentos e cinquenta escudos, foi deliberado adjudicar-lhe a cobrança das referidas taxas pela quantia que ofereceu. Tanto as taxas sobre vendedores ambulantes como as de logares nos mercados e feira, são para o arrematante cobrar desde um de Julho a trinta e um de Dezembro do corrente ano.

Seguidamente o Senhor Presidente disse ter sido convidada esta Comissão Administrativa, pelo Exmo. Governador Civil, para assistir a uma reunião sobre interesses municipais que terá lugar no Governo Civil do Distrito no dia 21 do corrente. Foi deliberado que a Comissão Administrativa se faça representar pelo seu Presidente, ficando a cargo do município as despezas ocasionadas pela sua deslocação.

 

Camborio Refugiado

 

VAMOS A COISAS SÉRIAS

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Governo Civil de Viana do Castelo

 

 

   Passemos às coisas sérias. Quando o Sidónio foi eleito presidente da câmara, pôs camionetas à disposição dos melgacenses que quisessem ir a Viana assistir à tomada de posse no governo civil. Influências do mestre, o "indígena de Santa Comba", que adorava ver as camionetas cheias de gente que vinha abanar bandeirinhas em sua honra à capital.

   Eu, como não tinha que fazer, e como também me mudava da rotina diária da Vila, aperaltei-me e aprontei-me para ir ver o mar. Ia diante da central quando o pai do Chancas, o Arlindo Vilas, que estivera a meter gasolina, ao ver-me todo janota, me perguntou se ia a Viana. Ao meu assentimento, propôs-me boleia. Hombre ! Sempre era melhor do que ir na camioneta. Lá fomos os dois no Fiat 850, com as calmas que o caracterizavam.

   Chegados a Viana, subimos com os outros todos para o primeiro andar do civil e começamos a aguentar a seca. Aguentei cinco minutos. Diante de mim estava uma moça de Cristóval que costumava ir ao clube do Luis Preto. Era uma miúda de cabelos curtos pretos, à rapaz, que andava sempre vestida de  negro e de mini saia. Muito bonita e bem feita. Tinha deitado um perfume tão forte e penetrante que a cabeça começou-me a turbilhonar e fui deslizando, desvanecido, até ao chão.

   Quando abri os olhos, vi o Carriço que estava ajoelhado e debruçado por cima de mim a dar-me umas bofetadinhas na cara. Ajudou-me a levantar e disse-me para ir com ele lá fora que me ia dar qualquer coisa que me faria bem. Descemos, atravessamos a rua e entramos numa tasca onde pediu uma aguardente. Espantado, disse-lhe que não bebia aguardente. Não é p'ra beber, disse-me, é p'ra respirares ! Depois de dar alguns snifes na cachaça, disse-lhe que estava bom, que podíamos ir embora. Então agarrou na copa e, de um trago, esvaziou-a. Não dava para estragar. Além disso estava paga ! “Vamos embora, rapaz !” Voltamos para o civil.

 

A. El Cambório.

 

AS AVENTURAS DO FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

“O Nosso Café” - Braga (encerrado)

 

 

   Sou o Fifi.

   Agora que os meus cento e muitos quilos me forçam a observar e não intervir na vida da terra que o frade achincalhou à duzentos anos, conto mais uns episódios, a juntar a outros que já conheceis, das agruras dum homem honesto a quem as águas do rio nunca lavou.

   Filho de Melgaço, católico sempre que me convém, amante de comezainas e beberetes, jornalista nas minhas muitas horas vagas saudoso de tempos que já lá vão, sentado na minha cadeira confortável à porta da minha oficina-escritório, recordo um passado próximo de trinta anos quando, nós melgacenses, éramos tidos por espanhóis e camelos pelos meninos da cidade.

   Fifi sou de nome desde o tempo em que o Gabriel me arreava na carola por cada corte que fazia na cara do cliente, do monte, nas sextas-feiras em que desciam à vila e ainda não se falava do contrabando de gado e banana que o ‘’ tampa de mala ‘’ tanto apreciava. Vizinho do Manel dos Ovos e do Pereira, só me interessava o café. Adiante, que a vida dá muitas voltas, e cadeira como a que tenho agora nunca antes me passou pelas nádegas.

   Tenho pena é dos amigos que me visitam, Fifi vai um copo? já não temos o Berto e o Miguel morreu e só lhes cravo um cigarro porque tigelas é coisa que acabou na Calçada. Da minha rapaziada há um que aparece sempre com um bicho pitt bull que me põe os cabelos em pé, outro que está sempre de máquina fotográfica apontada à cara, um outro, visita mais frequente, sempre a convidar p’rás gajas na Galiza.

   Eu prefiro recordar e contar a vida dum pobre rapaz da Calçada para quem a vida juvenil foi sempre madrasta.

 Um dos malandros de Braga, com assento fixo no Nosso Café, deu-me o banho em 50 paus. Fiquei f*dido, remoí fígados e corações e jurei-lhe: um dia vou-te caçar.

   Caçar sereno, à espera, vais aparecer e eu estou aqui. Vais estar na cidade onde nasceste mas que eu domino, tu acenas e eu atrás sorrio.

    Sentei-me em frente do malandro de Braga numa mesa do Nosso Café. Fim de Verão.

Mas manhã fria a pedir um chocolate quente.

   — Não tenho nota e quero-me pirar!

   —Eu não tenho nada… espera…

   — Espero o caralho, deves-me a nota, não tens, desenrasca-me, merda!

   O malandro de Braga era o Pantera. John, para os camelos . O Pantera apanhara-me 50 paus mas eu tinha muito mais em discos que lhe pertenciam. Discos valiam dinheiro se tivessem compradores e em terra de tesos não valiam um tusto.

    — Ao fim do dia apareço por cá.

   Sabia muito bem a morada do meco, não tinha onde dormir e não demorava a ter fome.

   ‘’Não apareças e eu entro pela porta dentro’’ dava eu voltas à tola.

   Não havia ninguém, nada de aulas, not people. Quem me deve bate a nota ou o coiro paga.

   Pelas dez da noite apareceu, sorriso de treta no meu ver.

   — Então..?

   — Tenho fome e estou cansado, arranjas poiso?

   Apanhamos o trólei para o alto de Braga.. O Pantera estrelou uns ovos que só vieram a aumentar a fome. Quarto com cama estreita mas que dava para descansar os ossos. Estou com olho meio aberto e assisto ao espectáculo do meco a abanar com um monte de notas de 100. Não dormi. Pela manhã deitei a mão às notas, contei mais tarde 18.

   De saída para o centro, o Pantera foi contar as notas. Nem uma.

   Sacudi as mãos e lá o consegui convencer que devia ter sido o irmão a mexer na carteira. Viagem no trólei e sem voltar ao assunto das notas lá fui dizendo que ia tentar boleia para a Póvoa do Varzim.

   Foi Chaves o meu destino. E com 18 de cem no bolso.

   O Pantera a arder e eu em Paris.

   Encontrei o Pantera mais tarde nos Restauradores em Lisboa a vender bonecos de Natal, fazia parte de uma comunidade dos Meninos de Deus.

   — John, não me conheces? Dei-te o banho em 18 notas!

   — Amigo isso já passou. Encontrei Jesus e o passado desapareceu.

   — Tudo bem John só te queria dizer que os 50 paus que não pagaste se multiplicaram em 1800 paus que te gamei e me serviram para ir até Paris. Quando quiseres digo-te onde deixo a carteira e podes ter a certeza que ainda te vai custar muito mais. Obrigado meu benfeitor e continua nas tuas seitas que eu ainda prefiro a Igreja de Stª Maria da Porta.

   Vai-te foder camelo, que eu antes de me sentar nesta cadeira levei muitos pontapés no cú.

 

Fifi

 

MAIS UM DOMINGO - O RESTO - NOSSA HOMENAGEM À FESTA DA CULTURA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Avenida - Melgaço

 

 

   Foi nesse instante que o Pousinha se levantou e aproximou do balcão.

   — Nesta Vila só há borrachos ! – lançou na nossa direção.

   Se me tivesse calado... Creio que, vista a coisa, o Cancas tinha razão. A "maré estava a subir" e bem.  Habitualmente não era tão agressivo.

   — Borrachos, mas sempre de pé, Pousinha – precisou o Cancas, picado – Olha, como é que fizestes para pôr a Brasileira louquinha ? 

   — Embora sejas catedrático, Cancas, é complicado demais para ti. Hoje não tenho tempo para dar lições.

   Deu uma gargalhada e, virando-se para um empregado, pediu :

   — Leva-nos mais uma cerveja e dois cariocas de limão, pá. Uma Cristal, ouviste ?

   — Fica-te cara a festa, meu – o Cancas não largava o osso.

   — Não te atrapalhes que elas têm muito com que pagar.

   O Cancas acusou o golpe fazendo uma nova careta, enquanto que o Pousinha, radioso com o andamento da conversa, dava meia volta e ia sentar-se novamente diante das duas amigas.

   Ficamos calados uns segundos.

   — Está mesmo fodido, pá ! – repetiu, de "mala hóstia", como se falasse sózinho.

   Não digerira a réplica. Fomos bebericando lentamente a cerveja, sem falar. O café continuava quase cheio. Uns saíam, outros entravam. Os bailes eram um bom negócio para os três cafés da Calçada. Os donos dos três do centro da Vila é que não estavam nada contentes.

   — Estou com uma fominha medonha, meu - confessou-me. - Ao meio dia, só comi dois pratinhos de vitela estufada com um purézinho de batata... Ó Xoco, os rissóis aínda não chegaram ou já os paparam ?

   Olhei para o Xoco e, ao ver-lhe os óculos escuros (imitação de Ray-Ban), não pude impedir um leve sorriso. Andava quase sempre com eles, tanto de noite como de dia. Uma vez perguntaram-lhe qual era a razão. "É para não ver os parvos que me rodeiam" - retorquiu.

   — Não devem tardar, a não ser que se tenham esquecido.

   Quando faziam baile, encomendavam rissóis de camarão e bolos de nata, de coco, etc, ao casal que explorava o Café Central, na Praça da República. Eram muito bons.

   O Pousinha não parava de falar, estava nas nuvens. As gargalhadas da Brasileira e da Pacha continuavam a sobressair do barulho geral. Devia estar a contar-lhe as suas aventuras em  Coimbra. Aquilo é que era ! Porque seria, então, que, logo que podiam, vinham a Melgaço ? Não era somente para engordar a carteira. Se não conhecesse a Brasileira, diria que tinha fumado um "cigarrinho". Nunca a tinha visto neste estado.

   — Bem, vou dar uma mijadela enquanto não chega a papinha - confiou-me o Cancas. E lá foi.

8

   Comia que nem um burro. Em Melgaço, só havia um que comia mais do que ele : o Julinho. Uma noite, eu, eles, o Xoco e mais alguns fomos ao café da Lurdes, a seguir à ponte da Carpinteira, com a intenção de comer uma petiscada qualquer.

   Já passava da meia noite e não havia nada que petiscar. Nem com que fazer a petiscada. A Lurdes queria mas era ir para a cama. Foi então que o Cancas lhe lembrou que as couves que havia de um lado e do outro da entrada do café tinham uns grumichos que só pediam para ser comidos com um arrozinho "a fugir". A Lurdes não se deixou convencer : estava cansada e ia para a cama dormir. No entanto, se nós quiséssemos prepará-lo, deixava-nos à disposição a cozinha e as bebidas que nós entendessemos (vinho, cerveja, etc). Mais tarde, quando saíssemos pela porta da cozinha, só tínhamos que verificar que esta ficava bem fechada. Quanto à conta, vínhamos pagar quando tivéssemos tempo. Tanto ela como o marido (que estava nos USA e com quem  ela pensava ir ter brevemente) eram umas belíssimas pessoas. Assim ficou combinado.

    O Cancas e o Julinho foram colher os grumichos e puseram-se a cozinhar. Arroz não faltava, dava bem para dez, mas tinham-lhe deitado tanto azeite que ninguém conseguiu comer, excepto os dois cozinheiros. Bastava cheirá-lo para que o estômago o rejeitasse. Contentamo-nos com umas tijelas de tinto. Entre os dois, pouco faltou para que acabassem o arroz de grumichos. Éramos nós que não sabíamos o que era bom, diziam. Tinham um estômago inatacável !

   O meu olhar cruzou o do Cisso que estava parado à entrada a manjar o pessoal. Com a calma habitual que o caracterizava, aproximou-se de mim. Ia recidivar, de certeza. Ao passar ao meu lado, disse-me, sem parar :

   — A proposta vale sempre, pá. Se às vezes mudares de ideias, já sabes.

   Ao chegar à porta que dá para os quartos de banho, parou, meteu um cigarro entre os lábios, acendeu-o e deixou passear o olhar pela sala, antes de efectuar novamente, com toda a calma, o trajecto na direcção da entrada. Este Cisso era completo !

   Chegaram os rissóis e os bolos num grande tabuleiro. A minha cerveja aínda estava meia, mas já estava quente. Não andava a beber muito. Pedi outra. Em baixo, cantavam : "... e agora que sou grande e sou barbadinho, se quizer um biluzinho, tenho que fazer sózinho." E assim se continuava a cantar na terra. A sala estava mais silenciosa. O pessoal começava a ficar cansado. Passava das seis. Até a Brasileira e a Pacha se tinham acalmado um pouco. Seria o Pousinha que estava a esgotar o reportório ?

9

   O Cancas saíu do quarto de banho. Vinha todo risonho. Não fora só mijar, claro. Atirou-se aos rissois como um desalmado. Eu não tinha fome. Entre dois rissois, contou :

   — Ao meio-dia, estava à porta do Central a controlar quem passava e junto à montra do Marialva estavam quatro velhotes reúnidos. Pergunta um deles : "E  se fôssemos  ver  o futebol ?" "Quem joga ?",  perguntou outro. "Não sei, mas  posso garantir-vos  que o tinto é muito bom", respondeu um terceiro. "Então vamos", concordou o quarto.

   Ri com gosto, mas ele aínda mais. Fizera-lhe bem ir mijar. E continuou :

   — O Albertino (o presidente da câmara) fez o campo de futebol no morro por detrás da casa dele. Quando a bola cai para o lado de cá, há que vir à estrada buscá-la. Agora construiram um bar por detrás da baliza. O outro dia, quando um gajo ia molhar o bico, apanhou uma bolada nas costas que atirou com ele contra o balcão e com a tijela para o chão. Ó meu, há cada uma mais fixe nesta terra !

   Rimos até às lágrimas. Agora era para nós que as cabeças se viravam. O Cancas pegou num bolo de nata. Tinha comido cinco rissóis. Era a média. De vez em quando, escapava-nos um riso. Foi pena o Fellini não ter vindo a Melgaço.

   Pedimos a conta enquanto o Cancas mastigava o segundo bolo de nata. Íamos dar uma olhadela ao bailarico. Foi então que ouvimos um grito estridente, e uma voz feminina com um lindo sotaque brasileiro ulular : "Ai, meu Deus, que horror !"

    Não tínhamos dúvidas de quem fora a protagonista. Todos os que estavam na sala olharam na direcção do trio que durante a tarde cativara o olhar de toda a pessoa que pelo café passara. A Brasileira estava de pé, braços afastados. O vestido, que era azul claro, parecia vermelho escuro com manchas azuis. O  Pousinha tinha-lhe despejado por cima uma boa quantidade do que tinha bebido e comido durante o dia. As tetas foram as que mais sofreram.  Ao lado, a Pacha também de pé, apenas tinha sido esparrinhada. De olhos arregalados e cabeça apoiada no "fauteuil", o Pousinha não devia saber onde estava nem o que lhe tinha sucedido. O Xoco e o empregado acorreram imediatamente com panos limpos. Era deplorável, pois o café tinha um certo conforto : sofás, alcatifa... A Brasileira, quase a chorar, repetia a meia voz, ao mesmo tempo que tentava tirar de cima o pior : "Que horror, meu Deus, que horror !" O espectáculo era mais do que desagradável, era exasperante. Tive pena dela. E dizer que, até ali, passara a tarde a rir ! Virei a cara, escandalizado. Ao meu lado, o Cancas (cuja previsão se verificara) não dissimulava o deleite que a ocorrência lhe proporcionava. A vingança é terrível, Pousinha - devia pensar ele.

10

   Decidi ir embora. O estômago já me dera sinal e não queria rejeitar as  cervejas que tinha bebido. Fizera bem não ter comido. O Cancas tinha mesmo um "bucho" inatacável !

   Saí do café e, rua abaixo, dirigi-me para o Terreiro. Estava vazio. Apenas passava das sete, mas, áquela hora, muitos já estavam a cear. Continuei até à Avenida. Fui sentar-me por cima da muralha, na curva onde por baixo começava a caneja que ia dar à estrada das Carvalhiças. Era o meu cantinho de solidão.

    Tirei um "cigarrinho" do bolso da camisa e depois de lhe cortar a ponta com os dentes, peguei-lhe fogo com o Dupont. Virei-me para o lado exterior da muralha e, lentamente, fui fumando. Á minha frente, a Pastoriza, o Monte de Prado, com a vegetação aínda raquítica, o Rio Minho cujas águas, tal um espelho, reflectiam os raios do sol minguantes de intensidade, e, como fundo, os montes galegos, por detrás dos quais o sol se esconderia. A paisagem era extraordinária. Curtira-a dezenas de vezes, mas nunca me fartava.

   Apaguei e guardei o que me restava do "cigarrinho". O calor do sol que, frouxamente me ia acariciando, ampliava o bem estar que me tinha inundado. Vagarosamente, os olhos foram-se-me fechando e, então, sonhei, sonhei...

   Sonhei com um mundo onde ninguém sabia o que era inveja, onde os mais pobres ganhavam o suficiente para terem uma vida decente, onde os antónimos de amor e perdão não existiam, onde as pessoas se viam nos outros, onde ninguém exacerbava o medo da morte nas pessoas, afim de melhor explorá-las, onde ninguém era obrigado a deixar o seu país para ganhar o pão, onde ninguém precisava de pedir a um vizinho para lhe ler uma carta, onde os idosos e os doentes eram tratados com o devido respeito, onde se falava aos estrangeiros como se fossem da terra, onde se trabalhava por ter qualidades  e não por os pais terem conhecimentos, onde as crianças não eram brinquedos, onde se podia acreditar ou não sem ser visto com maus olhos, onde as mulheres não eram consideradas como um mal necessário, onde éramos semelhantes no essêncial, aínda que diferentes nos detalhes, onde...

   Abri os olhos. O sol, que tinha atravessado o rio e se escondera por detrás dos montes, deixara um rasto de cores alaranjadas que aínda lhes iluminava o cimo. Levantei-me e dirigi-me para a casa. Eram horas de ir cear. Não havia alma viva na Avenida. Lembrei-me do Pousinha e, apesar de tudo, sorri. Assim passei mais um domingo.

    No dia seguinte, contaram-me o resto. A coisa não tinha ficado por ali. Passemos. O certo é que durante várias semanas o Pousinha não pôs os pés em Melgaço. E, quando começou a fazê-lo, evitava frequentar os sítios onde pudesse cruzar-se com a Brasileira.

   Longos anos passaram e uma vez, lembrando a Discoteca com ele e uns  amigos, abordei o assunto. Corou e ficou transtornado. Comprendi-o. Fora um acidente de percurso, nada mais.

 

        

   As personagens e os feitos desta narração, apesar de se situarem num quadro real, são o fruto da mera imaginação do autor.

 

Junho de 2009

 

A. El Cambório

 

MAIS UM DOMINGO V E VI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

5

   Fiquei só, a observar. A juventude gostava mesmo da Discoteca. Sentia-se libre. Na Barbosa, onde havia um grande salão de baile que tentara fazer-lhe concorrência, a maioria das  raparigas, como no tempo dos nossos pais, eram acompanhadas pelas mães. Ali, talvez pela má fama e para o grande prazer das miúdas,  nunca se viu uma mãe acompanhar a filha.   

   Diante de mim, passaram dois dos mais castiços que  por ali andavam : o Sem Garganta e o Tarédia. Já não eram canalha. Operavam juntos. Primeiro ia um deles dançar com uma rapariga. E mesmo que esta apenas lhe encostasse a ponta das mamas, quando acabava de dançar, sussurrava ao outro : "Podes ir, dá um rebolo do caraças." Era sistemático. E o outro lá ia dançar com ela. Dançavam de olhos fechados, felizes com pouco. Sentiam-se no paraíso. Eram homens para molhar  as cuecas. Ri-me com  gosto. 

   Dei  uma  golada  na cerveja. "Voulez-vous coucher  avec moi, ce soir ?" O ritmo era bom. Muitos anos antes de chegar aos "civilizados", já ali se ouvia isto. Os "mouros" esqueceram-se que Portugal começara pelo norte.Meti um cigarro nos lábios e peguei-lhe fogo. Mais fumo menos fumo... Ia guardar o isqueiro quando ouvi: 

   — É, pá, mostra lá o isqueiro, caraças...

   Pouca sorte, o Cisso do Peso. Quando lhe pegava, também era das boas. Carburava a tinto, mas unicamente do bom. Conhecia a qualidade em todas as tascas. Andava frequentemente encharcado. Mostrei-lhe o isqueiro.

   — É, pá, é de um destes que eu ando atrás há muito tempo. É um Dupont, caralho, e banho de ouro e tudo, pá. Compro-to, meu !

   Respondi que não estava à venda. Insistiu.

   — Ó pá, dou-te trezentos paus, já.

   Saca o dinheiro e põe as três notas por cima do balcão.

   — Ó Cisso, já te disse que não estava à venda !

   — Quinhentos, pá, dou-te quinhentos paus – voltou a insistir.

   — Nem que me desses um conto – disse-lhe, já a perder paciência e com a intenção de pôr ponto final ao negócio.                                          

   Ficou silencioso alguns segundos,  propondo-me em seguida :

   — Ó pá, se soubesses como gostaria de ter um isqueiro destes... O problema  é que já  não fabricam este modelo. Olha, não posso fazer melhor : levo-te à minha adega. Comes e bebes enquanto quiseres. Tens chouriço e presunto. Que dizes ? É bem pago, meu !

   Fiquei de boca aberta. A proposta era aliciante e lancinante ao mesmo tempo. Os apreciadores davam tudo para ir à adega dele, (da mãe).

6

   Constava que presunto, chouriços e tinto era tudo de primeira. Os tipos que  lá tinham ido eram muito poucos. Diziam que era a melhor adega do Peso e uma das melhores do concelho. Fiquei com pena dele e, sobretudo, de mim, por ter que deixar passar a oportunidade de ir à adega, mas voltei a negar. O isqueiro fora-me oferecido por alguém que estimava muito. A desolação era enorme. Para me abrir a porta da adega tinha que o ardor pelo isqueiro ser muito grande. Conformou-se, mas aproveitou para me cravaruma ginja com a qual regou o denso bigode preto. Na Discoteca não serviam vinho (era proíbido), nem às escondidas, o que não era do agrado do Cisso.

   Ali ficamos os dois a fazer mais fumo e a observar o baile. Os bailarinos andavam agarrados, ao ritmo lento do Camilo Cesto e do seu "Alma, Coraçon e Vida" que fazia chorar os corações aos apaixonados. Ai, juventude, juventude ! O tempo ia passando. Olhei para o relógio. Já eram quatro e meia. O Cisso perdeu-se no meio da gente. A minha cerveja secara. Preparei-me para evitar as pisadelas e ir dar uma volta lá em cima. Não foi fácil, mas consegui alcançar as escadas sem dano e chegar  ao café.

   Encostei-me ao balcão e pedi uma cerveja. Dei uma golada e virei-me, cotovelos por cima do balcão, para curtirquem estava na sala, como sempre. Não havia nada de especial a assinalar. O pessoal, animado, discutia. Nos sofás contra o muro, o Pousinha fazia rir à gargalhada as inseparáveis Brasileira e a filha do Pacho mais velha, abancadas diante dele. Estava na dele, estava bem. Quando queria também era engraçado. Diante, tinha uma Cristal. Não dava para beber aguardente na frente   da Brasileira. Era cheia de tiques e procurava sapato à medida e, de preferência, de "boa marca". Pequenita e demasiado mamuda para a altura que tinha, quando andava, requichava o cú. "Se lhe metessem uma pena no cú, parecia uma galinha",  dizia o Zé Grande. Não sejámos má língua !

   Na mesa do lado estava o Camilo com dois conterrâneos. Devia estar numa repetição da da tropa. Seria mesmo verdade o que me contara ? São homens para tudo.

   Apareceu o Cancas que se encostou ao meu lado. Parecia abatido.

   — Então, Cancas, que tal o artigo ?– perguntei para me meter com ele.

   Respondeu-me depois de ter pedido uma cerveja.

   — A coisa parece que está vista, meu. Já esteve melhor - queixou-se.

   — Não há mesmo nada?

   Fez uma careta e disse-me desgostado :

   — Ó pá, fui dançar com uma miúda de Pousa Foles, por acaso bem boa. O cabelo da gaja, meu, empestava ao sulfato. Corte ! Via-me mal para respirar. É para o que está, meu, foge !         

   No salão, o Barry White implorava : "Let the music play". No Largo da Calçada, outras motorizadas e outros carros continuavam a andar às voltas.

   Os risos da Brasileira e da Pacha faziam virar as cabeças e retinham os olhares. O Cancas, que só agora tinha reparado na presença do Pousinha, riu-se e, pondo a mão aberta ao lado da boca, segredou-me :

   — O Pousinha já está a ficar fodido. Os olhinhos parece que deitam "chispas". Há  potada à vista, meu. Não sei se chega à noite.

   — Não sejas pessimista, o dia correu-lhe bem, está na dele. E inspirado, pelo que se vê – respondi.

 

(continua)

 

MAIS UM DOMINGO III E IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Cousso - foto de norwest

 

   Claro que estava a ver, pá, pois estava. Tanto pá, tanto caraças ! Este já havia muito que se tinha perdido na cidade. Ia sorrindo, sem mais. A quantos a teria já contado ? Mais uns risos e continuou com anseio :

   — Os gajos andaram pelos cafés lá da praça não sei quê, pá, até que os puseram fora quando viram que estavam sem jeito nenhum. Diz que aínda chegaram a dar uns murros, pá, mas que os outros eram muitos. Ó pá, era demais ! Estes tipos são maluquinhos, pá, são de partir a moca.

   Mais umas risadas, que acompanhei, questão de educação e aí vai ele novamente. Mal tinha tempo de dar uma golada.

   — Sabes o que é que tinham vindo fazer, o que queriam os tipos, pá ? Não vais acreditar, meu. No princípio aínda pensei que queriam gozo, mas não, pá, era a sério.

   Acabou de beber o licor Beirão que tinha pedido. Preparava-se para a estucada final.

   — Os meus queriam que fosse ao quartel buscar uma G3, pá, e, com eles  e mais alguns dos meus colegas, fôssemos todos partir o café aos gajos ! Tu alguma vez vistes ? Eu nunca vi coisa igual, pá ! Fodam-se lá os tipos ! Falta-lhes qualquer coisa na moleirinha, de certeza, pá !

   O apogeu. Grande silêncio. Não tirava os olhos de mim, queria ver a minha reação. E que mais ? - perguntei-me. Nada mais. A história ficava por aqui. Fiz cara de espantado. E, de repente, não pude controlar uma boa risada. Não sabia se me ria da loucura dos tipos, do modo como ele contara a cena ou das duas coisas.  Ficou satisfeito. Apenas chegara e tivera a quem contar a história. Desabafara. Sentia-se melhor. A tarde prometia. O olhar já procurava outro. Não devia ter encontrado ninguém porque saíu do café. Esta gente era doida ! Doidos sim, parvos não. Eu tivera direito à primeira e, esperava, sem esperanças, à última seca. Havia tantos assim !

   Com a conversa do meio quilo nem reparara que havia bastante mais gente. Os de Monção, que vinham em bandos, eram os mestres da festa. Alguns traziam o artigo de lá. Eram "people". Presunçosos, tinham-se por intelectuais. Para eles, a civilização já começava nas terras da Deuladeu. Por falarmos um português um pouco diferente, diziam, para gozar, que éramos espanhóis. Vinham, como se costuma dizer, para ver, mas sobretudo, para ser vistos. Estudantada... nada de interessante para mim. Era mais adepto das rodadas e maiores há alguns anos, mas estas faziam-se raras. Bem, era tempo de ir dar  uma vista de olhos por debaixo.

   O salão estava mais do que cheio. A fumarada era infernal, mal se podia respirar. Laboriosamente e com grande cautela, consegui chegar ao balcão que em baixo servia de bar. Tinha evitado as pisadelas e as cotoveladas possíveis. "La Ramona es la chica más guapa de mi pueblo, Ramona, te quiero." Assim se cantava na terra. Era das mais ouvidas. Empurrei com jeitinho um cliente, que por sua vez empurrou outro, que também empurrou outro. Arranjei um lugar e finquei-me no balcão a observar os actores.

4

   O Cancas, todo risonho (era um dos que fumavam cigarrinhos),  mandava às raparigas as habituais bocas: "Ó filha, estás cada vez melhor." ou "Comigo é que tu eras feliz, filha." ou aínda, quando a rapariga o mandava passear, "Tu estás mas é mortinha por dar-me um beijo na boca, filha." Era a táctica de engate que utilizava. Táctica de chulo. Às vezes colava. Estudava no Porto, na universidade da Ribeira, de certo. "Se tivesse três (gaitas), dizia, punha-as a trabalhar ao mesmo tempo." Considerava-se o maior pinante da Vila, mas como cão que ladra não morde... Não falhava um baile. Quando andava numa boa, curtia-se muito bem com ele.  

   — Então, estás bom, pá ?

   Era o Tino de Cousso. Estendeu-me a mão que apertei. Perguntou-me se vira o primo, o Zé Grande, também de Cousso, o outro dono da Discoteca. Este e o Xoco tinham comprado as partes dos três fundadores restantes. Eram os dois sócios, com partes iguais. Na negativa, foi-se embora. Por que razão não fôra perguntar ao Xoco ? Sabia-o ele. Não o tinha por mau moço, nem era seca. Tinha estado muitos anos na França e constava que tinha regressado porque estava tolo. Nunca dera por ela, falava de tudo, como todos. E era um bom electricista, trabalhador. Reparara apenas que, quando falava com ele uns minutos, acabava por dizer que tinha que ir à Casa Branca. Um desejo, um devaneio como qualquer outro, pensava eu. Quantos não sonhavam com o Rio de Janeiro ou com Taiti ? Mais tarde, soube que Casa Branca também era o nome de um hospital psiquiátrico parisiense. O primo dele, grande castiço, passeara a malotinha longos anos por Braga. Quando lhe perguntavam a morada na cidade dos padres, dizia ser no Nosso Café por lá passar a maior parte do dia. Também gostava de "cigarrinhos". De vez em quando a confusão era tal na cabecinha (devia ser genético) que ia para Cousso e lá passava semanas refugiado sem pôr os pés na Vila.

   Peço uma cerveja e continuo a observar a plateia. Os galegos que vinham a Portugal galar as "machotas", segundo diziam, davam à perna com ganas. Deitavam o fogo e faziam a festa. Sentiam-se na casa. Chegavam a vir seis num Fiat 600.

   Aparece o Pousinha de Castro, "boca negra" de pura estirpe. Samarra pelas costas, arborava um grande sorriso. Ria-se de tal modo que mal se lhe distinguiam os olhos vermelhinhos. Estudava em Coimbra. Encostou-se e eu preparei-me para a segunda história. Estava contente, disse-me, porque, com uns amigos, passara umas vaquitas da Espanha. Ganharam umas boas notas e tinham começado a fazer a festa em Castro. "Bem comidos e melhor bebidos ! Branco e tinto", sublinhou. Era só pó. Já estava bem. Ali, estava a bagaço. À noitinha ia de boleia para Coimbra. Até lá, o dia seria longo. Eu não estava commuita paciência (sem saber porquê) e o fumo fazia-me arder os olhos. Continuou a falar, mas deixei de ouvi-lo. Vendo que eu não abria a boca, acabou por beber o bagaço e foi embora.

 

(continua)

 

MAIS UM DOMINGO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Estava calma. Eram três, o baile já tinha começado. Era a hora do café e da copa. O terreno ainda estava seco, só daqui a uma hora, mais ou menos. O tempo de o pessoal aquecer.

   Comecei com uma cervejita pois podia andar com ela na mão, do café para o salão, conforme os acontecimentos e a vontade. Era cedo para descer. Encostei-me ao balcão, a conversar com um dos donos, o Xoco, rapaz novo mas precursor. Toda a gente lhe "caía em cima". Via-se mal. As pessoas inventavam histórias de droga, de raparigas que andavam nuas na Discoteca, que só faziam barulho... Aquele café e salão eram movimento demais para aquelas mentalidades. Que houvesse algumas coisas, era natural. Fumavam uns "cigarrinhos" que os punham risonhos... e daí ? Não se metiam com ninguém. Eram jovens, só pensavam em distraír-se e brincar. A época deles era outra. O conhecido conflito de gerações. Pessoalmente, nunca reparara em nada de extraordinário. O que sei é que fazer barulho, faziam. O rapaz tocava no conjunto musical da Vila, os Gaudeamus. A Discoteca, que tinha o mesmo nome que o conjunto, fora fundada pelos quatro componentes do mesmo. Eram todos músicos de ouvido. Como não havia melhor na terra, a solução era aguenta-los.

   Nós na conversa quando apareceu um meio quilo, que é da Gave, e que estava na tropa no Porto, o Camilo. Era um "canta-mañanas". Disse boa tarde, conseguiu reter-se uns instantes sem falar, mas a vontade foi mais forte. Nem esperou que eu e o Xoco cessássemos a conversa.

   — Então, pá, vieste ao baile, pá ? – perguntou-me.

   Irritado, estive para lhe dizer que não, que viera ver a Torre dos Clérigos. Encostou-se e começou a relatar o que, certamente, iria repetir durante a tarde a muitos outros. Assim era, cada vez que tinha uma nova e encontrava quem lhe tolerasse a conversa.

   — No outro dia, aconteceu-me uma muito boa, pá. Estava eu com uns colegas de Transmissões (o regimento onde ele estava no Porto) na tasca do Diogo, pá, em frente do regimento, para onde vamos beber e petiscar, pá, à noite, quando aparece o Zé da Gana e o Papo Sêco, pá, com uma borracheira do caraças, pá ! Estás a ver quem  são...

   — O do Peso e o de São Martinho, não ?

   Conhecia-os muito bem e ele sabia-o perfeitamente, mas era, para ele, uma maneira de fazer durar a história.

   — Exacto, pá – e continuou a "lengalenga", animado — Ó pá, os gajos mal se seguravam de pé. Vinham fardados, boina no bolso, pá, gravata desapertada... camisa por fora das calças, pá... A sorte que tiveram ! Ó pá, se chegam a encontrar a Polícia Militar, estavam  queimados, já viste ?

 

(continua)



MAIS UM DOMINGO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Largo da Calçada - Melgaço

 

 

   Mais um domingo. Nada tinha previsto de especial. Na Vila, a Discoteca propunha música e de beber. Os arredores, nada. A escolha impôs-se rapidamente. Iria dar uma volta à Discoteca, beber uns copos com os amigos que encontrasse e tentar curtir um pouco. Não havia mais nada que se pudesse fazer em Melgaço. Às vezes, passavam-se bons momentos. Os amigos vinham dos arredores, onde viviam, ou das cidades onde estudavam. Todos traziam a mesma vontade de festa. Uns, depois de dois copos, já não havia quem os mandasse calar. Falavam e contavam coisas nas quais nem eles acreditavam. Outros, maissnobes, contavam que na cidade, ó pá, aquilo é que era, Melgaço, um atraso de vida. Os da Vila não podiam perceber. O que ali havia de melhor era a camioneta que ia até Monção, onde se apanhava o comboio para a civilização. O ditado dizia : "Se pões um pé na cidade, ficas tentado ; se pões os dois, ficas perdido". A maioria perdia-se.

   E depois havia os que só viam e que só falavam  doartigo. Para estes, era uma partida de caça permanente. O andar e a posição eram estudados e utilizados segundo a gaja que se queria engatar. Estudavam-lhe os movimentos, espiavam a cara dos possíveis concorrentes que à volta delas se amotinavam, com o fim de saber se caçavam nas mesmas terras. Mesmo o olhar delas era vigiado, não tivesse abela já alguém  em mira. E alguns, como eu, quando tinham vontade, vinham rir disto.        

   A agitação provocada pelas motorizadas e pelos carros na Calçada era grande. Passavam devagar diante dos três cafés do largo, para os quais olhavam descaradamente, e, em seguida, desciam para ir dar a volta à Avenida, regressando novamente à Calçada. Faziam isto várias vezes como se, ao voltar da Avenida, alguma coisa pudesse ter mudado.

   Obaile ia estar bom. As belezas mais cortejadas marcavam presença. Bom presságio. Estas arranjavam, sem problema, quem lhes pagasse a entrada. Claro que o pagador tinha direito a uma ou duas danças que ele explorava ao máximo. Mostrava às outras que tinha saída. Pagando-lhes a entrada, comprava um espaço publicitário. E, com as de fora, chegava a funcionar.  Havia de tudo e para todos os gostos : da menina bonita à leiteira do campo (a preferência de um amigo meu). O facto é que todos gostavam da Discoteca. Vinham mesmo do "lado de lá", sem esquecer os que vinham  do "corno de baixo", como dizia alguém de quem  gosto imensamente.

   Fui para a Discoteca, ver o ambiente. Era composta pelo café e pelo salão de baile, por debaixo. Foi o primeiro local de divertimento a ter o nome de discoteca, termo que nessa altura (segunda metade dos anos setenta) não existia em Portugal. Trouxeramo-lo da Espanha vizinha, onde era moeda corrente havia já alguns anos.

 

(continua)

 

OS PINTARROXOS IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   A mulher, a tia Ana, descobriu que ele tinha uma amante no lugar das Adegas. Disseram até que a filha que ela tinha era dele.

   A vida privada deles tornou-se difícil, quase insuportável.

   Em seguida, a Dona Maria José, de Sante, uma rica senhora que utilizava amiúde os serviços do automóvel de aluguer em grandes viagens: Braga, Porto, Fátima, etc. faleceu. Com isso cessou uma considerável fonte de renda.

   O negócio dos ovos fracassou causando enorme prejuízo.

   Para culminar, as autoridades camarárias, estranhando a prosperidade do Emiliano exigiram dele uma verba antecipada de quarenta contos e cassaram-lhe a concessão de cobrador do imposto.

   Era só o que faltava para a derrocada total.

   Quarenta contos naquele tempo eram uma fortuna. Pouca gente tinha um património daquele valor. Exigido assim, em curto prazo, arruinava qualquer um. Para conseguir o dinheiro reclamado pela municipalidade, o Emiliano teve que desfazer-se de seus bens. Vendeu o casarão do Rio do Porto à Dona Micas da Loja Nova, de quem o havia comprado pelos mesmos vinte contos que lhe custara, perdendo o valor das benfeitorias. Vendeu a camionete.

   Vendeu o ventilador e o calorífico, o máximo de requinte em aparelhos electrodomésticos na época.

   Vendeu o rádio, um dos poucos existentes na vila e vendeu as jóias que possuía.

   Tudo isso não chegou e para completar a quantia necessária pediu emprestados doze contos ao Manuel da Garagem que iniciava a sua ascensão económica.

   Os muitos amigos que frequentavam a sua casa para jogar cartas ou quino, comer e beber lautamente, participar de feiras e festas no seu carro e banquetearem-se à custa dele, afastaram-se a ponto de o desconhecerem quando cruzavam com ele na rua. Aquela ruína inesperada deixou o tio Emiliano desnorteado durante algum tempo.

   Por vários dias ficou com as faculdades abaladas não dizendo coisa com coisa.

   A partir dali, a muito custo conseguiu estabilizar a situação financeira quitando a hipoteca da casa mas nunca mais voltou àquela situação de fastígio.

   A tia Ana que anteriormente dispunha de ajudantes para diversos serviços, viu-se, de repente, obrigada a arcar sozinha com os afazeres domésticos, lastimando-se das enxaquecas e achaques, lamuriando a toda a hora: “bem que eu não queria que prendessem os passarinhos…”

 

 

Manuel Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

Camborio Refugiado  

 

OS PINTARROXOS III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   No dia seguinte foi a tia a primeira a subir ao andar superior e observar as avezinhas. Ela não fora a favor de prender os pássaros e, sem saber porquê, sentia um aperto no peito. Alguma coisa lhe dizia que algo não iria acabar bem.

   Botou a cabeça fora da janela para olhar os passarinhos que, estranhamente, estavam quietos e calados. O choque foi violento. Uma sensação esquisita lhe arrepiou a espinha e por momentos ficou paralisada.

   Os três filhotinhos jaziam no chão da gaiola, mortos. Refez-se do impacto e chamou o marido. O espanto deste não foi menor.

   O facto não era novidade, mas, sem saberem explicar, o caso lhes provocava mal-estar. Mandaram chamar os sobrinhos para presenciarem o sucedido e para que lhes servisse de exemplo no decorrer de suas vidas. Afinal, privar alguém de sua liberdade a troco de nada, ainda que um passarinho, não tem significado.

   E não foram só os três passarinhos; o caso foi bem mais trágico.

   Os rapazes acharam os corpos dos pais pintarroxos lá em baixo, no chão, no meio das ervas. Incrível, fora um suicídio colectivo! Na gaiola, ao lado dos filhotes mortos, um resto de ervas venenosas confirmavam a tragédia. Os pais, desesperados ao ver os filhos encarcerados sem possibilidade de libertá-los, optaram pela atitude extrema: mataram-nos e suicidaram-se.

   Numa terra onde poucas coisas aconteciam, aquele incidente banal tomou foros de sensacionalismo. Não era a primeira vez que acontecia semelhante coisa entre animais, o povo sabia disso e era até tema de seu folclore, de suas histórias.

   Mas aquele caso correu de boca em boca e as pessoas mais velhas, aquelas sempre propensas a profetizar desgraças, diziam da tragédia ornitológica: “É mau agouro, alguma coisa ruim vai acontecer!”

   Dito e feito!

   A vida do tio Emiliano começou a desandar.

 

(continua)

 

O ZÉ

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

OLHA, SE NÃO TENS QUE FAZER, ENFIA ESTA NO BLOG.

O HOMEM MERECE APOIO.

 

   Ai, ai, já se murmura,

   Já se diz até

   Não há presidente

   Ai, ai, como o nosso Zé.

 

   Antes dele, ninguém conhecia Portugal; desde então, é ele Portugal.

  Sempre ao lado dos grandes deste Mundo, o seu sincero sorriso faz com que nos sintamos orgulhosos por sermos da Pátria de Luís Agostinho, do Carlos do Carmo ou do Tomás das Quingostas.

  Nos seus olhos, podemos enxergar as mesmas caravelas que outrora calcorreavam os oceanos, tendo apenas as cruzes das velas sido substituídas pelo símbolo do dólar.

   Erudito reconhecido internacionalmente, o seu empenho pela Europa e pelos europeus só é igualado pela sua infinita modéstia.

   Acérrimo trabalhador, detesta tudo que é mundano. As câmaras de televisão e os fotógrafos são para ele um suplício. Os banquetes, uma perda de tempo desnecessária.

   Da sua grande personalidade brota um sentimento de boa fé e de total integridade.

   Portugueses, não deixemos passar uma nova oportunidade de mostrarmos ao Mundo que, apesar de pequenos, chegamos onde chegam os grandes.

   Assinai este pedido, que será enviado a todos os presidentes dos países da UE, a fim de apoiar a candidatura e a eleição a um terceiro mandato do nosso Zé ao posto de Presidente da Comissão Europeia.

   Concidadãos, não somos chauvinistas mas, a ser fodidos, sejamo-lo por um da nossa terra.

   Cantemos todos, com a musica da nossa saudosa Amália:

 

   Ai, ai, parec’evidente,

   Já se diz então,

   Não há presidente

   Ai, ai, como o Zé Durão.

 

   A. El Camborio, comissão de apoio a um terceiro mandato do nosso Zé.

 

OS PINTARROXOS II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   O verão estava chegando e os pássaros viviam na plenitude da procriação. Quase todas as árvores tinham vários ninhos que os rapazes controlavam, subindo e contando os ovinhos. Pardais, pegas, carriças e estorninhos ali haviam-se instalado.

   Na cerejeira, quasi na corucha, um ninho chamava a atenção; era de pintarroxo e tinha três ovos. Os pintarroxos são grandes cantadores que as pessoas costumavam prender em gaiolas. Ficavam de olho naquele ninho.

   Um belo dia, os filhotinhos, já livres de casca, estropiados ainda, testemunhavam a perenidade da vida. Mais alguns dias e os passarinhos começaram a revestir-se de penugem. Outros dias mais e os passarocos de bicos escancarados, vorazes, não davam tréguas aos pais.

   Os sobrinhos, com a anuência do tio, resolveram pegar no ninho e colocá-lo numa gaiola. Naturalmente os pais continuariam a alimentá-los até ficarem auto-suficientes e, então, pegariam também a eles. Que grande colecção de pintarroxos iriam ter. E assim fizeram.

   Num dos voos para procurar comida os pintarroxos deixaram os filhotes sozinhos e os rapazes aproveitaram para escalar a cerejeira, pegar o ninho e pô-lo na gaiola. Levaram-na para casa e penduraram-na na parede, no andar de cima, do lado de fora, perto da janela, onde os pássaros pudessem ver os filhos.

   Quando os pais regressaram e não viram o ninho nem os rebentos, entraram em pânico. Chilreando, desesperados, voavam desordenados. Era constrangedor ver aquelas duas avezinhas, tontas procurando os filhos nos outros ninhos e no chão.

Depois de muito esvoaçar pousavam num galho e ficavam quietos, colados um ao outro, silenciosos. Deviam estar chorando. Voltavam a voar velozmente, às cegas, de encontro a tudo sem saberem o que fazer.

   Os rapazes observavam esperando que os pintarroxos descobrissem os filhos, sem imaginarem o sofrimento, a tremenda agonia por que passavam aquelas criaturas. Os filhotes, de papos vazios, reclamavam a assistência dos pais e passaram a piar desesperados. Foram ouvidos. Os pais passaram a sobrevoar a gaiola. De vez em quando, no auge do desespero, arremessavam-se contra aquela prisão como querendo arrombá-la.

   Tudo estava dando certo, diziam os rapazes. Logo passariam a alimentar os filhos através dos arames.

   A noite estava chegando e resolveram deixar as aves onde estavam, protegidas pelo beiral do telhado. Foram embora para suas casas.

 

(continua)

 

OS PINTARROXOS I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    O tio Emiliano estava na fase bem sucedida de sua vida. Os negócios corriam-lhe de jeito. Por causa da guerra civil na vizinha Espanha, a circulação de mercadorias era intensa e o imposto indirecto que incidia sobre as mesmas, bastante vultoso. Como cobrador, por ter arrematado o direito de receber tal tributo, o Emiliano tinha uma margem de lucro significativa.

   A sua opulência crescia a olhos vistos.

   A casa Velha nos fojos que comprara ao Zé Zinona, transformou-a numa luxuosa vivenda; comprou mais um carro para aluguer, comprou também a camioneta antiga do Hotel Rocha para passeios turísticos e comprou também o casarão antigo com grande quintal do outro lado do caminho, no Rio do Porto. Mandou reformar o prédio e o quinteiro deixando aquela propriedade digna de gente fina.

   No terreiro onde outrora fora o quartel dos Bombeiros, instalou um depósito de ovos que vendia por atacado e a varejo aos pequenos contrabandistas que os levavam para a Galiza. Na inauguração das melhorias daquele casarão ofereceu aos amigos e familiares uma arrozada de galinha de cabidela regada a bom vinho, tudo à descrição.

   Todas as tardes, ele e a Ana, sua mulher, iam para a casa do Rio do Porto. Não tinham filhos mas viviam cercados de sobrinhos a quem muito queriam e por quem eram muito queridos, principalmente os mais novos e solteiros. Assim, o Gú, o Toninho, o Mi, o Carriço e o Manelzinho, não perdiam oportunidade de acompanhar os tios sempre que iam para a nova casa.

   O quintal era o que mais lhes chamava a atenção. Não era muito grande mas tinha os seus atractivos. Era uma faixa de terreno espremido entre a estrada e o regato (o Rio do Porto), com fruteiras, horta, uma mina (nascente de água por baixo da estrada) e um grande tanque. Das árvores destacavam-se uma cerejeira e uma nespereira, ambas de grande porte.

   Das brincadeiras no quintal participava o Jolí, um cão vadio a quem a tia Ana dava comida que acabou por afeiçoar-se e participar da família.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS XI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

  

Escultura de Acácio

 

    — Inês Negra? Hé … hé … hé … Ai a brigada minhota!

    — Minhota? Qual minhota?

    — É ele. Ele é a brigada minhota. Amigos há séculos, bêbados na eternidade e … curiosos da Inês. Já viste os olhos dele? Babado como nunca o vi … e já vi tanto!

    — Sou Inês. Negra foi a outra, por acaso da minha terra.

    O “m*rda” que gritei ecoou no restaurante. As cabeças excursionistas espanholas voltaram-se; o olhar do “maitre” não faltou, mas aí eu já jogava em casa. Inês, Inês Negra! Com que então a minha, a nossa, Inês Negra!

    O Jacinto logo encomendou outra garrafa, porque um olho dele era rei e dois então nem se fala …

    — Afinal tenho a brigada minhota completa.

    — Não tens, não, falta a outra! A outra a quem chamaram a Arrenegada e a quem eu rebentei o focinho com estas mãos que Deus me deu. E as graças que recebi de el-rei e Sua Senhoria a Rainha D. Filipa que, na altura, estava em Fiães onde os Beneditinos cantavam loas a Deus Nosso Senhor, enquanto eu rebentava bochechas, arrancava cabelos, pontapeava …? Fiquei com um tufo de cabelos dela na mão. Não como troféu, mas tão só pela força da luta. Aí, el-rei aclamou-me! O Castelo ficou vazio, houve troca de pessoas e nós, aqueles que acreditamos, subimos à torre e gritei: “És nossa, és de el-rei de Portugal”. Da Arrenegada nunca mais soube nada, nem quero saber … Afinal éramos todos iguais, do lado de dentro e do lado de fora. Uns tomaram partido por um lado, outros por outro mas todos de Melgaço …

    — E el-rei …?

    — Foi embora, tinha mais que fazer … E se fez …!

    Quando o Jacinto olhou para mim só viu um cabelo dançando, eu sem palavras e com suor no rosto. Da garganta saiu-lhe um grito que pôs em pé os cabelos “maitre” e fez rodar as cabeças excursionistas espanholas:

    — É a brigada minhota!

 

Camborio Refugiado

 

ENCONTRO COM INÊS X

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Respirou fundo enquanto eu retinha a respiração. Estava lívida enquanto eu suava por todos os poros. Quem é que eu tinha pela frente, perguntava-me. Que amor platónico, palpável, seios de morrer, lábios de morder e cabelo dançante me entravam pelo coração dentro.

    Qual estudante de História, qual carapuça, qual … meu Deus, quem é que eu tenho pela frente?

    Falou devagar, muito devagar, palavras que, juro ainda hoje, tinham séculos.

    — Tens o que querias. Nas tuas mãos está a sorte da tua terra.

    Saltei como se a pedra estivesse em brasa e, mais branco que a cera, aguardei, esperando por novas profecias saídas de um oráculo romano.

    — Amanhã, aquando do pôr-do-sol, vais lutar por ti, por el-rei e pela tua terra.

    — Luto com quem? … Já sei por quem luto!

    — A hora soará e então saberás!

    Inês sacudiu o cabelo, sorriu e, como nada tivesse acontecido, atirou:

    — Vamos beber um copo?

    Dali ao meu poiso favorito era um passo, mas logo franzi o nariz ao dar de caras com um amigo jornalista especializado em assuntos regionais.

    — “Mário, de beber para a brigada minhota! Hé, hé, hé …”

    O Jacinto sempre me tratou assim carinhosamente. Para ele eu não era um. Era uma brigada.

    Inês franziu o nariz e como que não quer a coisa, atirou:

    — Sou mais uma … Vai-te foder.

    Duas excursões de espanhóis, muita carne à mostra e o beija-mão do Torto, desculpem do Jacinto, aliás o Três (dramaturgo, bêbado e afectado de pequenino pela poliomielite que lhe deu as alcunhas, além de jornalista e má língua profissional) …

    — Inês, o meu amigo Jacinto.

    — Seja bem-vinda!

    — Encantada.

    O Jacinto, com um copo e rédea solta na língua, consegue fazer falar um morto. Eu já sabia que Inês não ia escapar.

    Agora, pelo canto do olho, era eu que não deixava Inês em paz, porque era mais que sabido que o meu amigo ia atacar. Atacar e de que forma!

    — Sabes com quem estás metida? Hé … hé … hé …. Conheces a brigada minhota? Hé … hé … hé …

    Apertar os tomates ao Jacinto já me tinha passado pela cabeça muitas vezes mas lambucar-lhe as mãos é que não. Foi o que saiu!

    — Pára lá meu, aqui não há namoradas. Não é hoje que o Mário enche a caixa à nossa custa.

    — Vai encher, vai! Carne desta …? Tem cabeça! Podes fugir com ela mas o cabelo fica.

    — Não fica não. Ficou foi o da outra, nas minhas mãos.

    O Jacinto riu; eu não.

    Aquele que pôs em cena o “seu” Édipo o Rei, olhou, engoliu e, assim como quem não quer a coisa, perguntou:

    — Quem é?

    Aí, levantei a voz e respondi:

    — Inês.

    — Inês. Para ele a Negra.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS IX

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   — Queres que te fale do que é segredo? Nem penses. Se o Castelo foi feito pelas nossas mãos, quem é que o deve conhecer? Mas deixa lá isso. Saímos. Saímos mas não todos. Houve quem ficasse. Uns por medo, outros a pensar que a segurança estava lá dentro, outros ainda porque vêem sempre lucro no negócio da guerra e, de qualquer maneira, já conheciam bem os senhores de dentro. E, mesmo durante o cerco, havia sempre lugar para a diversão. Levaram-nos o melhor. Porquê? Para os soldados? Eram grandes as festas! Tão grandes que o barulho dos “trons” não contava. Perdiam-se entre os risos, as cantigas e as danças e os gozos dos mandões. Mas os soldados estavam lá. Sempre de sentinela e quantas vezes alvo, na prática do tiro da besta, em que a mouche era o coração. Estômago apertado, o pão de milho era pouco e o vinho cada vez mais aguado. Fome no soldado, fartura no capitão.

    Havia gente de garra na Casa Grande e no Castelo. Gente que defendia que “depois do Castelo só a Corte”. Cabanas? Nunca mais. E quem atira a primeira pedra?

    O silêncio envolvia-me, mas não o sentia. Eram risos, trons de risos, trons, barulho de risos ou de trons, o silêncio dela … o silêncio e eu.

    Pensei que o cabelo dela ia dançar, mas não. Encostou a cabeça no meu ombro e o meu sorriso dizia:

   — Inês!

    Uma lágrima no canto do olho e um esgar de raiva a fazer de sorriso:

    — Não foi melhor não, mas era livre! A fome também apertava e os melhores nacos de carne não eram para os soldados. A tenda do Rei pouco melhor era que uma barraca de feira. A moral era igual a um riacho em tempo de seca. Maldita terra, maldita guerra!

    Durante dias percorri o acampamento a pedinchar, a matutar … Quantas vezes lembrei a Casa Grande? O pão acabado de sair do forno; os capões e as cabras que foram de um vizinho e agora são a festa dos estômagos, nunca cheios e sempre à espera de mais, que a guerra está à porta e o inimigo nos cerca.

    Uma manhã acerquei-me das muralhas e fiquei sem fala. Ela, a amiga! A que escolheu as festas e os gozos! A passear-se com os senhores! A gozar naquele sorriso que dizia:

    — Nós ganhámos.

    Não resisti e gritei. Gritei até os pulmões doerem:

   —Desce, se és mulher. Desce que te rebento as fuças e vais provar na cara um punho português.

    O alarido foi tal que todo o acampamento saiu para ver o que se passava. El-rei chegou, quando viu que não passava de uma rixa entre duas mulheres, riu e deu meia volta para tornar à tenda.

    Das muralhas, o gozo, o riso e a algazarra não eram menores. Atirei novamente:

    — Desce que te desfaço, traidora dum raio.

    Alguém me segurou o braço que logo sacudi, mas quando vi a cara de el-rei, aquietei-me.

    — Aguarda. Se é isso que queres, é isso que terás. Agora vai para o acampamento que logo falamos. E não te esqueças que Melgaço é tua e de el-rei de Portugal.

    Falar é bonito mas para ignorantes como eu, baixar a cabeça e calar porque el-rei manda …

    — Cala-te. Nada de filosofia nem democracia. Rei é rei e os tempos não são os de agora.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS VIII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Muralhas do Castelo de Melgaço

 

 

    — Só montanha!

    — E o Minho a serpentear pelos vales, a beijar aldeolas …

    — E tu a descreveres a minha terra.

    — E eu a não descrever coisa nenhuma. O que é que queres que eu diga? Os livros dizem tudo.

    Racional sim, mas o homem é um animal e só não se torna irracional em frente de uma mulher destas quando é mesmo irracional.

    Já não sei o que fui antes ou o que sou agora mas sei que ou falas claro ou serei um presidiário - só pensei - já me vejo perante o sol aos quadradinhos numa cadeia qualquer, acusado de ter apertado o pescoço a uma bela donzela de cabelos negros, no Cais das Colunas.

    — Tu sabes mais do que dizes.

    — Claro que sei. Sei de trons disparatados que não faziam mossa nenhuma nas muralhas, sei das cortesãs na casa grande, sei do terror dentro do Castelo aquando do cerco, sei … Afinal, o que queres saber?

    — Quero ouvir, o saber não conta.

    — Palavras de filho de mamã.     

    — Ou de filho daquela terra.

    — Terras, guerras, fome, destruição e morte? Grandes homens, grandes nações, muitos feridos, muitos mortos … Já estou farta. Prefiro falar de homens, mulheres, pequeninos, dentes de leite, amor, tudo o que é vida. Há coisa melhor que um sorriso de bebé? Naquela terra havia sorrisos de bebé?

    — Havia. Havia sorrisos de bebé, porque aquela terra é igual às outras. Havia mulheres, homens, velhos, crianças e bebés. O mesmo que há agora: uns filhos da mãe, outros filhos da outra, mas todos filhos.

    Quando o cerco começou desatámos a rir porque comida não faltava. Já tínhamos armazenado tudo o que havia nas cabanas em volta e os da casa estavam connosco. Mas logo percebemos que agora era diferente e logo na casa os melhores nacos nos foram tirados, roubados. Digo agora porque eram necessários aos senhores da casa que já estavam no Castelo e aos soldados que iam dar o corpo nessa guerra. Nessa altura, olhámos para os bebés, mal nascidos e já a sofrer a estupidez dos homens, e soubemos que não estávamos no melhor lado …

    — Ufa … Continua.

    — Falámos, ou melhor discutimos, gritámos, uns querem isto, outros aquilo e saímos.

    — Saíram todos! Como era possível, se o Castelo estava cercado e as portas fechadas?

    Riu bem alto na minha cara, com os cabelos a deixar só à vista aquela boca de lábios carnudos, dentes brancos e a ponta de uma língua que me martirizava.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS VII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Chegou sem salamaleques, um olá, um beijo a jacto, sentou-se, sorriu e atirou:

    — Já que és tão curioso, hoje vou falar de mim.

    Não fiquei de boca aberta porque ainda não a tinha fechado desde que ela apareceu e da minha boca saiu qualquer coisa com está bem.

    — Quando os trons se ouviram já andava tudo num virote.

    Fico de boca aberta a olhar para aquele rosto, envolvido em cabelos negros, que começava uma conversa parva, sem pés nem cabeça, mas que eu tanto sentia e amava. O coração serrano bateu mais forte e aí a pergunta saiu:

    — Onde estiveste? Que foi feito de ti, este tempo todo?

    — Nada que te diga respeito. Andei por onde andei, estive com quem estive …

    — E eu aqui a dar voltas à cabeça …

    — O problema foi ou é teu. Eu segui o meu caminho, andei por terras de Portugal. Nada nos liga. Nada me liga a nada e se falo contigo é porque gosto do timbre da tua voz.

    — Muito obrigado!

    — Não tens de quê.

    — Agora fala-me dos trons; li isso há tempos escrito por um cronista.

    — Do Mestre?

    — Não, de el-rei D. João.

    — Isso é o que tu julgas porque rei era na corte, em Lisboa.

    — Afinal, sabemos bem do que falamos.

    — Sabemos? Eu não sei do que falas. Falei de trons e de reis porque estudo História na Faculdade. Bom, vamos ver o rio?

    — Não. Contigo não vou, porque …

    — … o rio é tão largo que me faz lembrar o mar que nunca existiu na minha terra.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS VI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Estive sentado na primeira fila aquando do assalto frustrado ao Congresso dos “fascistas” do CDS a assistir ao assalto e destruição da sede no Largo do Caldas, a fazer de plantão na Central de Comunicações, na Ribeira, no 11 de Março, a sanear PC’s na Central de Correios, a beber copos com o Álvaro (Cabeça de Vaca) nas Escadinhas do Duque. Na Trindade, com o Canelas, madeirense, que depois do jantar gritava:

   — Rapazes, vamos tomar a bebedeira!, com um sorriso que abarcava meia Lisboa.

O velho Brito, anarquista, dos tempos do Jornal Batalha e dos atentados, infelizmente falhados, contra o Salazar. O Luís Pacheco, escritor, a quem rendo a minha homenagem, sempre mais bêbado que nós todos juntos, mas que se fosse chatear para a p*ta que o há-de parir não fazia mal nenhum. O Jaime, o Janita, os charros de “haxe”, as músicas que todos queriam fazer, os bares de p*tass que desfazíamos, as meninas queques que tínhamos, e eu, eu sempre à espera que Inês aparecesse.

    Desapareceram BR’s dos PRP, apareceram FP’s. Acabaram os fascistas de ontem, apareceram os fascistas de hoje. Os velhos donos deram lugar aos donos novos e o meu suspiro sem fim continua.

    Inês não aparece.

    Eu só lembrava os seus cabelos dançando ao som duma valsa que só ela ouvia. Lembrava porque a toda a hora ela estava presente.

    Muito antes, quando o Franco, “hijo de p*ta”, “caudillo de m*rda”, mandou para o garrote os rapazes dos GRAPO, Consulado e Embaixada de Espanha foram pelos ares, todos nós gritávamos a máxima da ETA: Viva Franco, mais alto que Carrero Blanco, ela estava presente. Sentia-a a meu lado, o olhar fundido com o rio de que ela não gostava, mas a sorrir, sem sorrir, do seu segredo.

    Tantos tombos, tantos bares, tanta mulher, cerveja a jorros, amigos até nos “sem casa” de qualquer lado de Lisboa, só faltam beatas e outras tais … Ela tem que estar próximo. Eu sinto-a, eu cheiro-a e vou encontrá-la. Voltar aos velhos lugares que nunca deixei, ao rio a que chamo nosso e a … Inês.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Era noite de Santo António e o bailarico corria.  

    Junto daquelas tábuas que serviam de balcão de bar, no meio de três ou quatro rapazes, estava a loira com o fio de ouro que eu procurava. Deixar mal o “prof.” nem pensar!

    Do coreto saía uma marcha bem esgalhada pela orquestra. Autêntico prego a fundo em Citro-arrastadeira e nós já estávamos bem no meio do arraial. Tudo preparado para a faena, o touro no centro da praça, agora só são precisos dois passes de muleta e é logo entrar a matar.

    O bom e o bonito é que o fio entra pelo meio de dois monumentos que me deixam a pensar em tudo menos no uso das técnicas ensaiadas. O que se passou não sei mas, quando dou por mim, o Chafariz de El-Rei servia de colchão e nem um nem outro se preocupou com os foliões que passavam, olhavam, riam e seguiam, porque é noite de Santo António …

    De regresso ao Castelo, alta madrugada, foi uma rua de Alfama a servir de leito.

    Uma loucura que o “prof.” não previra e que de certeza o obrigou a rever os seus manuais de actuação.

    Péssimo aluno, corpo saciado … mas com o buraco na alma que Inês deixou. Então soube o que era a obsessão, a paranóia.

    Precisava de ver Inês, o seu cabelo, a sua voz, para me encontrar.

    Inês não era a mulher que eu queria, Inês era o meu mundo.

    E Inês sem aparecer. Eu, contra tudo e contra todos, de volta ao “taft-taft” e à mosca.

    Fumo de cigarro, olhar vazio e alma desfeita.

    Outra conheci, companheira, amiga, amor nas horas de homem e de mulher.

    Um dia, subíamos o Parque Eduardo VII, ao cair da noite, com o olhar fixo no relógio porque “recolher obrigatório” era coisa que não faltava, passámos junto a um banco onde estavam sentadas duas pessoas fardadas de FAP. O que os levou a levantar num repente não sei, mas os muitos papéis que lá deixaram tinham uma assinatura: ELP. Arrebanhei tudo e entreguei-os na sede de um partido em que confiava, mas, dentro de mim, o coração batia forte e gritava:

    — Inês, porque não estás aqui?

    Adorava a minha companheira de momento, daria a minha vida por ela … mas era a Inês que desejava a mau lado. Naquele momento a pedra da história era oca, faltava-lhe o amor, o querer, o gozo, faltava-lhe … Inês.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

    Passaram os dias, semanas, meses … 

    Ela não voltou e eu sofri. Órfão numa terra que nada me dizia desde que a conheci.

    Lisboa com Inês, era o riso das gaivotas, o calor das gentes, o sorriso de amigos, o sol de Portugal, a recordação eterna do lugar onde nasci.

    Tinha o amor de pai e mãe no calor dos seus olhos, a paisagem da minha terra na curva dos seus lábios.

    Será que a perdi? Era a pergunta que não ousava formular. Inês era a minha vida, o Santo Graal que todos procuram e eu descobri.

    Alguém muito amigo também descobriu que eu mudara. Mudara quando conheci Inês e muito mais quando a sentia perdida.

    — Não esqueças, quando menos contares, truz-truz e aí está ela.

    Voltamos a passar as tardes naquele Castelo, a olhar turistas barrigudos e a ser olhados por gordas turistas de mamas grandes, olhos comilões e cabelo de rato. Nós a discutirmos as coisas do costume. Quem pintou na parede “O Leopoldo caga de pé”? A erva do Mário é melhor que a minha. Esta noite temos quatro tubos de prelo …

    Se a Inês me deixou órfão …

   Há todo um mundo para descobrir. O Castelo é a base, o Licas o professor.

    Em pleno PREC, ver o Licas de camisa branca com listas azuis muito finas, pulóver azul-escuro e emblema do CDS, das duas uma: ou havia desatino ou a erva era do melhor. Desempregado e a viver do que aparecia, mais a reforma da mãe, que não matava a fome a ninguém, toma-se de cuidados e aconselha o amigo:

   — Noite de Santo António é noite de fazer dinheiro. As chavalas vão aparecer cheias de fios, dá-se uma ou duas de esfrega no bailarico, aplica-se o corta-unhas no pescoço, quando ele cai a mão avança pelo meio das mamas, ela reage, esteja quieto e … já está. Sem tirar nem pôr!

    Seguir os conselhos do Licas nada mais fácil, mas o que saiu na rifa foi discussão política com um cantor que, há falta de melhores argumentos, despiu a camisa para que todos vissem o que sofreu na guerra colonial. Como tal, e pelo que cantava, ninguém podia pôr em causa que era homem de esquerda.

    Logo de seguida, e a propósito de um tal Hélder que tinha bufado à PJ que havia drogas no bairro, entrámos de rompão por uma porta discreta que havia na parede do Largo e, cinco degraus subidos, apanhámos com um grande terraço assente nas muralhas do castelo. Rio Tejo a perder de vista e o grande Ary, braços abertos, rodeado de farinheiras e salpicões  pão alentejano e queijos de Serpa vinho que já estava servido e flores iguais às dos jardins camarários a gritar:

   — Sirvam-se mas nada de barulhos.

   Ver  aquele corpanzil, melena a tapar o olho, o grito de comando do  palco e da vida, por nós há muito trocados por Joplin e Gil encolhemos os ombros e voltamos costas.

    Grande banquete … mas era deles e para eles ficou.

    Do Hélder nunca mais soube nada.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

     Inês pouco falou. Um comentário ou outro. E eu preso pelo trinado da sua voz. Na minha estratégia, conversa e mais conversa era coisa que não faltava, mas o sim e o não, o por vezes e talvez que saíam da sua boca faziam-me pensar.

    Que tinha nascido em Melgaço foi coisa que nunca escondi, minhoto 100%, anti-mouro quanto baste e amigo do amigo, tal qual meu pai me ensinou.

    — Estou a gostar do passeio e da companhia, mais ainda de te ouvir.

    Cântico do Zeca, lua cheia por entre o casario fazendo esquecer o fumo dos escapes, um sorriso para todos os loucos pobres da cidade, uma promessa de amor sempre cumprida, era o que eu sentia.

    Junto ao rio perguntou:

    — És mesmo de Melgaço?

    — Sou. Nasci dentro daquelas muralhas que os homens, mais que o tempo, têm derrubado. Com aquelas pedras foram construídas as casas de meus avós e tantas outras na nossa Vila. Porquê, Inês?

    Do rio já vinha uma aragem fresca e ela, levantando-se, espreguiçou-se com um sorriso.

    — Nada. Havemos de voltar aqui, mas por hoje chega que a noite está a arrefecer.

    Um beijo na minha face, um sorriso e Inês voltando as costas, desapareceu na noite com os cabelos dançando ao som de uma valsa que só ela ouvia.

    Quando nos voltámos a encontrar nem taft-taft, nem mosca existiam.

    O meu sorriso e o brilho nos olhos de Inês eram o mundo.

    Voltámos ao rio.

    — Não gosto deste rio. É grande como o mar … nunca gostei do mar.

    — Então porque vens aqui?

    — Nas águas do rio reflecte-se a minha alma, as montanhas com neve, o verde, verde da Primavera …

    Inês calou-se e eu sorri. Na verdade, sempre soube que a conhecia.

    — E, no Verão, o amarelo de …

    — Não digas mais. Vamos só olhar o rio.

    — Quem és tu?

    — Sou a Inês.

    Fiquei desarmado, mas a ansiedade no meu rosto fez com que o seu sorriso se alargasse cada vez mais e, beijando-me na face à laia de despedida, “disparou”:

    — Quem sabe, talvez um dia te conte a minha história.

    Os seus cabelos voltaram a dançar e ela desapareceu na noite.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INES II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Quem é ela? Quem é? Porque é que a conheces tão bem? Quem é? Lembras-te bem dela. Quem é? Quem é … quem é … quem??? Éééé …? quem?

    Apetece-me blasfemar, gritar bem alto … quem é ela?

    Quando levanto os olhos para a mesa em frente e … aí está!

    Quem é? Está sentada a beber a bica, a olhar o vazio.

    Fiquei estarrecido. O “taft-taft”, o quem é, o finalmente ela chegou, o é hoje, é hoje, bateram-me no estômago. Autêntico K.O. De repente, a força dum conhecimento antigo ao olhar novamente para ela acalmou-me. Sim, conhecíamo-nos há muito. Muito tempo e chegou a hora de nos reencontrarmos.

    A mosca do empregado, vindo não sei donde, fez-lhe o troco e quando eu quis reagir … ela saía do café. Fiquei como uma estátua e na cabeça uma martelada, é ela … ela! Elaaaa … Só lhe falta o nome, mas é ela …

    No quiosque, à saída, encontrei-a. Aí explodi:

    — Olá! …

    Olhou-me com um sorriso nos lábios e, como velhos amigos que se reencontram, gargalhou:

    — Olá …

    Feitas as compras e as apresentações, a sensação do murro no estômago voltou.

    — Chamo-me Inês

    Tinha um ligeiro sotaque que me fazia lembrar alguém … um lugar … não sei o quê.

    Um passeio pela Avenida, naquela noite de Verão, conversa … sussurro, sentados na relva a ouvir ao longe o barulho do trânsito, o Mozart que eu curtia, Frederico gregoriano em missas que eu não assisti …

    Os bombos e as gaitas de foles, o tio Miro e os putos com faixa vermelha à cinta e tigela no Ti Raul, para baixo porque para cima a paragem era na Maria do Nau …

    Cheirava ao estanho do Frederico, aos ácidos do Pires, ao som do Reinales e à reguada do Professor Afonso.

    Afinal, e proposto por ela, fomos para junto do rio.

 

(continua)

 

ENCONTRO COM INÊS I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Antigo café Gelo - Rossio

 

 

    Era uma vez! …

   Eu gostava que assim fosse mas infelizmente só nas histórias dos outros  acontece. Eu, simples mortal, a penar em Lisboa, não tive direito a um começo assim mas verdade seja dita ainda bem que tal não aconteceu.

    A vontade de rir é enorme. Porquê? …

    Mulher, tão simplesmente.

    O que terá esta mulher de igual e de muito, muito diferente das outras para ser mais do que uma conhecida, uma íntima, e não a conhecer de lado nenhum, tirando as duas ou três vezes que a vi sentada à mesa do café?

    Este café continua a encher-me a cabeça com o “taft-taft” da ventoinha. O fumo do 20º. ou do 30º. cigarro, meu e dos outros, um nevoeiro de cortar à faca. Sinto-me bem neste café por isso aguento. Aguento todos os dias, mesmo quando não quero, quando estou chateado, quando estou contente, mesmo quando estou … eu. Este é o meu café.

    O empregado que serve a “bica” faz-me lembrar a mosca que não deixa de aborrecer o parceiro da mesa ao lado. Se calhar é o laço! O laço que o empregado usa é parecido com uma mosca. Só asas e sem pernas. É pena não haver próteses para as moscas, assim o laço do empregado não era confundido com as moscas. Ou já viram um laço de muletas ou coisa do género?

    O laço, a mosca, o empregado e, já agora, as muletas. Se não levam a mal, as muletas são de pau. De pau, madeira, pau, mesmo pau.

    Só o barulho do “taft-taft” é que já chateia. E o empregado à volta da mesa, que clientes é coisa que não há.

    Chegou a hora dela entrar. Certinha. E se a ventoinha já me tinha dito, há muito tempo, para me ir embora agora era dar à sola e espairecer noutro lugar.

    Não foi por ela que fiquei, muito menos pelo barulho da ventoinha e da mosca nem falar.

    Olhei-a! …

    Falar nem pensar. Não a conhecia. Esperar mais uns dias…

    Poderá dar ou não, mas como sempre fui homem de coragem, resolvi: é amanhã. Pomos tudo em pratos limpos, porque se for loiça de Sacavém temos negócio.

    É já hoje o amanhã prometido. Acabar o jantar, esfregar as mãos com um sorriso de deuses e nem a mosca do empregado nem o “taft-taft” da ventoinha seriam deste mundo.

    Táctica escolhida pelo caminho: andar devagar que hoje sou eu o 2º. a chegar.

    Carros, rostos, montras, pés, cigarro e mais cigarros, tornar longo um caminho curto chega a ser doloroso.

    Agora é que é … já vejo a mosca do empregado, já ouço o barulho da ventoinha … entro com qualquer pé e … e … nada. Ela não veio! … Em seu lugar veio a “bica” e a mosca ou a mosca e o empregado. Empregado com “bica” e mosca. Sei lá … Bebi a “bica” e o barulho da ventoinha gozava comigo.

 

(continua)

 

MELGAÇO EM 50

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

Toda a gente pode ver,

Só os cegos é que não:

A nossa vila sem querer

Tem todo o mês de sofrer

Nas ruas reparação.

 

Janeiro rebenta o cano

Mesmo ao cimo da Calçada

E o Carriço todo ufano,

Como fez já no outro ano,

Deixa a rua levantada.

 

Vem a seguir o Fevereiro,

Cujo frio nos põe torto

E o Carriço, prazenteiro,

Ele só, sem companheiro,

Levanta o Rio do Porto.

 

Mês de Março mais que certo

Rebenta o cano outra vez

E o Carriço que é esperto,

Deixa outro buraco aberto

Como fez já no outro mês

 

Como o cano tem feitiço

Faz buracos mais de mil;

Fez buracos o Carriço

Levantando, mas que enguiço!

Três ruas no mês de Abril

 

Maio e Junho, já mais quente,

Lá está o Carriço à prova

A fazer todo contente

Mais um buraco indecente

No largo da Feira Nova.

 

Mês de Julho o tal canito

Dilata com o calor

E o Carriço, que é bonito,

Lá faz mais um buraquito

À porta do Regedor.

 

A rua Velha, em Agosto,

Levantada de surpresa

Ficou com rugas no rosto,

Que nem o maior desgosto

Lhe poriam com certeza.

 

Setembro de São Miguel:

Buracos na rua Nova,

Pois os canos de papel

Este mês rebenta o fel,

Mas vão de novo p'ra cova.

 

Meses de Outubro e Novembro

Como a coisa já é sabida

O Carriço, que é bom membro,

Fez buracos na Avenida.

 

Dezembro, mês de Natal,

Dos filhós, das rabanadas,

Das neves e das geadas

E da paz universal,

Tu és o mês mais feliz

Porque as ruas de Melgaço

Toda a gente assim o diz,

A ti não te deu cansaço.

 

E sabe o leitor porquê?

Julga afinal que tal cano

Não tornou a rebentar?

Tornou, sim; mas neste mês

A Vila de lés a lés

Não tem mais que levantar.

 

 

FAIJ

  

MELGACUS E AS DEUSAS

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Foi por este caminho de sabedoria, declarou o druida, desfazendo as brumas que sempre acompanham os celtas e seu panteão, que o clã Melgacus teve de romper. Mulher das conchas, outrora mulher das carvalheiras, hoje Grande Senhora da Mãe, traçou na areia do rio o sinal de posse da terra e área de pescado onde cravou a estacaria que suporta a cabana lacustre onde irá esperar a chegada da lampreia e do sável que irão ajudar o castro a solidificar a sua independência.

    O clã e a tribo misturam-se com os primeiros nascimentos que durante dois séculos irão consolidar a sociedade deste guerreiros que passaram os montes Pirinéus cerca de 900 anos antes.

    Outras tribos desceram os rios e encontraram os Iberos, nativos que os conduziram à guerra contra Roma e contra a cultura grega de pensadores e filósofos. Melgacus de cuja existência se falava nos hermínios, juntou-se a Viriato nos festejos de imposição das virias ao grande libertador.

    Abençoados pela Grande Mãe a caça do corso e porco bravo ultrapassou as necessidades dos guerreiros, a cerveja era um rio transbordante e os bardos fizeram-se ouvir noite dentro com os pífaros e pandeiros a marcar o ritmo dos druidas contadores da história da Mãe gaulesa.

    Tocou o pónei em direcção à cabana que acolhia as noviças da Deusa dentro dum círculo de castanheiros, macieiras e figueiras, máximos da dádiva do druida que acompanhava a sucessora.

    O ribeiro estava perto, o banho nupcial só aguardava a presença do eremita que tudo guardava com desenhos à mistura da vida no castro. Foram os desenhos que ligaram a tribo aos iberos rústicos e a mais uma força guerreira.

    Cruzaram-se e nasceram os Celtiberos, Celtas nascidos no clã que se renderam ao sorriso das Iberas morenas, castanholas, touros e romanos a quem dar porrada.

    Do lago partiu o grito da Deusa, o pónei passou por entre as silvas cobertas de amoras e subiu dolente a encosta da nova Terra Mãe e o destino saltou das mãos da vidente, a vaca e o touro frente a frente; mouros, cuidai-vos, o dragão soltou o fogo que nos vai aquecer até à chegada do Deus Leão.

    Mais amoras e morotes dos valados acompanham Melgacus.

    O chefe dono das virias ajoelhou, espada no peito de Morgana, declarou os castros de Melgacus e Cevidade terra livre do destino.

 

Camborio Refugiado

 

MELGAÇO OU MELGACUS O CELTA

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Uma hora de gaitas e pandeiros com que os bardos choram o desterro dos homens face à alma imortal de Imloc senhor da Deusa em todas as formas humanas e, cortador de cabeças guerreiras, levam o celta a pensar.

    A Deusa mostra o caminho que te leva à Terra das Promessas, a Terra das Mulheres, a Ilha das Duas Brumas, a ilha das Macieiras – Avalon.

    Melgacus o Celta dormita cambaleando, o olhar cerrado passando o castro da Cevidade que foi levantado bem junto ao ribeiro a que os seus homens chamavam Depois do Leths.

    Falta a guerra e o treino puxado acaba num chapinhar de água.

    Os montes de Laboreiro, onde o druida passa a maior parte do tempo meditando na penedia chamada pelos antigos de Meadinha e fazem a fronteira entre a ribeira de bom peixe e o painço que dá de comer à tribo nos dias de inverneira, quando os córregos do equinócio gelado esperam pelo Deus Sol para soltar as suas águas terrosas, o lobo e a raposa se escondem no mato batido pelas matilhas onde o Mosquito manda e o Nero obedece, Melgacus o Celta sonha.

    Milhentos já são os homens, que debaixo duma tira de linho pintado com o dragão sagrado, recordação da Deusa Morgana a que Merlin não resistiu e juntou o leão trazido por César, ditador de Roma e do Império, lutam por morte honrosa em nome da Deusa Mãe Terra das Brumas de Avalon., Porca Branca Velha senhora das rochas do mar.

    O cheiro enjoativo do sargaço ao sol, adubo para o ano todo, leva-o a pensar nos dias passados entre remos e velas até descobrir a terra das enguias e salmão, das neves, flores e maçãs a que a tribo deu o seu nome.

    Melgaço,Terra de Melgacus, senhor das virias, rei das tribos da riba Minho, conquistador na terra gaellica.

    Trompas de caça sacodem o resto da neve que resiste nos ramos baixos à passagem dos cavalos que correm prontos a mordiscar a erva rala e queimada em volta dos carvalhos que descem desenfreados até às margens do Minho.

    Melgacus o Celta passeia os dedos sobre a lamina da espada e relembra o fracasso de encontrar minério para a forja não parar e os artesãos terem cobre e ferro para trabalhar.

Os barcos correm no leito do Minho, um para cima para baixo que promete não acabar, mas o negócio da troca de alimentos e metais não conhece desenvolvimento.

    A pastorícia está a aumentar e cada vez há mais jovens guerreiros a contactar nos jogos de guerra com a população nativa. O castro está em expansão e nos campos semeados bandos de crianças gritam atrás das borboletas. A cevada não vai faltar para as festividades do Solstício e a cerveja no rio está a refrescar. Que o Baco dos romanos nos proteja nesse dia em que a Deusa nos vem visitar para abençoar a erva sagrada trazida de longe, do outro lado do mar, ao depois das colunas de Hércules.

    Da garupa do cavalo sorri da actividade que reina no castro coberto de ténue neblina.

 

Camborio Refugiado

 

ZÉ DAS PETAS III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

 MÁGUAS DA D. LÂMPADA

 

 

Penduraram-me

Para quê?

Nuns fios retorcidos de metal

Mas… e a luz?

… Nem sinal.

A minha utilidade

É a de dar à luz

Quando há

Electricidade.

Dar a Melgaço um ar

De Civilização,

O progresso mostrar

A este sertão.

Mas a falta de energia

Tudo isto contraria.

O fio vem

D’além da Galiza.

Mas nada por ele passa

Nem desliza.

Estando vento

É um tormento.

Se a chuva cai

Mal se me vai.

Se está calor

É um horror.

Se nem venta nem chove

A electricidade não se move.

Tempos a tempos, raramente,

Surge misteriosamente.

Mas à tarde,

Sem alarde,

Sem tirte nem guarte,

A luz parte.

O povo manso e ordeiro,

Acende então o candieiro,

E às vezes sem reparar

Que ela já regressara.

Luz tão débil e fugaz

Vais e vens quando te apraz.

Não me seduz

A tua luz

De Pirilampo fraco e vil

Duma energia… senil.

Mas sendo das luzes a pior

Consegues avançar o contador

Para o Torcato mensalmente

Ir apanhar dinheiro à gente.

 

Transcrição da 3ª página de Zé das Petas, que é completada com desenho de D. Lâmpada.

 

Autores:

Vasquinho na escrita

Manuel Igrejas no desenho

 

Camborio Refugiado

  

ZÉ DAS PETAS II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

ARRELIAS

 

— O sôr “chanfer” quer uma ajudinha?...

— Se me arranjasse umas câmaras novas…

— Home goberne-se côas que tem.

— Estas já deram o que tinham a dar. Tapei-lhe todos os furos, mas outros logo apareceram.

— Por onde andou vomecê p’ra ficar com as rodas neste estado?...

— Nem me fale tio Zé. Tive um frete p’ra Cabana e ia ficando sem carro. A estrada é nova mas tem cada trincheira, que até servem para plantar videiras…

— Olhe que a vinha tamem faz falta.

— Faz… mas o diabo da estrada foi um grande furo…

— Sim mas essa Cambra é um verdadeiro cribo.

— Olhe: este aqui foi ao pé do correio. Ia a dar a volta junto daquele jardim, que tem um buraco ao meio, e veio de lá uma bufarada… outro furo.

— Pois olhe que esse buraco, que está no jardim do Sôr Cardoso, é uma retrete nova com todas as modernices.

— Será… mas tive de ir consertar o pneu para longe. Só com mascaras contra gazes se poderá descer àquela nitreira.

— O sôr é muito esquesito.

— Este aqui, foi já a tempos em frente à Samaritana… Mas que valente furo esse! Ali calhou-me bem: tinha lá um miradouro, com erva fofinha onde pude trabalhar à vontade.

— Vomecê é burro. Aquilo não era um miradouro.

— Então era ring.

— Não, era um palanque para uma museca pequena. Mas como as festas cá já acabaram, e com elas, a nossa museca; resolveram acabar com ele para os rapazes poderem melhor jogar a bola.

— Depois quando ao dar a volta pela avenida marginal… Outro furo.

— O que lhe valeu foi o local ser bonito.

— Sim, é muito lindo e não lhe faltam as escadas de salvação.

— Por ultimo, em frente àquele armazém; o mar tornou-se bravo e… outro furo.

— Qual armazém? Aquilo é o mercado. E qual mar? O mar está longe, lá para Caminha.

— O mar, tio Zé, o mar dos motoristas é o piso irregular destas ruas.

— O sôr é um maldoso. Mas para castigo tem que se haver co essas cambras que num prestam para nada. Avie-se que é quasi noite.

— Não que eu já parei ao pé deste candieiro.

— Ah!Ah!Ah! Candieiro!? Estes carecas só servem para vista. Não se pode contar com a sua luz.

— Sim como certos cérebos que eu conheço…

— Adeus, sôr chanfer. O sôr é mais ilustrado e disse o que eu queria mas não sabia dizer.

— Obrigado, veremos se para o ano, com câmaras novas… Terei menos furos…

 

Transcrição da 2ª página, que é acompanha de desenho do Tio Zé e do sôr chanfer.

  

Autores:

 

Vasquinho na escrita

 

Manuel Igrejas no desenho

 

ZÉ DAS PETAS I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

Ano 1º     Terra do Frade, 1 de Abril de 1950    nº 1

 

 

… TÕDA A QUE PISA ÊSTE ESPAÇO É… MALDIZENTE…

(REI DOS FRADALHÕES)

 

 

O ZÉ DAS PETAS

 

- ANUÁRIO LOCAL -

 

DESENGRAÇADO DEFENSOR DESTA ENGRAÇADA TERRA

 

Proprietário e Editor

Rei do Cotão

 

Redactor

Um Troglodita

 

Director

Espírito do Frade

 

Redacção e Administração

Avenida dos Desportos

(Que liga a Feira Nova à Rua do Rio do Porto)

 

VOZ – DO ALEM TÚMULO

 

Oh débil geração da bomba atómica! Ó enfezada gente estesicada por um magro racionamento e abandalhada pelo vil espírito da ganância!... Não me conheces?

Repara nestas suissas, fartas e galhofeiras. Elas encobrem a magreza do rosto; substituem a bonacheirona gordura que se foi!...

Eu sou o “ O Zé das Petas”, primo carnal do Zé Povo.

Digo as verdades como se mentisse… porque mentindo melhor me acreditas.

Eu sou um desconhecido “medium”, do ilustre Fradalhão de outras eras.

Daquele frade cujo soneto evocas a cada instante.

… “aqui de gente boa pouca resta “…

Eis-me, pois, encarnado no “Zé das Petas”, para te mostrar as coisas risíveis da tua terra.

Esforça-te por rir comigo e, se souberes rir, ficarás a fazer parte do pequenino grupo de gente boa.

 

Rei dos Fradalhões

 

 

O que buscas orfãozinho

Assim vestido de preto?

Eu, pobre desgraçadinho

Busco, o Morais, o paisinho

E também busco o coreto.

 

A tua mãe onde está?

Não sei se é viva se é morta,

Andava a passar, p’ra lá

Em companhia do Ná,

Tripa no tempo da “Frota”.

 

Agora não tenho pai

E mãe decerto morreu,

Razão porque ando de preto,

Mas o pequeno coreto

Onde é que ele se meteu?

 

Esta é a transcrição da 1ª página do nº1 do jornal O Zé das Petas, editado no dia 1 de Abril de 1950. A acompanhar os textos, há uma caricatura do Mestre Morais, e dois desenhos.

 

 

Autores:

Vasquinho na escrita

Manuel Igrejas no desenho

 

CENTRO DE ESTÁGIOS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

É com muito orgulho que dou os parabéns à Câmara Municipal de Melgaço pela política de utilização e desenvolvimento do Complexo Desportivo de Melgaço. Esta semana fiquei a saber  que o jogo entre o Atlético de Valdevez e o Nacional da Madeira se irá disputar no nosso estádio do Centro de Estágios para garantir a transmissão televisiva. Ora, significa para mim, que o Centro de Estágios foi pensado para não ser uma ''obra do regime'', como já a ouvi chamar, mas como uma mais valia para a nossa terra de que todos os Melgacenses se devem orgulhar e aplaudir o trabalho da Câmara Municipal na figura do seu presidente Rui Solheiro.

O Sport Luanda e Benfica pela terceira vez inicia a preparação da equipa em Melgaço.

O FC Vaslui da Roménia acabou o estágio de preparação em Melgaço.

O Celta de Vigo é cliente habitual.

O Marítimo vem da Madeira.

E muitos mais apontaria, porque sei que por lá pasaram, se para tal tivesse memória.

Somos um concelho exportador de mão-de-obra, com os seus filhos espalhados pelos quatro cantos do mundo, mas somos também um concelho vivo, que por via do trabalho de um homem e das suas equipas, ergueu bem alto, muito alto, o nome de Melgaço, a nossa capacidade de trabalho, a riqueza de tratode quem nos visita.

Hoje recebemos o Mundo.

 

Ilídio Sousa

 

DE MELGAÇO PARA LISBOA

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    O jantar hoje foi na cantina.

   — Bora, corre que ainda apanhas esse!

   O amarelo subia a rua da Conceição para o Bairro Alto.

   Saltei na Misericórdia - dez horas, baril para começar a noite.

   Uma espreitadela ao Estibordo, bem composto, boa gente; na Pequena Trindade o costume – 2 ou 3. Espreito outra vez, Herberto na curva do balcão, cabeça baixa, um copo à mão.

   Ná! vamos à Trindade.

   Empurro a porta, a esta hora o vidro não pesa.

   Do lado direito mesas ocupadas, do esquerdo vazia a do costume. É a primeira junto à porta que nunca se abre, não presta, o empregado anda quilómetros para lá chegar. Na seguinte, está o Vitorino e o séquito alentejano. Bons rapazes e no meio deles, de costas, o Jaime, bom amigo das Galinheiras. Dá um jeito nos coros do Vitorino ou do Zeca. Uma  palmada no ombro, um S para contornar o Agostinho e bandeja carregada de cerveja.

   Dou de caras com o Cabeça de Vaca, copo firme na mão e olhos a faiscar. Num segundo decido e paro, apesar, de ir contra os meus princípios de nunca parar sem primeiro dar a volta às salas e ao jardim. Está irritado e não mostra ter bebido muito; está mesmo irritado de p*ta madre.

   — Ei Álvaro, que passa homem?

   — Passa o caralho, levei a tarde toda com o Pacheco.

   Álvaro, Cabeça de Vaca, que o Luís Pacheco assim baptizou.

   Dupla mais que explosiva.

   É melhor andar, mas quem me mandou a mim parar?

   Atravesso a sala pelo corredor do lado direito para ter melhor visão do que se passa ao balcão e nas mesas próximas.

   A sala terceira não interessa, é para os turistas, os gajos da linha, dos arrabaldes, dos fora da vida.

   O outro Vitorino, ataca um bife, mais a filha Maria cada vez mais bonita.

   O Sérgio vem do jardim, duas louras, boas, a reboque e diz um olá na saída à mesa dos alentejanos.

   Controlar todos, para não haver surpresas, já que os cantadores - diz-se – andam de trombas. O Zeca e o Sérgio já trocam ditos no jornal!

   No balcão, encosto para o lado dos da Damaia.

   Pencudo e Ruizinho mais a Galinha, o melhor para começar a noite. Bebe-se e discute-se, Vian e a Espuma dos Dias é o tema.

   Passa o Brito, velho de oitentas, amigo de meses, lenço preto ao pescoço – a maior parte das vezes é a meia preta da mulher - que já vem da FAI, coluna Durruti, cadeia na Argentina, anarquista, sóbrio e editor do jornal m*rda,  mais o Xoan etarra de passagem para as suas lutas que também queriamos nossas.

   Bebemos, o Ruizinho satisfeito porque arranjou uma de figurante;  preocupado porque tem que apanhar com o Semedo.

   — O homem é mesmo chato nas filmagens – diz o Ruizinho.

   — Caga nele – sentenciou a Galinha –  é uma semana a entrar nota.

   — Vamos ao Coliseu, atira o Pencudo, temos a Consuelo e o Pepeu Gomes.

   Acertamos em cheio!

   Sala vazia e concerto intimista para umas cem pessoas.

   Solos de guitarra de arrepiar cabelos, uma voz cava, negra e tambores de selva. O rapaz da percussão, quem sabe, ofuscado pelos cabelos negros que giravam à volta da cinturinha da rapariga de verde, bateu pele até à ultima. Acabou de rastos e ela sorrindo desapareceu na Cidade da noite.

   Meia-noite, vamos a subir as Escadinhas do Duque.

   O refúgio de monges recebe-nos com três filas em frente ao balcão.

   O Canelas já lá está, acena-me  com o Fura Fura do Zeca.

   — Para ajudar à bebedeira - sopra por entre vagas de ar de cerveja.

E curtir as sete mulheres do Minho, mulheres de grande valor… (penso eu).

   Fazemos companhia uns aos outros num copo ora cheio ora vazio.

   — A Comuna tem Dário Fo, no Foz amanhã passa Pasolini.

   Acenei a ninguém e procurei um fogareiro.

   Santana à Lapa e vou até ao Zodiaco ver a Margarida, gorda, sexy, simpática, amiga, um ombro na noite.

   Encontrar o Júlio e o Zappa, cerveja para acompanhar.

   Bar, mesmo com a Margarida e o Zé Gordo como anfitriões, só dá para mexer a cabeça, o corpo está tenso.

Quando é que tu apareces?... não há chavalas sem guarda-costas! 

   — Estás bom…– o Fredy, baixo dos Tantra – faz sinal.

   Amigos, os olhos de Margarida a seguirem-me, um beijo quando subi as escadas; um beijo dourado.

   Táxi na Santana Á Lapa, Bolero na Judiaria, o destino.

   O Jaime tinha mesa com três a acompanhar, duas mamalhudas e um pára-quedista que deu à sola quando puxei a cadeira da mesa ao lado.

   Malhavam em inglês e eu pronto a dar o salto quando soou uma palavra em francês.

   A mamalhuda da esquerda ficou para mim; Paris a minha Paris da Villette às Halles, do Tony e dos bailes na Rue de la Pompe, do consulado com argolas nas paredes tal qual as masmorras de Napoleon, os bailes da Bastilha com o Pepe e o Zorro.

   É melhor o corpo que o espírito da alemã que falava francês e não sabia o que foi Champigny.

   Dormir em pensões não é petisco que me agrade mas como entro às 6 da manhã no trabalho o melhor é não armar em esquisito e passar uma vintuinha para ser acordado a horas – indecentes – não vá o Diabo tece-las.

   Quando o sol ainda está escondido começo a dividir as cartas que os nossos vão receber no dia seguinte, noticias ora boas ora más ou nem uma coisa nem outra.

   Dez da manhã, subo a do Ouro e um dos que não viram o nascer do sol, a trabalhar comigo, atira:

   — Moedas p’rá ginjinha.

   Ganhasse ou perdesse o cálice estava sempre cheio.

   Onze horas, caio na cama.

   Despertador para as 4 com pequeno almoço às 5, o dia está a começar.

 

 Camborio Refugiado 

 

13 DE MAIO DE 1806

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Antigo Quartel de Cavalaria de Viana do Castelo

 

Patente passada em o quartel general de Viana pelo tenente general dos reais exércitos, encarregado do governo das almas do Minho, nomeando António Fernandes de Guimarães, da freguesia de Golães, termo de Guimarães, para tenente do facho da serra de Fiães, entre Melgaço e Fiães, lugar vago por demissão de Bernardo José de Oliveira, para corresponder os seus sinais com os do facho da serra da Cumieira.

 

Deliciosamente desviado de pedraformosa.blogspot.com

 

 

29 de Janeiro de 1596

 

Em 1595 o Mosteiro de Folques é anexado ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (um dos mais importantes mosteiros do nosso país), já que ambos seguiam a regra de St.º Agostinho. Alguns anos depois, mais precisamente a 29 de Janeiro de 1596, o Papa Paulo V autoriza a anexação das rendas do Mosteiro de S. Pedro de Folques e do Mosteiro de Paderne (actualmente uma freguesia do concelho de Melgaço, no Minho) com vista à edificação (e mais tarde, à manutenção) do Colégio da Sapiência (também conhecido por Colégio Novo ou dos Órfãos) na cidade de Coimbra.

 

Mosteiro de Folques – Amoreira, Pampilhosa da Serra

 

Deliciosamente desviado de amoreira.no.sapo.pt

 

Camborio Refugiado 

 

ARMAS DO MUNICIPIO III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

E assim, proponho a seguinte ordenação heráldica para as armas, bandeira e sêlo desta vila:

 

ARMAS – De prata com um monte de negro, sustendo um castélo de vermelho aberto e iluminado do campo e acompanhado por dois leões de vermelho armados e linguados do mesmo, sustidos no monte, afrontados e sustendo, em chefe, nas mãos, uma quina antiga de Portugal de azul e com onze besantos de prata. Em contra-chefe, três faixas ondadas, duas de prata e uma de azul. Corôa mural de prata de quatro torres. Listél branco com os dizeres “Vila de Melgaço”.

 

BANDEIRA – De vermelho. Cordões e borlas de prata e de vermelho. Lança e haste douradas.

 

SÊLO – Circular, tendo ao centro as peças das armas sem indicação dos esmaltes. Em volta, dentro de círculos concêntricos, os dizeres “Câmara Municipal de Melgaço”.

 

Como as peças representativas da história local são de vermelho, a bandeira é desta côr. Quando destinada a cortejos e outras cerimónias, deve ela ter a área de um metro quadrado e é bordada em seda.

A côroa mural de prata de quatro torres é a que está oficialmente estabelecida para caracterisar as vilas. O campo, o aberto e iluminado do castélo e as faixas do rio, são de prata porque êste metal significa heraldicamente humildade e riqueza.

O castélo, representando o valor da praça de guerra, e os leões, representando a heroicidade e patriotismo dos seus naturais, são de vermelho que é o esmalte que heraldicamente simbolisa a força e a vida e significa victórias, ardis e guerras.

O negro do monte simbolisa a terra e significa firmeza, obediência e honestidade.

Os rios são representados heraldicamente por faixas ondadas de prata e azul. O Rio Minho fica portanto aqui representado. O azul significa zelo e caridade.

E assim a história local e o valor dos naturais ficam simbólicamente representados.

Se a Câmara Municipal de Melgaço concordar com êste parecer, deverá transcrever na acta respectiva a descrição das armas, bandeira e sêlo, enviando uma cópia autenticada, acompanhada de desenhos rigorosos da bandeira e sêlo, ao Sr. Governador Civil, com o pedido de o enviar à Direcção Geral da Administração Política e Civil do Ministério do Interior para, no caso do Sr. Ministro aprovar, ser publicada a respectiva portaria.

Lisboa, Abril de 1935

Affonso de Dornellas “.

A Comissão Administrativa desta Câmara, concordando em absoluto com o parecer transcrito, aprovou-o por unanimidade, ficando encarregado o Sr. Presidente de mandar elaborar os desenhos rigorosos da bandeira e do selo, a-fim-de ser pedida a aprovação ministerial e consequente publicação da devida Portaria no Diário do Govêrno.

 

 

Camborio Refugiado transcreveu.

 

ARMAS DO MUNICIPIO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    A muralha foi naturalmente recontruída ou melhorada, ou aberta a porta onde estavam as armas. Aquêle escudo marca a época de D. João II e marca uma obra do seu tempo. Ainda para justificar esta razão, temos o que sucede na fortaleza visinha, de Monção. A mais antiga obra que conheço, que trate de armas municipais, é da autoria de Rodrigo Mendes da Silva e chama-se “ Toblacion General de España sus trofeos, blasones, etc.” Madrid – 1645. Sobre Monção, diz: – … D. Dinis … la aumentó, y cercó de murallas, fabricando el castillo. A que añadió el Rey D. Juan II otra cerca cõ troneras, y barbacanas; poniendo en la puerta dicha Baluarte, el Pelicano de su divisa.

   Ora, se D. João II construiu outra cerca em Monção, onde foi colocado o se embelema particular, é natural que ali tam próximo, em Melgaço, tivesse também construído outra muralha, o que parece fóra de dúvida, visto que ali figura também o embelema particular dêste Rei. Por conseguinte o pelicano é erradamente usado pelo Município de Melgaço, visto que nada tem com a sua história guerreira ou económica. Melgaço está na fronteira, tendo o seu castelo ajudado a manter a integridade portuguêsa. Portanto, o mesmo castelo deverá figurar nas suas armas. Reza a tradição que Melgaço fica no local do Castelo do Minho, fortaleza árabe que já estava deserta no inicio da fundação da nacionalidade, vindo portanto dêste castelo a nome da região. Teve esta vila vários forais e grandes previlégios para si e para os seus habitantes que durante séculos se mantiveram em permanente pé de guerra, entrando nas respectivas lutas com o paiz visinho, sendo a heroicidade hereditária nas famílias de ali naturais. Foi ainda Melgaço a primeira praça de guerra portuguêsa que espulsou os soldados de Napoleão.

   Enfim, a história guerreira de Melgaço merece bem que fique perpetuáda nas suas armas, salientado bem o espírito heróico dos seus naturais.

 

ARMAS DO MUNICIPIO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

PARECER DA ASSOCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS PORTUGUÊSES

 

O Sr. Presidente (da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Melgaço) apresentou um oficio do Secretário Geral da Associação dos Arqueologos Portuguêses, datado de vinte e dois de Maio do corrente ano (1935), o qual faz remessa do parecer sobre a bandeira, selo e armas desta vila, elaborado pela Comissão de Heráldica e aprovado em sua sessão de sete do referido mês, o qual é como segue:

“ Parecer apresentado por Affonso de Dornellas à Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueologos Portuguêses e aprovado em sessão de 7 de Maio de 1935. Desejando a Câmara Municipal da vila de Melgaço que se estudassem as suas armas, foram colhidos os elementos julgados necessários para formular o parecer seguinte: Para marcar os seus impressos tem a Câmara de Melgaço usado uma bandeira que incolue um pelicano dentro de um escudo encimado por uma côroa de fantasia. Nas antigas muralhas de Melgaço, que já não existem, estavam sobre a porta voltada ao nascente, dois escudos esculpidos na mesma pedra, incluindo as quinas de Portugal do tempo de D. João II ou posteriores, tendo a quina do chefe acompanhada de dois castelos, sendo o escudo encimado por uma côroa aberta. Temos a certeza de que estas armas do pelicano não foram ali colocadas com intenção de representarem o Município pois não seriam então representadas em fórma de escudo encimado por uma côroa aberta. Néssa época, quando se esculpiam os símbolos municipais, eram sempre em fórma de escudo e, alem disso, tratando-se do município, nunca aparecia a corôa.

A corôa simbolizava o Rei, os Príncipes, os titulares e nada mais. Êste escudo ainda poderia ser atribuído à família Gomes, se não tivesse uma corôa real aberta, pois as armas desta família teem um pelicano alimentando os filhos. O ilustre escritor Dr. Figueirêdo da Guerra, no seu trabalho sobre os castelos do distrito de Viana – do – Castelo, diz que na primeira dinastia foram alcaides de Melgaço, membros da família Gomes de Abreu. Mas, tudo isto cai pela base, visto que as armas ali esculpidas teem corôa real e como as quinas que estão no escudo ao lado, são de D. João II ou posteriores, porque estão todas pendentes, temos a certeza de que o pelicano que ali se vê não é mais que o embelema particular de D. João II, que era colocado em todas as obras que construíu como sucedeu depois no tempo de D. Manuel com a esfera armilar e como sucedeu também com o camaroeiro no tempo da rainha D. Leonor, Viúva de D. João II.

 

A GRANDE GINCANA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Os parceiros deram o empurrão inicial no alto da ladeira. Lá veio o Carriço, tenso, teso, corda-guia retesada nas mãos controlando a direcção, pés fincados no sarrafo estribo, curva e contra curva, sobe um ressalto e desce mais desenfreado, parecendo um bólide. Com a mão direita acciona o travão que obedece, o carro pára derrapando um pouco; cumpre a primeira tarefa.

    De novo no carro disparado até a segunda tarefa. Cumpre-a. Mais curvas, uma bem inclinada. Sobe e desce uma rampa de madeira em balanço. Vai saindo-se muito bem, com rapidez nas tarefas e velocidade no carro.

    A cada missão cumprida o público aplaude freneticamente. Nas paragens um fiscal observa a correcção do cumprimento do regulamento.

    Não lembro bem as obrigações que os participantes tinham de cumprir.

    Algumas eram: enfiar um pau numa argola suspensa, em pé em cima do carro; quebrar uma bilha de barro de olhos vendados; sair do carro, ir a um ponto desviado, numa mesa baralhar e distribuir cartas para sueca; enfiar agulhas; pular corda; subir em pau de sebo; etc.

    Terminada a corrida, os jurados computaram as notas e proclamaram o vencedor. Por grande maioria de pontos, o campeão da Primeira Gincana de Carros de Pau de Melgaço, foi o Carriço.

    Aclamação e jubilo geral. Foi-lhe entregue uma faixa e a cobiçada garrafa de vinho fino.

    Os rapazes da equipe vencedora deliraram de alegria.

    Houve abraços e vivas.

    Pelo meio do publico, que vagarosamente subia de volta à vila, o carro vencedor, com o exímio piloto empurrado pelo restante da equipe, parecia um foguete, em velocidade e espoucar das rodas no empedrado irregular.

    No café do Sr. Hilário foi consumida a garrafa de vinho do Porto do prémio e dada expansão a tanta alegria.

    O carrinho foi usado e abusado.

    Nos anos imediatos, parte daqueles rapazes, inclusive o Carriço, foram para a tropa.

    O veículo fulgurante, já em petição de miséria pelo uso e pela chuva, veio ter às minhas mãos, herdeiro legítimo como irmão e primo mais novo.

    Grande dia aquele da Gincana Melgacense. Abençoada juventude aquela.

 

    Talvez o acontecimento que acabei de narrar não tivesse a importância que lhe dei, ou talvez tivesse. Pelo menos nos meus nove anos incompletos foi assim que o vi e senti. Ainda hoje, quase sessenta anos depois, me vejo encarrapitado no muro da Pastoriza, gritando feito um desesperado, incentivando o Carriço.

 

Rio, Março 1995

 

M. Igrejas

 

A GRANDE GINCANA IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Desde o lançamento da ideia até ao grande dia decorreram algumas semanas. O suficiente para a notícia se propalar até às aldeias. Tinha pessoas que nem sabiam o significado de Gincana e por isso despertava grande interesse. Passou a ser tema de conversa e os que estavam ao par da actividade dos grupos, arriscavam palpites sobre os prováveis vencedores.

    Na semana final, munidos de enxadas, pás e picaretas, os elementos de todas as equipes achandaram onde era preciso, removeram calhaus, cortaram arbustos e tiraram torrões. A ladeira transformou-se em óptima pista com curvas e contra curvas que muito iriam exigir da perícia dos pilotos.

    Chegou finalmente o bonito Domingo de Verão, tal e qual fora encomendado. Na manhã foram dados os últimos retoques na pista, embelezada com mastros e bandeirinhas. Depois do meio-dia o caminho das Carvalhiças transformou-se em passarela de desfile de modas.

    Como era Domingo, todos vestiam sua melhor roupa, homens de gravata e mulheres com os vestidos de festa. Afinal aquilo era uma festividade e nesses dias caprichava-se na indumentária. O mulherio que não costumava prestigiar eventos da moçada, nesse Domingo resolveu ir ver do que se tratava, ademais, num dia tão bonito, o passeio à Pastoriza justificava a saída de casa.

    A escadaria da capela de Nª Srª da Pastoriza transformou-se em galeria e o muro do adro em camarotes. Quase toda a vila estava ali, mais quem veio de Prado, Roussas, S. Gregório e outros lugares.

    As senhoras da sociedade deram o ar de sua graça e o Dr. João Durães, administrador do concelho, foi a presença mais importante.

    A brincadeira dos rapazes transformara-se em acontecimento social de destaque.

    Uma comissão de três membros chefiada pelo mestre da marinha, Sr. Silva, eram os juízes que iriam julgar o desempenho e atribuir as notas que indicariam o vencedor. Os elementos das equipes cessavam sua participação ao colocarem o carro no alto da ladeira, daí em diante só o carro contava.

    Feito o sorteio de largada, começou a grande Gincana.

    Não lembro a ordem, só sei que o Carriço foi dos últimos.

    Toda a assistência aguardava ansiosamente o desempenho do Carriço. O seu carro ultrapassara a expectativa dos boatos, era um deslumbramento em técnica e visual. Só por isso angariara a simpatia da maioria. Os outros participantes também foram muito aplaudidos.

    Afinal todos tinham as famílias ali.

 

 

(continua)

 

DE MELGAÇO A TIMOR

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    17 anos passaram desde o massacre no cemitério de Santa Cruz em Díli. Do massacre recordo o que passou na Tv; imagens reais, distorcidas, encomendadas? Não sei nem me interessa, cada qual faça o julgamento que entender.

   E qual a relação entre um blogue que fala de Melgaço e Melgacenses e o que aconteceu há 17 anos do outro lado do planeta?

   Amizade.

   O meu amigo Maquico chegou a Portugal vindo de Timor em 1975/6, passado dois ou três anos, desapareceu.

   O meu amigo Quico, primo do Maquico seguiu o mesmo rumo.

   O Lobato, esse sim, deixou cair duas palavras: vou regressar à minha terra.

   A minha amizade por eles ainda hoje perdura, estejam onde estiverem.

   Um dia, anos depois, encontrei o Zé, irmão do Maquico, farda do exército português vestida e trocamos umas palavras, misto de recordação e informação.

   Maquico e Quico viviam na Austrália, Lobato entrou clandestino em Timor.

   Ele, Zé, casado e filhos, residiam ao pé de mim em Queluz.

   Voltamos a falar e o Zé fez-me uma confidência: “O Papa João Paulo II foi um dos maiores responsáveis pelo genocídio do povo timorense”.

   O Papa idolatrado por milhões, sempre que chegava de visita a qualquer país, descia a escada do avião e beijava o solo em sinal de reconhecimento de soberania.

   “Em Timor, na altura da visita, contra todo um povo filho da terra em que nasceu, ocupado por um invasor chamado Indonésia, não beijou o solo à saída do avião.”

   Indonésia era soberana.

   Ultrapassou Kissinger a meio da corrida.

   Legitimou a ocupação e o genocídio dum povo.

   Aos meus amigos, vivos ou mortos, que tudo fizeram para ter uma pátria, o meu abraço.

   Timor Lorosae, judeus na II Guerra Mundial, republicanos da Guerra Civil de Espanha, desconhecidos portugueses caídos nas mãos do Cerejeira-Pide, a quem uma Santa Sé, agora governada por um ex-inquisidor geral, fidedigno de Torquemada e Santo Escrivá, nazi de formação, um dia abençoará, e esquecerá.

   Para bem dele e sua camarilha, contra a fé dos povos católicos.

   Mas o sangue não se lava na fonte, fica sempre uma marca que nunca será esquecida.

   E a marca de sangue, qual sudário de Cristo, permanecerá.

   Em nome de Cristo assassinais.

   E nós damos uma esmola durante a eucaristia.

 

Cambório Refugiado

 

A GRANDE GINCANA III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

     Organizaram-se as equipas conforme as amizades entre eles. Cada uma das equipes era composta de quatro ou mais rapazes (naquele tempo havia muita rapaziada na terra). Os adultos acabaram aderindo, ajudando os grupos de sua simpatia ou de parentesco. Fizeram carros novos ou aprimoraram os que havia, muito toscos por sinal. Inovações foram introduzidas muito em segredo para os demais concorrentes não copiarem.

Eu era muito novo, oito anos e meio, por isso não recordo os nomes da rapaziada de todas as equipes, só recordo a turma do Carriço que era o meu grupo e dos meus irmãos, Gú e Toninho do Félix, do Carlota, do Quim e João de Celestino e o Mí.

    O Lucas fez um casqueiro novo na sua oficina, bem recortado e aparelhado e lixado. O Papá Pires deu orientação de como fazer um travão, grande novidade técnica que ia ser preciso para as várias paradas do percurso.

    O eixo dianteiro, da direcção, outra grande inovação, era curvo centro para manter o casqueiro nivelado uma vez que as rodas da frente eram menores que as traseiras, técnica evoluidíssima para a época.

    O assento do piloto era almofadado e o impulso era transmitido através dum sarrafo apropriado encaixado na traseira do casqueiro, ao invés de empurrar nas costas. Tecnicamente o carro era perfeito.

    A turma do Carriço contribuiu, através daquele protótipo, para a evolução da indústria automobilística.

    Por espiões soube-se que as outras turmas estavam pintando seus veículos com as cores dos clubs de sua predilecção. Vermelho em homenagem ao Benfica, verde ao Sporting, preto e branco ao Sport Club Melgacense, etc.

    Ah! então era assim?

    A equipe do Carriço deliberou pintar o seu carro em homenagem ao Futebol Club do Porto que, por sinal, era o club de coração de todos daquele grupo.

    O Futebol Club do Porto era o grande campeão daqueles anos. Fugidos do caldeirão europeu que estava para entrar em ebulição, cinco jogadores da selecção da Hungria tinham-se incorporado ao Porto.

    Mas a pintura do carrinho não se limitava a azul, não senhores; às listas azuis e brancas, feitas a régua, a tinta de esmalte e no cabeçalho, também a tinta de esmalte, a todo o tamanho, o emblema do Porto que o meu irmão António demorou uns dias a pintar; rodas e eixos também pintados, com tampões de lata; um primor.

    Nem a carruagem da Cinderela era tão bonita quanto o carro do Carriço, sim, porque ele seria o piloto.

    Nas mãos dele, que iria manejar a corda-guia, o travão e executar as tarefas da Gincana, repousavam as esperanças daquela equipe que dera tudo de si e seu génio inventivo fora capaz de conceber

 

(continua)

 

ANIVERSÁRIO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

P’RÓ AFILHADO PIMPÃO


   Sem pretensões de intelectualidade, Ilídio de Sousa (Carriço), David de Carvalho e Manuel Igrejas deram corpo a um Melgaço quase desaparecido.

   Quase porque, tirando os arquivos de A Voz de Melgaço, pouco ou nada temos para nos documentar. Eu sei que temos o Noticias de Melgaço, o Jornal de Melgaço, A Neve de Castro Laboreiro ou Porta de Cavaleiros de Lamas de Mouro, só que, os colaboradores de  “MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA" estão distribuídos por Queluz (Portugal), Paris (França) e Rio do Janeiro (Brasil).

   A tradição oral depressa passa dos socos às enxergas de folhedo, da sopa d’unto ou do cinema do Sr.Hilário (Pelicano) para os dias passados em bidonvilles ou fugas a guardas-fiscais e carabineiros.

 

   Aproveito para recomendar duas obras apresentadas no mês de Agosto de 2008, no encontro organizado pelo NEPML – Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro (fundado em 2001), que representam a excepção à regra: ECOS DOS MONTES LABOREIRO, de António Bernardo, Edição de Autor e O BURACO DA SERPE, de José Alfredo Cerdeira, Edição de Autor.

   Por sua vez, a Câmara Municipal de Melgaço editou o nº 7 do Boletim Cultural, obra maior da cultura Melgacense (obrigado a todos os colaboradores na figura do Prof. Dr. José Marques).

 

   Resumindo: quem quiser dar o seu contributo ao “MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA", aqui tem um espaço que gostaríamos que utilizassem, seja texto ou fotografia.

 

   Contacto: melcarrico@gmail.com



O SENHOR MOURA

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

Sr. Moura

 

Não nos conhecemos, nunca fomos apresentados, não conheço as suas ideias quanto à governação do Município de Viana do Castelo.

Que quer o melhor, para a cidade ou para a sua carreira politica, não ponho em causa. E para o distrito de Viana do Castelo, será que quer o melhor?

Viana do Castelo = 9 concelhos?

Sr. Moura, isso não será centralismo com grandes tiques de super kapital?

Sr. Moura, saberá por ventura, as centenas de milhões que do distrito de Viana do Castelo fogem para o distrito de Braga?

Sr. Moura, sabe o que significa o mar oceano para as gentes do Mesio de Cubalhão ou Lindoso?

Sr. Moura, porque não o Magalhães (dos 7 aos 70)? praticar um pouco talvez ajude a dar a volta ao Tribunal Constitucional.

Sabe sr. Moura, além das fantasias, existe uma realidade chamada Comunidade Intermunicipal do Alto Minho.

Com ou sem o sr., mas com a cidade e povo de Viana do Castelo.

 

Ilídio de Sousa

 

A GRANDE GINCANA II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Em todas as gerações sempre houve alguém mais dinâmico e empreendedor que não se conformava com o estado de coisas e procurava inovar. Dos rapazes da época, os matulões, havia um grupo que se destacava nas empreitadas da garotada.

    O Quim e o João Celestino, o Carlota, o Toninho do Félix, o Amadeu Garabelos e outros, comandados pelo Carriço, espécie de líder.

    Fazia parte da distracção da “canalha”, duns poucos que conseguiam um casqueiro (tábua de pinho de menos valor por ser do lado da casca da árvore) que, com alguma habilidade e quatro rodas, também de madeira, construíam o que eles chamavam carrinho de pau. Carro este que dependia duma equipa no mínimo de dois elementos. Um que andava no carrinho e outro que empurrava nas costas daquele. Depois trocavam de posição. Geralmente o grupo era de quatro rapazes, co-proprietários da viatura.

    E era vê-los, chispando onde o terreno fosse chão. A pista preferida era o passeio entre a loja do Hilário e a loja do Águia D’ouro, o único cimentado naquela época.

    De que se lembrou o Carriço?! Promover uma gincana de carros de pau.

    Divulgou a ideia que de pronto foi encapada pelo resto da rapaziada. A empolgação tomou conta deles quando o Águia D’ouro resolveu patrocinar o evento.

    Este Águia D’ouro, nome do estabelecimento e pelo qual era conhecido o proprietário cujo nome verdadeiro não me lembro, ou melhor, nunca soube, era um sujeito oriundo de Monção que viera montar loja em Melgaço, no térreo do casarão do Santos Lima, pai da Biti, esquina do terreiro com aquela área que ligava à Rua Velha e chamavam de avenida, em frente à casa dos Durães. Mais tarde funcionou ali a loja do Coelho e depois do António do Chinto.

    Pois o tal Águia D’ouro era uma criatura chegada a incentivar as promoções da rapaziada e até lhes fornecia ideias.

    Foi dele a ideia de realizar a Festa da Cóca, no molde do que se fazia em Monção e que o Carriço, o Jacob e outros realizaram magistralmente, mas esta é outra história. O assunto hoje é a gincana.

    O Águia D’ouro transmitiu aos rapazes como se realizavam gincanas noutras terras e ofereceu o prémio para a equipa vencedora: uma garrafa de vinho fino.

    Elaboraram o regulamento e acertaram que a pista seria a ladeira da Pastoriza, a pedreira, como anteriormente fora conhecida a encosta do outeiro, do lado das Carvalhiças.

 

(continua)

 

A GRANDE GINCANA I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Corria o ano de 1937. Na vila de Melgaço a vida passava mansa, com certo desafogo. A guerra civil espanhola prosseguia cruenta ali do outro lado do Rio Minho que, a bem da verdade, a não ser as notícias de perseguições e vinganças que redundavam em chacinas, proporcionava aos habitantes de toda a zona fronteiriça do lado português, bons lucros com o contrabando.

   Vinham de lá, de Espanha, toneladas de pacotes de moedas de prata, os duros que apenas valiam cinco pesetas como dinheiro desvalorizado, mas muito mais como metal. Vinham arrobas de ouro e outros metais valiosos em troca de tudo que fosse mantimento. Os camiões carregados de galinhas e ovos chegavam a fazer comboio em direcção a São Gregório. Mais tarde o sabão também entrou na troca.

   Mas esta não é a história que desejo contar.

   Isto apenas serve para justificar a abastança com que se vivia na época na nossa região, infelizmente à custa da desgraça de “nuestros hermanos”.

   Na vila de Melgaço vivia-se uma aborrecida monotonia. Pouco ou nada existia que representasse lazer..

   O passatempo principal era mesmo deixar o tempo passar.

   As romarias tradicionais nos dias próprios, um ou outro baile e os desafios de futebol que o Sport Club Melgacense disputava com as povoações vizinhas.

   Os adultos, para encher o tempo e gastar as coroas que lhes sobravam, organizavam excursões em camioneta que percorriam um roteiro de visitas às cidades nortenhas e romarias de fama.

   Ficaram no anedótico popular algumas dessas excursões.

   O espanto que o mar causava a quem o via pela primeira vez, a grandiosidade de edifícios nas cidades maiores, uma porção de outras coisas estranhas à vida melgacense e, os testículos do cavalo da estátua de D. Pedro IV, no Porto.

   A garotada, entretanto, crianças e jovens viviam uma fase de estagnação.

   Limitavam-se aos brinquedos seculares: jogo de pião, chinquilho, monta-burro, de esconder e, naturalmente, o mais recente, o jogo de bola de pano na avenida recém construída ou no jardim do Cardoso.

 

 

(continua)

 

MELGAÇO E O TGV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Boas noticias com a paragem do TGV em Valença.

    Santa paciência para Viana que se afastou do resto dos municípios de distrito por entender o sr. Moura que era o melhor para a kapital distrital.

    Só conheço o que se passa na minha terra pelo que vem transcrito nos jornais on-line (palavrão que nem o acordo ortográfico mandou para aquela parte), e todos dizem o mesmo:

    — Guerra entre os autarcas de Melgaço e o de Viana do Castelo

    Guerra entre um autarca que não vê TGV e autarca que o vê passar?

    Mal vai a minha terra com dirigentes deste calibre, mas ele (sr. Moura) lá sabe.

    Tive residência no pinhal de Cabedelo no início da década de 80 do século passado; vivenda com 48 pinheiros ao redor, as dunas a 2 minutos, o mar logo a seguir.

    Deslocava-me para a cidade à boleia de grandes (em cidadania) senhores que lá exerciam as suas profissões; ao entrar na ponte Eiffel logo vinha o resmungo.

    O Coutinho era uma aberração que nos entrava olhos dentro às 8 da manhã.

    Agora existem 2 aberrações. Uma do lado de cá e outra do lado de lá. Claro que isto não são só contas do sr. Moura, o sr. autarca de Darque também terá algo a dizer. Adiante, que o TGV a parar em Valença é que é noticia.

    E eu que saio todo risonho duma viagem relâmpago da kapital para Valença, como sigo para Melgaço?

    Sem recurso a comboio, helicóptero, ou familiar disponível com automóvel, fico na mesma situação de hoje com as carreiras expresso de Lisboa a Monção.

    Pago 18 euros de viagem até ao avistar das minhas serras e 100, de táxi, para lá entrar.

TGV sim e autocarros também.

A comunidade também é formada por indivíduos!

Que querem transporte para a sua terra!

Que não querem ser esquecidos!

 

Camborio Refugiado

 

ROMANI EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

Acho que já tinham terminado todas as séries dos bons a ganhar aos maus, quando, sem uísque na mão, detesto, resolvi sacar um cd e o que vier é bom!

Acho eu, desde já se diga, que de música só conheço o clarinete do Frederico, velhos tempos do mestre Morais à frente da banda dos Bombeiros Voluntários e o Grupo de Bombos do Ti Miro.

Mentira, também conheço, um solo de gaita de foles com o bombo na marcação… uma carvalheira a dar sombra, bolos de bacalhau, a lampreia assadinha, uns ovos  cozidos e a broa acabadinha de sair do forno antes de começar a subir a serra; duas concertinas e bons cantadeiros, davam alma até à casa da Senhora…

 

Nestes tempos que passam, Quim Barreiros, adoro, e então quando é uma hora a sacar a nota aos putos sem eles darem por isso…ahaaaaaa gand’a Quim, a escola da serra d’Agra sempre pariu bons filhos.

Bom, mas isso é outra estória.

Da confusão dos cd’s poderia sair Miles Daves ou Don Cherry, Joplin ou Doors, Zeca ou Manu Chau mas não; tinha que sair Musafir.

Bonito, disse baixinho para mim que até estava sozinho na sala..

Musafir – gypsies of Rajasthan.

Há anos eles passaram por Lisboa.

Falar do espectáculo é quem viu viu quem não viu não viu. Bato palmas ao presidente da Câmara de Lisboa da altura (detesto o homem) pelos espectáculos que nos proporcionou e a descentralização dos mesmos na cidade.

Há quem defenda a tese de Rajasthan como berço da cultura romani; sei lá, se calhar tem razão, se calhar não tem.

 

Lembro-me, era miúdo, de ciganos com acampamento em Cristoval tiros e uma morta com jazigo no cemitério da vila, mais pelo que se falou do que propriamente dos mesmos.

Mais tarde conheci o Manolo, comerciante de tudo e algo mais, a viver nas casas do  Manuel da Garagem na corga que vai p’rá Orada. Tinha uma filha, rapariga dos seus 15 ou 16, cabelo negro ou azulado, comprido, que só poucos conseguiram por o olho que a rapariga estava fechada a sete chaves.

Uma sexta, Manolo bem aviado entra no Central do Zidro. Era eu o único cliente e è para mim que o Manolo se vira.

— Quem és?

Não sei o que pensei na altura, mas sempre lhe disse quem era.

— Alberto, um abraço, vais beber comigo.

Eu que só tinha as cinco coroas p’ró café já não sabia onde me meter. Manolo leu-me a mente (digo eu) e saca um monte de notas de conto, canta e baila no Central.

O Zidro sai do balcão, deita a mão ao dinheiro, faz-me sinal de cabeça para ir ao balcão. E contou nota atrás de nota até aos 98 contos.

— Ele amanhã vem me pedir os 98, mas só leva 97 porque 1 é para a noite.

Acabei a noite no vinte e sete com o Manolo a bater o tacão, palmas e dedos a fazer de castanholas.

Não voltei a ver o Manolo, infelizmente teve que fugir de Melgaço; um tal de … (não sei mesmo o nome) que tomou conta do Central quando o Zidro se reformou, contraiu uma divida com o Manolo e não cumpriu. Um sábado à tarde a mulher e a filha do Manolo foram ao café receber o que lhes era devido. Depois de serem insultadas pelo devedor e acusadas de distúrbio a mulher do Manolo sacou da naifa. Ameaçou, não fez mais que isso e o empregado do café, com bom arcaboiço, prendeu-a por trás.

Eu, sentado na esquina da sala assisti a tudo.

A gnr apareceu e logo levou as mulheres para o posto.

Eu continuava a ser o único na sala, o aplauso do público que em pé rendia homenagem aos actores.

Desceu o pano, a peça acabou.

Manolo e a família desapareceram de Melgaço.

Um belo dia, de certeza que não chovia, num dos meus encontros com o Joaquim Rocha, Lilo para todos nós, antes que ele falasse vi que trazia novidades.

— Sabes de quem é padrinho o teu pai?

Encolhi os ombros, sei lá de quem o meu pai era padrinho, ainda para mais que ele já morreu e eu não posso falar com ele.

— Lembras-te do Manolo cigano? O teu pai foi o padrinho de baptismo dele.

 

Onde estiveres Manolo, um grande abraço do Alberto.

 

Filho do Carriço, Ilídio Alberto de Sousa de nome

 

Camborio Refugiado

 

O SANO III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Por falar no Sano, tenho uma boa para te contar.

    Um domingo de tarde como muitos outros na Vila. O baile, na Barbosa, animado pelo Gaudeamus, despejava melodias que nada tinham de música.

    E quê? O pessoal animava-se com a bebida e com a erva fresquinha vinda de Angola. Se não fossem as colónias (obrigado Salazar) o número de "caretas" em Portugal podia multiplicar-se por...por... e sou modesto.

    O caso é que o Carlos de Valença tinha vindo ao baile e aproveitara para me trazer um envelope com muitas "cabecinhas". Como eu, na segunda de manhã ia para o Porto, p´rá tropa, e o Carlos também para lá ia fazer a feirinha, marcámos encontro na estação de combóios de Valença. Assim ficou a coisa combinada.

    No dia seguinte, às nove e pico da manhã, estava eu em Monção sentado à espera do arranque do comboio quando aparece o Sano. Também ia para o Porto. Corte do c*ralho! “E agora?” – pensei eu.

    Sentou-se à minha frente, contente por ter companhia durante o trajecto. Chegámos a Valença e aparece o Carlos, já bem cacetado. Sentou-se ao lado do Sano, que não conhecia, mas por quem já o era, e entrou numa racista.

    — O que diz um preto quando entra pela primeira vez num helicóptero? Que burros são os brancos! Com um calor destes e põem a ventoinha lá fora!

    Grandes gargalhadas. O Sano começou a olhar de lado.

    — Eram dois pretos – continuou – que há muito trabalhavam para o mesmo patrão (branco, claro) e que há muito ganhavam o mesmo. Achando que não era natural, um deles decidiu ir ver o patrão e perguntar-lhe por que é que não eram aumentados.

    — Sabes por quê, cabeça dura? Porque sois burros – respondeu-lhe o patrão.

    — Burros? E que é isso, patrão?

    — Vou-te mostrar.

    Esticou o braço e abriu a mão que colocou diante duma árvore que ao lado dele se encontrava.

    — Vais recuar e, com toda a tua força, vens bater com a cabeça na minha mão, está?

    O preto concordou e lançou-se. É claro que o patrão tirou a mão e o preto deu uma valente cabeçada na árvore.

    — Vês? É isto seres burro, senão sabias que eu ia tirar a mão. Percebeste?

    — Sim, patrão. Agora sei o que é ser burro.

    Regressou para junto do colega que logo lhe perguntou quais as razões que o patrão dera por não terem sido aumentados.

    — Não nos aumentou, nem aumenta porque somos burros. Tu não sabes o que é. Também eu não sabia, mas o patrão explicou-me.

    Olhou à volta e, vendo que não havia árvores, disse-lhe:

    — Vou pôr a mão aberta diante da cara e tu...

    Já não conseguiu acabar. Grandes gargalhadas. Que cacetada!

    O Sano, sério, tinha o olhar noutro sítio, como que incomodado.

    Mas não era pelo racismo, longe disso. Era pelas bocas que ouvira sobre o contador. Levantou-se e disse que ia mijar. Aproveitei para dizer ao Carlos quem era o Sano. Deu um salto e, deitando a mão a um saco plástico que pusera no porta bagagens em cima, disse-me:

    — E a erva que tenho no saco?

    — Deixa estar o saco que não há problemas, mas acalma-te um pouco.

    O Carlos apanhou um bom corte. O Sano sentou-se e não o ouviu mais rir até ao Porto. Também lhe não tinha pedido tanto, c´um c*ralho!

    Mal chegamos, com o saco plástico na mão, adeus até logo, mal se despediu.

    E o Sano, para me mostrar e para se mostrar, convidou-me para comer um churrasquinho com batatas fritas e salada.

    Na zona das p*tas.

    Mas não pagou. Insistiu, mas o patrão não quis.

    

          

A. El Camborio

 

Camborio Refugiado

 

O SANO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    De quando em vez encontrava patrício e como as saudades apertavam, isto de estar sempre ao serviço, bebiam uns finos na Brasileira ou no Piolho, aquelas estudantezinhas, faziam o circuito ao burgo com jantar ou ceia conforme a hora – e nisso fazia questão que ninguém pagasse – acabavam num bom bar com elas sentadas no colo e até de mama de fora quando a despesa esticava; nessas alturas, colegas ou amigos tinham que pagar a brincadeira, até porque ele não vivia só de funcionário com crachá.

    Mas nunca esqueceu o cozido ou a lampreia da casa paterna – não fosse o Fifi um pai – com o tinto dos padres de Rouças, que melhor nas redondezas não há.

    E nessas ocasiões era vê-lo, depois de atestar com duas ou três pratadas, a barriga empinada, a beber o bagaço ao domingo na vila; arrotava e atirava: - estás bom, meu…

Nem nos velhos filmes do Pelicano se arranjava bófia igual, com cartão no bolso e pistola à cinta. A conversa se não era sobre o almoço, batia certinha nas aventuras nocturnas da grande cidade.

    Orelha e salpicão e presos a dar c'um pau.

    Um depois de almoço de domingo, o Carlos Republica, olho de lince e velho compincha dos tempos do colégio e dos serões em Cavaleiros – sentado no Central – vê o Sano a estacionar a caranguejola que só servia p’rá vila e bailes até S. Martinho; puxa de mortalha e enrola um cigarro com o tabaco que sacou da onça do tio-avô, conceituado relojoeiro com banca na vila.

    Acender só quando Sano entrou e logo apanhou com uma bufarada em cheio na cara.

Insultado na sua dignidade, até profissional, levanta a mão e quando ia a sair um c*ralho..., vê que é o Carlos Republica, inclina a cabeça numa confidência e sopra-lhe ao ouvido para todo o mundo ouvir:

    — É boa mas é nacional!

    Perspicácia de judite.

    O Carlos República era o único que não fumava erva na vila, pelo menos daqueles que tinham passado pelo pouco antes e pouco depois do vinte e cinco e suas consequências.

    O resto da história é como aqueles Westerns italianos que o Pelicano passava; mesmo com cortes, o final era sempre o mesmo. Gargalhadas.

    Não voltei a ver o Sano, mas trinta e pico anos depois, sou confrontado com um manuscrito, devidamente identificado e não reconhecido em notário, do qual apresento cópia, não sendo eu possuidor do original.

    Era esse documento composto por várias páginas, das quais destaco a numero três, prova provada que Sano nascera para ser judite. Rezava assim a missiva:

 

(continua)

 

O SANO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   O Sano… o Sano é afilhado do Fifi…, rapaz novo é certo, mas com grande ouvido para bons conselhos do padrinho. Bons… é como diz o outro. E se um era bufo da pide…, o outro só podia dar em bófia.

   Bem, afilhado seria – se procurarmos nos registos baptismais –, mas há quem diga que filho, ou do Fifi ou do velho padre Armando, que não os reconheceu todos porque as leiras não chegavam de herança e o Fifi só fazia raparigas; um terceiro não seria de desdenhar. Adiante…

   Certo, é que filho de um e afilhado de outro, desde cedo teve queda p’rá retórica, bom comer e beber e safar-se naquela terra de Deus e do contrabando.

   Com a morte do padre seu protector, sendo homem forte, atarracado e de pouco cabelo, passado nas sortes, ficou ao cuidado do padrinho Fifi, já devidamente compensado para o efeito.

   Tropa no RI8 em Braga, apadrinhado por major e coronel, ao que Fifi não era alheio porque português é bom, mas na Espanha é mais barato.

   Bufo no quartel, via os outros partirem p’rá guerra e ele ficar, consciente que é na retaguarda que tudo se decide, como lhe dizia o padrinho, na hora do copo e confidências. Nas armas não se distinguiu, tirando as faxinas e outros castigos menores e o ódio profundo dos camaradas que não gostavam de graxas e língua comprida; quando regressou da tropa, quase três anos passados e o posto de soldado, o padrinho falou, suplicou e até – Deus nos valha – chantageou para arranjar poiso para o Sano. Chantageou é como quem diz, que os gajos do posto do Peso arrancavam o ultimo segredo a um seixo do rio se preciso fosse, mas deixou no ar um bom aproveitamento do rapaz, de confiança em Deus e no Chefe, na Ordem e Autoridade e …

   Conversa de Fifi, porque nem tudo o que ao Sano falava chegava aos ouvidos da DGS, porque se chegasse, tanto um como o outro estavam entalados, viessem elas de que lado viessem. E entre secretas e militares… valha-nos Santa Rita.

   Foi na noite da cidade, entre p*tas e azeiteiros, bófias, carteiristas e arrombadores que Fifi arrumou a vida do Sano, sem esquecer os dividendos que daí lhe poderiam advir.

   E foi na judite onde o Sano arranjou telha.

   Deixou a Calçada e o padrinho, fixou-se no Porto, três semanas em pensão residencial da Alferes Malheiro e logo de seguida madame pelo braço, que a escola não foi só p’ra levar carolos e pontapés no cu, manducar francesinhas no Mucaba em Gaia e acabar a noite no Lanterna.

   De quando em vez uma rusga às p*tas – primeiro avisava a Lisete – outras aos carteiristas nos eléctricos, umas ceias com os azeiteiros da zona, assim corria a vida de Sano policia, agente da criminal.

 

(continua)

 

A FILHA DO PADRE

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

À tia Maria, mãe do Jacob, do Reinaldo e da Lígia.

 

 

    O Pe. António de Jesus Rodrigues, moço, dinâmico, ensinava além do catecismo, aos sábados na escola cantoria folclórica.

    Chegou a comprar uma bola de couro para a rapaziada jogar futebol. Para quem jogava com bola de meia foi um grande melhoramento desportivo.

    Além desses atributos era intransigente em seus princípios morais e religiosos.

    O irmão dele, Armando, o único que não estudou enamorou-se por uma moça filha do Padre de Corçães. Ex-padre, abandonara a carreira eclesiástica, não sei se para assumir a filha ou outro motivo.

    Ora o padre António opôs-se a tal namoro pois achava que a rapariga era filha do pecado pois fora gerada enquanto o pai era padre. Só que o irmão e a família não deram importância ao protesto e o casamento acabou por acontecer.

    Entretanto o padre António desesperava-se e como tinha um génio exaltado por conta da questão familiar descarregava em todo o mundo. O homem vivia num estado de nervos insuportável.

    Uma noite, mês de Maio, durante a novena, na hora de preparar para a bênção do Santíssimo, a rapaziada, eu entre eles, por qualquer coisa sorria em surdina. Isso era comum. Algum fazia uma palhaçada e os demais não se continham.

    Acontece que naquela noite o padre António estava desesperado e ao ouvir os cochichos e o riso, virou-se, apanhou o rapaz que estava mais ao jeito e levou-o debaixo de bofetadas até à porta da rua pelo meio da mulherada que estava participando da novena. À tia Maria pareceu-lhe o neto dela, o Chatice (não era, era um outro das Carvalhiças que não me lembro mais o nome) e começou a resmungar.

    Que aquilo não se fazia, que o rapaz tinha mãe e pai, etc., etc..

    O padre, ainda “possesso”, com dedo em riste ordenou que ela se retirasse, e ela saiu sempre protestando.

    Ainda na mesma época, o Tenente Peres levou o padre António até à sua adega para tomar uns goles e espairecer a agrura familiar.

    Só que a conversa demorou até à hora do enterro do Tino Betrana, moleiro que vivia nos moinhos acima de Eiró, e o padre estava bêbado de cair.

    Ele nem aguentava a luz da vela que o ritual exigia. Amparado, cambaleando acompanhou o enterro, acho que não chegou ao cemitério. Coisas do passado.

 

Autor conhecido mas não identificável.

 

Camborio Refugiado

 

DIÁRIO DO GOVERNO - 1884

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

DIÁRIO DO GOVERNO Nº 203 – 8 DE SETEMBRO DE 1884

 

MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS

 

 

DIRECÇÃO DOS CONSULADOS E DOS NEGÓCIOS

COMMERCIAES

 

 

Movimento do pessoal consular portuguez

 

Pessoal consular estrangeiro

 

 

TURQUIA


Melgaço – Em 2 de Setembro de 1884 concedido o exequatur à nomeação de Frederico Augusto dos Santos Lima para vice-consul da Turquia em Melgaço.

 

 Direcção dos consulados e dos negócios commerciaes, em 6 de Setembro de 1884

 

Eduardo Montufar Barreiros

 

 

 Camborio Refugiado


VISITA A PARADA XI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Preparei-me para ir ao Cuto Santo. A predilecção que tinham pela Igreja certamente que fôra predisposta pela santidade do local onde viviam. Dei uma lavadela à cara e vesti a roupa limpa. Não desci o caminho da fonte, não queria voltar a encontrar o Tio Justino. Chegara-me. Se tivesse continuado a renegar a realidade, de certeza que não me tinha feito tão mal.

   Fui por uma estreita passagem que havia entre as casas dos de Clau e dos da Fonte. Acabava na "rua" principal, um pouco antes do ofício do Rocha. Desci a "rua" até ao fim, junto da capela. A casa do meu tio era a poucos metros dali, quase em frente. Tive sorte, não estava. Fôra trabalhar para a Carrasqueira. Falei dez minutos com a minha tia, que me deu um saquinho de doces secos, e dei meia volta. Ao passar diante da loja do Tio Trabessa, fui falar-lhe. Não era como a Tia Zaura, a porta estava sempre aberta e ele, dentro sentado. Dava-me dois ou três rebuçados quando, mais pequeno, lá ia. Mais acima, foi a vez do Tio Rocha. Ficavam contentes. Via-se-lhes na cara. Uma das grandes qualidades dos do Monte é que consideravam a canalha como adultos. Não havia fronteiras na idade.

   O meu pai andava a barrer o pátio com a vassoura de giestas. Contei-lhe. Olhou-me e riu-se, o malandro, como se me dissesse: "Que sorte tivestes"! Era verdade. Não tivera que suportar o irmão, armado em erudito e que considerava os outros parolos. Quanto às suas "c´roas", que lhas desse ao padre domingo, na missa.

   Os de Clau apareceram, vinham com duas "lourinhas". Eram discretos. Nem as vacas tinham chocalhos. Eles e o meu pai apenas se falavam. Tinha-se dito que entre o Grande e a mulher...

   Preparei o saco. Sentia-me sozinho em Parada. Áquela hora, pensei, se estivesse na Vila, só tinha o embaraço da escolha. Bastava-me ir dar uma volta ao Terreiro para encontrar alguém da minha idade com quem "discutir".

   Nascera ali, mas o meio onde vivia fizera o seu trabalho. Gostava daquela gente, daquela terra, dos cheiros, das paisagens... mas não fora criado ali. Não vivíamos do mesmo modo nem as necessidades eram as mesmas. As raízes estavam ali, mas as ramificações e a folhagem já tinham chegado à Vila. Mais tarde, reparei que tinham ido muito, mas muito mais longe.

   Amanhã de madrugada ia enfrentar a subida da Minhoteira até Pomares. O meu pai ia comigo até lá, onde eu apanhava a camioneta para a Vila.

   Comemos uns rojões à maneira do Monte com batatas cozidas (sempre) e uma água de unto na qual esfarrapamos um pouco de pão. Sentei-me na pedra. Não sei porquê, mas gostava tanto que era capaz de ali dormir sentado. Sentia-me como num morro. O meu pai veio saborear o Kentucky. E estava este quase consumido quando apareceu o Zê Bilam. Calças à pirata, (pouco lhe desciam dos joelhos) e alças de pano, feitas à mão pela avó. A planta dos pés servia-lhe de sapatos no verão. O meu pai deixou-lhe o lugar, foi fechar as galinhas e foi para o campo com uma "manada" de palha na mão.

   O Zê só me vinha ver, disse-me. Amanhã também se levantava cedo. Ia para Braços, entre a Cela e a Gave, onde iam reparar a ponte sobre o regato. No último inverno, as fortes águas tinham-na levado. Falou-me do irmão que estava na França e por quem esperavam no mês de agosto. Vinha de carro pela primeira vez. O Zê esperava que o levasse à Vila. Estávamos no princípio de julho. Daqui a um mês, os carros dos de Parada e da Gave faziam de Pomares um grande parque de estacionamento. "É trám cada máquina!", dizia o Zê, admirativo. Os olhinhos brilhavam-lhe. Ele também teria uma máquina dessas. Sonhava, tinha fé no futuro. Por enquanto a máquina era a burra. E continuamos a falar. Era quase noite quando se foi. Deitei-me. Tinha a cabeça vazia.

   Só voltei a Parada trinta e cinco anos depois. Não mais vi o Tio Justino. Como professara, muitos estudaram e muitos mais foram para França. O meu pai pode descansar.  Se os do Monte não são os mais finos, pelo menos são os mais ricos: a Vila é deles.

   E a eterna rivalidade entre os da Vila e os do Monte continua. 

 

Dezembro 2007

 

A. El Camborio 

 

VISITA A PARADA X

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Já na casa, fizemos lume para aquecer o caldo. Nenhum de nós tinha grande fome. Comêramos bem e tarde. Uma boa tigela de caldo e uma bem mais pequena de tinto chegou-nos. Lavamos as tigelas. O meu pai acendeu o Kentucky e borrifou as brasas com água. Estava bofa. Sentamo-nos fora, o tempo da cigarrada.

   A cama e o campo cansaram-me. O Tio Justino, involuntariamente, revoltara-me. E o facto de os meus amigos não estarem, para me poder distrair, aínda mais me revoltava. Devia ter ficado na Vila, pensei. Por uma vez, estava ansioso por encontrar o colchão de areia.

   No dia seguinte, pusemo-nos a pé à mesma hora. Não devia ter dado muitas voltas na cama. Estava preocupado porque não ouvira os galos novamente. Havia galos em Parada? Sabia que os do Monte, na casa, nem os galos deixavam cantar mais alto do que eles. Mas daí a não haver galos...

   As tarefas habituais feitas, saímos à mesma hora para o campo com a espingarda, a "bota" e mais alguns sacos às costas. A espingarda não se ouviu. Nem galos nem caça, não havia nada!

   O Florindo apareceu aínda não eram onze, com o carro de bois. Faltavam-nos duas fileiras. Ao todo, tínhamos enchido quase doze sacos. Um saco por mês, durante um ano, para o meu pai que só comia batatas. Carregaram os sacos no carro e regressamos ao Carrascal. Não encontramos ninguém. A caçadeira continuou muda. Ninguém saía. Nem os coelhos. Estava cada vez mais desgostado. Onde estava a gente que ia, de enxada às costas, a cantar, para os campos trabalhar? Onde estavam as vacas que, com grande chocalhada, iam e vinham sozinhas dos pastos? E os rebanhos de ovelhas, jardineiras do monte?

   As batatas metidas na côrte, o meu pai e o Florindo saborearam uma tigela de tinto. O Florindo gostava da boa pinga. Nada de água. "Auga? Ê pr´a labar ôs pês é nom ê sempre", gracejava, seguindo-se uma grande gargalhada.

   Fomos comer à casa dele, tinha-nos convidado no dia antes. O anho que nos preparara a mulher não dissipava o meu mal-estar. Já não estava em Parada. Acabei de comer e pretextando cansaço, fui para a casa. Deitei-me na cama e dormi um pouco. Aínda estava deitado, mas acordado, quando o meu pai apareceu. Levantei-me. Tinha decidido e disse-lho.

   — Amanhã, vou embora, pai.

   Com o caneco na mão, ia deitar água às galinhas, parou, pousou-o e sentou-se numa das caixas. Olhou para mim e, como se não tivesse ouvido, perguntou:

   — Manhám?

   Acenei com a cabeça. Não era preciso justificar-me, sabia as razões.

   — Cômo queiras, mêu home – e acrescentou – Antes, debias ir bêr ô têu tio, ô Cuto Santo. Já dêbe saber que biêstes.

   Prometi ir mais tarde. Tinha que fazê-lo, embora não tivesse qualquer afecto por ele. Era uma questão de respeito. E sempre me dava umas "c´roas".

   Era todo o contrário do meu pai. Pequeno e redondinho, falava como os da Vila. Não admitia intimidade a ninguém. Todos o tratavam por senhor Manuel. Regedor há anos, santeiro, dera dois padres à Igreja e tinha um neto que ia pelo mesmo caminho. Sem contar os dois primos, os Justininhos. Chegava a ir a Melgaço, todo aperaltado, de chapéu de abas largas, botas de cavaleiro feitas pelo Rocha, montado no belo cavalo que fazia o seu orgulho. Deixava-o preso numa das grandes cerejeiras bravas, junto da casa da Fátima da Loja Nova. A mulher, quando a levava à Vila, ia coberta de ouro. "Estim´á comó ´ma toura", diziam em Parada.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA IX

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Antigamente, passavam três, quatro ou mais anos sem vir à Terra. Aínda não vinham todos os anos gastar o que tinham poupado. Iam e viviam sozinhos. A França era muito mais longe. O Tio Casimiro aínda era destes. A viagem pouco menos de dois dias durava. O "comboio da França" chegava à Frieira, na Galiza, a estação mais próxima, ao fim da tarde. Chegados a Melgaço, com barba de dois dias, estavam moidos. Alguns ficavam ali. Cortavam a barba no Pacho que, de passagem, os aliviava dumas canetas que traziam no bolsinho exterior do casaco para mostrar que sabiam escrever, assim como de outras "lembranças". Depois de uma ligeira lavadela e uma boa refeição, descansavam numa pensão até ao outro dia. De manhã, frescos, lá iam para o Monte. As más linguas diziam que não queriam chegar à noite à casa porque tinham medo de encontrar alguém na cama com a mulher.

   O Zê só vinha à noitinha. Voltei para a casa. O meu pai continuava na cama. Passava das quatro, "pela velha", claro. Sentei-me novamente na pedra. E o Cagarroso por onde andaria? Não perguntara por ele ao meu pai. Filho mais novo dos da Fonte, era mais velho do que eu quase dois anos. Quando cachopo, andara, como todos, com as calças rachadas no cu e com a gaita de fora. Só que andou quase até aos cinco anos. O nome ficou-lhe. Quando fosse maior, era para o Canadá que queria ir. O irmão mais velho que lá estava contava-lhe maravilhas daquela Terra.

   O sol começara timidamente a descer. Preparei uma tigela de água fresca com açúcar e bebi. Ouvia o "tlim tlim" dos chocalhos das vacas que vinha de longe. O Carrascal parecia estar longe de Parada. Sentia-me só. Uma sensação de mal- estar começou a crescer em mim.

   O meu pai acabou por se levantar e refrescou a cara com água. Veio à porta deita-la fora e viu-me no mesmo sítio que quando se deitara.

   — Ô Bilam nom está é ô Cagarroso támpouco... – disse.

   Riu-se, compassivo. Não tinha outros amigos da minha idade, em Parada. Sabia que, se um deles estivesse, não me tinha encontrado ali sentado.

   — Bou ir atê ô ´fício do Rocha. Quêres bir?

   O Rocha era o sapateiro-soqueiro. Tinha o ofício, como diziam, a meio da "rua" principal. Os homens, nos momentos livres, encontravam-se lá e, entre duas cigarradas, discutiam de tudo e de nada.

   Tentava distrair-me, mas não tinha vontade de ir, estava cansado. Além disso, não ia porque, cada vez que encontrava alguém que dizia duas de francês, queria  que o falasse. Detestava fazê-lo.

   Fiquei só, a olhar para a curva que o sol ia desenhando, estendendo-se de cores. A hora era propícia para não pensar e deixar-se levar pela morosidade que o calor provocava.

   Quando voltou do ofício do Rocha, aínda não eram seis. Não ficara mais por eu não ter ido. Eu apenas me levantara para beber. Passaram dois homens (enfim!) que vinham dos lados da casa da Bilam Belha e foram pelo caminho da fonte abaixo. Fardados como estavam, deviam vir da Vila.

   Preparou uma tigela de água com açúcar que bebeu. Fechou a cancela (além da porta, havia uma cancela para evitar que as galinhas entrassem na casa), fincou-se nela com os cotovelos e olhando para o "eido", disse-me:

   — Ôs da Fonte estam êm Ponte de Lima. Ô irmam bêndeu ô qu´aqui tinha é comprou pr´álá. Ê uma quinta mi boa. Foram ajudar, é ô Cagarroso tamém.

   Percebeu o meu abatimento. Continuou:

   — Bou ber ô Florindo pr´a que me bá buscar ôs sacos ô campo, manhám. Manhám acabamos.  Acordas-te dêl?

   Claro que me lembrava do Florindo. Era um bonachão a quem nada faltava. Levava vida alegre e folgada. Pequeno e gordinho, tinha o cabelo encaracolado e da cor do trigo. Parecia de outra raça. O Florindo não lhe negava nada. O meu pai levara-lhe o filho único, o Flores, para a França. "Tinha bô emprego é limpo", gabava o Florindo. Trabalhava com uma grua.

   A casa ficava ao fundo de uma longa latada que começava no caminho que ia para o campo. Não era longe. Lá fomos.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA VIII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Mal subi as escadas, cheirou-me logo ao cozido, fazendo a fome declarar-se. Mesmo esta se mantivera discreta. Passava das duas.

   — Estubêstes co Tio Justino, nom?- perguntou-me o meu pai, sorrindo.

   Era uma interrogação afirmativa.

   A caneca de vinho estava em cima da mesa. Livrou o conteúdo do pote no grande prato de barro, guardando, contudo, água e algumas batatas e couves. O caldo estava feito. Cada qual do seu lado da mesa, prato no meio, fomos comendo. Era à hora espanhola. As batatas eram farinhentas, como gostávamos. Não se esquecera de meter com a chouriça de carne uma ceboleira, das que eu mais apreciava. Nada ficou. Era hábito, com o meu pai. A comida era feita em proporção mas nunca faltava. Tanto eu como os meus irmãos, quando presentes, éramos os primeiros a ficar cheios e a parar de comer. O meu pai "lambia" o prato. No Monte, consumo era sinónimo de necessidade e não de desperdício. Quando descascava as batatas com um canivete sempre bem afiadinho, as cascas eram  tão finas que quase se via o dia através.

   Demos uma arrumadela e sentamo-nos fora, na pedra. O Kentucky fumegava-lhe no canto da boca. Estava tudo calmo. As galinhas continuavam a esgravatar no "eido". O calor era bastante. Sentia-me contente, pouco a pouco. O cozido ajudara. Vira o Tio Justino, depois de tantos anos! Era o dono do Carrascal.

   O meu pai foi estender-se na cama, descansar um pouco. Trabalháramos bem e a caminhada fora boa. Fiquei sentado à espera de ver o Zê Bilam passar na burra. Neto da Tia Bilam Belha, trabalhava com a burra às cargas principalmente entre Parada e Pomares. Também ia aos moinhos quando havia muito para moer ou a qualquer outro lado. Tinha a minha idade, éramos amigos. Conhecia-o desde que, pequenino, vinha a Parada, mas só há um ano falara com ele. Gostava que lhe falasse da Vila. Nunca baixara de Pomares. Não se via mesmo ninguém. Nem os de Clau, nem os da Fonte. Fui à côrte deitar água fresca na pia das galinhas e buscar uma "manada" de palha para, no campo do lado "baixar as calças", junto do canastro.

   Do Zê Bilam não havia sinal. Resolvi ir à casa dele. A Tia Bilam Belha lá estava sentada, no mesmo sítio, com um monte de feijões secos para descascar. Tinha trabalho. A roupa preta e velha, que da cabeça aos pés a vestia, poucos menos anos teria do que ela. Tinha-se esquecido dos oitenta, havia alguns invernos. No Monte, as pessoas morriam cedo e de doença, a maioria, ou tarde e de velhice. A Tia Bilam Belha fazia parte das segundas. Pensei no que o meu pai contava do nascimento das minhas irmãs gémeas. "A Esp´rança saíu de madrugada pr´ôs moinhos c´uma carga à cabeça - contava - é cando m´apraceu à casa, binha côm duas raparigas debaixo dos braços". Ria-se. Era de rir, mas de admiração. A gente era rija. A força e a placidez que tiravam das dificuldades físicas, pecuniárias e de conforto, faziam-os assim.

   — Ô Zê nom está, Dabide. Foi pr´ás Cortêlhas cargar pr´ô Casimiro. Bêu da França é and´á fazer uma boa casa. Passou muitos anos alá.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA VII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   — Ês ô Dabide, ês – sussurrou-me ao ouvido, como para dissipar as dúvidas.

   Não se engana perdigueiro. Agarrei-lhe o cajado e sentamo-nos no murinho. As lágrimas tinham-lhe vindo aos olhos. Já havia bastante que só lhe serviam para chorar. Não sabia que dizer. As dores grandes são mudas. Percebendo o meu embaraço, foi ele que falou.

   — Entom, que me contas? Hai muito que nom bou à Bila, sabes?

  Calou-se uns instantes, brincando com o cajado, um rudimentar pau, mal torcido. Mexeu na boina, que tinha buracos, e voltou a pô-la como estava, antes de continuar a falar.

   — Sei qu´estubêstes na França, côa tua mai é ôs teus irmans... Aquilo ê terra abênçoada. Hai muito dinheiro, alá. Aqui, nom hai nada, bém ô sabes.

   Fez mais uma pausa. Saboreava o momento. Não fazia alusão nenhuma ao passado. Os olhos tinham-lho prendido no escuro interior e a revolta não lho deixava saír. Tinha-o perturbado. Falava de mim para não falar dele. Eu tinha a boca sêca, incapaz de falar.

   — Tu bás ser doutor, nom? – riu-se, não tinha dúvidas – Tês qu´estudar muito, si, mas bás ser doutor. Sinom, tamém tês qu´ir pr´á França, mêu home. Aqui (em Parada), ô trabalho nom se lhe bê probeito.

   Fazia-lhe bem falar, via-se. Também falava por ele, para ele, intimamente. Seria doutor. Porque não? Convencer-se é meio caminho andado.

   — Ê assi, ê, mêu home.

   Silêncio. O tempo parecia ter parado. Devia procurar que dizer. Nenhum dos dois estava à vontade. Os segundos eram horas.

   A Tia Zaura, que estava em cima, na casa, ouviu-o falar e saíu à janela. A loja estava sempre fechada, havia que chamar.

   — Eu bém bia qu´andaba frango alheio na eira! – disse, contente, ao ver-me.

   Via-a com frequência na pensão às sextas. Ia buscar o que lhe fazia falta para a loja e para ela. Sem o saber, a Tia Zaura fizera-nos voltar à realidade.

   — Olá, Tia Zaura – saudei.

   — Ê ô Dabide, bêu a Parada – apressou-se a anunciar o Tio Justino, radioso como o miudo a quem trouxeram uma rosca da festa.

   — Entom  agôra bás ficar aqui – brincou – Quêres algo da loja ?

   Fez bem lembrar-mo, pois tinha-me esquecido que viera buscar pão. Veio à loja e deu-me a peça de pão. Dada, porque era para mim. Sabia que o meu pai comia brôa.

   Antes de sair da loja diante dela, enchi os pulmões de ar, daquele cheiro que tanto gostava. Era sempre o mesmo. Queria imprimi-lo com mais ênfase, o mais profundamente possível.

   Agarrei na mão do homenzinho e, apertando-a, disse-lhe:

   — Até outra vez, Tio Justino.

   Juntou a outra mão à minha e murmurou-me:

   — Nom penses êm mim, mêu hominho, qu´eu estou belho é caduco. Bai na paz de Deus, bai.

   Não precisara de ver para perceber a minha pena. A percepção passa-se de olhos. As lágrimas caíram-me, era o momento. Fui embora, antes que desse por ela.

   Voltei para a casa. O Tio Justino tirara-me o cansaço. Tinha-se-lhe substituido. Não sabia se voltaria a vê-lo.

   Tinha passado do tanque quando me lembrei do caneco que ficara à espera que o enchesse e o levasse para a casa.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA VI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Lembro-me de, no colo dele, ficar em admiração diante do pingo do nariz que fazia yóyó. E, quando às vezes me punha a choramingar, fazia-me cavalgar no lombo do porco que criávamos ao lado da cozinha. Lembro-me da tigela de sopas de vinho que preparava para merendarmos quando já eu "botava mão a tudo".

   Os pais tinham morrido com a peste, contara-me a minha mãe. Com o recuo, o que naquela altura os do Monte chamaram peste, creio que era a gripe espanhola. Sobreviveram os dois filhos, o Tio Justino e o irmão Nêl (Manuel), primeiro e único marido legal da minha mãe que, depois de lhe deixar semente no ventre, foi para França e não mais voltou. Dele, herdei o apelido.

   O Tio Justino ali ficou, vivendo todo o ano com o que ganhava em pouco mais de três meses de trabalho. Não tinha nada. Nem casa; vivia num palheiro emprestado. Os meus pais convenceram-no e levaram-no para a Vila. Descascava batatas, ia buscar umas grades de refrigerantes ao Castro, rachava lenha e até ia à serração do Cota buscar serrim para o solo da tasca quando chovia. E, ao mesmo tempo, ia-se ocupando de mim. Pelo menos, tinha cama e mesa, diziam. Mas às tardes, quando podia, pegava na cana de pesca e ia embeber-se de natureza na solidão harmonizada do rio Minho.

   Ia até ao Louridal e, pela margem, descia o rio. Ao chegar à foz do regato, junto ao Monte de Prado, subia-o cortando pelo monte acima antes de chegar à Ponte Pedrinha. Ia ter às Carvalhiças e, depois, à Vila. Ás vezes, quando chegava à casa, a noite ia adiantada e a minha mãe, que tinha medo que caísse à água (não sabia nadar) ou mesmo nas pedras do regato, acabou por repreendê-lo. Não foi suficiente e, então, proibiu-o de ir para o rio. Um dia, pela última vez, pegou na cana e no pouco que tinha e, a pé, regressou à Terra Mãe.

   Evitando fazer barulho e tentando esquadrinhar-lhe o olhar, aproximei-me devagar. Pena perdida! O ouvido preveniu-o imediatamente. Um pequeno movimento da cabeça, quase imperceptível, era sinal que dera pela minha presença e que era verídico o que minha mãe me contara: o Tio Justino ficara cego. Sofria com ele. Apetecia-me chorar, mas não era o momento. Ele que tanto gostava da liberdade, fugira da Vila para recobrá-la, e estava agora dela privado! A única riqueza que tinha, a que até o mais humilde dos homens pode ter, fora-lhe roubada. Estava condenado à escuridão das reminiscências, das lembranças que se tornavam mais  valorosas, mais dolorosas.

   — Então, Tio Justino, não me conhece?

   Que pergunta estúpida!

   Virou a cara, como quem quer ver com os ouvidos e, depois de deitar a mão a um cajado que estava encostado ao murinho, levantou-se lentamente. Estava sério. Não era só por eu não ter falado à maneira do Monte. Havia algo mais. Os olhos não manifestavam expressão alguma. Hesitou uns longos segundos. Devagarinho, as feições retractaram-se, salientando-lhe as rugas nos cantos da boca e o rosto principiou a deixar aparecer um sorriso. Foi, então, que, com a entoação e a calma que caracterizam o falar dos do Monte, me disse, peremptório:

   — Êl tu ês ô Dabide...

   Sem ver, vira-me. Fez-se-me um nó na garganta. Não respondi, não era adequado. Pus-lhe as mãos por cima dos ombros. Deixou caír o cajado, deitou-me as mãos à nuca e abraçamo-nos longamente. Era a vez dele voltar dez anos atrás. Estávamos unidos nas lembranças.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Eu levava a "bota" e os sacos às costas; o meu pai, a enxada e a caçadeira, pronta a fazer fogo. O caminho para o campo era o mesmo que ia até aos moinhos. Como tínhamos que atravessar monte, a caçadeira era da viagem. Podíamos cruzar-nos com um coelho, umas perdizes ou mesmo um porco bravo.

   À medida que íamos reduzindo a distância que nos separava da meta, a luminosidade da alvorada ia crescendo. Três quartos de hora mais tarde, estávamos no campo. A caçadeira ficara silenciosa todo o percurso.

   Era um campo grande, metade batatas e metade milho com feijões no meio. A necessidade final era respeitada. Adjacente a este, outro exactamente igual, de centeio plantado. Pertencia ao meu tio. Antes das partilhas, os dois faziam um. Pusemos a "bota" à sombra e deitamos mão à obra.

   O meu pai arrancava e eu ia limpando as batatas,  tirando-lhes a terra que, por ventura, se lhes agarrava. Em seguida, metia-as nos sacos que, pouco a pouco, iam enchendo. O sol, quanto mais ascendia, mais implacável se tornava. Ia-mo-lo combatendo com umas "mijadelas" da "bota".

   Assim fomos trabalhando, quase sem falar, até que o meu pai, depois de olhar para o sol, me perguntou: "Êl ê meio dia, nom?" Não precisava de olhar para o meu relógio, havia duas horas que não lhe tirava os olhos de cima. Estava fatigado. Andar abaixado quase seis horas e ter dormido num colchão de areia eram razões bastante sérias. Sem falar nos meus curtos catorze anos, habituados a uma leve caneta.

   Atamos a boca dos sacos que estavam cheios e fomos encostá-los a um dos muros do campo, onde o sol só lhes dava de madrugada. Preparamos um saco com as poucas batatas que o meu pai cortara ao desterrá-las, recuperamos a "bota" e a espingarda e regressamos ao Carrascal. A enxada deixamo-la no campo, ninguém roubava nada. Como à vinda, três quartos de hora mais tarde estávamos na casa. Não tínhamos encontrado alma viva. A caçadeira continuara calada.

   Num pote bastante grande, o meu pai pôs ao lume toucinho e um pedaço de cabeça de porco, que tinham passado a manhã a demolhar. Como havia pouca água e nenhum pão para mim, peguei no caneco e fui, caminho abaixo, à fonte. Áquela hora ninguém estava a lavar. Lá deixei ficar o caneco e dirigi-me para a loja da Tia Zaura. Nos fundos da casa, situada quase na esquina da junção do caminho da fonte com a "rua" principal, a pequena mercearia tinha todos os produtos básicos para se poder cozinhar. O pão que vendia era do que fazia o Alípio de Pomares. O odor, comum a todas as mercearias daquela época, mescla de petróleo, bacalhau, cevada, azeite, sabão... aínda hoje o trago comigo.

   Foi quando cheguei à esquina que o vi em frente da loja, sentado no murinho, à sombra. Boina na cabeça, brincava com uma palhinha ao mesmo tempo que garganteava uma música que só ele devia conhecer. Certamente que era a mesma que trinava quando andara comigo no colo. Sabia que a Tia Zaura "tomara conta" dele, mas não esperava encontrá-lo ali, sentado no muro. Fiquei triste e contente, ao mesmo tempo. Quase dez anos tinham passado e tinha diante de mim o homem que, apesar da imensa diferença de idade, fôra o meu primeiro amigo: o Tio Justino da Rêga! Voltei atrás esses quase dez anos.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

  Estivemos sentados uns longos momentos, os dois na mesma posição: os cotovelos fincados por cima das coxas e as mãos juntas. Não falávamos. Nada precisávamos de dizer. Um bem estar indolente, de simbiose com o ambiente, invadiu-me. Não se via ninguém. As lembranças eram mais fortes do que o esquecimento. As galinhas e famílias andavam no largo a esgravatar. Quando um dos vizinhos se ausentava, um dos outros ocupava-se delas. Durante o dia, misturavam-se as das quatro casas, mas quando era hora de recolher, não se enganavam de capoeira. Chegava-nos o chiar das rodas de um carro de bois ao longe. O tempo foi passando.

   O meu pai foi acender a lareira e pôr o frango a guisar. Rapidamente, o cheiro a chamusco chegou até mim que continuara sentado na pedra. Adorava o cheiro do fumo, o cheiro do Monte. Não sabia por que se perdia tempo a arejar quando o cheiro a fumo que havia anos impregnava a casa, era preponderante e encobria qualquer outro. Fui à corte buscar uma caneca de vinho. Comemos frango guisado com batatas e uma tigela de caldo de leite que também preparara. Habituado à comida feita no gás, notava quanto mais saborosa era feita na lareira.

   Com uma brasa meteu lume ao incontornável Kentucky (tinha vício de boca) e sentamo-nos de novo na pedra, silenciosos. A pedra era a nossa capela. Era sentados nela que meditávamos. Os do Monte não falavam muito. Diziam: "Quando não sabes que dizer, olha". Ou: "Vale mais ser mudo do que cego". Assim fazíamos. O fim do dia ia-se aproximando e o sol, exausto, despedindo. Ia repousar-se até amanhã. Fechamos as galinhas, fomos "berter augas" junto do canastro e deitamo-nos. A viagem fora longa.

   Quando me acordou, aínda era, practicamente, noite. Os galos não deviam ter cantado. Não os ouvira. E não era o que faltava. Eram quatro e um quarto, no meu relógio. No Monte, o relógio era de relativa utilidade. O indispensável era o sol. O meu pai que tinha dois, um de bolso e um de pulso, só os tirava da arca à noite para lhes dar corda ou, então, quando saía de passeio. Mais por ostentação do que por necessidade.

   Não tinha vontade de me levantar. Era demasiado cedo para mim. O colchão de areia graças ao qual tinha as costas direitas como uma tábua, dizia o meu pai, também não ajudara nada. Acabei por fazê-lo.

   Ele já estava vestido e, diante da lareira sentado, raspava umas "castanhas" d´A Valenciana para um pote com leite. Preparava-me o chocolate. Ele limitava-se à côdea de brôa e golo de aguardente.

   Lavei a cara e sentei-me ao lado dele, no banco. Vestira a roupa que trouxera da Vila no saco, a mais velha que encontrara. Comparada à do meu pai, podia ir à festa. As chamas dançavam diante de mim. Sempre gostei do lume. Perdia-me nas chamas, nas cores e nos cheiros. Ás vezes, no mesmo pedaço de lenha, havia cheiros diferentes. Comi as minhas sopas de chocolate, acabando o pão que compráramos ao Feito. Até ao almoço, não comia mais.

   O dia também tinha acordado. Ouviam-se cantar, timidamente, alguns chocalhos. Andavam longe. Os galos de certeza que cantaram quando eu aínda dormia. Começava-se a ver. Fui à fonte encher a "bota" de água fresca para levarmos, enquanto o meu pai abria a porta da corte às galinhas e lhes dava de comer. A manhã estava fresca. Enquanto o sol continuasse sentado, o ar não aquecia. Os sacos para meter as batatas já tinham sido devidamente enrolados e atados. Fechamos a porta e deixamos a chave ao lado desta, entre duas pedras.

 

(continua)