Avenida - Melgaço
Foi nesse instante que o Pousinha se levantou e aproximou do balcão.
— Nesta Vila só há borrachos ! – lançou na nossa direção.
Se me tivesse calado... Creio que, vista a coisa, o Cancas tinha razão. A "maré estava a subir" e bem. Habitualmente não era tão agressivo.
— Borrachos, mas sempre de pé, Pousinha – precisou o Cancas, picado – Olha, como é que fizestes para pôr a Brasileira louquinha ?
— Embora sejas catedrático, Cancas, é complicado demais para ti. Hoje não tenho tempo para dar lições.
Deu uma gargalhada e, virando-se para um empregado, pediu :
— Leva-nos mais uma cerveja e dois cariocas de limão, pá. Uma Cristal, ouviste ?
— Fica-te cara a festa, meu – o Cancas não largava o osso.
— Não te atrapalhes que elas têm muito com que pagar.
O Cancas acusou o golpe fazendo uma nova careta, enquanto que o Pousinha, radioso com o andamento da conversa, dava meia volta e ia sentar-se novamente diante das duas amigas.
Ficamos calados uns segundos.
— Está mesmo fodido, pá ! – repetiu, de "mala hóstia", como se falasse sózinho.
Não digerira a réplica. Fomos bebericando lentamente a cerveja, sem falar. O café continuava quase cheio. Uns saíam, outros entravam. Os bailes eram um bom negócio para os três cafés da Calçada. Os donos dos três do centro da Vila é que não estavam nada contentes.
— Estou com uma fominha medonha, meu - confessou-me. - Ao meio dia, só comi dois pratinhos de vitela estufada com um purézinho de batata... Ó Xoco, os rissóis aínda não chegaram ou já os paparam ?
Olhei para o Xoco e, ao ver-lhe os óculos escuros (imitação de Ray-Ban), não pude impedir um leve sorriso. Andava quase sempre com eles, tanto de noite como de dia. Uma vez perguntaram-lhe qual era a razão. "É para não ver os parvos que me rodeiam" - retorquiu.
— Não devem tardar, a não ser que se tenham esquecido.
Quando faziam baile, encomendavam rissóis de camarão e bolos de nata, de coco, etc, ao casal que explorava o Café Central, na Praça da República. Eram muito bons.
O Pousinha não parava de falar, estava nas nuvens. As gargalhadas da Brasileira e da Pacha continuavam a sobressair do barulho geral. Devia estar a contar-lhe as suas aventuras em Coimbra. Aquilo é que era ! Porque seria, então, que, logo que podiam, vinham a Melgaço ? Não era somente para engordar a carteira. Se não conhecesse a Brasileira, diria que tinha fumado um "cigarrinho". Nunca a tinha visto neste estado.
— Bem, vou dar uma mijadela enquanto não chega a papinha - confiou-me o Cancas. E lá foi.
8
Comia que nem um burro. Em Melgaço, só havia um que comia mais do que ele : o Julinho. Uma noite, eu, eles, o Xoco e mais alguns fomos ao café da Lurdes, a seguir à ponte da Carpinteira, com a intenção de comer uma petiscada qualquer.
Já passava da meia noite e não havia nada que petiscar. Nem com que fazer a petiscada. A Lurdes queria mas era ir para a cama. Foi então que o Cancas lhe lembrou que as couves que havia de um lado e do outro da entrada do café tinham uns grumichos que só pediam para ser comidos com um arrozinho "a fugir". A Lurdes não se deixou convencer : estava cansada e ia para a cama dormir. No entanto, se nós quiséssemos prepará-lo, deixava-nos à disposição a cozinha e as bebidas que nós entendessemos (vinho, cerveja, etc). Mais tarde, quando saíssemos pela porta da cozinha, só tínhamos que verificar que esta ficava bem fechada. Quanto à conta, vínhamos pagar quando tivéssemos tempo. Tanto ela como o marido (que estava nos USA e com quem ela pensava ir ter brevemente) eram umas belíssimas pessoas. Assim ficou combinado.
O Cancas e o Julinho foram colher os grumichos e puseram-se a cozinhar. Arroz não faltava, dava bem para dez, mas tinham-lhe deitado tanto azeite que ninguém conseguiu comer, excepto os dois cozinheiros. Bastava cheirá-lo para que o estômago o rejeitasse. Contentamo-nos com umas tijelas de tinto. Entre os dois, pouco faltou para que acabassem o arroz de grumichos. Éramos nós que não sabíamos o que era bom, diziam. Tinham um estômago inatacável !
O meu olhar cruzou o do Cisso que estava parado à entrada a manjar o pessoal. Com a calma habitual que o caracterizava, aproximou-se de mim. Ia recidivar, de certeza. Ao passar ao meu lado, disse-me, sem parar :
— A proposta vale sempre, pá. Se às vezes mudares de ideias, já sabes.
Ao chegar à porta que dá para os quartos de banho, parou, meteu um cigarro entre os lábios, acendeu-o e deixou passear o olhar pela sala, antes de efectuar novamente, com toda a calma, o trajecto na direcção da entrada. Este Cisso era completo !
Chegaram os rissóis e os bolos num grande tabuleiro. A minha cerveja aínda estava meia, mas já estava quente. Não andava a beber muito. Pedi outra. Em baixo, cantavam : "... e agora que sou grande e sou barbadinho, se quizer um biluzinho, tenho que fazer sózinho." E assim se continuava a cantar na terra. A sala estava mais silenciosa. O pessoal começava a ficar cansado. Passava das seis. Até a Brasileira e a Pacha se tinham acalmado um pouco. Seria o Pousinha que estava a esgotar o reportório ?
9
O Cancas saíu do quarto de banho. Vinha todo risonho. Não fora só mijar, claro. Atirou-se aos rissois como um desalmado. Eu não tinha fome. Entre dois rissois, contou :
— Ao meio-dia, estava à porta do Central a controlar quem passava e junto à montra do Marialva estavam quatro velhotes reúnidos. Pergunta um deles : "E se fôssemos ver o futebol ?" "Quem joga ?", perguntou outro. "Não sei, mas posso garantir-vos que o tinto é muito bom", respondeu um terceiro. "Então vamos", concordou o quarto.
Ri com gosto, mas ele aínda mais. Fizera-lhe bem ir mijar. E continuou :
— O Albertino (o presidente da câmara) fez o campo de futebol no morro por detrás da casa dele. Quando a bola cai para o lado de cá, há que vir à estrada buscá-la. Agora construiram um bar por detrás da baliza. O outro dia, quando um gajo ia molhar o bico, apanhou uma bolada nas costas que atirou com ele contra o balcão e com a tijela para o chão. Ó meu, há cada uma mais fixe nesta terra !
Rimos até às lágrimas. Agora era para nós que as cabeças se viravam. O Cancas pegou num bolo de nata. Tinha comido cinco rissóis. Era a média. De vez em quando, escapava-nos um riso. Foi pena o Fellini não ter vindo a Melgaço.
Pedimos a conta enquanto o Cancas mastigava o segundo bolo de nata. Íamos dar uma olhadela ao bailarico. Foi então que ouvimos um grito estridente, e uma voz feminina com um lindo sotaque brasileiro ulular : "Ai, meu Deus, que horror !"
Não tínhamos dúvidas de quem fora a protagonista. Todos os que estavam na sala olharam na direcção do trio que durante a tarde cativara o olhar de toda a pessoa que pelo café passara. A Brasileira estava de pé, braços afastados. O vestido, que era azul claro, parecia vermelho escuro com manchas azuis. O Pousinha tinha-lhe despejado por cima uma boa quantidade do que tinha bebido e comido durante o dia. As tetas foram as que mais sofreram. Ao lado, a Pacha também de pé, apenas tinha sido esparrinhada. De olhos arregalados e cabeça apoiada no "fauteuil", o Pousinha não devia saber onde estava nem o que lhe tinha sucedido. O Xoco e o empregado acorreram imediatamente com panos limpos. Era deplorável, pois o café tinha um certo conforto : sofás, alcatifa... A Brasileira, quase a chorar, repetia a meia voz, ao mesmo tempo que tentava tirar de cima o pior : "Que horror, meu Deus, que horror !" O espectáculo era mais do que desagradável, era exasperante. Tive pena dela. E dizer que, até ali, passara a tarde a rir ! Virei a cara, escandalizado. Ao meu lado, o Cancas (cuja previsão se verificara) não dissimulava o deleite que a ocorrência lhe proporcionava. A vingança é terrível, Pousinha - devia pensar ele.
10
Decidi ir embora. O estômago já me dera sinal e não queria rejeitar as cervejas que tinha bebido. Fizera bem não ter comido. O Cancas tinha mesmo um "bucho" inatacável !
Saí do café e, rua abaixo, dirigi-me para o Terreiro. Estava vazio. Apenas passava das sete, mas, áquela hora, muitos já estavam a cear. Continuei até à Avenida. Fui sentar-me por cima da muralha, na curva onde por baixo começava a caneja que ia dar à estrada das Carvalhiças. Era o meu cantinho de solidão.
Tirei um "cigarrinho" do bolso da camisa e depois de lhe cortar a ponta com os dentes, peguei-lhe fogo com o Dupont. Virei-me para o lado exterior da muralha e, lentamente, fui fumando. Á minha frente, a Pastoriza, o Monte de Prado, com a vegetação aínda raquítica, o Rio Minho cujas águas, tal um espelho, reflectiam os raios do sol minguantes de intensidade, e, como fundo, os montes galegos, por detrás dos quais o sol se esconderia. A paisagem era extraordinária. Curtira-a dezenas de vezes, mas nunca me fartava.
Apaguei e guardei o que me restava do "cigarrinho". O calor do sol que, frouxamente me ia acariciando, ampliava o bem estar que me tinha inundado. Vagarosamente, os olhos foram-se-me fechando e, então, sonhei, sonhei...
Sonhei com um mundo onde ninguém sabia o que era inveja, onde os mais pobres ganhavam o suficiente para terem uma vida decente, onde os antónimos de amor e perdão não existiam, onde as pessoas se viam nos outros, onde ninguém exacerbava o medo da morte nas pessoas, afim de melhor explorá-las, onde ninguém era obrigado a deixar o seu país para ganhar o pão, onde ninguém precisava de pedir a um vizinho para lhe ler uma carta, onde os idosos e os doentes eram tratados com o devido respeito, onde se falava aos estrangeiros como se fossem da terra, onde se trabalhava por ter qualidades e não por os pais terem conhecimentos, onde as crianças não eram brinquedos, onde se podia acreditar ou não sem ser visto com maus olhos, onde as mulheres não eram consideradas como um mal necessário, onde éramos semelhantes no essêncial, aínda que diferentes nos detalhes, onde...
Abri os olhos. O sol, que tinha atravessado o rio e se escondera por detrás dos montes, deixara um rasto de cores alaranjadas que aínda lhes iluminava o cimo. Levantei-me e dirigi-me para a casa. Eram horas de ir cear. Não havia alma viva na Avenida. Lembrei-me do Pousinha e, apesar de tudo, sorri. Assim passei mais um domingo.
No dia seguinte, contaram-me o resto. A coisa não tinha ficado por ali. Passemos. O certo é que durante várias semanas o Pousinha não pôs os pés em Melgaço. E, quando começou a fazê-lo, evitava frequentar os sítios onde pudesse cruzar-se com a Brasileira.
Longos anos passaram e uma vez, lembrando a Discoteca com ele e uns amigos, abordei o assunto. Corou e ficou transtornado. Comprendi-o. Fora um acidente de percurso, nada mais.
As personagens e os feitos desta narração, apesar de se situarem num quadro real, são o fruto da mera imaginação do autor.
Junho de 2009
A. El Cambório