O BUFO DAS BUFAS
A Dona Olívia acumulava as obrigações de professora com os afazeres de casa, escalava alguém para tomar conta da turminha, geralmente a filha do Zé Félix, a Maria do Céu, por ser a maior. Aliás os sete filhos do Zé Félix viviam quase exclusivamente na casa de Dona Olívia, só iam comer e dormir na casa deles. A Dona Olívia não cobrava igual a todos, cada um pagava conforme as suas posses e tinha até os que nada pagavam em dinheiro. Os pais mandavam alguma coisa do que colhiam: feijões, ervilhas, favas, couves ou alguma carne na época da matança do porco.
Além de muito brincar e o facto de estar na escolinha já era uma permanente brincadeira, aprendia-se a rezar e a fazer paus e ligações que era uma preparação para mais tarde fazer algarismos e letras. O exercício de paus e ligações consistia em ficar riscando na lousa carreiras de tracinhos e curvinhas. Reboliço era quando alguém soltava um traque. Como a algazarra era permanente não se ouvia o ruído só se notava um fedor insuportável. A maioria daquelas crianças alimentava-se de caldo à base de hortaliças e legumes e era isso que provocava o mau cheiro dos gases. As crianças acusavam-se mutuamente denunciando à Dona Olívia. A professora escalava um garoto para descobrir o autor do fedor. O Menano do Sabino apresentava-se voluntariamente para a função de denunciante. Ia de criança em criança cheirar na altura do pescoço por dentro da roupa e sempre acusava alguém que protestava e o caso ficava por isso mesmo. A maior precaução da dona da escolinha era controlar os constantes pedidos para urinar. Na rua e em suas casas toda aquela meninada diziam mijar que era o termo corrente, mas na escola a professora fazia questão que falasse urinar. A Não ser as meninas mais pequenas que iam lá dentro no quarto, fazer no penico, todos os outros iam fazer no castelo. Naquela altura, antes da recuperação dos monumentos, que veio por volta de 1940, as muralhas que circundavam a torre de menagem estavam em ruínas com o recinto à volta da torre, devassado. Era uma terra de ninguém, onde crianças e animais de criação, da vizinhança, brincavam na mais completa fraternidade. Pois para urinar ou até fazer cocó, todos iam ao castelo, os mais pequenos acompanhados de um maior.
Tinha alturas que a Dona Olívia ficava doida com a romaria em que se transformava o ir urinar. Era só um deles descobrir no castelo alguma coisa fora do normal: uma lagartixa com dois rabos, uma galinha manca, ou coisa assim, que transmitia aos outros, e de repente a vontade de urinar era colectiva. Iam e ficavam e o Zeca que já era espiga dote, ia com uma vergasta trazer de volta toda a canalha.
As novidades apareciam na escola da Dona Olívia. Vez por outra, alguma criança trazia recado dos pais para a professora deixar sair mais cedo para ir ajudar nalguma tarefa doméstica ou no campo: - Dona Olívia, o meu pai mandou dizer para a senhora me mandar embora às quatro horas para ir andar com a água (rega dos campos), dizia o Zé, filho do Rogério Cambado.
Os pedidos para sair mais cedo foram-se avolumando com os mais esfarrapados pretextos: para levar o gado a beber, para ir ao forno apanhar o pão, para ajudar a ordenhar as cabras, para entregar uma roupa, para provar uns socos; esta de provar os socos era constante, como o Inverno se ia aproximando, este calçado, espécie de botas com solado de pau usado pela maioria da população, era desculpa cabivel, muito embora a Dona Olívia achasse estranho que, crianças que nunca tinham usado tal calçado, viessem com esse pedido. Começou a desconfiar que havia maroteira até que um garoto pediu para sair mais cedo para provar umas alpargatas. Drasticamente veio a decisão: - Só vai sair mais cedo quem trouxer um bilhete do pai, sentenciou a Dona Olívia. Aquilo foi um duche de água fria no ânimo da meninada. Sair mais cedo passara a ser um ponto de honra, uma esperteza enaltecedora. Todo o que conseguisse mais cedo, antes das cinco horas da tarde, passava a ter certo destaque e importância. Saíam mais cedo para ficar no terreiro, jogando pião ou outra brincadeira. A maioria já tinha conseguido aquela façanha. Entre os poucos que ainda não haviam saído mais cedo estava o Manelzinho. Ele e mais uns poucos eram alvo da chacota dos demais.
Sentindo-se diminuído resolveu o filho do Augusto do Félix, pedir o bilhete ao pai. Após o jantar, antes de retornar à escola, pediu ao pai o bilhete para a professora o deixar sair às 4 horas. O pai achou estranho, mas o Manel explicou que todos já tinham conseguido isso e ele também se achava com direito. O pai, para satisfazer o seu pimpolho, pegou num papel e um lápis, sentou num dos bancos da alfaiataria e apoiando o papel no mocho, foi escrevendo. O Manel, de olhos arregalados de satisfação acompanhava o movimento do lápis, sem entender. Conhecia algumas letras mas não sabia ler. Quando o pai escreveu a hora ele protestou choramingando:
— Cinco horas não! É às quatro! O pai ficou orgulhoso pela inteligência do garoto que já reconhecia os algarismos e pelo discernimento. Fez novo bilhete e agora recitando em voz alta, para deixar sair o meu filho Manuel às 4 horas para ir fazer um recado. E assinou.
Manuel Félix Igrejas
Rio de Janeiro
Public. em A Voz de Melgaço