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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O BUFO DAS BUFAS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

    A Dona Olívia acumulava as obrigações de professora com os afazeres de casa, escalava alguém para tomar conta da turminha, geralmente a filha do Zé Félix, a Maria do Céu, por ser a maior. Aliás os sete filhos do Zé Félix viviam quase exclusivamente na casa de Dona Olívia, só iam comer e dormir na casa deles. A Dona Olívia não cobrava igual a todos, cada um pagava conforme as suas posses e tinha até os que nada pagavam em dinheiro. Os pais mandavam alguma coisa do que colhiam: feijões, ervilhas, favas, couves ou alguma carne na época da matança do porco.

    Além de muito brincar e o facto de estar na escolinha já era uma permanente brincadeira, aprendia-se a rezar e a fazer paus e ligações que era uma preparação para mais tarde fazer algarismos e letras. O exercício de paus e ligações consistia em ficar riscando na lousa carreiras de tracinhos e curvinhas. Reboliço era quando alguém soltava um traque. Como a algazarra era permanente não se ouvia o ruído só se notava um fedor insuportável. A maioria daquelas crianças alimentava-se de caldo à base de hortaliças e legumes e era isso que provocava o mau cheiro dos gases. As crianças acusavam-se mutuamente denunciando à Dona Olívia. A professora escalava um garoto para descobrir o autor do fedor. O Menano do Sabino apresentava-se voluntariamente para a função de denunciante. Ia de criança em criança cheirar na altura do pescoço por dentro da roupa e sempre acusava alguém que protestava e o caso ficava por isso mesmo. A maior precaução da dona da escolinha era controlar os constantes pedidos para urinar. Na rua e em suas casas toda aquela meninada diziam mijar que era o termo corrente, mas na escola a professora fazia questão que falasse urinar. A Não ser as meninas mais pequenas que iam lá dentro no quarto, fazer no penico, todos os outros iam fazer no castelo. Naquela altura, antes da recuperação dos monumentos, que veio por volta de 1940, as muralhas que circundavam a torre de menagem estavam em ruínas com o recinto à volta da torre, devassado. Era uma terra de ninguém, onde crianças e animais de criação, da vizinhança, brincavam na mais completa fraternidade. Pois para urinar ou até fazer cocó, todos iam ao castelo, os mais pequenos acompanhados de um maior.

    Tinha alturas que a Dona Olívia ficava doida com a romaria em que se transformava o ir urinar. Era só um deles descobrir no castelo alguma coisa fora do normal: uma lagartixa com dois rabos, uma galinha manca, ou coisa assim, que transmitia aos outros, e de repente a vontade de urinar era colectiva. Iam e ficavam e o Zeca que já era espiga dote, ia com uma vergasta trazer de volta toda a canalha.

    As novidades apareciam na escola da Dona Olívia. Vez por outra, alguma criança trazia recado dos pais para a professora deixar sair mais cedo para ir ajudar nalguma tarefa doméstica ou no campo: - Dona Olívia, o meu pai mandou dizer para a senhora me mandar embora às quatro horas para ir andar com a água (rega dos campos), dizia o Zé, filho do Rogério Cambado.

    Os pedidos para sair mais cedo foram-se avolumando com os mais esfarrapados pretextos: para levar o gado a beber, para ir ao forno apanhar o pão, para ajudar a ordenhar as cabras, para entregar uma roupa, para provar uns socos; esta de provar os socos era constante, como o Inverno se ia aproximando, este calçado, espécie de botas com solado de pau usado pela maioria da população, era desculpa cabivel, muito embora a Dona Olívia achasse estranho que, crianças que nunca tinham usado tal calçado, viessem com esse pedido. Começou a desconfiar que havia maroteira até que um garoto pediu para sair mais cedo para provar umas alpargatas. Drasticamente veio a decisão: - Só vai sair mais cedo quem trouxer um bilhete do pai, sentenciou a Dona Olívia. Aquilo foi um duche de água fria no ânimo da meninada. Sair mais cedo passara a ser um ponto de honra, uma esperteza enaltecedora. Todo o que conseguisse mais cedo, antes das cinco horas da tarde, passava a ter certo destaque e importância. Saíam mais cedo para ficar no terreiro, jogando pião ou outra brincadeira. A maioria já tinha conseguido aquela façanha. Entre os poucos que ainda não haviam saído mais cedo estava o Manelzinho. Ele e mais uns poucos eram alvo da chacota dos demais.

    Sentindo-se diminuído resolveu o filho do Augusto do Félix, pedir o bilhete ao pai. Após o jantar, antes de retornar à escola, pediu ao pai o bilhete para a professora o deixar sair às 4 horas. O pai achou estranho, mas o Manel explicou que todos já tinham conseguido isso e ele também se achava com direito. O pai, para satisfazer o seu pimpolho, pegou num papel e um lápis, sentou num dos bancos da alfaiataria e apoiando o papel no mocho, foi escrevendo. O Manel, de olhos arregalados de satisfação acompanhava o movimento do lápis, sem entender. Conhecia algumas letras mas não sabia ler. Quando o pai escreveu a hora ele protestou choramingando:

    — Cinco horas não! É às quatro! O pai ficou orgulhoso pela inteligência do garoto que já reconhecia os algarismos e pelo discernimento. Fez novo bilhete e agora recitando em voz alta, para deixar sair o meu filho Manuel às 4 horas para ir fazer um recado. E assinou.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço 

 

VISITA A PARADA III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

   Situada junto dum pequeno largo (o eido, para nós) com quatro casas, era a mais pequena delas. Em frente da nossa, a dos da Fonte; colada a esta, mas retirada um pouco, a dos Bilam ; à nossa esquerda, a dos de Clau. Do lado direito, um pequeno campo que nos pertencia. Tinha um canastro no meio, uns pés de couve numa esquina e noutro canto, nos bons meses, alguns legumes. Um cantinho era reservado para as necessidades corporais. De entre o campo e a casa, saía o caminho que ia dar aos moinhos que tínhamos perto de Cortegada e, depois do regato, a Cubalhão. Por detrás da casa descia o caminho que cruzava com a "rua" principal de Parada, a seguir ao tanque e à fonte onde o gado bebia. Dali até ao Cuto Santo, junto da igreja, atravessava o centro da aldeia. Inteiramente feita com grandes pedras trabalhadas, fora acomodada com regos dos lados. A água que por eles corria, vinda da montanha, ia regar os campos muito abaixo de Parada, na direcção da Gave.

   A nossa casa era pequena. No res do chão, a corte, adega, galinheiro... Servia para tudo. Umas escadinhas de pedra (tudo era de pedra em Parada) levavam a um pequeno e estreito pátio, diante da porta de entrada. Dentro, a cozinha e um quarto, com janela para o caminho que passava por detrás. Na cozinha, à entrada, na esquina do lado direito, o forno de barro que há muito não trabalhava. No meio, a lareira, e na outra esquina, um armário.

Do lado esquerdo, na esquina, meia dúzia de enxadas e a seguir, duas grandes caixas de madeira cheias de carne salgada, outros alimentos e outros condimentos. Quase a meio, junto da lareira, uma mesa e dois bancos compridos, rudimentarmente feitos. Nas traves, estava dependurado o fumeiro e uma grande bola de unto. A cozinha, ao contrário do quarto, não tinha forro, para facilitar a evacuação do fumo. No quarto, uma cama grande e uma arca metálica onde se guardava a roupa boa e coisas de valor como relógios, fieiras de ouro, pistola e dinheiros, eram a única mobília.

   A primeira coisa que fiz, foi ir buscar água fresquinha à fonte. Pouco mais de cem metros nos separavam dela. Lá fui e, claro, tive direito às perguntas habituais que me fizeram graciosamente as mulheres que ali lavavam.

   "Êl quém ê este moço das festas?" "Êl bós conhecêdes este rapaz?" "Ô melhôr nom tém pais." "Tu gostas mais da Bila, nom?" Tais eram as perguntas, às quais eu respondia que era o David d´Esp’rança e que também gostava de Parada. Riam-se. As apresentações tinham sido feitas. Em breve, metade da aldeia sabia que o Germano Grande, como era conhecido, trouxera o filho mais novo da Vila.

   Enchi o caneco de lata e, com ele ao ombro, voltei para a casa. O meu pai já tinha tirado e arrumado o fato que vestia quando ia à Vila, substituindo-o pela roupa velha habitual. Abrira as duas portas da casa e a janela do quarto para arejar. Havia que renovar, a casa estivera fechada uns dias.

   Verti a água do caneco no cântaro de barro. Nele, a água não perdia o gosto. Preparamos uma caneca de água fresca com açúcar e, com a tigela na mão, fomos sentar-nos na pedra ao lado da porta. Sem palavra, fomos bebendo aos poucos. Que bem sabia aquela água! Eram cinco. O sol queimava bem, mas por enquanto, estávamos protegidos pela casa dos de Clau. Só mais tarde, quando perdia a força, é que o sol nos batia à porta.

   Vivia na Vila, falava como eles, vestia-me como eles, mas no meu interior mais profundo não era da Vila, era dali. Fazia parte daquela terra, daquela gente. Via-me neles, no calor da fala,  nos cheiros. A força de viver que tinham, o apego e o respeito pela terra, em todos sentidos, tinham eco em mim.

 

(continua)

 

VISITA A PARADA II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Capela da Minhoteira

 

   Por detrás da loja do Feito, apanhamos o estreito caminho que, atravessando um pequeno e verde pinheiral, ia dar à estrada de terra que levava à Cela. Passamos novamente pelo meio de outro pinheiral, que devia fazer parte do primeiro, antes de os separarem com a estrada da Cela, e fomos, enfim, ter ao verdadeiro caminho de Parada. Diante de nós, estendia-se, ao fundo, o regato e a ponte da Minhoteira. Bastante acima desta, avistava-se Parada, deslumbrante, sentada no colo das montanhas. Apetecia olhar e não mexer mais. Á direita, perto do regato, aos pés das mesmas montanhas, deslumbrava-se a bela e graciosa Gave. A vista era singular. Era o sítio ideal para sonhar, se os sonhos dos do Monte não fossem outros. O caminho de pedra descia a pique até à Minhoteira. Não era muito largo e as pedras que o pavimentavam, enormes, há muito que tinham sido alisadas pelos homens e pelas águas das chuvas. A cautela era mais do que necessidade. A ribanceira até ao regato assustava. Uns simples grãos de areia tinham provocado muitas quedas. A descida era particularmente perigosa para as burras que, além da carga, viam os riscos aumentados pelas ferraduras. Até ao regato, a vegetação reduzia-se ao mínimo: giestas, urzes e carqueijas. Algumas burras já tinham ido parar perto do riacho. Uma levou o dono com ela. Quando não morriam na queda, depois de terem batido contra as pedras por ali espalhadas e percorrido dezenas de metros aos tombos, eram, depois de grande sofrimento, abatidas a tiro.

   Minutos depois de termos começado a descer o caminho, cada qual com um pequeno saco ao lombo onde levávamos a meia dúzia de coisas que faziam falta, estava a suar. O sol ia alto, não perdoava. O chapéu de abas largas que todo serrano se devia de trazer, protegia a cabeça ao meu pai. A meio, um jacto de água que de entre as pedras brotava, permitiu que nos desalterássemos. Era fresquinha, vinha das entranhas do monte. Continuamos a descer e comecei a ouvir um zumbido que aumentava à medida que nos aproximávamos da Minhoteira. Era o barulho da água do regato que, desde Lamas lançada, batalhava contra os pedregulhos que, no leito, se lhe opunham. O vencedor conhecia-se;  a incógnita era o tempo.

   Minhoteira. O calor e a descida excederam-nos. É estranho como, apenas a ponte passada, a paisagem se transforma. A vegetação manifestava-se bastante. Junto da ponte, de um lado, um moinho, do outro, a capela, e entre os dois, um grande castanheiro que já se devia ter esquecido da idade. Foi à sombra dele que deixamos o corpo aclimatar-se à temperatura mais clemente que, a partir dali, iríamos encontrar. Aproveitei para comer um pedaço da peça de pão com duas "castanhas" de chocolate. Enquanto mastigava, olhei para o monte que tínhamos descido. O caminho começava a subir imediatamente após a ponte. Da direita para a esquerda, ia-se elevando, elevando até desaparecer no cimo do monte. Quando um adulto adoecia gravemente, eram quatro que, com a pessoa numa padiola às costas, trepavam esse caminho até Pomares. A nós levara-nos mais de uma hora para o descer com um simples e ligeiro saco às costas! A proeza era mais do que rebarbativa!

   Pusemo-nos a caminho. Os campos, rodeados de vinha, eram um leque de cores e de sementeiras. A subida até Parada não era muito cansativa. Parte do caminho, que mal era metade do da Minhoteira a Pomares, era protegida pela vegetação e pelas latadas de vinha bastante abundantes. Como o termo do caminho era junto da igreja e a nossa casa ficava no lado oposto, tínhamos que, em certo ponto, cortar através dos campos. Os antepassados tinham-se acordado em autorizar um direito de passagem. A subida era espaçada por os campos, apesar de grandes, serem em socalco. O cansaço era suportável quando, ao fim da tarde, saltamos o pequeno muro da última leira e vi a Tia Bilam Belha (velha, o V não existia no Monte), sentada no chão, como gostava, a descascar feijões. Já não tinha idade para ir trabalhar para os campos. Franzina e desdentada, ocupava-se das tarefas caseiras mais simples. E que fazer não lhe faltava, dizia. Depois da conversa de uso, demos os passos que nos separavam da nossa casa da Barroca.

 

(continua)

 

A MINHA PÁGINA NA NET

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

PORTO DOS CAVALEIROS


A propósito da publicação no JORNAL DE LAMAS DE MOURO – PORTO DOS CAVALEIROS – de Julho de 2003 a história de Virgílio Domingues, a autora Catarina A. Domingues, escreve:

“Resolvemos transcreve-la e publicá-la para lhe garantir a merecida perenidade.”

É com este sentimento, de não deixar morrer a nossa história e a nossa cultura, que transcrevo o artigo publicados em PORTO DOS CAVALEIROS.

 

 

MEMÓRIAS DE UM EMIGRANTE PIONEIRO

 VIRGÍLIO DOMINGUES

 

Nasci em 1920 num tempo de muita miséria, trabalhava-se muito, e trabalho duro que era tudo manual, mas dinheiro não havia – tive a minha primeira moeda (10$00) aos 13 anos, quando fui cegar feno para Castro Laboreiro.

Para os que ficavam na terra, havia quem emigrasse, sobretudo para Espanha e para o Brasil, o contrabando era a única forma de ganhar uns tostões. Eu fui muitas vezes, mas tirava pouco lucro porque ia sempre por conta de outrem.

Durante a Segunda Grande Guerra, por volta de 1942/43, abriu a exploração do volfrâmio nos montes de Castro Laboreiro (em Numão), era um metal muito procurado para armamentos e pagavam-no bem – em quinze dias que passei lá juntei o dinheiro que precisava para pagar as três vacas que tinha “de ganho”.

Já a Guerra tinha terminado, ouvi a uns rapazes de Castro que valia a pena emigrar para França, tinham recebido notícias de vizinhos a dizer que havia trabalho e era bem pago. Foi o que nos animou, a mim, ao meu irmão José e um nosso vizinho, o Oliveiros Domingues (“Livreiros de Mouro”). Foi uma decisão difícil, tive que vender uma vaca para pagar a passagem e ao passador, correndo o risco de ficar sem ele e ainda preso, pois ia clandestino, mas a esperança de melhor vida dava-me coragem.

Saímos no dia 29 de Junho de 1946 de manhã cedo, apanhamos o autocarro na Notária até à estação de Felgueiras e daí fomos de comboio até S. Sebastian, já sabíamos que havia lá um hotel onde se reuniam os que queriam sair clandestinamente, era o local de contacto com o passador. Dirigimo-nos ao hotel, com alguns rapazes de Castro que tínhamos encontrado na viagem, e desde logo ficamos a saber que estava difícil passar, tínhamos que esperar.

Passaram-se mais de dois meses e então, por telefone, o passador deu ordens para seguirmos para Irun, no comboio da noite, em grupos de 7 que lá nos procuraria. Eu, os meus dois companheiros e mais quatro rapazes que também eram de Melgaço fomos no comboio das 11.

Pelo caminho calhou-me ir sentado ao lado de um polícia à paisana, perguntou-me onde íamos, eu respondi que íamos à procura de trabalho a Espanha, mas ele não acreditou, mostrou o distintivo, chamou o colega que estava sentado mais à frente e deram-nos voz de prisão. Chegados à estação, preparavam-se para nos conduzir ao posto, mas eu revesti-me de coragem e desatei a fugir pela linha do comboio acima – sorte que não abriram fogo! Andei aproximadamente um quilómetro a pé, completamente desorientado, e passei a noite escondido atrás de um silvado sem comer nada, cheio de frio e de medo. Ao romper do dia dirigi-me novamente à estação para voltar a S. Sebastian onde tinham ficado os outros, souberam pelo passador do que nos tinha acontecido e já não saíram. Encontrá-los não foi fácil, quanto mais andava mais perdido me encontrava, comprei o jornal e lá numa grande praça sentei-me num banco fingindo que estava a ler, nada disso, eu só pensava no rumo a seguir para chegar ao bendito hotel.

Restabeleci, o cérebro descansou um bocado, e continuei a busca até que os encontrei. Ficaram muito admirados de me ver, pois julgavam-me preso. No dia seguinte mudamos de hotel porque estávamos denunciados. Passaram mais oito dias até que chegou nova ordem para seguir para Irun, mas desta vez de dia e em grupos de dois, para não dar nas vistas, e lá que nos escondêssemos como pudéssemos até ao cair da noite. Assim foi, era já noite escura ouvimos a senha combinada (cantar como as perdizes) e então fomos ao encontro dos passadores (eram 2).

Seguíamos por um carreiro no meio do monte, em direcção à fronteira, quando demos conta de uma luz. Eram dois guardas-civis, fugimos em direcção contrária e escondemo-nos num campo de milho. Ali passamos 24 horas, de noite gelávamos de frio e durante o dia queimava-nos o sol, pois nem podíamos levantar a cabeça.

Na noite seguinte lá apareceram os passadores e depressa nos encaminharam até à fronteira. Á nossa espera estavam dois guardas-civis “comprados” e uma barquinha, para atravessar para o outro lado. Mas alguma coisa no combinado correu mal e os dois guardas voltaram atrás com a palavra, já estávamos na barquinha quando nos ordenaram para voltar atrás ou nos matavam a todos. Não nos prenderam porque tinham acordo com os passadores mas avisaram-nos que não havíamos de passar.

Fomos então para uma capoeira de galinhas que os passadores tinham alugada e aí ficamos dois dias e duas noites sem comer nem beber, mal podíamos respirar. Deram-nos alguma coisa para comer, mas o estômago já não consentia comida e, aconselharam-nos a voltar para S. Sebastian até as coisas melhorarem. Tal como tínhamos chegado ali, assim planeamos sair, dois de cada vez. Eu e o Zé da Açureira fomos logo presos, quando íamos para tirar o bilhete, no mesmo local onde tinha fugido anteriormente. Levaram-nos para a prisão de S. Sebastian e lá encontrei o meu irmão e o Oliveiros que tinham sido presos, quando eu fugi. Andei de prisão em prisão, algemado como um criminoso, desde S. Sebastian até Melgaço. Aí deparei-me com mais um problema, para me libertarem tinha que apresentar o bilhete de identidade ou os documentos militares, e eu não tinha um nem outro, o bilhete de identidade tinham-me ficado com ele em Espanha e os documentos militares não os tinha porque era refractário – decidira fugir ao serviço militar porque tinha filhos pequenos e tinha que os criar. Fui obrigado a ir às inspecções a Viana do Castelo e por infortúnio fiquei apurado. Mandaram-me oito dias para casa e entretanto recebi um aviso para me apresentar na Base da Ota, para ir para a aviação. Não me apresentei e então fui considerado desertor, fui procurado pela polícia e andei fugido.

Em Junho de 1947 decidi tentar “o salto” mais uma vez, cheio de medo pois tinha passado muito maus caminhos e além disso arriscava-me a ser apanhado pela polícia. Desta vez, tentei outro caminho. Fomos até Madrid eu e o Virgílio Pereira encontrar-nos com o José Piscado e o António Domingues (António de Adaúfe) que estavam aí a trabalhar enquanto esperavam ordens do passador. De Madrid seguimos para Pamplona, e daí seguimos a pé pelas montanhas dos Pirenéus. Caminhamos durante duas noites (de dia tínhamos que nos esconder) debaixo de chuva e vento, orientados por um passador já habituado àquelas travessias.

Pisamos solo francês o dia 9 de Julho de 1947. Á primeira jandarmaria que encontrámos já nos entregámos, cansados que estávamos, com fome e sem dormir. Puseram-nos a cortar lenha em troca de sustento e no dia seguinte encaminharam-nos para o tribunal de Bayonne. Lá já fomos acarinhados, mas fomos condenados a 15 dias de prisão suspensa, porque tínhamos atravessado a fronteira sem autorização.

De Bayonne fui para Brestes, uma cidade completamente arrasada pela guerra. Não faltava trabalho e depressa arranjamos dinheiro, mas não havia onde comprar nada, durante nove meses passámos muita fome.

No ano seguinte, no mês de Maio, fui ao consulado de Portugal, em Paris, para me tentar livrar do serviço militar e assim poder regressar a Portugal. Só lá estavam duas raparigas, expliquei-lhe a minha situação e elas mostraram-se compreensivas. Paguei a quantia que pediram e ficou combinado de eu passar às cinco da tarde para levantar os documentos. Mas nesse horário foi o cônsul que me recebeu garantiu-me que não tinha “livramento”, pois era um desertor. Eu fiquei tão transtornado, que cheguei a afirmar que não voltava a Portugal. Ele lá se comoveu e prometeu que faria um pedido ao chefe de Estado-Maior. Assim foi e Graças a Deus fui perdoado.

Só voltei a Portugal passados 5 anos, pela altura do Natal, diziam que “a França ia acabar”, como já tinha acontecido na altura da Primeira Guerra e era preciso aproveitar. Na verdade não foi o que aconteceu, ao todo fui emigrante durante 27 anos, regressei definitivamente ano dia 25 de Abril 1974.

 

Catarina A. Domingues

Publ. em

Porto dos Cavaleiros

Jornal de Lamas de Mouro

Julho 2003

Transcrito por

Camborio Refugiado

 

PS: OS TEXTOS PUBLICADOS NO (INFELIZMENTE ACABOU) JORNAL DE LAMAS DE MOURO – PORTO DOS CAVALEIROS PODERÃO SER CONSULTADOS BREVEMENTE NA PÁGINA WWW.MONTESLABOREIRO.COM DA INSTITUIÇÃO NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISA DOS MONTES LABOREIRO QUE TEM POR BASE -  HISTÓRIA, PATRIMÓNIO E CULTURA – CASTRO LABOREIRO E LAMAS DE MOURO.

DA PÁGINA WWW.MONTESLABOREIRO.COM RETIREI A INFORMAÇÃO:

NEPML prepara Agosto Cultural2008

O NEPML vai realizar em Agosto o VII Congresso de História Local no lugar da vila, em Castro Laboreiro. O evento é dedicado a vários temas inéditos. Brevemente será colocada mais informação, e no link dos Eventos constará a data e respectivo programa, com temas e palestras.

ADICIONA AOS FAVORITOS WWW.MONTESLABOREIRO.COM

 

Camborio Refugiado


VISITA A PARADA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

   Como era costume fazer periodicamente, o meu pai viera passar uns dias a Melgaço. Não gostava da Vila, dizia. Os da Vila, acrescentava, têm a mania que são os mais finos, os mais ricos. Fazem dos do Monte burros.

   Não era da Vila que não gostava, mas sim "dos da Vila". A eterna rivalidade entre os da Vila e os do Monte. O único sítio, além da loja da minha irmã, onde se sentia à vontade, era a loja do Loca. Independentemente das qualidades da pessoa, também era por ambos terem um gosto em comum: a caça. Ali, em companhia de mais alguns conhecedores, passava horas. Quando se maçava, regressava ao Monte. Voltava ao Monte que lhe dera vida, onde sempre viveu. Tinha tudo lá: o passado, o presente e o futuro. Em Parada do Monte, era ele o mais fino e um dos mais ricos.

   Descendente de uma grande e abastada família que dera regedor à freguesia e sotainas à Igreja, nunca precisou de trabalhar. O dia seguinte nunca o preocupava porque, além de ter muito, contentava-se com pouco.

   Havia um ano que não ia a Parada. Por ter estado ausente nos últimos cinco anos, só lá fora uma vez. No Monte, o verdadeiro trabalho faz-se na primavera e no verão. Estávamos precisamente no verão e preparava-me para ir a Parada com o meu pai. Íamos arrancar as batatas. Tinha que ir, tinha vontade. A minha ajuda, apesar de eu não perceber nada dos campos, era bem vinda. Havia sempre tarefas simples para fazer que adiantavam o trabalho, encorajava-me o meu pai. Para mim, o Monte era um regozijo e uma aventura; lá ir de tempos a tempos, era mantê-los intactos. Era a imagem que tinha.

   A Kreidler do meu pai já estava em frente da porta da casa. No Loca comprara uma pasta de chocolate A Valenciana para mim, assim como um frango congelado. Lá em cima não havia escolha possível. A falta de electricidade não permitia conservar carnes e peixes frescos.

   A tarde apenas tinha começado quando, depois das coisas variadas que levávamos serem carregadas na mota, arrancamos rumo a Parada. O sol, que aínda não ouvira falar em efeitos de estufa, marcava presença. Até Pomares, a viagem era uma preparação lenta e constante exercida pela paisagem. Como íamos devagar (o meu pai tinha gosto demais na motorizada), tinha tempo para usufruir de tudo. Pouco mais de um quilómetro antes de chegarmos a Pomares, a mota foi-se abaixo. Depois de uma minuciosa inspecção, constatamos que não tinha gasolina. Mota sem gasolina não é como burro sem comer; a este, a fome fá-lo andar.     

   Chegamos a Pomares com a mota à mão. O Monte começava ali. O moinho que se encontrava à entrada, onde as estradas de Castro, da Cela e de Cousso se tocavam, e cuja água fazia um barulho de cascata, era, para mim, a porta de entrada do Monte. A mudança era radical. As casas, os campos, a vegetação quase inexistente, a noção de espaço eram totalmente diferentes do que havia abaixo de Pomares. Sem falar das pessoas, do seu olhar, da distância e da mão estendida aos que não conheciam. Não podia ser de outro modo numa terra onde ninguém, durante o dia, fechava a porta da casa.

   Fomos directamente à loja do Feito. Era mais acima, junto da nacional, do lado direito. Quando o conheci, já andava com as muletas de madeira por debaixo dos braços. Era irmão do Alípio, tinham casa lado a lado. O Feito guardava-nos a mota numas barracas, ao lado da casa. Também arranjaria um pouco de gasolina para, na próxima, o meu pai poder ir à Vila e lá encher o depósito. Pouca porque era quase sempre a descer e fazia grande parte do percurso com o contacto cortado. O ser profuso não o impedia de ser poupado. Compramos uma peça de "pam" e um bom pedaço de brôa para levar. O irmão era o padeiro. Em Parada, era tudo mais caro pois não havia estrada e tinham que pagar às pessoas que alugavam as costas ou às que alugavam as das burras. O transporte de mercadorias para Parada, Gave e os lugares das duas freguesias fazia viver muita gente, apesar da concorrência.

 

(continua)

 

ROMARIAS DA NOSSA TERRA por FAIJ

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Alminhas e cruzeiro de Santa Bárbara em S. Gregório - Melgaço

 

 

Minha terra tão bonita,

Alegre a todo o momento

Nas festas a Santa Rita

E, em Fiães, ao S. Bento.

 

Linda Senhora do Facho,

Tão bela no teu cantinho.

A Romaria que eu acho

Mais linda, do alto Minho.

 

“Livrai-nos da tempestade”

Diz toda a gente aflita.

“Valei-nos, por caridade,

Santa Bárbara, bendita!”

 

Senhora de Lourdes bela,

Que moras ao pé da estrada.

Só de olhar tua capela

Fica a gente abençoada.

 

Pecadoras como tu

Há no mundo muitas mais.

Ó Maria Madalena

Venerada em Chaviães.

 

Senhora Santa Marinha,

De Rouças, a Padroeira.

Dizei-me, Senhora minha:

Há terra mais altaneira?

 

Nossa Senhora da Orada,

Tua capela é um ninho

Posta aí por mãos de fada,

P’ra ver as curvas do Minho.

 

Quem tem filhos tem Cadilhos,

Nem sempre fortes e médios

Salvai nossos lindos filhos,

Ó Senhora dos Remédios!

 

“Nossa Senhora da Graça,

Senhora da Pastoriza”.

“Valei-nos!” Diz-vos quem passa

O rio para a Galiza.

 

Santa Maria da Porta

No Mundo não tem rival.

És padroeira da Vila

Mais linda de Portugal.

 

 

1950/60

FAIJ

 

Poesia Popular

Francisco Augusto Igrejas Júnior

Ed. C M Melgaço – 1989

 

MEMÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA V

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O que o chamou às Astúrias da segunda vez?

“Tinha lá um irmão na construção de estradas.”

E nas minas, em que trabalhava?

“Não trabalhava nas minas, mas para as minas, era serrador.”

Mas aquela história das imagens a arder…

“Olhe, a madeira dos santos estava pintada e ardia bem, mas chiava. E um companheiro lá da cozinha comentava: filho da p*ta, ainda bufas!”

O construtor da estrada?

“Era um tal Martins, português, aqui de Crecente. Éramos 80 homens a trabalhar.”

Mas o sr. Manuel Alves recorda-se de fuzilamentos?

“Aqueles que os nossos apanhavam. Pediam sempre voluntários para fuzilar, mas nunca quis, nem para ver. Também não faltava quem quisesse.”

Com o cair da tarde, a conversa tomou rumos práticos e Manuel Alves diz que não tem documentos de ter pertencido ao exército da República.

“Mesmo assim, digo-lhe, há registos em Salamanca, em Madrid, nos arquivos espanhóis, é uma questão de os mandar procurar.”

Afinal, trata-se da primeira vez que lhe aparece a probabilidade:

“Sempre era mais uma reformazinha…”

 

Entrevista de Viale Moutinho, Diário de Noticias 11/08/98, com Manuel Alves “o manco do talho”.

 

NO CRASTO, MELGACUS SONHAVA COM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O grupo olhou para o cimo do outeiro sobranceiro ao rio que vinha subindo e, descansando as costas, aguardaram que o druida derrotasse as forças indesejáveis que habitavam o lugar.

Homens rudes, guerreiros experimentados, lobos em campanha a quem nada escapa.

As túnicas brancas justas aos corpos musculados, escudos de peles verdes com os signos da deusa, machados sobre os ombros que encimam braços esculpidos em músculos que as virias adornam.

O cão lobo que seguia Melgacus, chefe da tribo celta, inquieto rosnava. O druida apontou para a rocha que encimava o outeiro e declarou em voz de deus que o lugar sagrado tinha sido encontrado.

Os celtas reunidos no acampamento do clã logo uniram forças para as primeiras saudações à deusa Morgana e o druida cortando um ramo de salgueiro declarou o lugar sagrado e pronto para receber as virgens que iriam regular a vida deste povo.

Guerreiros de rija tempora não demoraram a escorraçar os poucos homens pobres que roídos pela curiosidade dos sons que saíam do grupo se aproximaram. Melgacus acercou-se do solo rochoso onde iria edificar o castro, sonhando já com um castelo roqueiro que deixaria o clã em segurança, enquanto os guerreiros despejados das armas, se agarravam ao arado de rodas e às redes de pesca do salmão, que fumado serviria para alimentar a tribo durante o tempo que demorava a nogueira e macieira, a figueira e o cedro a florescer.

A deusa comandava o tempo da tribo, Morgana reinava em todos os lares.

Morgana reinava com a Dama do Lago nos bosques de carvalho, húmidos de todo o amor que recebiam em troca da paz que os exércitos e os amantes necessitavam.

A macieira, carregada de vermelhos frutos simbolizava o amor da Deusa à mãe Terra.

O cedro fala da confiança na mãe Terra.

Na nogueira encontramos a paixão. Paixão dos lares pela Deusa Modron, a deusa corvo.

A figueira trouxe a sensibilidade.

A Deusa Maeve fez emborcar a Melgacus o Guerreiro o vinho da sabedoria das mulheres.

Os fios de leite que escorre das suas folhas são lágrimas da Mãe Terra fértil, que nunca os deixará dormir com fome.

Quando a rainha Morgana amou Melgacus diante da tribo, todos os seres alados procriaram, as flores desabrocharam e os sapos e rãs redopiaram sobre o musgo mágico à volta do ribeiro.

Rio do Porto chamou-se por aí ter atracado a barca de Artur quando o ritual do Matrimónio Sagrado o uniu a Morgana.

Do castro em construção saiu o grito da canalha miúda, uns agarrados a cabelos e cabeças dos outros. As pedras que se aprontavam para fazer parte das paredes circulares das cabanas não entravam na loita.

A Deusa Macha, Mulher do Sol, filha de Aed o vermelho e de Ernmas a sacerdotisa, velava sobre a guerra e a morte, antes de qualquer mortal pisar terras de Avalon.

Dana trouxe o conhecimento e a escrita e quase derrotou o conto contado nas longas noites de vigília em que a Deusa Flidias, senhora das florestas recebia as graças dos guerreiros e a Deusa Henwen a Porca Branca Velha fugia com seus leitões da espada de Artur e recebia a hospitalidade da Deusa Cerridwen sua irmã no Caldeirão da Inspiração do qual Artur bebeu a força do Santo Graal e Brígida que beijou o escolhido Trovador dos Druidas com o awen, o sopro dos deuses.

Todos coabitavam no castro ora plantado por Melgacus o Guerreiro com o bardo a soprar a gaita e a cantar vivas ao Rei Sol.

O druida, aproximou-se e pensou: “com o tempo aprendes como as palavras ditas num momento de ira podem seguir lastimando a quem feriste, durante toda a vida” e levo comigo a força do javali e a sabedoria do unicórnio.

As crianças corriam sãs e escorreitas prontas para os trabalhos da sementeira e festival de Imbolc que saudava a Deusa Mãe Brigida.

Muitos deuses, muita fartura para que nada falte nas cerimonias conduzidas pelo druida pai e homenageia toda a Mãe Terra, soberana da terra e dos homens, conduzindo-os para a luz e responde às preces das mães do clã.

O fumo que sobe do fogo no interior da casa das noviças, impregnado do cheiro do alecrim e dos maios colhidos na grande orvalhada em honra de Morgana, mãe do todos, afastou os espíritos do druida que chamou Melgacus e lhe impôs as virias de grande guerreiro, chefe da tribo e das tribos que por aí viessem.

Os romanos caíram em emboscadas, foram derrotados e humilhados por aqueles homens guerreiros que com máquinas de guerra, machados, escudos e espadas, esmagaram o panteão de deuses que marchavam sob a águia romana seguindo o destino que as palavras de Cícero elevavam no senado da cidade eterna.

Melgacus deixou o resguardo do castro e estendeu o braço até onde a vista alcança. Estava marcado o território da tribo, o vale do Minho ao Trancoso seria pequeno para os artesãos que iriam contar os feitos de conquista e fundação de Melgaço, terra de Melgacus o Celta, que iria perdurar por séculos afora.

Com a bênção da Deusa e da fada Morgana, deusa libertada do limbo pela graça dos druidas, cantada pelos bardos até ao himno galego.

 

Camborio Refugiado em procura do Santo Graal sob o comando de Artur no reino gaellico onde arribou Lancelot do lago.

 

MEMÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA IV

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O CONTRABANDO


“Um carabineiro disparou contra mim e acertou-me na perna. Foi no contrabando, estive internado no Hospital de Ourense…”

Manuel Alves, regressado das Astúrias, integrava-se perfeitamente nas andanças do contrabando, levando para lá o que fazia falta na Espanha e trazendo o que fazia falta em Portugal. Poderíamos dizer que eram graças de São Gregório.

“Ao passar o rio, aparecem os carabineiros aos altos. Íamos uns 15 e eu o da frente. Escondi a carga num sítio e fugi para o outro. Estava a ver os meus companheiros e fiz-lhes sinal. Havia um penedo por onde podiam voltar para Portugal. Não contávamos ali com aquela tropa. E eles lá conseguiram passar. Com a minha carga escondida na Espanha, só a queria recuperar e sair dali…”

Que contrabandeava nessa altura?

“Ovos e galinhas. Os meus companheiros conseguiram fugir, mas eu, como tinha ali a minha carga, arrisquei, mas dei de caras com um carabineiro que queria saber onde ela estava. Disse-lhe que não tinha carga nenhuma. Obrigou-me a acompanhá-los. Eu falava bem espanhol e queria ir a Portugal, a ver se os levava. Então, um deles puxa de uma pistola e pumba. A bala entrou-me por aqui, atravessou esta perna, rebentando ossos, artérias, veias, não houve remédio, e ainda me feriu a perna esquerda. Esta, em oito dias ficou boa, mas a direita perdi-a e foram três meses no Hospital de Ourense. Depois fui à Alemanha comprar esta prótese.”

Isso foi quando?

“Aí à volta de 1940. Depois casei e recomecei a vida, a trabalhar. Não larguei o contrabando, claro. Mas era como organizador, mandava outros. As coisas escondiam-se perto de minha casa. Pusemos um comércio na vila. Era uma casa de comidas e dormidas, mercearia e talho. Desenvolveu-se, criámos três filhos.”

O que se contrabandeava nessa altura?

“De lá para cá, ferragens, bicicletas, e de cá para lá, ovos, galinhas, alimentos. Sabão, café, o que fosse.”

 

(continua)


MEMÓRIA DA GUERRA CICIL DE ESPANHA III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Integrou o Batalhão Máximo Gorki, onde havia “numerosos portugueses”.

O leitor recordará já aqui ter trazido o depoimento de outro soldado, de Fafe, a viver em Barroso, que esteve nesta mesma unidade, sedeada em Gijón.

“Comecei por ser maqueiro, andávamos pelo monte, a recolher os feridos. Assim corri praticamente todas as frentes. Depois fui ajudante de cozinheiro, embora nunca tivesse cozinhado. Passei então a estar sempre longe da linha de combate. Creio que nunca dei um tiro. Meteram-me então a ajudante de cozinha e estávamos sempre longe da linha de fogo. Era numas mulas que lhes mandávamos as refeições, duas vezes ao dia: muita carne, batatas, arroz, lentilhas. Éramos seis a cozinhar, estávamos ora numas casas alugadas para aquilo ora em igrejas, conforme.”

Na verdade, nunca deu um tiro?

“Nunca, nem sei como se mexe numa arma! Mesmo assim, tive os meus momentos de perigo. Um dia de manhã, levantei-me para fazer o pequeno-almoço para os outros cozinheiros que ainda estavam na cama. Aquilo foi numa altura de muito bombardeamento aéreo. Eu, então, saí do quarto e ficou a dormir o meu parceiro, e não é que uma bomba o matou? Isto foi perto de Oviedo, quando os do Franco já estavam a tomar a cidade.”

Entretanto, marginalmente, sorrindo e falando a meia-voz foi-me dizendo que, em matéria de combustível… os santos das igrejas eram de uma madeira que ardia muito bem!

Depois?

“Quando nos prenderam, levaram-nos para Luarca, onde havia um campo de concentração. Éramos muitos. Lá passámos uma vida terrível: dormíamos na palha do chão, vivíamos a toque de corneta. Até quando havia geada nos obrigavam a tomar banho de mar! E, entretanto, andavam a pedir informes meus…”

 

(continua)


MEMÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

 Para trás, Manuel Alves deixava os tempos do Batalhão Gorki, comandado por Horácio Arguelles, a derrocada republicana das Astúrias e uns meses no campo de concentração de Luarca.

Poderia ter sido despachado para o outro mundo por um pelotão de fuzilamento ou meter os ossos anos a fio na cadeia, mas, como se disse, nem sequer cá foi chamado para cumprir a tropa.

Escapou e pronto.

Pelos vistos, os necessários pedidos de informação sobre a sua pessoa, para instrução do processo que o implicava, receberam respostas altamente abonatórias, desde os antigos patrões na construção de estrada ao presidente do município melgacense e respectivo pároco.

Todos o deram por solteiro e bom rapaz, um santo, pelo que pôde regressar a uma profissão digna de arraiano: contrabandista.

Aliás, pouco antes dos finais de 1938, já os franquistas, com forte apoio dos italianos e da Legião Condor, tinham tomado as Astúrias.

Assim, se a repressão começava para os que ficavam, para alguns, como ele, era hora de regressar.

“Trabalhava na construção de uma estrada em Tebongo, quando estourou a guerra. Comigo estava um cunhado, que morreu no campo de batalha, e a minha irmã Deolinda estava lá a trabalhar na cantina da empresa. Eu era socialista e logo entrei para as milícias e depois para o Exército Popular.”

 

(continua)


MEMÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

 Diário de Notícias

 

Terça-Feira, 11 de Agosto de 1998

 

Viale Moutinho

 

Em Melgaço

 

A GUERRA

 

Manuel Alves enredou-se na Guerra Civil de Espanha mas não foi lá que perdeu a perna. Tem 87 anos, feitos em Março passado, recebe-nos na sua casa, na Avenida da Barbosa, em Melgaço. É um dos pontos mais altos desta vila fronteiriça, pátria do Alvarinho. Aqui, toda a gente o conhece e conta a sua lenda de contrabandista, a que somam a lenda da guerra.

E é bem bom, porque tratando-se de um santo homem, como se verá, na sua terra lhe reconhecem os milagres, que é como quem diz: as façanhas. Também ninguém melhor do que ele as conta, não obstante já ter perdido um pouco a memória, sobretudo a das datas. Na altura da nossa conversa, estava a terminar um período de ligeira doença, que o tinha acamado. Acabo por perceber que esteve duas vezes nas Astúrias, de uma com 17 ou 18 anos, abandonou os afazeres agrícolas da família, e de outra “ainda não tinha feito 31”.

Deduzo que a revolução dos mineiros asturianos teve lugar entre as vezes que lá esteve. Pelos dados facilitados pelo senhor Manuel Alves, fiquei com a ideia de que na primeira vez trabalhou nas minas, em Avilés, e na segunda na construção de uma estrada.

Um belo dia, Manuel Alves chegou a Tui entre dois tricórnios da Guarda Civil e foi entregue à Guarda Fiscal de Valença. Era um indesejado na Espanha franquista, mesmo que no Exército Popular não tivesse ido além de maqueiro e chefe de cozinha.

As autoridades portuguesas é que não lhe atribuíram grande importância enquanto soldado da II República. Nem parece ter dado que a única tropa que ele fez foi na Guerra Civil de Espanha. A Guarda Fiscal arranjou-lhe transporte de camioneta e, daí a nada, estava ele em Melgaço.

 

(continua)


CONTRIBUTO PARA A HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O GALLICIENSE REGNUM E A CASA REAL SUEVA

 

Entre os anos 407 e 410 chegaron á Gallaecia vários milleiros de xermanos da tribo sueva e asinaron cun afeblecido Imperio Román un tratado polo cal asumían o control politico deste território. O primeiro rei suevo, Hermerico, estableceu vencellos feudais cos xefes das diferentes trebas galaicas, converténdose no primeiro rei feudal da Europa Medieval, e o seu reino, o Galliciense Regnum, no primeiro estado Europeo da historia medieval.

Durante caso 200 anos, a Dinastia Real Sueva governou eficientemente o reino de Gallaecia, creando un sistema monetário nacional galaico, unha igrexa nacional galaica, e unha politica exterior de alinzas estratéxicas com Borgoña e Constantinopla, no Imperio Román de Oriente. Durante o reinado da dinastia sueva acadouse tamén a máxima expansión territorial histórica doeino galaico, anexionando novos territórios en parte da Hispania Bética, conquerindo parte da Lusitânia, e saqueando as principais cidades da Hispania Terraconensis.

 

A dinastía sueva perdeu a coroa do Galliciense Regnum cando o rei Andeca de Gallaecia foi derrotado en batalla polo rei visigodo Leovixildo no ano 585. Substituindo á Casa Real Sueva, a dinastía dos visigodos converteuse na nova monarquía do Reino da Gallaecia, que seguiu a manter a sua estrutura institucional, como testemuña o título do Rex visigodo Leovixildo, rei de ‘’Gallaecia, Hispânia e Narbonensis’’ou a carta do Papa Gregório Magno ao posterior rei visigodo Recaredo, chamándoo “Rei dos Godos e dos Suevos”. A dinastía visigótica só puído governar o Reino de Gallaecia durante pouco máis dun século, xa que se desintegrou politicamente coa invasión árabe da Hispânia en 711.

 

Honestamente desviado

 

www bandeira galega.com

 

por

 

Camborio Refugiado

 

VACINA DA VARÍOLA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

O Manelzinho ganhou da irmã da Caridade, que era a enfermeira do hospital, a caneta vazia, da vacina contra as bexigas. Naquele tempo essa vacina vinha num tubo que terminava numa ponta em forma do aparo que dava ideia de caneta de tinta permanente. Levou-a para a brincadeira habitual. Aquela novidade mexeu com a imaginação do Rogério. Com a sua verbe inigualável convenceu o primo a ceder-lhe a bisnaguilha para ele montar um consultório médico. A garotada da vizinhança foi convocada para vir vacinar-se. Era uma brincadeira nova e engraçada anunciou, convencendo os mais desconfiados. Formou uma pequena bicha, todos de manga arregaçada aguardando a vez de receber as três cruzinhas com a ponta da caneta, tal como faziam de verdade no hospital. Muitos risos com as cóceguinhas que aquilo fazia. Um “paciente”, porém, reclamou do “doutor” que o feriu ao fazer força exagerada no seu braço. A paciente seguinte, a Armanda da Isabel Caçolas, não quis vacinar com medo de ser picada. O Rogério contrariou-se, barafustou por lhe estragarem a brincadeira, ele armado em médico tinha de provar a sua autoridade. Para provar que aquilo era tudo de mentira, que não doía, demonstrou em si mesmo. Arregaçou o braço direito, ele era canhoto, fez um longo risco, algo profundo, ao longo do seu antebraço.

Naquele dia a brincadeira ficou por ali mesmo. Três dias depois, o Rogério amanheceu com um febrão dos diabos. A mãe, a tia, toda a vizinhança ficou assustada. Chamaram o Dr. Suissa que caiu na gargalhada ao ver aquela vacina gigante inflamada e sentenciou: - rapaz, tu nunca vais ter bexigas na tua vida! A febre levou alguns dias a acalmar, retendo o Rogério na cama. Durante algumas semanas andou com o braço na tipóia sem vontade de inventar brincadeira.

Naquele tempo ainda não existia o Guiness, o livro dos recordes; caso existisse, a vacina do Rogério estaria registada como a maior vacina do mundo.

Arrastado, quente e gostoso corria o verão que se aproximava do seu ocaso. Naquela época o tempo passava mais devagar. Era um domingo à tardinha, o Augusto do Félix, a sua mulher Deolinda e o Manelzinho, desciam pela estrada da Carpinteira, despreocupados, em passos vagarosos, regressando de mais uma das costumeiras visitas ao tio Manel e ti Rosa do Regueiro. Este casal de remediados lavradores do dito lugar da freguesia de São Paio, tinham com aquele outro casal uma sólida e antiga amizade que cultivavam com recíprocas visitas. Estrada abaixo, o Augusto do Félix cantarolava:

 

As freiras de Santa Clara, Santa Clara,

quando vão para o coro, para o coro

diziam umas para as outras, para as outras,

ai quem me dera ter um namoro, um namoro.

 

Cebolório, cebolório…

 

Mudando de tom Augusto continuava:

 

Era uma velha que andava a varrer,

debaixo da cama andava a varrer

com sete batatas no cu a bater,

e quanto mais a velha varria

mais as batatas no cu lhe batiam…

 

O Manelzinho achava graça e fazia coro. Pela altura de Corçães, em frente à casa do Teodorico, encontraram-se com a Dona Olívia e a Flavinha Mulata que andavam passeando, saboreando aquele aprazível lugar e os aromas do gostoso fim de tarde. Aquelas duas deram meia volta e todos vieram conversando. Entre as amenidades abordadas veio à baila o Manelzinho e sua condição de já poder frequentar a escola. Ali mesmo ficou acertado o ingresso do garoto na famosa escolinha. Era um património da terra a escola da Dona Olívia. Sempre que era evocada faziam-no com muito carinho.… A sua titular gozava do respeito geral. Já era uma senhora entrada nos anos e a Flavinha, sua filha de criação, também era muito estimada. Havia também o Zeca, acho que neto de Dona Olívia, e embora tivesse mais família, inclusive na África, naquela altura resumia-se àqueles três personagens em Melgaço. Moravam na Rua Direita esquina com a travessa do Castelo, aliás a fachada principal era virada para a travessa e tinha duas escadas de pedra. Uma mais larga que dava para a sala e outra mais estreita de acesso à cozinha. Era por esta que entravam as crianças. A escola funcionava nos aposentos da casa e os alunos eram a mais confusa mistura que se possa imaginar. Tinha ricos, remediados e pobres, rapazes e raparigas desde crianças de colo que só engatinhava até marmanjões que já frequentavam a escola oficial e que, para não ficarem a vadiar pela rua na parte da tarde, os pais colocavam-nos na Dona Olívia.

Para ingressar nessa memorável escola maternal era indispensável levar um banquinho e, claro, o material escolar que se resumia a uma lousa e os competentes lápis de lousa, vários, que eram o resultado do primeiro após quebrar. Os bancos, mais altos ou mais baixos, de acordo com o tamanho de quem os ia usar, reflectiam o poder económico das famílias das crianças. Tinha banquinhos toscos, empenados e mal acabados e tinha banquinhos primorosos, feitos por competentes carpinteiros, alguns até pintados e outros, requinte dos requintes, até com gavetinha. O banco do Manelzinho tinha gaveta, não que o pai dele fosse mais abastado que os outros, muito pelo contrário, mas porque o seu cunhado Lucas, como foi dito, era carpinteiro e o garoto o seu bijú. Algumas crianças não tinham bancos, sentavam nos bancos, grandes, corridos, que ladeavam a mesa das refeições. Era mais cómodo para os maiores, sentar nestes bancos pois apoiavam a lousa na mesa ao invés de ficar sobre os joelhos, quando sentados nos banquinhos. Daí o haver permutas de lugar que envolviam parte da merenda.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

ROTEIRO DA PENEDA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 Casa florestal - foto by pisaleiras

 

 

É difícil, por non dicer imposible, atopar en toda a xeografá galaicoportuguesa, un punto de encontro cun radio de atracción tan amplo coma esta terra. Dende Tui e Valença até Braga e Montalegre, ou mesmo dende Ribadavia e Celanova até Xinzo e Tourem. Calquera coñecedor deste médio limiano-transmontano pode dar fe de tal aseveración. Así foi e vai seguir sendo en anos vindeiros…

Sem chegar á bravura de tempos pasados, en que os nosos ancestres ían camiñando dende Bande ou a mesma Terrachán, a partir da metade dos anos noventa foise recuperando a vella tradición de facer, unhas veces a pé e outras andando, o camiño da Peneda.

Actualmente o arraiano medio de procedência limiá, acompañado ás veces dalgún que outro convidado estranxeiro, acostuma a coller o camiño á altura de Pereira (Pireira en idioma entrimeño). O camiño comeza a 700 metros de altitude, na devandita aldea de Pireira, transcorrendo nos primeiros dous quilómetros uns terreos com alternancia de terra e zonas empedradas com auga abundante en diversos puntos. Se o viaxeiro arranca o camiño de noite e com boa lua comprobará que a paisaxe circundante é mesmamente de western do oeste americano, com lobo incluido, se a sorte é doada.

Logo de meia hora de camiñata, albíscase no fondo o río Crasto Laboreiro, tamén chamado Olelas por moitos raiatos da parte galega. A opción de rodear os montes do Quinxo, por um camiño máis suave que pasa por Ribeiro de Abaixo, é mudada por moitos camiñantes pola vía dereita, baixando a cachón cara a Ribeiro de Cima. As pernas sufren mais pero o atallo é considerable. Ó cruzar o troiteiro río de Crasto aínda se escoita o estrondo da auga dunha interesante ficheira que hai cincoentos metros río arriba. Depois de que máis dun camiñante refrixere os pés no cruzamento do río, escomeza unha subida que continúa arredor dunha hora. En Ribeiro de Cima, aldeã invernea na que aínda se practica a transhumancia, sempre hai unha alma agardando para dar cobixo e ánimo ós viaxeiros. O idioma non é obstáculo, xa que esta xente é coñecida alá polo grande Porto co alcume de galegos. O pequeno descanso de Ribeiro, unha vez superada a abandonada casa florestal, dá paso a un serpenteo empedrado ascendente que ó longo de tres quilómetros nos transporta dos 600 até perto dos 1.100 metros de altitude, un ponto onde o panorama é espectacular. Deixamos os montes do Xurés ao fondo e, um pouco máis atrás, a serra do Larouco, e mesmo a imponente visión da Pena de Anamán, que inspirou o coñecido dito de “o probe non tem, o rico non dá…”. De seguida albiscamos as primeiras cabanas ou chibanas de pastoreo, moi abandoadas, e chega a hora do pequeno almorzo cando poñemos pé nas primeiras chairas. Deiquí en diante é mellor ter moito ollo co boi cacheno que garda e defende a abondosa cabana gandeira que anda solta polo lugar. Pequenas zonas lacustres fican atrás e o camiño vai sendo máis levadeiro. Moita atención no paso de Filgueira Ruiva, porque se imos de fronte seguimos cara a Lamas de Mouro; hai que virar á esquerda e, polo espazo de vinte minutos o carreiro non se distingue ben.

Ó alcanzarmos o coñecido coma o Curral dos Becerros o descenso xa é evidente, pois a menos de 300 metros agárdanos a sorprendente visual sobre o Val da Peneda. Deseguida a baixada se fai máis empinada, co conseguinte sofremento para os xeonllos. Un cuarto de hora e xa estamos na taberna da señora María, dando de baixa unha ducia de cervexas.

Co deber xa cumprido, o viaxeiro deixa atrás arredor de dezasete quilómetros e perto de catro horas de camiño. E a nosa señora da Peneda agarda por aquiles peregrinos máis devotos que se achegan coas súas inquedanzas até as portas do ateigado santuario. A aldea da Peneda conforma un contorno espectacular e imponente com centos de anos de tradición , anos nos que a fe popular a esta virxe sobreviviu, na compaña das súas outras seis irmás virxes. O percorrido merece a pena para novos e menos novos, e incluso para os amantes da borga e da festa nocturna arredor do máis ancestral, improvisado e variado folclore galaicoportugués.

Con moi bo critério, o concello de Entrimo está a recuperar nestes últimos anos o sano costume de facer un percorrido inesquecible por este fermoso roteiro arraiano de fe no futuro.

 

Lino Perdiz, de corazón raioto.

 

Honestamente desviado de www.arraianos.com

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Camborio Refugiado

 

CANTIGA POPULAR DE CASTRO LABOREIRO - 1882

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

CANTIGA POPULAR DE CASTRO LABOREIRO – 1882



Resolvemos aqui reeditar uma canção popular recolhida em Castro Laboreiro por José Leite de Vasconcelos e editada, pela primeira vez, no longínquo ano de 1882. Agradecemos à Ludovina, da Casa da Cultura de Melgaço, que nos chamou a atenção para a sua publicação no Romanceiro Português de Tradição Oral e Moderna.

 

Oléiendinha tem desejos de ir à casa de seu pai.

 

— Se não tens outros desejos, toma o caminho e vai.

Teu marido foi à caça, três dias há-de tardar,

e da caça que ele trouxer eu algo te hei-de guardar.

 

— P’ra onde foi Oléiendinha que me não fe’lo jantar.

Olindinha, ó meu filho, teremos de a matar,

Porque a mim chamou-me p*ta e a ti filho de meu pai.

Oléiendinha não se mata, castigo se l’há-de dar,

e apronte-me esse cavalo que a quero ir buscar.

Eram três horas batidas, estava lá a chegar.

 

— Paridinha de três dias, p’ra onde a queres levar?

 

— Ou parida ou por parir a cavalo a vou botar.

Anda mais, ó Olindinha, anda mais àquele lugar,

ali não faltam galinhas nem capões p’ra t’eu matar.

 

— Não preciso das tuas galinhas nem também dos teus capões

Manda-me chamar o padre, que me quero confessar.

 

— Ó menino de três dias, se me puderes falar…

se me puderas  dizer onde tua mãe foi parar!

 

— Minha mãe, não tenha pena, que p’ró céu vai caminhando,

E a perra da minha avó p’ró Inferno vai chorando.

 

 

Publicado em PORTO DOS CAVALEIROS

Jornal de Lamas de Mouro

Nº 4   Março  2003

 

Camborio Refugiado

 


O ENTERRO DO ESTUDANTE X

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

A irmã da D. Maria era a D. Rosa … E quem é que não conhecia a D. Rosa na cidade? A Rosa dos fretes, a maior p*ta da cidade.

A irmã da D. Maria, mão na anca, como boa mulher que se preze da sua profissão, bate com o pé no chão e desata a guinchar:

— Ah se fosse comigo! Isto não ficava assim, não.

D. Maria, apanhando o ritmo, gritou:

— A Minha filha já foi chamar a polícia.

O Fininho, “expert” em fugas, já ia a meio caminho pelas escadas quando aparece o cívico, olhar duro e voz fanhosa:

— Já sei o que se passa. Paguem. Paguem a garrafa.

O Fininho e o amigo, obrigados a subirem a escada; as megeras a gritar e o Louro a sair do quarto, berrando:

— Acabem com essa m*rda. Quero dormir e, além do mais, não tenho nada a ver com isso.

E, olhando para o Fininho, logo grunhiu:

— E tu, ainda aqui estás?

O Fininho volta-se para o cívico e atira:

— Sr. guarda não tenho nada a ver com isto. Vou para a minha terra e quem quiser que se entenda, percebeu?

Com o cívico a não saber para que lado se havia de virar, Fininho e amigo logo descem as escadas em direcção à estrada que os há-de levar ao almoço, 100 km depois.

Entretanto a guerra, dentro de casa, continua.

Aninhas, a filha, resolve botar faladura. E de que maneira:

— O Pequeno não tem nada a ver com isso. O malandro é o Padeiro.

O cívico, a D. Maria, a filha, a D. Rosa …

O Padeiro:

— Não me chateiem, deixem-me dormir …

— Que m*rda é esta, não posso dormir? – grita o Louro.

Do Pequeno nem ai nem ui …

O cívico tirou o boné, limpou a testa, e declarou:

— Entendam-se, por favor.

Não voltou a haver notícias da D. Maria, filha e irmã.

O Fininho fez desaparecer, uns dias mais tarde, um copo e uma garrafa vazia de Porto e essa foi a última vez que se intitulou estudante. Nem ele nem os outros, daqui não saiu nenhum doutor.

Algures, por essa Europa, andam estes quatro e, de certeza que no dia em que se encontrarem, quatro frangos não chegam.

Um grande abraço Fininho, Louro, Pequeno e Padeiro. A vossa irreverência, a vossa força, o vosso dizer não, também ajudaram aquele 25 que ninguém poderá esquecer.

 

Camborio Refugiado

 

O ENTERRO DO ESTUDANTE IX

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O Louro bem resmungou, mas lá teve que voltar a entrar pelo janelo da casa de banho e colocar o “pirata” dentro da caixa.

A garrafa mais o copo foram parar à mala do Fininho que já estava pronta para arrancar.

Carnaval à vista, férias para gozar, estudante “morto” …

O Fininho tinha encontro marcado com um amigo para se fazerem à estrada na manhã seguinte. E a manhã começou com murros na porta …

O Fininho, de cara molhada, na casa de banho, quase pronto para fazer 100 km à boleia e ainda ir comer as papinhas da mamã, fica espantado com a barulheira que vai pela casa.

— Ladrões, ladrões, é o que eles são …

D. Maria, aquele toucinho todo a abanar, bata azul e branca aos quadradinhos e com a caixa dourada na mão:

— Ladrões, são uns ladrões … Filha, telefona já à tua tia que estes ladrões não saem daqui.

Já a filha gritava:

 — É o Padeiro mãe, é o Padeiro, que eu bem vi a lata da laca no quarto dele.

Arremeteram as duas para o quarto do Padeiro que estava com a porta fechada e quando se preparavam para o barulho, abre-se a porta e eis que aparece, tronco nu e olho azul a faiscar, o nosso amigo. Com dois berros acaba com a confusão:

— Fora, fora do meu quarto.

O Louro, sonolento como sempre, ergue-se da cama, vira-se para o Fininho, esfrega os olhos e pergunta:

— Quando é que te piras? Já não se pode dormir em paz?

Entretanto chega a irmã da D. Maria …

O silêncio era de chumbo …

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE VIII

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Ficou deliberado e pronto a ser executado que o Louro atacava o janelo existente entre a casa de banho e a sala interdita, pousando a sua pata no armário, qual cristaleira, que iria servir de base ao assalto e amortecer o barulho da entrada no santuário da megera.

O Louro, indisciplinado de nascença, olhou com ar de gozo as fechaduras dos armários interditos:

— Foi por causa desta m*rda que eu tive que passar pela janela?!

— Cabrão, abre isso. Queremos beber.

— Salta tu por aqui, se tens tomates.

— Chiu, chiu … Filho da p*ta, se a gorda aparece …

O Louro reaparece com uma caixa de Porto na mão e um mar de desculpas na ponta da língua:

— Só Porto. Não havia outra …

O Padeiro mirou, remirou e logo cagou sentença:

— Caixa desta não destoaria em garrafeira minha.

— Meia dúzia de camarões, garrafa de Porto em caixa dourada … Será que isto chega para pagar a fome que passámos aqui?

O mote estava dado. E depois do marisco comido com Porto à mistura só faltava uma “boca”, qual rastilho incendiário, para o gozo ser total.

— A caixa tem que voltar para o lugar.

Quando o Padeiro levantava a voz era certo e sabido que havia treta na costa. Entrou no quarto, peito saliente, qual pide a tempo inteiro, e aparece logo de seguida com uma embalagem de laca, rótulo fora, folha de caderno na mão, a gritar:

— Cola isso aí …

Era só o desenho de uma caveira muito cabeluda, pala no olho direito, que iria ocupar o lugar da garrafa de Porto.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE VII

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Logo o Louro teve que pagar as favas, porque se não fosse o mijo dele estar tão carregado de tinto e cerveja a nossa situação não estaria tão mal.

E a filha a quem nunca pusemos o olho em cima? Bem, o problema da filha estava ultrapassado, também era só o olho.

Agora o problema do estômago, já era outra conversa. Amigos, amigos, mas fazer da casa um campo de concentração, ainda por cima pago, essa é que não.

E como quatro cabeças pensam melhor que uma, falava-se, falava-se e aguardava-se o dia em que …

Férias! Férias de Carnaval!

Contas feitas à vida, o insucesso escolar mais do que esquecido, só havia o problema dos velhos pagarem ou não, mas quem é que vai pagar para um menino teso ser grande entre os grandes? Férias na cidade? Não há nada para ninguém.

Mas o último dia tinha que ser comemorado … todos sabiam que depois das férias tudo seria diferente.

Recolhida a nota, dava para comprar cem gramas de gambas. Feita a compra, o Pequeno saltitava, irritante como sempre. “E beber? Bebemos o quê?”

O Padeiro fez-se sério, não fosse aquela cidade que deu origem à ditadura e, num abrir de braços, declarou:

— Vamos para casa; é lá que bebemos.

Ao subir a rua ninguém esquivou um olhar de lado para o Quartel da Polícia, quase lado a lado com a casa.

Polícia de Segurança Pública, PIDE, DGS … se outros nomes não arranjaram foi porque não tiveram tempo para tal.

Fosse o que fosse, na cabeça do Padeiro o grito de guerra era um por todos, todos por um e prejudicados daquela treta toda ou era a D. Maria, ou o magarefe, ou a dita filha, porque os verdadeiros culpados, isto é, os hóspedes pagantes, não podiam ter nada a ver com o assunto.

Reunião ….

 

(continua)


A BOLA NA HISTÓRIA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

A bola, a chincha a saltar, fosse de bexiga do porco, meias rotas da minha tia, borracha, e até de catechu e couro, a guarda atrás da canalha que no terreiro e avenida, de socos e descalços, queriam ser os reis da bola que a tsf lhes dava a conhecer.

 

O Monte de Prado era o palco do tira-teimas, onde se arrumavam as discussões da semana no café do Hilário e onde se projectavam as discussões das semanas vindouras.

 

Dia de jogo, pose dos rapazes para o ti Pires guardar na máquina, ultimas recomendações do treinador e vamo-nos a eles que temos de ganhar.

 

De um lado o Tio Miro, acompanhado de Ti Maria Tiborne sua senhora, mais a bota do tinto da Maria do Nau, debaixo dum guarda – sol multicolor a puxarem pelos rapazes. O Tio Miro deixava a voz no monte do prado. E resmungava com o árbitro Nando, chamava nomes à senhora mãe do Zé Breguês quando este apitava. No dia seguinte só falava na Maria do Nau à terceira tigela. Retemperar forças e afiar a garganta, que os rapazes do bombo não demoram.

Do outro lado do campo a Tia Lídia sacudia o assador e punha as malgas à mão que o intervalo já não demora e os nossos estão a ganhar. Castanha assada, bolos de bacalhau, gasosa fresca e vinho do Zé Canelas levados às costas pelo Epifânio e o Humberto.

 

O Álvaro, o Zé e o Toninho Cerinha, o Marroto e o Pirolau, o Tonio Regueira, o Toninho Afonso e o Zé Cafetera, o Zé da Dásima e o Fernando Bolas, rapazes da nossa terra, da nossa bola; o Luís Preto feroz nas fintas nos jogos com galegos e alvo das atenções de quem nunca tinha visto cor de pele diferente; o Zé Albano do Carlota com jogadas de craque; O Zé do Gú, defesa direito, que avançava pelo corredor para a meter redondinha nos pés do Piruliscas. Este era o Sport Club Melgacense.

 

E a União Desportiva de Paderne, com o Rui e o Leão na defesa, Pelé no meio campo e o Xancas a marcar livres e mal, a dizer que não é só na Vila que se mexe no esférico.

 

É pena que campos de futebol se transformem em estaleiro de obras, mas quanto a isso quem sou eu para falar? Se é bom para as freguesias do Monte (um abraço Anselmo) …

.

Recuando umas décadas, o grande Rápido e o maravilhoso Unidos.

E o Sporting Clube de Melgaço, filial do Sporting Clube de Portugal, esse grande clube que, como o nome indica, ultrapassa Lisboa e abrange todo Portugal.

 

Encontrei esta informação na página Comemorações do Centenário do Sporting; fiquei de boca aberta, porque desconhecia a existência de tal Clube e tratei de entrar em contacto com o Rui Antoninho, coordenador da página do S C Melgacense, que depois de diligências entre os mais velhos, chegou à mesma conclusão que eu: - Sporting Club de Melgaço, talvez… vou tentar saber. E cumpriu.

Para confirmar só me faltava consultar a memória viva do Manuel Igrejas e eis a resposta:

 

“Sporting Club de Melgaço.

Numa das várias fases futebolísticas na nossa terra, nos anos quarenta, formaram-se os grupos Rápido e Unidos.

O Rápido Club Melgacense era composto pelos remanescentes dos grupos anteriores, União, Atlético e Sport e alguns novatos.

O Unidos Futebol Club em sua maioria eram rapazes saídos da puberdade, daí mais fogosos e habilidosos que sempre venciam, para meu desgosto, pois os atletas meus familiares, Gú e Carriço eram do Rápido.

Para tentar mudar a condição de perdedores o Rápido trocou o nome para Sporting e filiou-se ao Sporting Club de Portugal. As camisolas originais às listas verdes e brancas na vertical, que tinham sido as do União, passaram a ser na vertical como as da matriz.

O facto de filiar-se ao Sporting deveu-se a imposição do Presidente e Vice-Presidente, irmãos, Zeca e Juca do Aurélio, contra vontade dos elementos portistas, meu irmão Augusto (Gú) e teu pai Alberto (Carriço) e outros, mas naquela época o Sporting era o maior Clube do país, campeão uma porção de anos seguidos. O Porto, depois dos sucessos do final dos anos trinta caiu muito. Lembro do Fernando da Cortiça que para nos aborrecer dizia que o Porto era o melhor grupo da província.

Curiosidade: o emblema do Rápido era da minha autoria. E o nome do Rápido tem uma origem algo aparolada. Naqueles anos começou a chegar a Monção um comboio rápido denominado Flexa de Prata. Como havia pouco que comentar o tal comboio era tema para tudo. Nas vilas vizinhas achavam que tal progresso também lhes pertencia e se vangloriavam, também Melgaço, embora fosse o adversário natural.

Não havia jogo ou qualquer ajuntamento entre melgacenses e monçanenses que não acabasse em pancadaria. Houve barulhos (brigas) memoráveis comentadas durante anos. Ouvi contar que um domingo apareceu em Melgaço uma camionete de excursão, de Monção. Os ocupantes desembarcaram na Calçada e desceram em marcha rua Nova de Melo abaixo, exibindo aqueles bonecos em cima duma cana que accionados por um arame encostam um no outro, no compasso duma canção que entoavam, menosprezando Melgaço. O acidente não ficou sem resposta: na altura do terreiro já um grande número de rapazes munidos de varapaus desancaram os atrevidos provocadores. Devia ter acontecido no início dos anos trinta pois devia ter eu cinco ou seis anos quando comecei a ouvir esse caso.

Pois o comboio rápido que então representou grande progresso, serviu para nome do grupo de futebol melgacense. Na mesma época os rapazes de Monção formaram um grupo de futebol com o nome de Flexa de Prata”.

Voltando ao futebol em Melgaço: na mesma época do Rápido e Unidos, o Manuel Macarrão que tinha sido jogador nos anos vinte, estava de regresso à terra após ter sido motorista noutros locais, fundou o Club Comercial de Melgaço. Os atletas eram quase todos quarentões, sorte do Rápido que conseguiu vencer alguns jogos. O Comercial, pela proveta idade logo feneceu, o Unidos desfez-se pela debandada dos jovens para a tropa ou emigrados. Ficou o Sporting que também não durou muito dando lugar em 1947 ao “Os Vitoriosos” minha maior invenção na terra.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Camborio Refugiado

 

O ENTERRO DO ESTUDANTE VI

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Voltou murcho, branco, branco … muito mais branco do que a cera que era queimada na capela em baixo. Três caras horrorizadas perante aquela cara amiga, amiga de todos os dias que acaba de nos deixar com a fome no rosto. Fome antiga, companheira e aparece como um fantasma.

— Qual é a tua?

— O que é que aconteceu?

O Fininho desata a rir… rir … mãos na barriga e nada o faz parar de rir…

— A garrafa … huf …! A garrafa de Porto está em cima da mesa …. Ah … ah … ah ….

— O quê? …. A garrafa? … Qual garrafa?

Já ninguém se entendia. A garrafa de Porto, mamada há dias, já não passava pela cabeça daqueles meninos.

O Fininho resolve pôr tento na desorganização que reinava no quarto e sem levantar a voz:

— Meus senhores, todos bebemos; é hora de todos enfrentarmos a fera. Vamos para a sala.

— P’ra mesa - ouve-se.

O grunhido foi de tal maneira forte que ninguém pensou duas vezes.

Acabou a música e ficou no ar o aparvalhado da situação em que temos muito para dizer, mas abrir a boca é que não. Sentados, mui direitinhos, nos lugares que previamente tinham escolhido, quatro pares de olhos, mui solenemente, fixos na garrafa do mijo.

Ouvidos, quais radares por inventar, ligados à cozinha. Daí vem o perigo. Perigo? Qual perigo? Daí vem o sermão. E que sermão!

— Eu – discursou, berrou e etc. a D. Maria – que sempre os tratei como autênticos filhos, por quem os vossos pais têm a maior consideração, que me encarregaram de os acompanhar, quer na educação, quer nos estudos, não merecia da vossa parte tamanha patifaria. Sim patifaria, porque não tenho outra palavra para dizer o que senti quando bebi o vinho do Porto. Os meninos não só beberam o vinho como se deram ao luxo de encher a garrafa com água de sabão …

Os olhares entre os quatro eram de espanto. Em tempo de guerra-fria, espiões dos E.U.A. ou U.R.S.S., James Bond incluído, não teriam feito melhor. Nem um músculo bulia na cara daqueles descarados … esfomeados.

— Porque eu provei!

Ninguém se riu. Ninguém olhou ninguém. Ninguém sabe o que se passou.

Com o silêncio, as culpas foram assumidas e, como tudo na vida, o dia a dia recomeçou. Com fome, alguma fome, digamos, e as portas da casa de D. Maria todas aferrolhadas, acesso à casa de banho e é um pau.

 

(continua)

 

O PETIT BUROCRATA DA KAPITAL E O ALVARINHO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Deitar-se para trás pequenos bairrismos

 

 

Esta é solução encontrada, por um petit burocrata a quem deram um gabinete e salário correspondente na kapital, para que os tubarões vinícolas possam em nome do mercado e concorrência liquidar um produto de qualidade e nome no mercado, transformando-o em mais uma fatia dos “pequenos” lucros que já auferem.

A esse petit burocrata da kapital, proponho que se arranquem todos os pés de vinha alvarinho e sejam substituídos pela cultura do ananás.

Arranque os carvalhos e os substitua por chaparros.

Acabe com a vinha que nos dá a aguardente e a substitua por medronheiros.

E que ele e sua família, até ao ultimo descendente, sejam responsáveis, pela degradação da qualidade do produto e consequente descalabro da economia no concelho de Melgaço e paguem as nossas perdas.

Culturais, morais e económicas.

E que não venha de baraço ao pescoço, num beija-mão arrependido, que a história deste país não começou na kapital. Em Val de Vez fomos nós que lutamos e seremos nós os que iremos defender a nossa história a nossa cultura e a nossa economia.

Ou será que o petit burocrata da kapital, numa reunião do cardume de tubarões, já vê que “resolvido o alvarinho”, podemos partir para a ou as barragens que nos querem enfiar pela goela abaixo?

Ou será que o petit burocrata da kapital é primo desse grande génio que em 50 do século passado destruiu toda uma vida comunitária com a infestação de pinheiros nos nossos montes e acabou com a pastorícia?

Ó petit burocrata da kapital, e que tal substituir as burras (já sei que não sabes o que isso é) por ursos polares e hipopótamos? Não, hipopótamos não, só um porque el-rei D. Manuel I que confirmou no sec. XVI o foral de Melgaço, só enviou um na embaixada ao papa.

Tem vergonha petit burocrata da kapital e ouve as palavras do nosso presidente, que membro do partido do governo que te paga principescamente, não usa de baixa politica de corredores e reuniões de cardume para defender a nossa terra, simplesmente ouve o nosso povo melgacense que há décadas o elege com maioria absoluta para dirigir e defender Melgaço.

 

Tens a vantagem ó petit burocrata da kapital de me fazer ir buscar à estante um dos nossos grandes da cultura portuguesa. O nome que aparece no texto original, ó petit burocrata da kapital é substituído por … uma vez que não conheço o teu nome e se conhecesse não escrevia, vomitava só de pensar nele.

 

Uma geração, que consente deixar-se representar por um … é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!

Abaixo a geração!

Morra o … , morra! Pim!

Uma geração com um … a cavalo é um burro incompetente!

Uma geração com um … à proa é uma canoa em seco!

O … é um cigano!

O … é meio cigano!

……………………………………..

O … é um habilidoso!

O … veste-se mal!

O … usa ceroulas de malha!

O … especula e inocula os concubinos!

O … é …!

O … é …!

Morra o … , morra! Pim!

 

Queluz, 2008-04-27

 

Ilídio de Sousa

 

Ou

 

Camborio Refugiado

 

A IDA A VALENÇA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O Manelzinho conseguiu levar a corneta e o tambor, os seus exclusivos brinquedos importados, quando foi com a mãe na sua habitual ida à horta. Pelo caminho ia exibindo-os para fazer inveja aos rapazes que cruzavam. O Rogério percebeu de longe a presença daquelas maravilhas de que já ouvira falar. Empregou a sua melhor dialéctica para convencer o primo a deixá-lo usar aquelas preciosidades. Estava difícil convencer o Manel quando teve uma ideia genial:

— Vamos fazer uma música e ir a Valença.

O Manel e os outros garotos que estavam por ali ficaram empolgados. A notícia correu célere. Os rapazinhos foram chamar outros colegas que àquela hora andavam zanzando por outros lugares da Vila. Rapidamente havia na porta da taberna da Lúcia um número de rapazes maior que na saída da escola. As pessoas grandes vinham à porta da casa ou à janela saber o que estava acontecendo.

— Se calhar vai ter outra guerra das cruzadas, dizia o Sebastião à porta da sua taberna. A dona Margarida, “a madrinha”, mais a Felícia, da janela do seu atelier de costura, por cima da tasca do Sebastião, perguntava aflita o que estava acontecendo. À medida que tomavam conhecimento do que a canalha tramava, riam e voltavam aos seus afazeres.

O João da Rosa Porca, tremendo brincalhão, sentado à sua banca de sapateiro, sem interromper o trabalho, participava da movimentação das crianças à porta da sua oficina, do outro lado da rua em frente à taberna da Lúcia, incitando-os e dando-lhes algumas ideias de como se organizarem. Como juntou canalha nessa tarde! Vieram de dentro da vila, da Feira Nova, do Terreiro e até da Calçada.

O Nando da Teresa, primo do Rogério e do Manel, também apareceu para tomar conta da brincadeira por ser o mais velho. Apoderou-se do tambor e o Rogério da corneta, ao Manel deram um pedaço de vide onde tinha de fazer piriri…piriri todo o tempo. O resto da turma, também com pedaços de pau, faziam com a boca imitação de instrumentos, alguns batiam em latas e tinha até um que com duas tampas fazia o som dos pratos. O João da Rosa Porca deu a instrução e eles formaram quatro a quatro e a formação tinha jeito. Com a boca fingindo o som dos instrumentos conseguiam produzir a melodia de um ordinário conhecido. Foi dada a partida, rua do Rio do Porto abaixo ao comando do tambor batido pelo Nando. A batida era boa e ritmada igual à do António Caixa que era quem tocava tal instrumento na Banda de verdade. De repente descompassou e todos pararam após uma dúzia de passos. O Nando estava com problemas numa das alpargatas, a sola despregara e dependurada não deixava pisar firme nem manter a cadência. Descalçou-se igual à maioria dos componentes e foi dada nova partida. Quem comandou a saída desta vez foi o Rogério com um forte sopro na corneta e um forte grito triunfal:

— Vamos a Valença!

As pessoas grandes riam com gosto daquela chochice das crianças. Todos os moradores daquela rua vinham à porta apreciar o desfile. A Isabel Caçolas e as filhas, Ervilha e Milanguta, mais em baixo a Carolina Braga à porta da sua Pensão que conversava com o retratista, o Dom Rodrigo da Feira Nova e o Armindo da Pontepedrinha que estavam ali por acaso; mais adiante o Sabino à porta da sua mercearia, também ria. Os tanoeiros deixaram de bater nas aduelas, talvez para não atrapalhar a batida do tambor e nem por isso atrasaram a feitura das pipas. O tio Diogo à porta da loja da Carneira chamava as pessoas que estavam lá dentro para verem o cortejo. Do outro lado da rua, no portão do solar do Ferreira da Silva, o Zé Canelas e o Teodorico, feitores da propriedade, também riam da brincadeira. Os trá-lá-lás, os piriri-piriris os fom-fom-fons gritados pelas gargantas da rapaziada, mais o esganiço da corneta, as batidas das latas, tudo ao compasso do tambor, escutava-se longe, sobressaindo da pasmaceira daquela tarde de verão. Ao passar pelas pessoas o Rogério parava de soprar e gritava empolgado:

— Vamos a Valença!

O João Pitães largou a forja e veio à porta ver o que acontecia. Em cima da ponte sobre o regato (o Rio do Porto) quase houve um acidente. O Augusto Caçolas, descendo do outro lado, retornando de entregar os jornais em Galvão, vinha despreocupado pelo meio da rua guiando o seu Buick. Com o inseparável arco de pipa nas mãos, com os lábios imitando o ruído do motor do automóvel, num trote miudinho, desligado de tudo, apenas absorvido com o guiador do seu carro imaginário, em cérebro infantil, não obstante de ter mais de vinte anos, quase esbarrou na musica. Não fosse o aviso do João Anti que também vinha descendo daquele lado, alertando-o, a banda seria atropelada. Sorte que os travões do Augusto Caçolas obedeceram, ele fez uma graciosa manobra de marcha-atrás para o lado da rua e a musica passou triunfante. O Cerinha, à porta da sua oficina com a sovela e um sapato na mão, ria a bandeiras despregadas. Dois dos seus filhos também iam na marcha. Brincalhão e zombeteiro como não tinha outro igual, quando o Rogério anunciou que iam a Valença, retrucou:

— Isso. Ide, ide rapazes e fazei boa figura, mas tomai cuidado ao passar em Monção, porque eles têm inveja de nós.

O Edmundo Rato na sua latoaria, descobriu porque o filho, o Nove e Cinco, ainda não voltara do recado que fora fazer: lá ia batendo duas latas no meio da turma. E a empolgação chegou ao delírio! Na Loja Nova o sr. Esteves, a mulher D. Ludovina, a filha D. Micas e a sobrinha, a Isaurinha, o empregado Arlindo e algumas castrejas, assistiam embasbacadas àquela demonstração de alegria, bairrismo e galhardia da canalha melgacense. Até o António Ferrador que descia da Carpinteira, parou o seu carro e o Ronha estacou a carroça para não atrapalharem o desfile musical. E a Banda de Música seguia triunfante tomando a estrada rumo a Monção. No término da Vila, no final da Loja Nova, nos baixos do casarão, onde morava o Tenente Peres, tinha o Lucas a sua oficina de carpinteiro de sociedade com o Manuel do Caneiro. Os oficiais da Oficina já tinham dado pela aproximação do cortejo com a cadenciada barulheira. O Lucas também veio à porta e reparou no Manelzinho soprando num pau enquanto os primos se pavoneavam com os instrumentos importados. Ao mesmo tempo reflectiu que a brincadeira ia longe de mais, quando o Rogério, mais uma vez, anunciou a ida a Valença. O Lucas com um garrafão na mão anunciou:

—Pois já chegaram!

Entrou no meio da formação fingindo despachar sarrafadas. Apanhou a corneta, o tambor e o Manelzinho, levando os três para dentro da oficina onde ficaram de castigo até à noite na hora de ir para casa. Os outros rapazes, no momento da ameaça, pernas para que vos quero. Não obstante o desfecho imprevisto, aquela quase ida a Valença, ficou gravada na memória dos participantes como um retalho feliz das suas vidas.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

O ENTERRO DO ESTUDANTE V

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Crise atrás de crise e a cozinha da nossa querida anfitriã voltou a ser o alvo a atacar.

Porta da cozinha fechada, só restava, na sala do nosso descontentamento, uma garrafa, meia, de Porto.

— É nossa, gritou-se.

Quatro e meia garrafa de Porto … dez minutos depois … com cabeça quente, com cabeça fria… alguém lembrou que a garrafa tinha que ir novamente para o lugar dela, mas não podia ir vazia!

— Mija-se dentro.

O Louro, de garrafa na mão, desaparece na casa-de-banho, e quando volta, solenemente coloca a dita no seu devido lugar e todos os outros concordam, sem margem para dúvidas, que o liquido estava no mesmo nível…

Há sempre um artista onde menos se espera …

Hora de jantar foi coisa que nunca existiu naquela casa, a não ser que o Louro ou o Fininho, guitarra eléctrica e viola nas mãos, e se bateria houvesse não ficava esquecida, para lembrar a existência daquelas pobres criaturas de Deus, sempre esfomeadas, à espera de uma côdea há muito paga, sabe-se lá com que sacrifícios paternos.

Diariamente o ritual era cumprido e, com mais ou menos música, cinco minutos depois do início do concerto, dois murros na porta do quarto. Quais trombetas a saudar César! Faziam com que a sala vazia se enchesse de olhos vorazes e estômagos ávidos de todos os ossos e ossinhos, peles e carninha com que teriam de se contentar até ao dia seguinte. A menos que…

É verdade que o jogo está a dar, mas até quando?

Têm aparecido uns clientes para a perna de frango, mas até quando?

 Poderá haver um descuido da D. Maria, no frigorifico, mas até quando?

Chegou o dia em que o despertar musical da cozinheira resultou em silêncio em vez dos ansiados murros na porta.

— Apanhas com os Doors - rosnava o Louro.

— Canto Joplin que ninguém aguenta - atirava o Fininho.

O Padeiro e o Pequeno, que sempre esperaram pelos murros na porta dos outros dois, impelidos pela fomeca de sempre, atiraram-se pelo quarto adentro:

— Mas que m*rda é esta? Não pagámos já o mês? Será que o chulo teve direito a almoço e jantar à custa do que pagámos adiantado?

O barulho era infernal dentro daquele quarto. A música saída do gira-discos, do amplificador da viola, dos estômagos esfomeados, das gargantas feridas pela falta de respeito no cumprimento do horário.

— Pago, quero comer. Vou ver o que se passa - palavras do Fininho.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE IV

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Logo começou a lição:

— O dinheiro está no bolso dos outros. Os outros querem o nosso dinheiro. Nós temos que ganhar para ficar com o dinheiro dos outros.

O professor sabia do assunto, os alunos eram aplicados e não demorou nada que, num conceituado restaurante da cidade, à uma hora da manhã, cinco senhores, rapazes da aldeia, encomendassem o seu bife, bebessem a sua caneca de cerveja, gorjeta ao empregado e toca a ir dormir porque a cidade não dá para mais e a nota está a chegar ao fim.

Depressa o Bicho passou de professor a mais um dentro do grupo e, também os resultados do jogo diminuíram. Menos restaurante, mais tasca; troca-se a ceia, pela coxa de frango e tigela de tinto no Bar Januário da Rua de S. Marcos, como complemento da dieta imposta pela D. Maria.

A fartura, tal como diz o nosso povo, geralmente dá em fome. E, para quem pagava para comer, qual janela, qual porta fechada, para chegar ao objectivo, ou seja, ao frigorifico da D. Maria, toda a arma servia.

Grupo reunido, depois de três ou quatro noites em que a jogatina mal dava para cigarros, comprados avulso, e às tigelas nem tínhamos acesso, decidimos que quem paga come e esperar pelo dia seguinte era mais uma noite de barriga vazia.

Democraticamente foi decidido que no dia X,o mais cedo possivel, depois de encontrada a hora do ataque, era irreversível o assalto final à casa forte da megera que nos chupava até ao tutano. 

Chegar a casa, depois das voltas na cidade, entrar e devorar tudo o que estivesse à mão de semear e logo se veria, porque o outro dia até é outro dia, com mais problemas para resolver, com mais cigarros para fumar, tigelas e cervejas para beber.

Nessa noite todos pensámos no estômago cheio de nada e nos petiscos da D. Maria para o magarefe. Qual ataque de D. Nuno! Acabar com o mouro na primeira investida era a táctica a seguir.

Abre-se a porta, saco de fruta no fim e no frigorífico … nada!

Até amanhã que hoje não temos nada.

Foi como limpar o cu a meninos, não fosse o Padeiro lembrar-se que a carne que estava congelada dava uns óptimos bifes. Realmente, acalmar um físico daqueles era trabalho, não para quatro, antes para um regimento.

Claro está que a operação não passou despercebida e D. Maria pensou “casa roubada, trancas à porta”.

O jogo foi dando umas notas. Os pregos no prato às duas da manhã, umas moelas no snack-bar e, por vezes, umas coxas de frango e tigelas a acompanhar, equilibravam o edifício em ruínas que era a relação entre as refeições em casa e aquelas quatro barrigas na flor da idade ávidas de mantença, mas nem sempre o “amigo” estava disposto a colaborar.

 

(continua)


BANDA DE MUSICA DOS B V M

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Pois, foi ainda à sombra dos lauréis daquele acontecimento glorioso para os Bombeiros de Melgaço ocorrido seis anos antes, que a corporação melgacense se apresentou na Convenção na Vila de Valença. Era um domingo frio e chuvoso, clareava o dia. Os briosos Bombeiros vinham chegando impecavelmente vestidos com seu fardamento de cotim cinzento, bem lavado e passado, o dolman apertado até ao pescoço com botões de metal dourado, sapatos pretos engraxados. No quartel apanhavam os cinturões com as machadinhas, e o capacete. Como eram bonitos aqueles capacetes de metal dourado, reluzentes, com o emblema da corporação encimado por uma águia também em metal sobreposto na frente. Do capacete descia um cordão vermelho de veludo que ia até ao cinturão. Também da platina do ombro até ao bolso do peito pendia um cordão vermelho em curva sobre o peito, e para completar a gala do fardamento luvas brancas. Que maravilha! A Banda de música com a mesma galhardia no vestir, em vez de capacetes usavam bonés. Foram em duas camionetes da carreira. Naquela época ainda não tinham o famoso carro da bomba, jóia de artesanato, por eles construído em cima do chassis do Buick modelo 1928, que o Simão Araújo doara; mas isso é outra história.

Na caravana para Valença, o Manelzinho do Augusto do Félix também foi. Disseram que era o mascote, o Lucas, o cunhado, era um dos comandantes e o Gú, o irmão, era um dos briosos bombeiros. O mascote deu-se mal na viagem; como sempre acontecia quando para mais longe ia de carro. Enjoou e vomitou várias vezes. Chegados a Valença, o Manel para se refazer das agruras da viagem ficou na casa da irmã Graziela, só à noite foi ao concerto musical. Ficou o dia todo brincando com o Manel da Graziela, quase da mesma idade, filho adoptivo e por isso sobrinho postiço do Manelzinho. Também… choveu o dia todo. A Graziela morava já algum tempo em Valença, talvez desde o casamento. Sendo uma vila de fronteira com ponte internacional de carros e caminho de ferro, era intenso o tráfego entre Valençe e Tui, Vigo e outras cidades da Galiza. A Espanha estava numa fase de “vacas gordas”. O Sabariz, marido da Graziela, era o chofer e havia convencido o sogro, o Augusto do Félix, a conseguir dinheiro emprestado para comprar um automóvel que ele iria explorar na praça de Valença que era a mina de ouro da época argumentava. O dinheiro ganho nos fretes iria saldar as parcelas e ainda sobraria muito. Sogro apenas seria o fiador. E assim foi! Não sendo abastado e não tendo outros rendimentos que os do seu trabalho de alfaiate, apenas a sua comprovada honorabilidade lhe bastou para conseguir vinte contos a altos juros, do Zé Borne, um dos pioneiros emigrantes na França.

Comprou o Sabariz um Pontiac, novo em folha o mais moderno modelo dos automóveis americanos que existiam e foi radicar-se em Valença. As agonias que o Augusto do Félix passou para pagar as letras do empréstimo, não vêm ao caso, basta dizer que por ter de adiar as parcelas principais, só de juros pagou o dobro do empréstimo. Deixa para lá!... Mas Valença era toda festa naquele domingo chuvoso. Os Bombeiros de Melgaço no desfile e não sei mais o que, não fizeram lá grande figura, mas a Banda de Música, sim senhores, que figuraça. O Mestre Morais não abria mão da disciplina, militar que fora, fazia questão que fosse cumprida nos mínimos detalhes, além da capacidade musical que transmitia aos executantes, autênticos virtuosos. O Mestre Morais além de emérito regente e disciplinador, entre vários instrumentos tocava violino.

Pois a Banda Musical dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, não obstante o mau tempo, à hora marcada, iniciou o desfile atacando um dos seus famosos ordinários. Fizesse calorão ou chovesse picaretas, na hora estipulada fazia-se presente, já fora assim em Braga, noutra memorável participação. À noite, no salão de espectáculos, a Música de Melgaço demonstrou toda a sua classe erudita. Mimoseou a plateia numerosa com um magistral concerto sinfónico onde incluiu a suite do 1812. Essa performance do Mestre Morais e seus pupilos foi aplaudida e comentada nos jornais da região.

O povo de Melgaço mais uma vez ficou orgulhoso e feliz. O tema das conversas durante muito tempo passou a ser a Banda de Música e de uma maneira tão apaixonada que em alguns sujeitos virou fanatismo, como o Flórido que sempre que se emborrachava, e isso acontecia todo o fim de semana, desandava a cantarolar as árias, ordinários, valsas e todo o repertório da Música. E a gente miúda, a canalha, participava do delírio musical regionalista reinante.

O Manelzinho trouxera de Valença uma corneta de lata e um tambor comprados em Vigo. Coisa bonita e de verdade, nunca em Melgaço uma criança da classe dele tivera aquilo. A corneta emitia através de uma palheta bonito som que podia ser modulado com os dedos nos buraquinhos. O tambor, com duas batéculas rufava ou marcava o compasso marcial igual aos soldados. Tão valioso era aquele brinquedo que as pessoas da família não deixavam o rapaz levá-los para a rua. Mas um dia o Manel condicionou a sua ida à horta com a mãe a levar os instrumentos. E levou.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

O ENTERRO DO ESTUDANTE III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Com nota fresca no bolso, cinquenta paus mais uns trocos, porque era o primeiro dia, farejaram-se os locais já velhos conhecidos de tradição na terrinha e descobriu-se, ao fim de grandes voltas, o que passou a ser o nosso El Dourado: Coxa de frango, um pão e duas tigelas de tinto, dez paus. O tinto puxava um tanto ou quanto para o maduro mas não dava direito a reclamações.

O Louro deu o mote logo no dia da apresentação:

— Desculpe, minha senhora, mas eu não como cabelos.

A interpelada, dona e cozinheira da casa, não morreu de apoplexia, mas vermelha como um bom tomate maduro, bufou uma, bufou duas e… a sala estremeceu:

— Agora que comeu é que diz isso?

O Louro, muito calmamente, retirou o cabelo da coxa de frango e retorquiu:

— Desculpe, sou louro. Este cabelo é preto e comprido e todos os meus colegas usam cabelo curto.

Chegou-se a um consenso, veio mais uma coxa de frango para o Louro e tigelas extras para o resto da comitiva e, a partir desse dia, além de amigos, haveria sempre uma tigela amiga, quando cara nova, com dinheiro, nos acompanhasse.

Curtindo uma música e fazendo o primeiro balanço à vida estudantil, na velha cidade, sem os remoques de séculos em cima das costas, logo constatámos que, estudos à parte, tínhamos encontrado uma mina.

Uma mina! Logo no primeiro dia! Só faltava era dinheiro para a explorar. Dinheiro, dinheiro! Sempre a palavra mágica. E onde estava o dinheiro? No bolso dos outros, é claro! O problema era lá chegar. Chegar como chegam os outros, cara levantada e sem receio de mostrar o que temos, porque filhos de gente honrada somos nós.

No fim da semana, com lutas civis pelo meio, tesos e dependentes da morte lenta ou holocausto que eram as refeições da D. Maria, esfomeados até à última, apareceu, enfim, o anjo negro da sorte. Filho da cidade, mas agarrado à terrinha quanto baste, porque nove meses sempre deram lugar a mais um, o Bicho aparece em cena com o melhor dos cenários:    - Meus amigos, eu sou o melhor encenador p´ra peça que querem pôr em cena.

Com muitas horas roubadas aos estudos, dias e dias a fio, ficámos a saber como se joga à “lerpa”, se esfolam cabritos na cidade e os novos-ricos, cheios de pesetas do seu trabalho diário, no contrabando na terrinha. Uns patinhos mamados por putos!

O primeiro problema do Bicho prendia-se com o lugar para dormir. Lógico, será dizer, que entre o Louro e o Fininho desabou grande tempestade, como se não se soubesse de antemão que uma das camas seria para o Bicho! Era o único quarto independente da casa e o Bicho casado de fresco!

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Como eles se encontraram não sei. A intuição de que tanto se fala agora era por mim desconhecida na altura, mas reza a história que a páginas tantas estavam juntos, quais três mosqueteiros, num 1º.andar que não faz parte da memória da cidade, porque poucos conheceram a verdade nua, dura e cega dos dramas vividos nesse recanto citadino, administrado pela Sr.ª. Maria.

A casa estava situada na parte nobre da cidade, empedrado à nossa moda, com bons passeios para garantir chegada certa a casa em noite mais agitada, etílicamente falando, obelisco no meio que, de tão importante, não deixou recordação e o quartel da polícia mesmo ao lado.

Ah, que saudades da D. Maria!

Glória a vós que morreis de fome para a D. Maria encher um poucochinho mais!

Eram 120 kg devidamente distribuídos por pescoço, mamas, braços e pernas. O resto, se existia, desaparecia naquela confusão de banhas. Mãos e pés foram coisa que nunca se viu. A eterna bata azul e branca aos quadradinhos, o amante, magarefe de profissão, que só aparecia em público às quartas-feiras para comer o almoço. Se não assustavam criancinhas pelo menos impunham muito respeito. E no meio de tudo isto havia a filha!

A filha, a filha …! Mocetona de dezassete ou dezoito anos que só foi vista três ou quatro vezes. Porquê? Quem poderá saber? Eu não, que não sou adivinho.

A verdade é que nunca vi quatro tigres tão sossegados em frente de uma fêmea, sem rosnar entre eles ou olhares de lado.

Ela de tímida deveria ter pouco, se pensarmos nos olhares furtivos que por todos dividia; mas o peso materno, conjugado com a carranca do magarefe não devia ser alheios ao seu comportamento.

Para o Fininho e o Louro ficarem no mesmo quarto bastou um olhar. As reguadas na Escola Primária, uvas tão apetecidas no campo do vizinho, maçãs de comer e chorar por mais, até as cenouras do prior vieram à baila nesse instante. Era toda a amizade duma vida, o que aquele olhar encerrava. Novos velhos no meio da turba estudantil.

A D. Maria tinha reservado dois divãs e um guarda-fatos, mais uma arca, da qual desconhecíamos o conteúdo por estar sempre fechada, para os nossos aposentos. Colocar em sítio estratégico o amplificador e a guitarra eléctrica, o gira-discos à mão de semear, fazer contas à hora do jantar… Para primeiro dia era bom de mais! Porque o quarto era independente do resto da casa!

Fazer contas de cabeça não era difícil, como se lia na cara de cada um, quanto aos projectos futuros em relação à filha da D. Maria.

O Pequeno teve direito a um quarto adequado à sua estatura e o Padeiro teve a mesma sorte, mas para albergar 1,80 m e 90 kg de peso … Só a cama enchia o quarto.

Logo no primeiro jantar os olhares eram chispas, todos a culpar todos pela escolha efectuada. A fome era demais para ser verdade e para acabar com a maldita a única solução era comer fora, porque em cidade de estudante tasca, melhor ou pior, é coisa que não falta.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Arco da Porta Nova - Braga

 

 

De repente a cidade começou a encher. Não da mesma forma que as moças da minha terra, uns meses depois da apanha do milho, mas tal qual um furacão que leva à frente o que nos é mais querido e nos enche dos destroços que o seu gozo deixou.

Cinco, dez, quinze mil? Quem sabe … Desde veteranos a caloiros, havia de tudo e se uns pensavam nas praxes de iniciação na escola, outros havia para quem a descoberta de bons tascos, petisquinho a preceito, preço de estudante e cara bonita a servir era fundamental. Estes eram os novos estudantes “velhos” que desde pequenos saborearam a histórica cidade estudantil sem nunca lá terem posto os pés.

Houve, é claro, uma visita colectiva da província, para os papás baterem palmas ao “botinhas” e continuarem a fazer as suas vidas sossegadas; porque o homenzinho não brincava, e os putos a ficarem meio-surdos com as máquinas infernais que desde o tempo dos afonsinos eram prenúncio de desgraça, apesar dos terroristas serem pretos drogados e bêbados e nada mais. Outras houveram que o bom prior levou a cabo e mais não serviram do que aguçar o apetite para quem queria ver tudo menos tanques da primeira guerra e igrejas que não faltavam lá na terrinha.

E a cegada do Primeiro de Dezembro? Quem é que não tinha ouvido as estórias do dia da Independência, em que os próprios cívicos ficavam em casa para a malta poder comemorar?

A cidade era o mundo, para quem tinha saído, não debaixo das saias da mãe mas, do cinto do pai.

E na cidade caíram aqueles quatro, não do Céu, mas da terrinha!

Trocar as voltas aos velhos, GNR, GF ou Guarda Civil, era treta. Estudos eram a profissão, a cidade não poderia sequer ser um desafio. Estava conquistada à partida.

Afinal, os resultados escolares, as célebres notas, só apareciam de três em três meses. Mas, como notas com notas se pagam, havia também as que o pai largava para comida, dormida e roupa lavada. E as outras? Se não saíssem da terra também não cairiam das árvores e bolso roto não dava. E se necessário é alimentar o corpo, descurar o espírito é altamente criminoso. Tem que se encontrar o ponto de equilíbrio, ponto de mira como dizem os caçadores. Mas adiante, vamos aos quatro:

— O Fininho que, como o nome indica, além de pele sobre o osso, só tinha orelhas.

— O Pequeno, porque a mãe natureza o dotou de 1,5 m e viv’ó velho.

— O Louro que, apesar de filho da serra e mãe contrabandista, assim nasceu.

— O Padeiro, que outra profissão a seu pai não foi conhecida.

 

(continua)

 

ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Um dia aconteceu uma nova e sensacional brincadeira que tumultuou aquela pacata localidade. Tinha acontecido semanas antes um grande evento que agitara todo o Alto-Minho. Haviam-se reunido em Valença, em convenção, representações das corporações de Bombeiros Voluntários de toda a região. A corporação dos Bombeiros de Melgaço, claro que também esteve presente, e com destaque principalmente pela sua famosíssima Banda de Musica. Os Bombeiros de Melgaço, aliás, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, denominação pomposa e bem representativa do carácter daquele povo simples e bondoso, foi fundada em 1927 ou 1929, em condições precárias e material rudimentar, por inspiração do jovem advogado melgacense, Dr. Augusto César Esteves. De quando a ida a Valença tinha o seu quartel instalado no rés-do-chão daquele casarão do Rio do Porto de Cima, na estrada nacional.

Pois os Bombeiros de Melgaço naquela época gozavam de um prestígio jamais alcançado por instituições congéneres na região, quiçá de todo o País. Acontecera do outro lado do Rio Minho, ali na Galiza, bem em frente à Vila de Melgaço o mais trágico e pavoroso acidente de caminho de ferro de que havia noticia.

O comboio expresso “Madrid-Vigo” descarrilou num trecho bem perto do rio que naquela época corria bem cheio e caudaloso. O acidente foi presenciado por muita gente porquanto a passagem daquele expresso era motivo de admiração, pelas suas linhas, alta velocidade e pelo silvo grave do seu apito. Pois, naquela manhã ensolarada, sem mais nem menos, nem saber porquê, o transvia galego saltou dos trilhos, escorregou, barrando abaixo aos trambolhões e parte dele enfiou-se no rio. Quase na mesma hora o sino da Igreja Matriz da Vila de Melgaço tocou a rebate, como sempre fazia quando havia sinistros. Quem primeiro chegasse à Igreja, apanhava na loja do Zé Pequeno, em frente, a chave da porta lateral, que estava ali para isso, e tocavam o sino a rebate com badaladas apressadas e nervosas conclamando os bombeiros e o povo.

Foi assim no dia do descarrilamento. Os elementos acorreram ao quartel para se munirem dos capacetes, cinturões, cordas e machadinhas… naquele dia a Vila ficou vazia. Bombeiros e povo, de cambalhota, Carvalhiças e Mascanho abaixo, em poucos minutos transpuseram a distância coberta de mato e pedregulhos, no mais sensacional corta-mato da história daquela gente. Era pavoroso o espectáculo: homens, mulheres e crianças, passageiros do comboio, debatiam-se, quase em agonia, nas águas do rio, outros presos nas ferragens, imploravam a ajuda Divina como ultimo socorro. A gente de Melgaço, brava, humanitária, desprendida, desdobrava-se em esforços. A nado e em pequenas batelas, atravessaram o rio e sem se importarem com a guarda-fiscal ou os carabineiros que lhes perguntassem pelo salvo-conduto. Foi uma jornada épica!

Aquela mesma gente portuguesa que trezentos anos antes expulsara aqueles mesmos espanhóis que queriam ficar com a sua Vila, agora, desinteressadamente os socorria, impelidos pelo sentimento da solidariedade.

Quando ao fim do dia chegaram os socorros das povoações espanholas, inclusive das grandes cidades, Vigo e Ourense, já os Bombeiros de Melgaço tinham controlado toda a situação. Os feridos mais graves haviam sido encaminhados para as modestas instalações do Hospital da Misericórdia. Bagagens e objectos foram tirados do rio e do meio do mato e entregues a seus donos. Aquele povo humilde, a maior parte dele bastante pobre, nem um só instante pensou em apoderar-se do que quer que fosse. Um cidadão, cambista, pelo que se soube depois, lamuriava-se pela sua grande desgraça: não se importava com os arranhões e escoriações que sofreu, mas com a sua maleta que caíra ao rio, onde estava toda a sua fortuna. No mesmo instante o Zé Breguês procurava o dono da maleta que tirara do fundo do rio, cheia de pesetas e duros de prata. Entregou-a intacta.

Apenas um objecto foi levado como troféu: o relógio do expresso, com o vidro quebrado, a caixa de metal amassada, orgulhosamente exposto na viga principal do tecto do novo quartel, agora nos baixos da Câmara Municipal, com a inscrição: “Recordação do descarrilamento do Expresso Madrid-Vigo, 12 de Outubro de 1930”.

O desempenho dos Bombeiros de Melgaço foi louvado e comentado em todos os jornais de Portugal e Espanha. Aquele povo encheu-se de orgulho, não pelo que fizeram mas porque o mundo tomou consciência que eles existiam. Foi então que o governo de Lisboa atentou que aquela nesga de terra, encravada na Galiza, também era Portugal. Mandaram um instrutor, pessoa competente, ministrar técnicas de salvamento e ataque a sinistros. Mandaram algum material e o povo quotizou-se adquirindo uma grande e pesada bomba, montada sobre rodas de carroça, duas, um cabeçalho de madeira para ser puxado a braços ou por animais, e também por grandes varais que movimentados no ritmo de sobe e desce, provocavam a aspiração da água e a expeliam forte, pelas mangueiras, também tocadas a braços.

Foi um grande orgulho aquele melhoramento que, como reconhecimento e demonstração de fé, baptizaram a bomba, escrevendo em cima da bonita pintura vermelha com frisos pretos e dourados: NOSSA SENHORA DA ORADA, a virgem sua madrinha, padroeira do concelho de Melgaço.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

A CASA VELHA II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Apoiava o quê? Apoiava a Fátima, é claro, fosse contra quem fosse, fosse pelo que fosse, mas o que é que se passava? O que é que queriam Câmara e GNR?

Finalmente começou a saber-se a origem de toda a revolta.

As autoridades queriam demolir a casa!

A casa da Fátima era constituída de duas partes, uma mais recente, sendo que a mais antiga e original, já centenária, se encontrava degradada, mas mesmo assim diariamente usada pelos moradores.

Ao lado, bem juntinho, na estrada que vai para Galvão, foi construída uma nova casa:

- para o interesse da população, diziam.

Acontece que os serviços camarários – por desconhecimento ou outra razão qualquer -, chumbaram as licenças de habitabilidade da mesma, por não terem sido cumpridos os requisitos que obrigavam a que houvesse uma determinada distância entre as habitações.

Perante este cenário as cabeças reinantes do concelho decidiram que o erro era devido ao encosto da casa velha à nova casa e como tal devia ser demolida, senão no todo pelo menos a parte degradada.

Era esta dupla reinante a mesma que tinha enchido os bolsos durante uns censos nacionais, ao cobrar uma dezena de escudos por impresso preenchido, aos habitantes do monte.

Habilidosos, muito habilidosos.

Como a coisa estava feia e não descobria em lado nenhum o fiscal de obras responsável por aquela zona, resolveu o Fifi subir à Vila que se encontrava deserta com uma excepção: a segunda cabeça reinante andava para trás e para a frente, em mangas de camisa e pistola à cinta, observando o que se passava lá mais para baixo.

— Está borrado de medo, pensou Fifi.

Minutos depois entra em casa do dito fiscal e quando vai para começar a falar, ouviu:

— Não quero saber de nada, estou muito bem - e levantou a ponta da almofada onde repousava a cabeça, deixando a arma à vista.

Mais descansado Fifi voltou p’rá guerra, encontrando novamente o pistoleiro a passear dum lado para o outro, os valorosos GNR no seu grupinho em volta do homem da espada e o povo sem arredar pé e sempre a gritar.

Dois outros jeeps carregados de GNR chegam entretanto, os soldados juntam-se aos companheiros, a berraria era cada vez maior, e um oficial da guarda destaca-se dos companheiros, atravessa a multidão e foi interpelar os cantoneiros sobre o que se passava. A resposta foi clara:

— Mandaram deitar o muro abaixo, nós obedecemos.

Interpelou os donos da casa e a resposta foi:

— Dizem que a nossa casa se chegou à nova e querem-na derrubar.

O oficial, pensou um pouco, abanou a cabeça, voltou-se para o povo e disse:

— Meus amigos, a guerra acabou. Ninguém toca numa pedra do muro ou da casa sem ordem do tribunal e eu estou aqui para o assegurar. Podem voltar para casa que a guerra acabou.

— A guerra acabou, a guerra acabou, foi o que ele disse…

E a palavra passou de boca em boca, a guerra acabou!

As vozes baixaram de tom, dos gritos passaram aos murmúrios e todos acataram o conselho do oficial da guarda.

Voltaram para casa, descansados, sabendo que não iriam ser traídos ou não fosse o oficial um deles, que todos os dias passava pela casa velha a caminho da escola. E, ainda hoje, a casa velha lá está.

 

Camborio Refigiado

A CASA VELHA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Melgaço

 

 

Tinham acabado de comer o caldo do jantar com uma bucha de broa e toucinho acompanhado duma tigela de tinto quando o som louco do sino fez calar as conversas, olhares incrédulos de grandes e canalha, bancos que se arrastavam e outros que arremessados se viravam, Santa Barbara nos acuda, credo senhora qu’é isto?

 — Fogo não é qu’a sirene não tocou – gritou o Tonio Cerinha para a Mirán que nada ouvia a não ser o choro dos bebés, um, dois, três que tinha ao colo e os outros dois que se lhe agarravam às pernas –, passando dum salto a cozinha e metade dos degraus que iam do quintal até à porta de casa.

Socos, alpargatas, chinelos e sapatos finos corriam, mais do que os donos eram capazes, p’ró adro da igreja de onde saía cada um que chegava, travessa abaixo até à Feira Nova.

— É na casa da Fátima, a Fátima do Horácio, vamos…vamos!

Gestos e gritos e a correria continuava, Rio do Porto abaixo e subia p’rá Loja Nova. O povo estaria doudo, ou doudo o deixava as badaladas do sino grande que nem um segundo parava. De certeza que não eram só dois pares de rijos braços que mexia tão grande peso que se deveria ouvir em Pomares ou em Ciquelinhos.

O caso era de certeza, muito, muito grande e muito, muito grave.

Na Loja Nova um grupo que ia sempre aumentando cercava meia dúzia de cantoneiros da Câmara Municipal que armados de ferros e picaretas se preparavam para derrubar o muro que separava o quintal da casa da Fátima da estrada nacional para Castro Laboreiro.

Do lado de dentro, moradores e amigos vociferavam contra os patifes que queriam derrubar-lhes a casa. O povo que já ocupava a estrada e os campos fronteiros berrava, discutia e insultava os malandros da Câmara.

Os cantoneiros, entalados entre o povo e o muro, gritavam que só faziam o que lhes mandavam.

Os guardas-republicanos que tinham chegado ao local, três ou quatro que o posto não tinha mais, mantinham-se a bom recato, os cantoneiros pousaram os instrumentos de trabalho, o povo não arredava pé e não parava de apoiar os seus amigos.

Um jeep da GNR chega ao local e dele sai um airoso militar, fio de prumo bem trabalhado, espada à cinta, acompanhado por quatro praças. Esticou a farda e quando se preparava para abrir a boca já estava rodeado por centenas de populares, que na cara o mandavam de volta para donde veio e outros mimos que tais. O garboso militar, comandante em Tangil, ajeitou a espada no lugar e foi juntar-se ao resto do contingente que se mantinha afastado.

E o povo gritava, o povo apoiava.

 

TEATRO POPULAR - OS SIMPLES

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O cinema continuava a insuflar a imaginação da criançada mais pequena na Vila de Melgaço. Ah, as Cruzadas, que delírio chegou a provocar aquele filme. Veio inflamar o ardor patriótico e guerreiro que era insuflado na escola com a descrição das grandes batalhas e heróis da nacionalidade portuguesa. Não havia rapaz que não tivesse uma espada de pau feita por ele ou por um parente mais velho, alguns tinham até escudos feitos de tampas de tambores de gasolina. Combinaram um grande combate entre as hostes do Rei Ricardo Coração de Leão e do sarraceno Saladino, no terreiro (Praça da Republica). O Manelzinho que frequentava a casa do tio Emiliano, na avenida, e este tinha uma pequena oficina na garagem, com algumas marteladas nos dedos por falta de perícia, o rapaz fez a sua espada e um escudo com a tampa de um latão. O escudo ficou vistoso pois pintou-o de azul com um resto de tinta que encontrou, com uma cruz vermelha no centro. Quando mostrou ao Rogério o material bélico que confeccionara, este ficou seduzido. Ele não tinha produzido nada, apenas arranjara uma grande cana que era a sua lança. Convenceu o primo a desistir de ir á guerra, que era muito pequeno, que talvez o pai achasse ruim e ficasse zangado, que do outro lado tinha o Abílio da Zaulinda e outros matulões que o podiam ferir. Bastante frustrado o Manel emprestou o seu armamento ao primo com a recomendação de não o estragar. Era tudo o que o Rogério queria. O exército dos Cruzados organizou-se na avenida, nas portas da vila e em grande algazarra, pela Rua Direita, marchou em direcção ao terreiro onde o exército dos infiéis estava aguardando.

Quando os exércitos se preparavam para arremeter, um em frente do outro, apareceu o António Reis que já estava de soslaio. Era o zelador municipal incumbido de manter a ordem. Naquele tempo não existia em Melgaço guarda republicana nem polícia, nem faziam falta de tão ordeiro que era o povo, só mesmo a canalha promovia zaragatas. O António Reis, do alto da sua autoridade, desbaratou os dois exércitos ameaçando-os com bolos de palmatória na administração.

O Vasco havia regressado. Depois de uma prolongada temporada na penitenciária do Porto voltou à base e agitou a rapaziada da terra. Pelo que contavam os adultos sofrera prisão por questões ideológicas. Desde moço que tinha tendências socialistas e engajara-se em movimentos de oposição ao Estado Novo. De motorista particular de um médico de Monção tornou-se chaufer de praça naquela mesma vila com um automóvel Morris, igual àqueles que a revista Eva sorteava nas edições do Natal. Foi escalado por seus correligionários a transportar o Paiva Couceiro desde a fronteira espanhola até determinado ponto em Portugal, donde comandaria uma revolução. A polícia estava ao par e abortou a intentona cercando o carro no trajecto. Naquele tempo, quem fosse contra o governo era comunista e foi nessa condição que o Vasco foi preso.

A esposa, a Zinda, e os quatro filhos voltaram para Melgaço onde sobreviveram com a ajuda de parentes. Na penitenciária, sofreu maus-tratos e agressões que lhe abalaram a saúde. Em compensação ilustrou seu intelecto. Conviveu na prisão, com grandes intelectuais, personalidades que sofreram perseguição por seus ideais políticos. Foi grande a cultura que o Vasco adquiriu com conhecimentos nas mais variadas áreas da ciência. Cumprida a pena, de volta à terra, convocou rapazes e raparigas para organizarem um teatro.

Grupo Cénico OS SIMPLES de Melgaço, foi o nome que atribuiu à companhia.

O Pandulho, o Henrique da Duartina, o Carriço, o Ná, o Maneco do Simão, o Fernando da Cortiça, o Carlota, o Hilário da Carqueja, a Maria Guisele, a Judite da Rosa Pires, a Mega do Jacob, a Maria Pita, eram os artistas mais destacados. A canalha miúda empolgou-se com a novidade. Os que contavam até dez anos nunca tiveram conhecimento dum movimento artístico desses, na terra. Os mais espertos conseguiam assistir aos ensaios. Os primeiros espectáculos (dois ou três) compunham-se da comédia Zázá e uma revista musical da autoria do Vasco parodiando os acontecimentos e personagens da terra. Para a revista precisavam de cenários. A única pessoa com suposta capacidade para tal era o Jacob. Foi contratado para executar dois cenários. As folhas de papel dos sacos vazios de cimento, abertas e coladas umas nas outras até à extensão necessária com uma camada de cal e cola por cima, ficaram prontas para receber os desenhos e pinturas. Até este ponto e preparar as tintas (anilinas) o Jacob soube fazer, desenhar e pintar não era com ele.

Teve o expediente de reconhecer a habilidade do rapazinho, o Rogério da Lúcia (era conhecido assim mas era filho da Mariquinhas) com pendores para desenho que seria capaz de realizar a obra com a sua supervisão, e foi! Na primeira infância este artista melgacense que ainda vive e executa suas pinturas em Lisboa, realizou-se como cenógrafo. O sucesso foi grande e a garotada achou de fazer os seus teatros. O João da Felícia arregimentou uma turma lá dentro da vila onde sobressaíam, ele, a Mimi e a Esperança do Cataluna. Na Calçada, o Manel Carrapito também organizou o seu teatro com o Neca Pires, o Pachorrego, a Dinora Vilas, ele, Manel e a sobrinha, a Mia do Lucas. No espectáculo do João da Felícia levado a efeito no salão da casa que o Sr. Hilário tinha na rua da Cadeia, esquina com a rua de Baixo, em frente à casa do tio Ilídio e da casa da Rosa Na beiro (mais tarde esse salão foi a sede do Unidos Futebol Clube; pois o dito espectáculo abriu com a seguinte cena: Mimi do Catalunha, sentada numa cadeira com um livro nas mãos, fingindo ler, enquanto o João, em pé, por trás dela, recitava algo. A cena foi demorada e a Mimi, lê que lê, sem se mexer; lá do meio da plateia o Neca Pires gritou: vira a página do livro! O espectáculo organizado pelo Manel Carrapito foi na alfaiataria do pai dele. Os ingressos, nos dois teatros, foi de dois tostões.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

LADINA VI

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Presa, foi logo julgada.

Para o ex-candidato a esposo, durante as audiências, interrogatórios ou reconstituições verbais do crime, nem olhar, nem desprezo. Tenho a certeza que se o olhasse vomitava. Afinal fora ele e outros como ele que a tinham atirado para aquele caminho. A exploração braçal no campo, de sol a sol, e senhorial durante a noite.

Foram sempre, senhor e dono.

Se fossem rapazes novos, belos, viris, com a vida estampada no rosto, ainda vá que não vá, para isso nascemos, mas velhos tinhosos, patrões de escravos, que contavam as notas antes de deitar, isso não.

Tentara … falhara …, voltara a tentar e a falhar e outra vez e outra ainda e vezes sem conta. No campo, na aldeia, na vila, na cidade, ela tentara e ela perdera. Ela mesmo despoletara as armadilhas que pusera no trilho da sua vida.

Tinha pena da defunta, mas ela não sabia secar erva, sachar milho, fazer vindima. Aquelas mãos tão perfeitas nunca tinham amassado pão. Muito menos o pão que o diabo amassou. Se calhar já tinham tocado piano, e…

O martelo abateu-se sobre a mesa, e dedo em riste, saído por entre aqueles panos negros, riso escárnio na boca sem lábios, a serpente sibilou:

— Culpada.

Ela sabia, finalmente chegara ao fim. Apostara tudo e tudo perdera.

— E por não mostrar arrependimento de tão horroroso crime, vai cumprir, vinte e um anos e oito meses de prisão maior.

Não ouvia o bichanar no tribunal, quando caiu sobre ela a sentença final. Foi de imediato transferida para a Penitenciária de Lisboa, por questões de segurança. Era o fim.

Sofreu o enxovalho da prisão, triste e sozinha. Envelheceu, como que mirrou e ao fim de todos aqueles anos, regressou à sua aldeia.

Onde nunca fora feliz, mas podia respirar o sol da liberdade e sentir o amor dos pássaros que debicavam as cerejas amarelinhas com nódoas de encarnado…

 

Camborio Refugiado

 

LADINA V

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O plano de fuga tomou forma, logo que se apercebeu, que menos uma grade na janela e uns quilos no corpo, tinham a forma da liberdade.

As raras visitas, com grandes cunhas nos funcionários judiciais e pouco agrado de carcereiros, terminavam sempre em choradeira.

— Coitadinha, eles matam-te de fome.

— Sr. José, a coitadinha está tão magrinha …

— Sr. José, vele por ela que pode ficar tísica.

Um dia chegou o resultado de um sussurro na orelha da visita amiga e foi pelo decote que desceu a serra, qual pomba em liberdade no seu pensamento.

A autópsia era demorada, mas já o não deveria ser o resultado, o julgamento e o veredicto final:

— Culpada - dedo em riste e olhar flamejante, saído por entre aqueles panos negros.

Ninguém a reconheceu ao amanhecer, aquele esqueleto dançante, metido entre roupas de gigante. Quantos quilos lhe valeram a liberdade …

A amiga também não faltou com a ajuda, e duas horas de mula, um ribeiro a transbordar, quedas e silvas, sabor de se sentir livre. O caldo de farinha e couves, entre linguajar diferente, era um verdadeiro manjar, mas com o corpo habituado a pouco ou nada ingerir, acentuou-se. Demais sabendo-se um peso para aqueles amigos, pobres dos mais pobres, mas que tanto tinham feito por ela.

Chegar á cidade e falar a sua língua era o seu desejo, que semanas depois viu comprido, depois de muito penar por montes e vales que a justiça não a esquecera.

Surpresas lhe estavam reservadas. Seu porte altivo tinha regressado e o seu peito a ser cobiçado. A cidade, em tudo uma desilusão. Era uma vilazinha, um pouco maior que a sua. Os tostões acabavam-se, e havia que acautelar o futuro. Depressa se apercebeu que sem dinheiro voltava á velha saga e se não caía nas mãos deste, era nas daquele.

De senhor a azeiteiro, de polícia a ladrão, não havia olhos que a não tivessem cobiçado. E antes cair diante da careca gordo, forrado a notas, do que farda ou vadio. Mas despercebida não passava e as autoridades actuaram.

 

(continua)

 

LOJA DO CHOCOLATE

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Os assuntos dos jornais que o João Gabriel distribuía vindos pela carreira, do Porto, eram comentados por algumas pessoas grandes, não muitas. Os assinantes eram poucos, comerciantes, alguns funcionários públicos e um ou outro lavrador mais abastado. A rapaziada miúda comentava o que via no cinema e os jogos de futebol do Sport Club Melgacense. O futebol das cidades, aliás os jogadores, eram do conhecimento quando o Sr. Hilário vendia na sua loja a colecção dos caramelos. Os mais velhos que tinham acesso à revista STADIUM que alguém assinava, é que falavam em Futebol Club do Porto e Sporting Club de Portugal. Nicolau e Trindade foram nomes bastante comentados como grandes corredores de bicicletas. Mas o que importava mesmo à miudagem que os deixava assanhados era o que passava no cinema. A tia Lúcia arreliava-se quando os endiabrados sobrinhos resolviam fazer da sua taberna a pradaria onde passavam as caravanas ou se desenrolavam os tiroteios entre o xerife e os ladrões de gado. Os fregueses que chegavam para tomar a sua malguinha de vinho e dar ao cavaco, sem querer ficavam entre o fogo cruzado dos revólveres dos rapazes. Nunca ninguém morreu nessa disputa.

 

Num domingo depois do jantar (almoço) o Augusto do Félix convidou o seu filho tricó para irem à rua Velha ver o movimento. Era grande o aglomerado de rapazes e homens em frente à casa do Pires. Moravam, o Papá Pires com a família na casa alugada do Chico da Serra que ficava entre o quintal das Durães e a casa do Vilas. Era o Pires um dos poucos que possuíam rádio. O Atweret-kent tinha o alto-falante isolado do sintetizador que o Papá Pires colocou na janela virada para a rua. Estava transmitindo algo que muito interessava àquela gente. Transmissão roufenha entrecortada de ruídos que só era percebida com muita atenção, daí que todos estavam silenciosos. O Manelzinho, admirado, perguntou ao pai o que estava acontecendo, o que aqueles rapazes estavam fazendo ali. O Augusto do Félix respondeu que estavam ouvindo o relato do jogo de futebol.

— Quem está jogando? Perguntou o garoto.

— Os de cá contra os espanhóis.

— Os de cá? o nosso Augusto, o Cerdeira e o Joaquim Puleiro estão ali! Os únicos jogadores que ele conhecia eram os da terra, do Sport Club Melgacense. Só mais tarde tomou conhecimento que havia jogadores noutras terras e eram esses que jogavam naquele dia contra os espanhóis. (O Neca Pires, num dos últimos telefonemas que tivemos lembrou que aquele jogo, acabou empatado em 3 a 3).

Raras vezes a brincadeira daqueles dois primos saía do ritmo belicoso. Só quando o Manel aparecia com chocolate é que o Rogério inventava coisas nossas. Todos os dias depois do jantar a tia Linda, a mãe do Manelzinho e irmã daquelas tias, a Lúcia e a Mariquinhas, (tinha outras tias mas moravam longe, nem todas, a tia Teresa morava na calçada perto da Barbosa), ia, então, a tia Linda de sua casa na rua da Calçada, em frente ao Hospital, ao terreno que tinham na Rua do Rio do Porto, perto da casa da tia Lúcia, a que chamavam de horta, levar a lavadura (ou lavagem) ao porco e comida para as galinhas. Com a lata da lavagem equilibrada na cabeça, uma cesta com milho num braço e o Manelzinho na outra mão, todo o dia a Deolinda ia cuidar dos animais que tinha lá na horta.

 

Nesta fase, o garoto gostava de ir com a mãe e a mãe adorava aquele filho tricó que nascera fora de época. Tinha dias que o rapazinho condicionava sua ida se a mãe lhe desse dois tostões, que era quanto custava uma castanha de chocolate que ele comprava na loja do António Fernandes, ao lado da sua casa ou na loja do Sr. Aurélio, ao passar. Todo ufano, ainda de longe, quando avistava o Rogério que estava sempre na rua, gritava anunciando o chocolate. O Rogério, muito esperto, convencia-o a não comer o chocolate por enquanto, primeiro iam brincar de lojinha e, lógico, que o chocolate seria a mercadoria principal. Com outras bugigangas, geralmente pedras ou objectos sem uso de casa e o chocolate. O Rogério montava uma loja, pedacinhos de telha, o dinheiro, comprava tudo o que o outro tinha na mercearia incluindo o chocolate. De tal modo fazia render a brincadeira, devolução de mercadoria, engano no troco e outras coisas, que a mãe voltava e levava o filho que se esquecia do chocolate e o ‘’tratante’’ do Rogério acabava comendo-o sozinho.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

LADINA IV

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Cada vez mais branca, cada vez mais magra. Só o seu porte de grande senhora não encolheu dentro do caixão mais estreito da vila.

— É o mais belo, o mais florido … a dar ouvidos a todas as línguas da vila.

Os parentes barafustaram porque o próximo casamento do senhor já estaria marcado.

— Sim, marcado e com a criada – dizia a voz do povo.

— E antes da criada chegar ela era saudável e ninguém lhe cobiçava fortuna.

— Morreu envenenada.

— Mataram-na.

— Queremos autópsia.

Era realmente a voz do povo a fazer-se ouvir.

Que barulheira! Até parecia que morrera o rei (desculpem, mas sou republicano).O barulho foi tanto ou tão pouco que logo a GNR se pôs em campo para apanhar o autor de tão hediondo crime.

E, enquanto os valorosos guardiães da sociedade venciam as dificuldades da serra, Ladina enfrentava as fúrias amorosas do seu “prometido” esposo, com o olhar fixo nas vigas de carvalho do quarto da cama grande, quem sabe, traçando, desde já, o destino do ainda seu senhor. Quando este, já saciado, gozava as delícias de um merecido descanso, ouve-se o ladrar dos cães, a vozearia da criadagem, o tilintar de ferros.

Senhor à guarda do cabo, alto e espadaúdo, como convém na autoridade, cabeça de rato bem acentuada por raros pêlos eriçados do bigode regulamentar, e já Ladina, meia vestida meia por vestir, uma mão segura as saias, outra a matilha, corre desabrida pelos campos. A repousar da corrida, ofegante, cabeça entre os joelhos, costas apoiadas num palheiro, é surpreendida por dois soldados que lhe iam no encalço.

Segura pelos braços entre os dois seguia, cabeça bem levantada, peito a arfar; parada militar, tão certo era o passo. Um baixo, gordo, seboso, careca, que o boné e restante fardamento não deixam mentir. Outro, fininho e baixo quanto baste, levemente atrapalhado com a figura meia composta daquela que conduziam, gritava com voz aflautada:

— Vamos, vamos …

Ao atravessar o pinhal, Ladina estacou, olhos nos olhos de um e outro, e falou:

— Por favor preciso de parar.

— Pararás quando chegarmos – foi a resposta – agora é sempre a andar.

Sem os desfitar, ela atirou:

— Sou mulher e não sou como vocês, voltem só as costas para eu me agachar. Afinal são dois homens e com armas, e eu não penso fugir.

Os soldados da GNR e o olhar de Ladina … O olhar venceu. Quando voltaram as costas, porque a espera era longa (daí vem o olho de lince característico desta força militar), de Ladina nem rasto. Fugira.

Correu, saltou, esfolou-se, até ser vencida pela fadiga.

Familiares da defunta e forças da GNR encurralaram-na.

— Finalmente presa – pensam uns.

— Tenho que fugir – pensa a outra.

Cadeia da vila e para ela cela especial.

 

(continua)


UM ABRAÇO CELTA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Este trabalho de recolha resulta de uma navegação na net, nada pré definido.

Dele só emana a minha vontade, de Alto Minho e Galiza, um só povo, uma só nação. Utopia, talvez, mas o sangue assim o reclama.

E a CULTURA também.

 

Collèccion de CANTARES GALLEGOS

Consello da Cultura Galega

Sección de Língua

Santiago de Compostela, 2000

 

Museo de Pontevedra

 

 

RELIGIOSAS

 

Miña Madre d’á Peneda

Funll’á barrer á Capilla,

y-éla d’ó alto me dixo:

“Dios ch’ó pague miña filla”. (18)

 

(18) Trátase dun dos santuarios de máis sona tanto no sur de Galicia como no norte de Portugal, onde está situado, na aba sur da serra da Peneda, a uns 28 quilómetros de Melgaço por estrada.

 

MORALES Y SENTENCIOSAS

 

Português, no-me ronques,

non gastes tanta parôla,

que xa fun á Portugal

é Portugal no-me namora.

 

 

AMOROSAS

 

Santa Lucia querida

á d’ó camiño real,

traédem’ó meu queridiño

d’á raya de Portugal.

 

 

LOCALES Y DESCRIPTIVAS

 

Miña Virxen d’a Peneda,

d’a Peneda, Penediña;

entrei pol-a porta grande

é salin pol-a pequeniña.

 

Miña Virxen d’a Peneda

vel’ei vên ó voso dia;

á cinco d’o mês d’Agosto

ê á vosa romeria.

 

Si ó vento que vên d’abaixo

viñera d’ó Vendabal,

trouxeram’unha noticia

d’á Raya de Portugal.

 

Portugués, Portuguesiño,

Portugal non me namora;

aunque Portugal ê rico

non ll’e podo dar parola.

 

Heime d’ir á Portugal

aunque sea por un mês

para que me diga á xênte

vel’ahí vên ó Portugués.

 

Ti, Portugués rabeludo,

bota fora de Galicia,

vel’ahí vên ó nosso Rey

c’un vigote de curtiza.

 

 

Cantares Gallegos

 

coleccinados por

 

JOSÉ CASAL LOIS

 

 

 - Premiados –

com el premio otorgado por el Exemo

Sr. Dn. Raimundo Fernandez Villaverde

en el Certâmen Literário celebrado

en Pontevedra en Agosto de

1884

 

Recolha efectuada em www.consellodacultura.org

 

Cambório Refugiado

 

LADINA III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Mas a história vai ser minha. E foi. Ai, se foi!

A minha Ladina retirou-se para a serra, não longe da vila. Casa recatada, marido e esposa com bens terrenos e outros em papel de crédito; algumas (muitas) notas no banco. Labuta, de sol a sol, como criada de família, que para os trabalhos caseiros outros haviam.

Nos campos e pinhais, gente da aldeia deixava o suor na camisa, mesmo em tempo de neve, para que o sustento da casa não faltasse.

E ela! Bela, mulher de cuidados extremos, não parava. De vela acesa em cada canto, à braseira na sala e no quarto do casal, os lençóis de linho e mantas de grossa estopa, tudo era um brinco. Raio de sol fugidio que entrasse em casa, grão de pó não se via.

— Tudo tão limpo! Parece que foi Deus que a enviou. – Dizia a esposa para o marido.

— Realmente. Comparada com as moças da aldeia que cá trabalham parece um anjo. A água sempre límpida, nem um grão de pó onde quer que entre”. – Retorquia ele.

Veio a Primavera e os fenos cresceram. Uns serviam para o gado, outros, no barraco encontraram lugar e outros ainda de leito serviram a amo e criada. Quanto mais feno cortaram, mais o desejo e luxúria em casa entraram.

— Blasfémia – gritaria quem soubesse o que se passava no quarto do senhor entre os lençóis que a criada alinhava. De um lado, uns olhos de amor, de prazer … este corpo, estas mamas … o rei deste corpo sou eu. De outro, uns olhos de ouro, ouro de lei a luzirem.

— És igual ao outro, mas passo de criada a senhora e desta vez não me apanham.

Depois do jantar, junto ao oratório familiar, um – Deus nos guarde, até amanhã – um olhar piedoso e a prece ainda nos lábios, entre olhares de desejo e pecado. A senhora retira-se para o seu quarto. Se eu pudesse vê-los nesses momentos! … Talvez me atirasse de cabeça para a polícia e esta história acabava aqui. Talvez, eu … mas o certo é que nada vi.

E aquela a quem os criados conheceram como senhora passou a ser o anjo da aldeia. Aquele rosto, naquele corpo magro, banhado pela luz do fim do dia, antes que o sol se ponha, realçava a palidez de tal forma que já se sussurrava ser de prata. Só mais tarde descobri que era de morte.

Após a oração nocturna, um chá para descansar. Se calhar cidreira … tília de certeza que não havia na aldeia, mas outras ervas não faltavam. Nem o vão de escada, dormitório da criada, quando os calores apertam e a senhora dorme …

— Desgraçaste-me … e agora?

Tão grande foi o espanto que seu amo e senhor não abriu a boca. Ou por outra, não a fechou que aberta estava ela.

— Esqueces que és casado? Que fizeste de mim demónio? Para onde vou viver com um filho teu nos braços, ou achas que ela não sabe? – Quase sem respirar continuou a metralhar, não dando tempo a que ele reagisse:

— Julga-la cega, por ventura? Olha-te ao espelho. Quando vês as minhas mamas és pior que o cobridor da quinta. E ela sabe-o.

— Que posso fazer, sabes que te quero, que me importa a mim ela?

— Acaba-se com ela … Santa ignorância …

— És capaz disso?

— Fico sempre contigo na cama grande? Vou ser a mãe dos teus filhos?

— Fala baixo, pode saber mas não ouvir.

Do pote que aquecia na lareira, tirou a água para o chá nocturno da senhora.

— Leva, leva. Ela agradece e dorme mais descansada.

Durante semanas o chá passou da mão da criada para as do patrão com um beijo fugidio, até aos lábios da cada vez mais branca senhora.

 

(continua)


LADINA II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Um crime!

Do que eu precisava era dum crime!

E, na minha terra, com uma mulher como a do filme…!

E que acabasse viva, é claro! E eu a desvendar o mistério. Do grande César a grande frustrado foi um passo. Dois, três meses depois … espiolhados os maus e os bons, hereges e beatas, nada. Absolutamente nada. Tudo limpo. Mas desistir nunca. E a glória, o grande dia, o abre-te Sésamo, surgiu:

Dia de festa na vila, o povo desceu a serra e foi desaguar nas ruas tortuosas a que chamam direitas, vestidos a preceito, com grandes samarras, alguns calçados e chapéu na cabeça. Se calhar o negócio de sabão tinha rendido bom dinheiro nessa semana. Não cheiravam a vaca, estrume, porcos e galinhas, a patos, se calhar pareciam faisões, pavões e outros bichos que tais, mais vistosos mas não sei se menos cheirosos …

Encostado a uma esquina da igreja, boné e óculos escuros, orelha arrebitada, logo dei com aqueles dois: velho de sessentas ao lado de uma morena, cabelo negro e viçoso, mamas a gritar ais e uma cinturinha … meu Deus! Nem a roupa grosseira destoava naquele corpo. O velho, bem, o velho baba-se, não sei se da idade, doença ou do calor que vem do lado. Jeito de filha não tem e, de certeza, que não me fogem. Só faltou não aparecer em casa para o almoço, porque nem na tasca, onde manducaram uma bucha, os larguei. No meio da confusão todos os gatos são pardos e ouvir conversa de outros não é difícil: 

— Eu gostava de uma menina, grande e bonita como tu.

— E se for um rapaz, com a força que tu tens? …

Uma boca babada de velho e um olhar de desprezo de rapariga! A escolha está feita. A aldeia não é longe, controlá-los não deve ser difícil. Foi, foi. Foi difícil e molhada! Até que um dia, já de autêntico desespero, atirei uma olhadela mais afoita pela vidraça suja de pó e fumo da candeia e o que vi foi de bradar aos céus. Que maravilha! Podre de boa. Só faltava tirar o saiote, mas eu não despegava os olhos daquelas mamas. Nem as melhores castanhas da terra se pareciam com o tamanho daqueles mamilos. Quando tirou o saiote, então fiquei branco, ia caindo do calhau onde estava empoleirado.

A barriga … a barriga era de trapos! Trapos tão bem enrolados que nem a nossa bola de domingo. O crime! O crime tal qual Caim o deu ao mundo. Ela vai fazer o velho … o velho está feito … - pensei.

Está, está, dias depois no hospital ele e ela de filha nos braços.

— É da idade. Com uma mulher daquelas! Devia era ter juízo … – comentavam.

E eu a correr entre a aldeia e o hospital da vila, onde tinha entrada franca devido ao funcionalismo público familiar, lá fui descobrindo uns trapos queimados no quintal e uma recém-nascida, que visita no hospital não era demorada e, na aldeia, de casa não saía. O velho “esticou”. Mas o crime não estava desvendado.

Logo a força da terra, isto é, das terras, trataram do caso, porque nisto de heranças aparecem de todo o lado com cinquenta razões qual delas a mais forte. Ao fim de umas horas larguei o meu poiso, pois nada me prendia ali.

— Já sei a quem compraste a miúda - berrou um.

— Sim. Nós sabemos que junto ao rio nasceram gémeos e agora falta um. - berrou outra.

— Daqui não levas nada, só porrada e tribunal - ajudou outra voz.

— Ficai com essas leiras de m**** que serão a vossa sepultura, pacóvios; passastes todos estes anos a lamber-lhe o cu para conseguir o que eu fiz em meses.

Ladina falhou-lhes com raiva: – Tacanhos de m**** …

Estas palavras, passado o espanto inicial e o silêncio que em casa se fizera, foram gritadas já ela corria pelo monte fora, que o caminho não era seguro com uma matilha daquelas atrás, e forquilhas e gadanhas não servem só para o amanho da terra.

Não fui eu a desvendar o crime mas não haja dúvida que eles não passavam de tacanhos, interesseiros e só descobriram aquilo que eu já sabia há muito. Fiquei quedo e mudo à espera que a bomba rebentasse, mas o certo é que nunca mais se falou no assunto.

Partilhas e festas … ele já se foi e ela desapareceu.

Pois sim! Desapareceu, mas não da minha cabeça. Não sei se por causa da falsa barriga, se das coxas leitosas ou daquelas mamas. Senhor, que mamas aquelas! De certeza que menino da minha idade, na altura, nunca pôs olho em cima.

E eu ia remoendo entre a memória e o desejo de saber onde encontrá-la. Mulher assim não desaparece de um momento para o outro. Que esteja noutra aldeia tudo bem, mas a mim não me pode fugir. Seria traição. E eu que nunca gostei da Arrenegada nem do Miguel de Vasconcelos aceitar uma coisa dessas nunca!

Mas também foi só dar tempo ao tempo. Uns anos em cima do lombo e eis que nos encontramos. Motivo: um homicídio. Admiração, nenhuma. Pois que outra coisa senão o crime nos poderia juntar?

Uma vez mais apelei ao poder familiar do funcionalismo para saber o que se passava.

— Nada … Não sei …. Está em segredo de justiça …

Grande treta de homens, nem uma abébia … e eu a pensar que tinha amigos em todo o lado, até no tribunal.

 

(continua)


LADINA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Melgaço

 

 

Ladina!

Se na altura tivesse cabeça para as definir, como hoje, não arranjaria outro termo. Ladina!

E é bonito. Cheira-me a raposa matreira em liberdade … à terra onde nasci …

Mas nesse tempo eu não passava de um ganapo, filho de funcionário público, a quem a curiosidade não matava, mas chegou para me atirar para esta vida de andarilho da qual não me consigo safar.

Apresento-me: um sem eira nem beira, com poiso fixo num terceiro andar, detective de profissão e IRS em dia, come em pé por falta de “croas”, porque a kapital e ou o “capital” é bom para os outros. Profissão destas, sem amigos na “bófia”, não dá. E amigos eu tenho, felizmente nenhum herdado da tropa que não fiz, porque para Angola e em força nunca deu de comer a ninguém. Chamar chuis caceteiros a todos eles era ofensa a alguns a quem aperto os ossos. Amigos nos copos e na profissão.

O não conhecer África e ter o atrevimento de falar de uma terra que não conheci, perdoem-me os que lá se encheram … Aos feridos e estropiados da guerra de certeza que lhes saco um sorriso e àqueles que, roupa só a que a tropa dava e tratar das santas couvinhas era tudo, de certeza que me insultam. - Atão não era o país que estava em causa? Mas voltemos à minha vida de bófia  privado e vadio. Aqui começou a borrasca porque depois da bonança…

De curiosidade de puto a pseudo detective mais tarde, a experiência arranjada por entre milho, couves e vinhas e a corridinha do dia-a-dia na grande cidade, não foi um passo, foi um sonho. Sonho! Maldito, diga-se, que isto de andar dias, semanas e meses atrás de bruta fabiana de trinta e dois anos de idade, 90-55-89, e de quem o senhor director de cinquenta e cinco, barriga proeminente, não só desconfia, mas quer gozar os prazeres proibidos de saber o corno que é, não só gasto solas como atiro com a cabeça para outro lado, ao ponto de não saber se satisfaço o cliente que entra com as “lecas”, ou se é o gozo de descobrir até aonde elas chegam.

E pensar que os descontos para a segurança social ainda vão parar ao bolso de outro parceiro e, na volta, a “massa” paga não chega para os curativos, se a coisa azeda! Bom, foi a vida que escolhi. Será que escolhi? A curiosidade, o meter o bedelho em tudo, o chico esperto da vila, atiraram-me para isto? Verdade seja dita que tudo começou de pequeno.

Andava eu todo vaidoso com botas de cabedal que o velho tinha comprado em dia de festa, boné de flanela e óculos de sol que o avô, músico nas horas livres, latoeiro de profissão, com um manancial de namoradas a quem servia e se servia na pequena oficina, entre pingos de estanho e uns canecos para a próxima vindima, distraidamente esquecera. O meu espírito detectivesco já me tinha levado a coleccionar informações do mais alto valor, desde capoeiras sem guarda, até uvas de mesa a mais de cem metros da casa do caseiro.

No rol das confidenciais tinha, em carteira, a identidade de dois marmanjos que entravam a horas pouco recomendáveis em casa de moças já entradotas e sem namorado conhecido. Sabia a melhor maneira de dar a volta aos matraquilhos sem a patroa desconfiar que a moeda de cinco paus que ía para trocar em moedas de dez tostões era sempre a mesma. Obrigado general que, além de libertares a França, contribuíste para os nossos campeonatos com a “peça” de dois francos. Mas isso não chegava para apaziguar a minha paz de espírito. Queria mais e mais mas não sabia o que havia para descobrir.

O Cinema da terra deu-me a solução. Quinta-feira à noite, acompanhado da mamã, cumpriu-se o ritual: bilhete não se pagava; lugar cativo no balcão central; no écran Hitchcok “amanda-me” com Psico. Se o “Botas” soubesse teria caído da cadeira mais cedo…

 

(continua)

 

O TI PIRES

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Naquele tempo as crianças brincavam em função do que viam no cinema, e o cinema era a principal distracção e fonte de cultura naquela época e naquela terra. Uma vez por semana, ao domingo à noite, quando havia luz ou as fitas chegavam a tempo. Os filmes que chegaram a Melgaço já tinham sido vistos em todo o Portugal há bastante tempo. Diziam que o Pires só alugava fitas velhas que eram mais baratas. Eram frequentes durante a projecção as interrupções, além das necessárias para trocar o rolo a fita rebentava e provocava assobios e sapateados da plateia, principalmente as pessoas da geral. O Salão Pelicano, na sua fase primitiva era dividido em três categorias, a geral do meio do salão até ao palco, a superior do meio para trás e o balcão em cima, uma galeria encostada à parede esquerda e à parede de trás. A geral era de bancos corridos para dez pessoas onde sempre cabia mais alguém, a superior de cadeiras de madeira assim como o balcão. Nas noites de cinema, perto da bilheteira que era interna, juntava-se a maior parte dos rapazes da terra, filhos de gente humilde que não tinha dinheiro para aquela extravagância. Ficavam ali a pedir a uns e a outros que os deixasse entrar com eles ou esperando a distracção do porteiro para escapulir lá para dentro. Essa distracção sempre acontecia quando o pedinte era parente ou amigo, como no caso do Rogério. No verão, tempo de férias, o Dr. Juiz Pinto, conselheiro de Estado, residente em Lisboa, vinha para a sua vivenda na vila de Melgaço. Os rapazes ficavam todos contentes quando o Senhor Doutor Juiz Pinto aparecia. Justava com o Pires um preço especial para deixar entrar toda aquela malta. E lá entravam vinte ou mais rapazes que sentavam no chão do palco, de lado para não atrapalhar a visão da plateia, com a cara quase enfiada no lençol que servia de tela para a projecção do filme. Os filmes sempre causaram furor naquela rapaziada. Dos cinco anos até que começavam a namorar firme, o único tema para conversa ou para brincar era o que aparecia no cinema. Buck Jones, Frede, Ricardito, Tom Mix, Tarzan e as Cruzadas. Ah, as Cruzadas, que delírio provocou na garotada aquele filme. O Rogério assistia ao cinema porque era primo do porteiro da geral, o Toninho do Augusto do Félix e o Manuelzinho, além do irmão do Toninho era filho do bilheteiro o dito Augusto do Félix. O Papá Pires como era conhecido na intimidade, pioneiro do cinema no Alto Minho, era o empresário. Toda a aparelhagem para a projecção dos filmes fora feita por ele, os componentes que ele não podia fazer comprava-os no Porto ou Lisboa e às vezes em segunda mão. Isso tanto no na fase do cinematógrafo mudo como depois no sonoro. Era o Pires, naquela época, o cientista das redondezas. Entendido em tudo e arauto das do progresso. Todas as novidades da técnica e da ciência se instalavam naquela vila através do Pires: automóvel de praça, serviço de alto-falantes, atelier de fotografia, mecânica, o gramofone, gramofomola, solda de oxigénio e rádio. Tinha uma oficina particular com todas as ferramentas existentes na época onde fazia o que lhe viesse à cabeça ou o que fosse necessário para ele ou para os outros... E entre várias invenções teve uma sensacional. O Salão Pelicano, propriedade do Sr. Hilário, comerciante da terra a quem o Pires pagava aluguer pelo uso era pequeno; a máquina de projecção ficava encarrapitada numa cabinezinha no alto do balcão no meio do público e entre outros inconvenientes produzia muito barulho com o seu trabalho. Então o Pires idealizou colocar a máquina num aposento lateral, uma sala onde às vezes se faziam bailes. Foi feito um buraco na parede para deixar passar o facho de luz que incidia num espelho pendurado no tecto que por sua vez projectava-o na tela fazendo um ângulo recto. Com isto acabou o ruído no salão, a projecção ficou melhor pois passou a haver mais distância entre o projector e a tela e os operadores tiveram mais espaço para se movimentarem. O resultado foi esplêndido e elogiado por quem entendia do assunto e Alfredo Chastre passou a ter ingresso grátis pois o espelho com as dimensões ideais era dele e o emprestava nos dias em que havia fita. Como íamos dizendo, o Papá Pires era o empresário e o Augusto do Félix, o alfaiate, seu vizinho e amigo era o bilheteiro e os filhos deste, o Toninho e o Gú, eram os porteiros e em troca dos Serviços prestados graciosamente toda a família entrava de graça no cinema... O Augusto do Félix tinha até um lugar especial entre a geral e a superior com cinco cadeiras que às vezes comportavam mais de dez pessoas. Por isso o Manelzinho, desde que se lembrava de existir sempre assistira ao cinema. Pequeno, de colo, chorava nos filmes do Tarzan quando este lutava com os leões na floresta. E o Manel e o Rogério quando não brincavam de guerra medieval, brincavam de cow-boys. Os revólveres eram as chaves que tiravam das fechaduras, aquelas chaves de ferro forjado grandes e pesadas que se prestavam às mil maravilhas para aquela brincadeira. Tinha a chave da porta dos fundos que devia pesar mais de meio quilo, era a arma do Xerife que invariavelmente era o Rogério. Nesta época deviam ter seis e oito anos, o Manel era o mais novo. A tia Lúcia reclamava quando os via arrebanhar tudo o que era chave e depois da brincadeira deixavam espalhadas em qualquer lugar. O Manel ficava cismado porque a tia se aborrecia se elas não tinham utilidade a não ser para brincar, nunca vira as portas fechadas com a chave, até a porta da rua fechada na hora de deitar apenas se fazia com um trinco, a tranca vivia ao lado também sem utilidade. Coisas de gente grande. Se calhar noutras épocas havia muitos ladrões.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço 

 

ERA ASSIM MELGAÇO II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Ao lado, os jogadores de sueca tinham acabado e a confusão era total entre o riso de gozo dos que tinham ganho e a disputa dos que tinham perdido.

— Tu és um parvo, não sabes jogar – berrava um ao outro – Se tivesses vindo às copas quando eu te fiz sinal, tínhamos ganho à larga!

— Bem, por hoje, chegou de lição – disse um dos vitoriosos – Ide “encostar a barriguinha ao balcão”, ide.

O Nega, profissional, já tinha as contas feitas. Pagaram e foram-se.

Na televisão, o hino espanhol fez-nos olhar para o relógio. Já passava da meia-noite. Nós também não íamos tardar em ir embora. Estávamos bem quentes. O Zé juntara-se ao Rui. E o senhor João?

O Calceteiro levantou-se e dirigiu-se para a sala de jogos, desculpando-se com um “se me dão licença” quando passou entre nós e o Rui. Ia à retrete, depois da sala de jogos.

Foi neste momento que o Rui, depois de se certificar que o homem fora mesmo à retrete, entrou em acção. A ocasião era boa demais para deixá-la passar. A rapidez com que agiu era a prova de que a cena fora premeditada. Pegou na cerveja do João Calceteiro que estava quase cheia e disse ao Zé para lhe deitar água noutra garrafa de sagres até ao mesmo nível, mais ou menos. A cerveja ficou guardada, e a sagres com água posta por cima da mesa do Calceteiro. Olhou para nós com ar de patife e encostou-se ao balcão, gigante no canto da boca. O sujeito fora lançado. Agora era só questão de tempo. O Nega apagou a televisão e a conversa retomou, sem interesse. Que só havia festas, que os padres eram papadores, a revolução, o frio, já não nos dizia nada. Os momentos seguintes iam, certamente, ser os mais importantes da noite: momentos revolucionários.

O senhor João chegou finalmente. Era do género a aguentar horas, mas quando mijava, mostrava que mijava. Sentou-se, posicionou bem as nádegas e cruzou as pernas. Olhou para nós, sorridente, como sempre, e, com a ponta dos dedos, acariciou suavemente a confidente e ingrata sagres. Estava-se bem ao quente, na companhia de uma sagres fresquinha. Para ele, fresquinha era o adjectivo inseparável de sagres. Não o perdíamos de vista sem olhar directamente para ele. Nenhum movimento, por ínfimo que fosse, nos escapava. A ânsia punha-nos nervosos e já não sabíamos o que dizíamos.

Até o Rui e o Nega diziam o que lhes vinha à cabeça.

— A culpa também a têm os “franceses” que, quando cá vem no mês de Agosto, só querem festas e comer. Parece que os matam à fome lá por fora.

O Zé Nega percebera tudo. Os parvos é que não.

A adrenalina, já alta, deu um pulo: o senhor João deitara a mão à sagres, enlaçando-a com meiguice. Ficamos coalhados no homem. Levantou-a lentamente (era tarde, estava “carregado”) e, inclinando-a, encaixou, como um trompetista que se prepara para executar um solo, o gargalo nos lábios com mestria. Só engoliu uma golada, pousando imediatamente a garrafa na mesa sem a largar. A careta que fez era inefável. Se fosse lixívia, tinha de certo reagido igual.

Ninguém mexeu nem deu mostras de estar a curtir a cena. A coisa não tinha acabado. Sem tirar os olhos da traidora garrafa, fez estalar várias vezes a língua na boca. Que estaria a pensar? Que se calhar já não tinha sabor na boca? Ou que fora uma mera impressão? Tirou os olhos da garrafa que mantinha agarrada e passeou-os, lentamente, por nós. Nada notou de anormal. O Nega falava para o macaco e nós, para não estarmos calados. Pousou novamente o olhar na ingrata. O nosso paroxismo estava no auge.

Precisávamos de rebentar. Se a coisa se prolongasse, estragávamos tudo. Mas não. Novamente, com calma, como quem sabe que há engano, encaixou o gargalo nos lábios e deu outra golada que fez descer imediatamente. A reacção foi brutal: sem querer, bateu com a cerveja por cima da mesa, ao mesmo tempo que esboçava a indescritível careta. Desta vez não tinha duvidas, alguma coisa estava errada. Como quem incomoda e apontando para a cerveja como se esta tivesse a sarna, disse a sorrir ao Zé Nega:

— Ó senhor José, esta “cerveija” está traficada!

Foi a faísca. A adrenalina contida tinha de explodir. Rimos, rimos e rimos como nos fazia falta rir. A visão da cara do senhor João Calceteiro provocava-nos um riso convulsivo. Sentado à mesa, olhava para uns e para outros, sempre a sorrir, sem perceber o que nos tinha pegado. Nós, com as imagens sempre a desfilar na cabeça, riamos sem parar. Só quando o Rui pegou na cerveja que o Nega guardara ao fresco e lha trocou pela outra, é que o senhor João percebeu. Depois de um beijo na sua fiel companheira e para provar que era bom jogador, virou-se para nós e disse a sorrir:

— Vocês são uns “malãodros”…

Dez minutos depois, estávamos a beber a última para o caminho. Até o Zé Nega saboreava uma tuborg, sua preferência. Com o frio e o nevoeiro que devia estar lá fora, e cheios como estávamos, a revolução podia passar que ninguém se lhe juntava. Agora é que estávamos bem. Uns instantes de franco riso livraram-nos das contradições, dos cadilhos, dos aborrecimentos diários. Não nos rimos do homem, mas sim com ele. A sua compreensão só o honrava. Momentos destes contribuíam para gostarmos mais da Vila, apesar de fria, solitária e deserta.

Quase duas da madrugada! A ronda dos guardas não ia tardar. Agora que nos sentíamos tão bem! O Jaime tinha razão: a Vila precisava de um café que abrisse quando os outros fechavam. Eram horas de ir para a cama cuja roupa, como todos os Invernos, estava glacial. Era assim Melgaço.

 

Esta história, o nome das personagens, assim como o nome dos cafés e da vila, são totalmente fictícios. Só o meu nome e os das marcas de cerveja são autênticos.

 

A. El Cambório

 

ERA ASSIM MELGAÇO I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Melgaço

 

 

Já passava das dez da noite. O frio que estava era acentuado pelo nevoeiro rasteiro que não deixava ver nada. Calhava bem porque não havia nada para ver. Era Inverno e as ruas da Vila estavam desertas. O Café Estrela, de onde vínhamos e onde tínhamos bebido umas super bock, estava tão deserto, mas bem mais quente do que as ruas.

Fomos para o café do Zé Nega com o fim de evitar que a humidade nos entrasse nos ossos. Também íamos porque, como “socialistas”, gostávamos de dar a ganhar à maioria dos comerciantes possível. E também íamos porque, assim, ninguém ficava a saber com certitude quantas cervejas tragávamos.

Sentámo-nos à mesa junto à passagem para o snack e a sala de jogos. Na nossa frente, à mesa que se encontrava ao lado da porta da entrada, estava sentado o senhor João Calceteiro. Por cima da mesa, a amante, a confidente, a amiga, a ingrata sagres... A esta contava tudo: as mágoas, as alegrias, as dificuldades, o seu amor… Para ele, a sagres tinha uma alma, era habitada. Como uma mulher. Bastava saber falar-lhe. Eram inseparáveis. As noites encurtadas, passadas na companhia da sagres egoísta que o tinha enfeitiçado, tinham deixado a sua marca profunda: a cara, queimada pelo sol e pela sagres, tinha tantas rugas que parecia a topografia da serra de Castro. Sempre risonho e bem disposto, o homem andava a calcetar certas ruas e praças da Vila.

Mandamos vir umas super bock (a CUF era a nossa equipa preferida), e apanhamos a revolução onde a tínhamos deixado no Café Estrela. Ao quente sonhava-se melhor. Assim devia pensar o João Calceteiro que, quando olhava para nós de olhos vermelhos, vidrados pelo sono e pela amante, nos sorria. Éramos diferentes nos detalhes, mas parecidos no essencial. Entre conhecedores há sempre respeito. Pela cara que tinha e pelos “beijos” repetidos que dava à sagres (bebia sempre pela garrafa), ia, certamente, a caminho da segunda bebedeira do dia. Os vidros baços do café não deixavam ver o nevoeiro na rua. Na televisão, a espanhola, não paravam de falar. Ouviam-se, de tempos a tempos, uns berros e um barulho de murros numa mesa, vindos da sala de jogos. Estavam a jogar à sueca. Por dentro do balcão, o Zé Nega arvorava a Lacoste da praxe, uma das várias que possuía, apenas diferentes na cor. Tinha um olho nas salas e outro na televisão. A paciência era de rigor, se queria vender umas cervejas. Geralmente, o trabalho da noite era mais benéfico à registadora do que o de certas horas do dia.

A revolução já ia adiantada e o Calceteiro estava cada vez mais sorridente. Estava tudo bem. Uma sagres recém encetada por diante confirmava-o. Em quantas iria? Em quantas iríamos? Quem gosta não conta, é o que dizem. Assim ia desfilando a noite.

Foi então que a porta se abriu e entrou o Rui, SG no canto da boca, como era seu estilo. Grande e, como nos anos setenta era a moda dos sapatos com uma sola que dava pelo menos para três pares, além dos tacões em consequência, ainda maior era.

Encostou-se ao balcão, junto do Nega, e dirigiu-nos um grande sorriso. Discretamente, com a cabeça, apontou-nos o senhor João Calceteiro. O malandro procurava bobo, de certeza. Pediu um fino e meteu conversa com o Zé Nega. Estava frio, não se via ninguém. A rotina.

A humidade fora-se e agora era o calor que nos “forçava” a beber mais uns “ácidos”.

O Calceteiro também devia ter calor porque os “beijos” que dera na sagres tinham-na reduzido a menos de metade. Na sala de jogos continuavam a berrar e a bater. Lá fora devia estar cada vez mais frio.

— Então, senhor João, quando acaba de calcetar?

O Rui apalpava terreno. As dúvidas dissiparam-se-me. Se não o conhecesse, comprava-o. O homenzinho, radioso por lhe dirigirem palavra, descruzou as pernas e posicionou melhor as nádegas na cadeira. Como se impunha, foi com um grande sorriso que respondeu:

— ‘Inda tenho trabalho para muito tempo, sabe? Só o largo da “Cãobra”… ‘Inda não calcetei metade.

Havia mais de um mês que dava a mesma resposta. Não, o largo da “Cãobra” não estava para breve, não. Portanto, durante o dia, eram várias as vezes que ia estimular-se à Maria do Sabino e ao Zipe. Árduo trabalho o de calceteiro. A conversa ficou por aqui. O Rui procurava bobo, mas a coisa ainda não estava madura.

Quanto a nós, já não sabíamos onde ia a revolução nem se estávamos a falar da mesma. Tanto dava. Quantas mais, melhor. Ao lado, os jogadores de sueca começaram a berrar, mas desta vez, pelo Nega que, distraído pelo Rui, lhes deixara secar o gasganete. Depois de os servir, retomou a conversa. Tinha de ser interessante para ele se esquecer dos jogadores. Levantei a orelha.

— Eu já lhes disse – rezava o Zé – que não dava um tostão para as festas. Se me pedem para os bombeiros, o hospital, ou coisa assim não há problemas: dou. Mas festas? Já viste quantos contos fodem em foguetes? Para quê? Para fazer barulho?

À televisão, sempre na espanhola, ninguém ligava. O senhor João olhava para a cerveja. Estava longe. Se calhar, a calcular quantos paralelos lhe faziam falta para acabar o largo da “Cãobra”.

— No mês de Agosto, chega a haver três festas no mesmo dia. Os gajos vem das aldeias todas pedir dinheiro aqui à Vila – acrescentou o Zé Nega.

O Rui acendeu mais um gigante, deu uma golada e lançou-lhe:

— A culpa também é dos padres.

O Rui conhecia-lhe as fraquezas.

— Esses? Esses são os que mais ganham. Ganham com as missas e as procissões. E vão encher a pança à melhor mesa da aldeia! Papadores!

O Rui sabia, como nós, que o Zé Nega nunca gostara, mas mesmo nada, dos padres.

 

(continua)

 

CORRESPONDÊNCIA IV

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Adormeci.

Já não era sem tempo e são 11.30 da noite quando escrevo.

Marchou uma boa meia dúzia de bolos de bacalhau com um tinto a acompanhar. Vou voltar para a festa esperando por novidades que, se calhar, não aparecem, mas como até ao lavar dos cestos é vindima... força rapaz, em casa é que não.

Foi uma noite muito forte.

O tinto escorria que era uma maravilha.

As postas de sável de escabeche, era de lamber os dedos.

A noite durou até às três e tal. Evidente que estou a escrever no Domingo, depois de um cozido à Portuguesa. A mãe cada vez cozinha melhor.

Vou tentar dormir um pouco, tenho o corpo todo moído.

Por todas as ruas da vila encontro caras que são desconhecidas. O sotaque, seja de Braga, Viana ou Porto, é inconfundível.

Há turismo em Melgaço e esta terra finalmente foi descoberta. O que será na semana que vem?

O sino lembra-me as horas, mas o que me leva a parar é a proximidade da Mina (Mascote). Oitenta e muitos e chata, porque quase surda, não dá para aguentar.

O som dos cascos dos cavalos continua.

Como será possível que ainda haja gente que não gosta desta terra, que só sabe dizer mal? Criticar é construir, é melhorar, dizer mal é a arma dos fracos.

Vou passear um pouco mais.

Só tenho pena que as tílias ainda não estejam em flor, mas se o São Pedro já não controla o tempo como é que ele me vai satisfazer os desejos?

O calor apareceu de forma implacável. É difícil de aguentar e, ao mesmo tempo, obriga-me a pensar a toda a hora na Paula. Tal a qualidade das meninas que aparecem por toda a parte. Ser forte numa hora destas é difícil, mesmo muito.

Afinal o sol foi-se embora.

Chegou a chuva no momento em que começou a actuar o Rancho de Paderne. Nome fictício, pelas palavras do seu director, uma vez que é composto por 54 elementos, oriundos de 9 freguesias do Concelho.

Acaba de rebentar uma trovoada. O barulho já se sobrepõe à música. Isto continua a prometer, o entusiasmo continua e pessoal a arredar pé é coisa que não se vê. Parece que têm os pés colados com cimento. Depois do Rancho de Paderne, dizem os Srs. da organização que vai haver desfile de moda. Pelas moças que já vi, nem Ipanema.

Ter discernimento para tanta alegria é difícil.

À pronúncia do Porto junta-se um nome: Alvarinho. Só a lampreia a dez e doze contos é que não dá muitas hipóteses. É pena, mas o que é bom e raro tem que se pagar.

Velhos amigos, ou antes amigos velhos, não têm faltado.

Arranjei mais um acompanhante: uma tigela para o amigo Ângelo Ribeiro, alfaiate, malandro e bom amigo... a melhor colecção “das Caldas”, de Melgaço. Está com 84 de idade mas só 15 de espírito. Nascido na Santa Maria da Porta, porque isso de freguesia de Vila é para os outros, diz ele, que fez juramento de morrer solteiro.

A confusão é cada vez maior, a alegria não pára. Alvarinho e presunto passam por todo o lado.

No meio disto tudo não há uma bebedeira ou, se há, está bem encapotada.

Não há discussões, não há desentendimentos.

A satisfação é cada vez maior.

As raparigas deixam-me de quando em quando ou, melhor dizendo, a toda a hora, sem respiração. Bela mocidade a desta festa, não sei se desta terra.

O sol voltou, cada vez mais forte.

Eles e elas são como cogumelos. Cada vez mais, mais alegria e riso.

Porque carga d’água é que o fim-de-semana acaba hoje?

Quero mais.

Apetece-me mais.

Tenho direito a mais. A minha terra assim mo exige.

Se às 7 da tarde não estiver “bêbado” (nada de borracheira) é porque os milagres não acabaram.

Em todas as caras uma pergunta: e Alvarinho?... o presunto demora?...

Deixem-me só por um dia mais, viver a minha terra, deixem-me ser príncipe e rei, imperador deposto... mas gozar a minha terra.

O trovão e a chuva regressaram. Os amigos encolhem-se debaixo da árvore mais próxima, mas a falta de humor e gozo não acabaram. Vamos esperar por mais. Chuva, muita chuva e, cada vez mais gargalha.

O pessoal desapareceu. A chuva agora é mesmo muita e ao mesmo tempo chega o frio. Estamos na serra. Calor, chuva e, agora, frio. Só os galegos não param de comer e de beber.

O sino está a bater as 7. Só faltam as Ave-marias.

A noite chegou.

Acabei de comer o resto do cozido do almoço.

Choro como um puto.

Vou sair, ver o resto da festa. É um: que será, será... só que o ritmo é minhoto.

Agora que acordei, vai para as 4 da manhã, já me sinto um pouco cansado.

Mesmo na minha frente, uma foto do meu filho.

Vou comer qualquer coisa porque o estômago já reclama.

Até já, até breve, ou até amanhã?!

 

Com aquele abraço que tu desejas,  

     

 kapital, 04.05.96


AO TIO APRÍGIO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

HOMENAGEM A DOIS AMIGOS

 

APRIGIO ABREU CERQUEIRA

E

VASCO DE ALMEIDA

 

NA DESPEDIDA DE UM, A RECORDAÇÃO DE OUTRO

 

 

S. JOÃO VEM A MELGAÇO

ACTO  I

CENA VII

 

(Entra Aparício – Misto de comerciante e Instrutor de condutores de automóveis.)

 

Aparício

— Pois é o fim do mundo para se poder levar a vida…

S. João

— Oh!... Snr… (recordando-se) Snr… Snr…

Aparício

— Aparício.

Inês

— Oh… Snr. Aparício, eu nem o conhecia… desculpe e seja bem-vindo.

(para S. João) – É o Snr. Aparício, comerciante, viajante e agora é também instrutor de condutores e, … condutoras…

Aparício

— É preciso a gente trabalhar para viver… Estou à espera de uma menina para lhe dar uma lição de bem conduzir…

Inês

— Mas o snr. Aparício também vende artigos diversos, não é verdade?...

Aparício

— Sim minha senhora, vou vendendo de tudo. Ainda agora trago o mostruário dum artigo de muito consumo…

S. João

— Vendeu muito?...

Aparício

— Não… porque é um produto que há em quantidade… principalmente entre os nossos pseudo-escritores… jornalistas… biliosos.

Inês

— Algum elixir de bom senso?...

Aparício

(Abre a mala e mostra duas telhas de vidro.)

— Isto, mas há muito por cá…

 

CENA VIII

 

Lalá (menina moderna e candidata a condutora)

— Oh!... Snr. Aparício… o snr aqui e eu à sua procura… para a lição.

Aparício

— Mesmo aqui minha menina, podemos começar…

Lalá

— Por onde principiar?... pela mecânica… pelo código…

Aparício

— Por tudo entremeado e depois vamos à prática…

 

 Refrém

 

Aparício

 

Marcha à frente,

Marcha à ré

Desembraia co’o pé

 

Lalá

 

Marcha á frente,

Marcha a trás,

Trave rápido se é capaz.

 

(repetem os dois)

I

Aparício

 

Vem aqui para aprender

A um bom carro guiar.

É preciso compreender

Por onde há-de começar.

II

Lalá

 

Creia que não tenho pejo

Dum “espada” controlar.

Eu até sinto desejo

Dum volante apertar.

 

(Refrém)

 

III

Aparício

 

Primeiro vamos às normas;

Para a lição estudar,

As leis e as suas formas,

Teremos que respeitar.

IV

Lalá

 

Julgo o que é preciso,

Cuidado muito cuidado.

Ter cautela muito siso;

Com carro pouco rodado.

 

(Refrém)

 

V

Aparício

 

Siga sempre pela direita

Se ao destino quer chegar,

E se a estrada é estreita

Guie sempre de vagar…

 

VI

Lalá

 

Tenho em consideração

As lições e sua prosa.

Vou sempre com atenção

Toda a manobra perigosa.

 

(Refrém)

 

VII

Aparício

 

Se à sua frente um galante,

Segue num lindo Pacard,

Você como é provocante,

Quere-o logo ultrapassar.

 

VIII

Lalá

 

E com toda calma então

Pisca-pisca a funcionar,

Meto logo contra a mão,

Procuro um P p’ra acampar.

 

(Refrém)

 

IX

Aparício

 

Menina tem obrigação,

Estar atenta ao guiar.

E ter sempre em atenção,

As vidas que transportar.

 

X

Lalá

 

Para me não enfadar,

Aparício oiça bem.

Quando na estrada andar,

Não dou boleia a ninguém…

 

(Refrém)

 

 

CAI O PANO

 

S. JOÃO VEM A MELGAÇO – Original de Vasco de Almeida  Música de Manuel de Oliveira

 

Até um dia

 

Camborio Refugiado

 

CORRESPONDÊNCIA III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Vou até à Orada e, já na Assadura, pelo caminho velho, com o Minho a rir-se para mim, os galos não param.

Aos pássaros juntam-se, agora, os grilos.

Vou continuar.

Já estou na Orada.

Continuo só.

Agora calou-se o galo e é um cão a dar-me música.

Os pássaros, esses, não param. Gostaria de saber distinguir os cantos mas não consigo e, de certeza, que eles sabem isso, porque o chilrear vem de todos os lados, com todos os sons...

Eu, e o Mundo,

As minhas lágrimas, e Deus.

De quando em quando passa um carro. Para uns, devo ser um turista maluco. Para outros, um louco armado em turista.

Não sei porquê mas continuo a chorar.

Esta paz, esta beleza, doem-me na alma. Porque há guerras?...

São 10.30 da manhã.

Passei a Assadura, nem vivalma e se, por acaso, há fantasmas até esses desapareceram. Vejo o Minho e telhados...

O galo voltou a cantar e os pássaros não me deixam.

Cheguei à Vila.

O que se irá passar?

O futuro a Deus pertence.

A mãe está a tratar do almoço: arroz de ervilhas inteiras com bolos de bacalhau. Se te cresce água na boca, desculpa, mas estou a escrever já na cozinha. Olho só para o ponteiro dos segundos.

O almoço não falhou.

De maravilha!

Um passeio pela Avenida e café junto à Câmara, com as lampreias, no aquário, como pano de fundo.

O que virá a seguir?

Os galegos aparecem por todo o lado. Portugueses que, pelo sotaque, não têm nada da nossa terra, também não faltam.

Já estou na Sr.ª. da Pastoriza. Sou dono da terra. Só o trinado dos pássaros faz questão em me acompanhar.

Dizer-te que a serra está linda não vale a pena.

Afinal, há tanto para ver e ouvir na nossa terra.

Vou tentar assistir à matança do porco.

Já no Largo da Câmara, a música recomeça. Mais uma vez... espanhola. Só falta o touro a entrar na arena.

Portugal português, quando?

Porque não música portuguesa? Porra! Apetece-me falar mal porque, afinal, sou estrangeiro (culturalmente), na minha terra.

A matança do porco, cumprida a preceito, da faca ao alguidar, a queima com os fachos de palha, nada faltou. A alegria em volta do porco também não falta.

Agora estou sentado em frente da Matriz, uma vez mais.

Cada vez mais caras desconhecidas. Melgaço cada vez mais vivo.

São 6.30 da tarde.

O meu companheiro, a viver na Vila todos os dias, diz-me que não conhece ninguém. Será isto Melgaço morto?

Quantos senhores de fato e gravata já encontrei hoje?

Quantos galegos já ouvi falar?

Afinal estou na minha terra e cada vez gosto mais dela.

Até sável... Na mesa ao lado um gordo, ao lado do gordo, uma senhora, boa todos os dias, mas só posso mandar um olhar furtivo, não vá dar a coisa para o torto. Atrás, os cascos dos cavalos a fazerem música.

Escrever mais hoje deve ser difícil. Já estou cheio cada vez aparece mais gente. Amigos, muitos amigos.

 

(continua)

 

CORRESPONDÊNCIA II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

A confusão de línguas, português, pseudo-português, castrejo, de Lamas, galego e pseudo-francês, é mais uma prova de força e vitalidade da terra. O intercâmbio do português e galego é a maior vitória. Mas a festa não acabou e isto é só o primeiro dia. O som rebenta orelhas e saiu o 1º lugar de chouriços, e... aí está o 2º de salpicões e gente e mais gente em frente das mesas com as iguarias, todos a viver a terra.

Acabei de jantar, um arroz no forno que só a Maria Angelina faz, e um peixe, branquinho, fresquinho até à última, mas que não é comida da minha terra. Vou sair, atirar-me para o meio deles todos, que conhecidos (desconhecidos) não faltam.

A noite foi um encanto. Todo o terreiro da praça foi pequeno para conter aquela multidão. Gente, gente e mais gente, por vezes até se atropelando. A banda a tocar, o pessoal a dançar e nas barracas a faltar braços para receber a paga do que tanto aviavam. Madrugada dentro e melgacenses não faltavam.

E os melgacenses que, às centenas encheram esta noite de Sexta, pelos vistos também não prestam, ou então, estão muito bem ensinados a fazer o seu papel, qual cãozinho amestrado de 5ª categoria.

São 7.30 da manhã.

Quase oito da manhã e só um ou outro barulho de carro, ao longe, me chateia.

A música é dos pássaros.

Um galo canta.

O chilrear dos pássaros é a minha companhia. Estou no meio dos campos. Não queria deixar de oferecer as ruínas deste canastro. Um melro, bem lindo, não quis ficar na foto. Pirou-se logo. Mas deixou lá longe o cantar dum galo.

Voltei novamente para junto do regato.

Os pássaros continuam a acompanhar-me. Sãos verdadeiros solistas, tendo por fundo a música da água que corre, corre... É a magia da mãe Natureza!

Vou andar um pouco mais. Está a apetecer um copo de bom verde branco, porque o estômago só com pão e queijo já resmunga. Afinal, não é esta a terra do Alvarinho? Uma sandes de presunto a acompanhar o copo de branco. Foi autêntica bênção de Baco. E, por cima, com um galego por companhia. Galego de Cortegada.

Como vês, mesmo com o dia a começar, esta terra não deixa de me surpreender.

Como será daqui a uma ou duas horas?

A Igreja Matriz está aberta. Vou lá pedir, à minha maneira, por todos nós. De certeza que é uma visita breve, mas sincera, ou não estivesse em terra de Santa Maria.

Um obrigado à Virgem, para que nos ajude a levar esta terra ainda mais longe.

Santa Maria da Porta é o nome da freguesia. Porque mudar para Vila?

Toda esta Igreja é minha.

Não há beatas, não há padres.

Choro.

Choro por todos os que já partiram e pelos que cá andamos.

Tenho o Santo António mesmo na minha frente.

Gostaria de ser peixe para o ouvir falar.

Não sei se as lágrimas me deixam escrever direito, mas a emoção é demais.

Aqui sinto-me perto dos amigos. Dos que estão e dos que partiram.

Para o meu querido Gú, uma Ave-maria, mais sincera que todos os discursos do Papa.

Melgaço continua deserto.

As poucas pessoas que encontro estão na limpeza de vidros e passeios, que, vender, também tem cara.

Estou sentado na Praça da República, mesmo em frente à farmácia. Casa que odeio enquanto tiver o nome Durães.

Vou comprar umas pastilhas para a garganta que está bem irritada e o tabaco ajuda um pouco (muito) a piorar.

Ainda sinto na cara as lágrimas que correram na Matriz, mas vou continuar.

Em baixo, na estrada, duas senhoras falam. Não sei se em português, se em galego, mas o tema é fácil de entender: droga – a m*rda que deu volta ao mundo e enriqueceu muitos.

Maldita a sorte que temos:

um sorriso,

um abraço,

um amigo

e, no final, um esqueleto com foice na mão.

 

(continua)


ESPADAS, ESCUDOS E CAPOEIRAS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

A batalha estava acirrada. Naquele momento era imprevisível indicar um vencedor. A luta era esforçada pois os contendores aplicavam todas as suas energias. Berravam, barafustavam, bufavam, suavam, cabelos desgrenhados e algumas mãos roxas das pauladas que escapavam ao controle.

Em outras batalhas o desfecho fora fácil, resolvido na primeira investida.

Sempre a turma que assaltava o castelo vencia, isso porque, na divisão de forças, propositadamente, o Rogério deixava os maiores do lado dele, de fora.

Mas desta vez novos elementos tinham aderido à guerra e as forças ficaram equilibradas. Também o armamento fora reforçado, além dos costumeiros cabos de vassoura que representavam lanças, das ripas de madeira feitas espadas, agora tinham a pesada tranca de madeira da porta da rua da taberna da tia Lúcia, mais algumas achas de lenha que o Miro tinha do outro lado do muro para o lume do forno de cozer pão.

O assalto ao castelo estava empolgante. Trancada para cá, estocada para lá, pragas e nomeadas de parte a parte, choramingos dos mais pequenos que não estavam aguentando mais o esforço e os arranhões…

— Agora! Empurra com força que eles já estão podriqueiros! Comandava o Rogério. Mas os defensores, fazendo das tripas coração, aguentavam firmes aquela investida. Ainda não foi daquela vez.

Além dos gritos dos rapazes, o cacarejo das galinhas apavoradas que esvoaçavam descontroladas de um lado para o outro por cima dos miúdos, as batidas no portão do castelo, tornavam ensurdecedor e horripilante o ambiente daquela contenda a ponto da tia Mariquinhas, a mãe do Rogério, lá da cozinha, gritar a plenos pulmões:

— Parai com isso canalha! Se não acabar essa gritaria, mando todos embora! Ouviste Rogério?

— Raios de canalha que vem para aqui botar a gente tola!.. acrescentava a tia Lúcia resmungando.

Algumas galinhas, de tão apavoradas, já tinham conseguido voar por cima da rede de arame para o quintal do forno. O galo, um tremendo pedrês, de peito estufado e penas eriçadas, olhos esbugalhados e esgazeados, pulava de lado, em passos miudinhos, para cá e para lá em cima do muro, esperando a oportunidade de desforra.

E a guerra continuava…

Do lado de dentro, segurando a porta do galinheiro, uma grade de madeira de pouco mais de um metro de largura por dois metros de altura, fechava a passagem entre o muro que dividia os quintais e a parede da casa. Tentando evitar a tomada do castelo pelos invasores estavam os mouros: o Manel Carrapito, o Nandinho da Pentelha, o Toninho da Serra e o João da Felícia. Este o mais velho e o mais parrudo de todos que com a tranca da tia Lúcia empancada entre a grade da porta e as pedras do muro, sustentava sozinho o assédio dos inimigos. Aos outros três competia evitar que os assaltantes pulassem por cima da porta. Pelo lado da rede, já se havia combinado que ninguém podia pular.

Do lado de fora, representando os cruzados do Rei Ricardo Coração de Leão e os seus cavaleiros da Távola redonda, estavam: o Rogério Mijanços, o Tónio da Isolina, o Toninho Perrim e o Fernando Trauliteiro.

Há mais de meia hora que aquela algazarra ensurdecedora aborrecia toda a vizinhança. Agora era Pentelha que morava no andar de cima, que vinha à janela barafustar contra a canalha. Até as mulheres que no outro lado do muro, esperando a saída do pão, começaram a reclamar da gritaria que lhes atrapalhava a conversa. Eram: a tia Maria Vilas, a Ana Toupeira, a Maria Patanéca, a Felícia do Ferrador, a Maria Mantana, a Laurinda Cascalheira e a Isabel Caçolas. A Laurinda, além de reclamar, vaticinava:

— Raios parta o diabo! Parece que esses rapazes estão adivinhando guerra.

Naquela época, a única guerra de que se tinha conhecimento, lá longe que não preocupava ninguém, era a guerra na Abissínia. Quando era comentada faziam-no com certa simpatia ao Mussolini que iria conquistar aquelas terras dos Négus para as civilizar. Ali ao lado, Espanha, a situação também não estava muito católica, dizia-se à boca pequena que uma guerra podia estourar.

A tia Lúcia não suportou mais tanta zaragata e veio de lá disposta a acabar com a guerra. Pegou o Rogério pela orelha e ralhou exaltada com os outros, expulsando-os com ameaças de tranca.

Ficaram só os sobrinhos da tia Lúcia, o Rogério que morava ali mesmo e o Manelzinho que aguardava que a mãe voltasse da horta e o levasse para casa.

Ainda ofegantes, sentados num degrau da escada de pedra que subia para os fundos da casa da Pentelha, discutiam os lances e as pauladas que acertaram alguns deles. Era convencionada que não se podia ferir ninguém, as batidas e estocadas eram fingidas a não ser quando propositadamente se batia na porta ou no muro para fazer barulho e dar certa veracidade, mas no ânimo da brincadeira, na agitação da refrega, esquecia-se o combinado e quem apanhava procurava retrucar e daí resultavam alguns arranhões e galos na cabeça. Os dois primos, analisando aquela batalha, chegaram a uma conclusão surpreendente: pela primeira vez entre eles, uma guerra acabava empatada.

Após tanto esforço, como é natural entre as crianças, estavam com vontade de mijar. O chão era de terra e faziam ali mesmo, mas o Rogério, talvez para de alguma forma se tornar vencedor, deu alguns passos e encostando-se à porta da grade do galinheiro e pelo meio dos sarrafos resolveu fazer lá para dentro, o castelo que daquela vez não conseguira tomar; foi a vez do galo! Vendo aquela minhoca dependurada esguichando, não teve duvida: veio de lá correndo desabridamente e deu a maior bicada na piroca do Rogério.

Desta vez a tia Mariquinhas, a tia Lúcia e outras pessoas que estavam na taberna, vieram correndo apavoradas com aquele guincho que mais parecia um ganido, que o Rogério soltou, bem diferente dos gritos da guerra. Todos caíram na gargalhada quando verificaram o que sucedera.

Botaram tintura de iodo que ardia muito e aumentou o berreiro do agredido. Por uma semana, o Rogério ficou com o instrumento inchado e de cor castanha.

 

Manuel Félix Igrejas

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

CAMPEÕES

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

As informações que dou do SCM são retiradas da imprensa escrita das kapitais – Porto e Lisboa – que, por vezes, escrevem e outras esquecem os resultados dos jogos dos distritais.

É por isso que, com muito atraso, mas muito orgulho, tomei conhecimento, quer pelo jornal A Voz de Melgaço, quer pela página oficial do SCM, que fomos os vencedores da TAÇA DE HONRA DA ASSOCIAÇÃO DE FUTEBOL DE VIANA DO CASTELO 2007/2008.

Humildade na vitória e honra na derrota, vamos dizer presente e gritar:

VIVA O SPORT CLUB MELGACENSE!

À equipa tecnica e direcção um abraço de parabéns e um ..... continuem rapazes!

 

CORRESPONDÊNCIA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Reconstituição (possível) da correspondência entre Fifi e Manelzinho em Agosto de 1996, a partir de memórias desconhecidas e fidedignas da época, encontradas na Central da Calçada entre facturas, guias, cantigas e pregões.

 

 

Esta é a melhor forma, de transformar uma espécie de rabiscos, a quem ninguém chama escrita, na abertura da minha visita de cinco ou seis dias a Melgaço.

Ainda não li uma linha do que está escrito ao longo destas páginas. Também te preparo para encontrares um diálogo permanente, porque se era o meu corpo que estava presente, eras tu que o vivias.

24 de Abril... A partir daqui, não sei o que são datas, só o que está escrito.

Cheguei a Melgaço pelas 8.45 da tarde. Para quem saiu da kapital pelas 10 da manhã, não há duvida que custa um pouco. É quase como atravessar o Atlântico em caravela. Sem ninguém me esperar, jantar não havia, mas logo o bacalhau começou a cozer.

Pelas 11 da noite saí para o cafezinho e tomar os ares que me hão-de pôr como novo. Passeei sozinho pela Alameda Inês Negra.

Silêncio. Só silêncio. Se calhar era eu que não ouvia o sussurrar daquelas pedras a contarem histórias de mil anos. Só com as luzes amarelas dos holofotes a baterem nas muralhas, as tílias a serem fantasmas da noite.

Apeteceu-me gritar – obrigado meu amigo – a quem conseguiu retirar do limbo em que estavam enterradas todas aquelas pedras.

A seguir foi a Praça da República. Velha Praça, Terreiro, só com as árvores em volta e a pedra que pisamos. Outra maravilha! A iluminação vinha de baixo para cima. Não estava lá para me ofuscar. Estava simplesmente a cantar a beleza daquelas árvores, tantas vezes amaldiçoadas pelos rapazes, porque nem uma castanha comestível davam.

25, o meu dia da liberdade. Recebi convite para participar num almoço comemorativo. Fui obrigado a declinar, porque já antes, o meu tio, filho de latoeiro e neto de vice-consul do Terreiro me tinha feito a mesma proposta. Obrigado amigos, mas a um tio não digo não. O restaurante era o mesmo, o que levou a que a festa fosse conjunta. Com a camisola a dizer bem alto 25 de Abril e cravo vermelho ao peito, lá comecei a discussão com o Zé: para mim, uma travessa de arroz de lampreia chegava, porque eu, tal qual o Bé, não sou de comer muito. A conversa desapareceu e as duas travessas estavam vazias.

Não sei o que aconteceu, não falo em milagre, mas que foi estranho... No fim, pareceu-me que o Zé se atirava ainda a uma terceira (sinal que nas outras mandei eu), mas já não podia mais. Café e copa foram tomados na Galiza e daí ao presunto de Ribadávia foi um saltinho.

Hoje 26, dia de feira, depois do almoço que a mãe arranjou, sentei-me num banco da avenida, que para mim é a menina dos meus olhos. Sob a ramada das tílias, vejo toda a serra, de S. Paio a Alvaredo, Parada, Gave, eu sei lá... Já não consigo identificar as aldeias da minha terra. Mas isso não me chateia, porque elas estão lá. E lindas, lindas como nunca foram. No fim... os meus amores.

Ontem à noite, estive na Casa da Cultura. Assisti a uma actuação da Escola de Música dos Bombeiros. Defeitos poderia apresentar muitos, sinceros e honestos, mas totalmente compreensíveis. As “nossas” cantoras têm voz para mais altos voos e a sonoridade do Auditório Vasco Almeida não tem grandes qualidades acústicas. Mas o que me impressionou, foi ter passado quase 1 hora para poder arranjar lugar sentado. Nem todos tiveram a mesma sorte. Público, musica e músicos, encaixaram totalmente. Talvez se puxassem mais à música portuguesa e menos à espanhola... Mas como criticar é fácil... Bom, mas a noite já passou e agora estou sentado numa tasquinha, a ouvir mais um pouco de música popular, tocada por um grupo de Melgaço.

Mais umas voltas e na parte de trás da CMM, no terreno da GNR (quem lho deu?), no meio de três castanheiros que, se não se desenvolveram mais deve ter sido pela presença da dita (isto é mesmo para rir?), fui encontrar os animais da nossa serra. Do gamo ao veado, javali, galinha-d’água ou faisão.

O calor que se faz sentir pôs as meninas com agasalhos em casa e, desta vez, é ver as moçoilas da nossa terra a mostrar toda a sua beleza, de carnes rijas, que o inverno a isso ajuda e o quase Verão abençoa. É vê-los, dos 8 aos 10 dos 18 aos 30, a rir, a gozar, a curtir a nossa terra. E ainda há quem diga que Melgaço está morto. Morto estou eu, enfiado no meio da poluição, do barulho, do fumo, enfiado na treta da cidade. Estou na minha terra...estou vivo.

 

 (continua)


E TEMOS OUTRO COLABARADOR

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Vai falar dum Melgaço que é para nós desconhecido, que existiu, há muitos, muitos poucos anos. Anos 30 de 1900.  Os textos não são originais, já foram publicados em A Voz de Melgaço e se aqui aparecem é com autorização do autor.

Que por acaso é meu primo!

E irmão do FAIJ!

E, como nós, tem tanto de galego como de melgacense.

E é um grande mestre na arte de pintura sobre azulejo.

Por exemplo, uma ida ao Convento das Carvalhiças.

 

 

Camborio Refugiado

 

A PARISIENSE II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Antiga Pensão Parisiense

 

 

— A Parisiense!

Contou e recontou pelos dedos e chegava sempre à mesma conclusão; nunca pregara um calote na Parisiense. Estava salvo o dia. A pressa passou a tanta que os que levavam com a perna de pau do manco da Boavista se voltavam a resmungar:

— Vê onde pões o pau, ó manco.

— O homem é maluco.

Ti António, manco da Boavista, dirige-se à patroa, pessoa de mui bom nome na praça que há anos tinha deixado a serra e correu as sete partidas da Europa para manter a caterva de filhos e se tinha fixado na Vila com a Pensão Parisiense, quem sabe se para não esquecer as agruras da vida em Paris:

— Senhora Esperança, tenho um pequeno favorzinho a pedir-lhe e agradecia-lhe que me ajudasse. É que tenho uns negócios a tratar, uma pessoa de bem, de Lobiô, com muitas cabeças de gado e gostava que não lhe faltasse nada à mesa e não lhe recebesse dinheiro nenhum. Tudo o que ele quiser e nada de dinheiro. Bem sabe, senhora Esperança, que um bom pasto só pode ajudar a fazer um bom negócio – filosofou o manco.

A senhora Esperança ia para abrir a boca, mas logo ele continuou:

— Ainda que o homem insista, diga-lhe que já pagou alguém. Ele perceberá. Antes do fim da feira, venho pôr a escrita em dia.

— Pois venham lá pela vossa hora que daqui não há problema.

Pouco depois do meio-dia, quando as ruas se despejavam e as tascas se enchiam, o manco e o amigo cliente na Parisiense abancados, deleitavam as papilas. O bom humor dos dois homens era manifesto. O diálogo era constante e apenas interrompido pelos risinhos de bem-estar e de mútua compreensão. As garfadas e os goles de verde, que melhor lhes fazia apreciar a carne estufada com batatas, assim como o olhar satisfeito do manco, eram prova que o negócio não tardaria a concluir-se. Assim foi. Uma vez a refeição acabada, o amigo do manco levantou-se para pagar.

— Está pago, logo informou a senhora Esperança recitando o texto do manco.

Este, sentado à mesa, fazia, discretamente, não com a mão e apontava para ele. O amigo, desolado por não poder pagar, voltou a sentar-se o tempo de retirar com um palito os restos da carne dos dentes. Ambos estavam satisfeitos.

— Bem, vamos tomar café, decidiu o manco ao mesmo tempo que se levantava e punha o chapéu.

— Então até logo, senhora Esperança.

A fita acabara. A senhora Esperança estivera à altura do papel desempenhado. Fora a farsa, o bobo do festim. E dizer que em noventa e quatro anos vividos, nunca entrou num cinema.

O manco da Boavista, ladrão e vigarista era mesmo um Charlot com perna de pau. A mãe não o parira, cagara-o.

Não mais pôs o pé que lhe restava na Parisiense.

 

 

A. El Camborio

 

Camborio Refugiado

 

A PARISIENSE I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Dia de feira em Melgaço

 

Eram as feiras de antão, as feiras de sempre, as feiras dos meus 13 anos, As tendas dos feirantes, montadas por baixo das árvores, ocupavam uma parte da Avenida. Os reis da feira eram, sem duvida alguma, os Ratinhos de Monção. Com mais de uma tenda, eram duas gerações que semanalmente marcavam presença. Era durante as férias escolares que a terceira geração era preparada para as subtilidades da venda, pelos Ratinhos seniores. Eram a esperança dos Ratinhos continuarem a nascer e morrer feirantes. No Terreiro Pequeno eram vendidos os produtos da região e os pequenos animais caseiros.

Eram as feiras da Tia Amália, dos seus legumes e frutas; da Tia Tibórnia que vendia cuequinhas rendadas a que nenhum homem resistia, dizia ela; da Tia Isabel Caçolas que, à porta da casa, no banco de pedra sentada, nos “assava” numa panela cheia de furos, por cima do fogareiro, as melhores castanhas da Vila. Eram as feiras da Churreira. Vinha das Adegas e era raro ir mais longe do que o Largo da Calçada. O tabuleiro de churros que trazia para vender era, praticamente, esvaziado pela gente que por ela esperava. A mulher do Chico Vizegre trouxera a receita da Espanha natal. Eram as feiras das revoadas dos rapazes a roubar laranjas e tangerinas que estavam nos açafates. Eram as feiras do “bota p’ró mula”, a camioneta do peixe. Para prevenir a gente da chegada iminente, começava a apitar em Galvão e só parava quando chegava à praça do peixe. Eram as feiras do Vitorino, do Amadeuzinho da Gave, do Lião de Cousso, do cauteleiro de Monção com farda e boné da Casa da Sorte. Homens e mulheres vinham de todas as aldeias e lugares para comprar, negociar, comer, ir à Casa Grande, encontrar gente… Nesse dia, os do monte apropriavam-se do cunhal do Hilário, ponto estratégico para controlar as idas e vindas da feira. Era na caneja das Carvalhiças, pelo lado de baixo da Avenida, que a gente vinha aliviar a bexiga, a tripa ou os testículos.

Nesse dia, com o trapo imundo que lhe servia de lenço e rivalizava em nódoas com o casaco azul cinzento, Ti António, o manco da Boavista, limpava o suor da cara e com olhar de doninha furava por entre o pessoal que saía da Casa Grande. O ar de preocupado desapareceu quando viu ao longe quem procurava. Com uma profissão como a dele, testemunha profissional, todo o cuidado era pouco; havia uma reputação a defender e uns dinheiros a sacar e o que neste caso estava em causa eram duas leiras de sequeiro bem perto do lugar que valiam boa nota. Não era caso para tratar no meio da praça. Subiu a rua que dá para o terreiro, furou entre os castrejos e encostou-se a meditar: no 26 nem pensar em entrar, no Carlota não passava da porta, na Quina do marinheiro era melhor fugir, o Lucas era o Regedor e homem p´ra lhe mandar a guarda atrás, no Sabino que por vezes servia de escritório só com dinheiro que ele não tinha.

 

 

(continua)

 

MAIS UM COLABORADOR

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

EL CAMBORIO – que Boris Vian e Blaise Cendras, Pessoa, Eça e Guimarães Rosa o acompanhem; Carlos Paredes, John Lee Hooker, Edith Piaf, Lola Flores, Manu Chao, Sam the Kid e Farafina o inspirem nesta nossa viagem melgacense.

Bem-vindo com as tuas, nossas narrativas, para juntar à concertina e cantares do Tonio de Lobiô, home que  sabe o que é a romaria da Peneda,  não falha a de S. Bento do Cando e muito menos a de S. Bento de Fiães.

Sejas bem vindo El Camborio.

 

Camborio Refugiado

 

PARABENS MAMÃ

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Parabéns mamã pelos teus 85 anos que hoje, 11 de Janeiro de 2008, comemoramos. Longe na estrada perto no coração. Que continues por muitos anos a encantar com a tua voz no Coro da Igreja Matriz, são os votos do teu filho Ilídio, tua nora Paula e teu neto André Felipe; a Kaya não fala mas abana o rabo de satisfação.

 

Um beijo

 

Camborio Refugiado

DISTRAIDO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Largo da Calçada - Melgaço

 

 

 Tone vira costas p'ra encher das grandes e já está a dizer:

— É tipo França.

— E cando o gelo corta as orelhas... e as mans naquele ferro, nem lubas, qual lubas

— Eu sei qu'é f*dido e logo no teu departeman, quantos estais lá?

— No chantier?

É tipo França – diz circunspecto Tone Biqueira. É tipo França.

E olha p'ra tigela do Fifi que ainda não está vazia

— Parece que estás doente c*ralho!

— Calma, estás a ver este gajo? Já lá vamos...

Fifi puxa Jorge para trás e sussurra-lhe:

— A Bira fode-o, num o deixa beber... chiu...

E com isto acaba a tigela!

— E o chef de chantier, esse é francês, e os algerianos? Num confio em nenhum, eu... é preciso atencion, cuidado ahn!?

Fifi bebe tranquilamente, o Tone diz qu'é tipo França, e Jorge já viu juifs e algerianos, não sei qual o mais esquisito e prepara-se para entrar nas putans quando Fifi acaba a terceira tigela.

— C*ralho, deixei a porta aberta, tenho que ir

E enquanto Jorge olha as costas curvadas que se dirigem para a porta, Tone Biqueira, levanta as tigelas, passa o pano no balcão e diz:

— São dez paus.

— É tipo França.

Fifi atravessa ligeiro o Largo e beatificamente assume o seu posto de trabalho. A cadeira à porta do escritório-oficina.

E mansa decorre a tarde.

Eram 3.30 quando chegou a carreira de S. Ambrósio ao Largo.

Nem um guarda à vista, que esses já fizeram o trabalho de manhã. São sempre os mesmos, o cobrador já acenou o condutor é o ultimo a sair. Duas desconhecidas descem da camioneta e Fifi levanta-se da cadeira.

Olham para um lado e para o outro, e já Fifi está a meio caminho.

Falam galego e não conhecem a Terra.

— Buenas!...

— Ahn... Buenas

— De Galiza...

— Si... Si, claro!

— Passaporte por fabor...

— Passaporte, quien es usted, passamos la aduana, pero que passa?

E pacientemente Fifi mostrou de fugida um dos muitos cartões e aplicou a multa de 100 pesetas, “una barbaridad”, porque as duas senhoras não estavam munidas dos respectivos documentos para poderem pisar solo português.

E recebeu na hora! 

Voltou ao Tone nessa tarde com uns pequenos problemas já resolvidos.

Na pacatez do dia seguinte Fifi levanta-se para cumprimentar o agente Carvalho, do posto da Pide no Peso-Baixo, coisa natural, que lhe pede para ele passar lá pelo posto, coisa também natural, vindo o convite de quem vem é irrecusável e logo um dos camionistas do vizinho lhe dá uma boleia até ao Peso.

Fifi subiu as escadas exteriores, entreabre a porta e:

— Dá-me licença?

— Ah, és tu, entra, entra.

— Então que se passa?

— As 100 pesetas? e logo voou uma mão pelo ar que só parou nas faces de Fifi.

E antes que disse ai, já outro estrondo se ouvia... Trazzz....

Todo encolhido lá meteu a mão ao bolso, espero que não venha mais nenhuma pelo ar, eu a pensar que tinha uns problemazinhos resolvidos...

— Demora muito c*ralho? Dá cá a nota filho da p*ta, borracho, cabrão de m*rda.

Da boca de Fifi nem um ai. Estou f*dido, estou...

— E agora lá p'ra fora, e toca a agarrar na roda do poço. E se paras tenho aqui p'ra te aquecer.

E o chicote cortou o ar com um silvo que estremeceu as gorduras de Fifi e lhe deixou marca nas costas logo na primeira paragem.

Só o cair da noite trouxe fim ao tormento.

— E p'rá próxima livra-te de te chegares às mulheres dos Guarda-Civil!

 Laurindo de Poço, Fifi p'ra todo mundo daqui e d'além fronteira, não fora informado que tinha havido substituição de pessoal na guarnição policial galega.

 

 

Camborio Refugiado

 

VAMOS CANTAR OS REIS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

REIS – BOMBEIROS V. DE MELGAÇO 1975

Música do filme e canção “Maria Papoila”

 

Novamente e a cantar cá estamos nós

alta noite e hora morta

e pra não cansarmos muito a nossa voz

é melhor abrir a porta

ai ai ai

Nós trazemos alegria

pró Manel e prá Maria

para o neto para a avó

ai ai ai

Não nos importa esperar

pois sabemos que ides dar

para a malta não ir só,

 

Cantai Bombeiros

Heróis altaneiros

soldados da paz

Mostrai ao povo

que com sangue novo

sois forte e audaz.

 

Tudo aquilo que nos deres

ó boa gente

será só para vosso bem

seja muito seja pouco

dai contente

pois contenta a nós também

ai ai ai

Já salvamos tanta gente

tanta casa tanta tanta

e de certo vos lembrais

ai ai ai

que o Bombeiro que vos canta

já secou muito a garganta

pra salvar vossos pinhais.

 

Cantai Bombeiros

 

FAIJ – 1975

 

Poesia Popular

Francisco Augusto Igrejas Júnior

Ed. C M Melgaço - 1989

 

OS CONHECIDOS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

Mas não era tanto assim como diziam as más-línguas, tinha dias que só sinal duma pequenina, e este consistia nas duas mãos paralelas afastadas 2 cm, que este é de respeitar. Agora, quando ele entrava atrás, levantava a gola do casaco e as mãos eram quase 1 metro, o Tone Biqueira punha logo 2 de meio no balcão.

E eram só as primeiras, porque o Tone achava que isto está tipo França, bota, bota, que vai bem outra.

E quando o amigo acabou de contar pela 3ª vez as responsabilidades do chef d'equipa na batiman e o primo que era chef de chantier já o Fifi virou 1 litro.

— Oh Jorge, arranja aí um cigarro!

Jorge atravessa a rua e puxa de maço de cigarros.

— Dá aí lume, c*ralho, puff...puff., no Sábado foi de rebenta não?

— Ah... eu...

— C*ralho, então eu não sei? Só não fui porque tive um baptizado, mas já falei com o teu primo, qu'ele disse-me...

— Que primo c*ralho?

— Ai, num é teu primo, o russo?

— Que nada, é meu vizinho, vizinho não, qu'ele é de Queiron e eu sou mais arriba. Mas esteve bom, esteve.

— Dá cá outro cigarro e lume. Quando é que vais embora?

— Lá pró fim da semana.

— Vamos fazer uma visita ali ó Tone, que se calhar já não nos vemos. Anda, anda daí... 

Fifi levanta com vagar as suas massas adiposas. Não fecha a porta, qualquer passante informa — Se não está aí p'ra dentro está no Biqueira, nunca foi benéfico para o negócio fechar a porta.

O que não se fecha é a sua boca, não dar tempo para pensar, quer saber novidades e quando se está a chegar ao Tone Biqueira, Jorge já fala mais franciu que português que as aventuras em Paris tem que se lhe diga.

Jorge antecede Fifi na entrada da taberna e este, sorridente, pega por uma das pontas do colarinho, bem esticada para cima, um segundo depois as mãos estão separadas uns bons centímetros.

- Boas Tardes, ó Fifi, andas doente? Parece que num comeste. São duas?

 

(continua)

 

EL JEFE

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Carta de Franco a Alfredo do Paço

 

 

Fifi, Laurindo de Poço de nome baptismal, tinha o seu escritório-oficina situado junto ao Largo onde se cruzam a estrada que leva à fronteira com a Galiza e a do monte que leva a outras fronteiras com a Galiza.

Bufo da Pide por obrigação, eles só queriam saber umas coisinhas, jornalista por vocação, informador dos movimentos da Guarda Fiscal aos vizinhos contrabandistas por $amizade, frequentador assíduo da taberna do Tone Biqueira, nome que este foi buscar ao falecido da Bira sua esposa e anterior proprietário, onde nunca entrou sem ser convidado mesmo que entrasse sozinho.

Poderia esperar 1 hora, mas alguém havia de aparecer para pagar a tigela.

E passaria despercebida no Diário do Minho a notícia da passagem por esta Vila do Alto Minho da Senhora Dona Carmen Polo de Franco, assinada por Fifi, Laurindo de Poço, correspondente na Terra, mas tal não aconteceu na residência da dita senhora em Espanha, país para onde seguiu exemplar do jornal, a expensas do jornalista correspondente.

E o chefe de gabinete do Generalíssimo Francisco Franco, Caudillo de España por la Gracia de Dios, agradeceu a amabilidade em 29/04/968.

E foi desta pequena troca de correspondência que Fifi ganhou o seu passaporte na Galiza, onde passou a ser muito bem recebido para umas tapas em qualquer boteco da região como bem atesta o seu físico de paquiderme ganho ao fim de muita luta com o cozido e o tinto, se o branco for melhor, pois venha o branco.

Mas para uma casa de 6 pessoas e sem fim do mês muito certo, arranjar umas notas é uma necessidade, ainda por cima quando só há raparigas para casar.

E com cartões de jornalista e cartas de El Jefe tudo se ia arranjando!

A Vila vivia a sua pacatez quotidiana, a Guarda Fiscal lá ia apreendendo uma coisita aqui outra ali durante o dia, para de noite se passarem as carradas de sacos de café, as tabernas vendiam o mesmo vinho de sempre, o Gaminha, na Central de camionagem continuava freneticamente a escrevinhar em papéis soltos as suas rábulas teatrais e no hospital as irmãzinhas de caridade continuavam a tratar os coitadinhos.

Claro que também se vendia azeite, essa era especialidade do Minho, mas se quisessem carvão tinham que ir ao Castelo, à Mena do Batela, que diga-se, sempre apresentou tinto de qualidade.

Já mais abaixo o do Catalon não tinha tanta nomeada, mas tinha cozinha a acompanhar.

A Sabida da Maria, mulher de grande bigode, e sabe-se desde sempre que a mulher de bigode ninguém a fode, apresentava mais que a sardinha frita e azeitonas do Catalon. 

Havia sempre um prato de caldo de couves com farinha que era casa muito frequentada no dia da feira e tinha a Casa Grande perto. Tribunal e tudo.

E no Canelas, que era o Regedor da freguesia da Vila, os da Câmara, também da Legião Portuguesa, primos irmãos, bebia-se do das terras dele.

Era ele que cavava a vinha e sulfatava, carregava o cesto e ainda saltava para esmagar.

No Canelas bebia-se o suor e o gozo de colheita boa.

Mas o Fifi só saía do seu Largo em caso de necessidade.

No Largo essa pacatez era cortada pela camioneta que chegava e do Fifi a fazer o vaivém com a taberna do Tone Biqueira.

 

 

(continua)

 

A FONTE DE S JOÃO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Fonte de S. João - Melgaço

 

 

Sou o Fifi – apresentado a todos que não me conheceram, uma vez que conhecer seria ressurreição. Não acreditem o que esta espécie de fantasma fala em meu nome, quer me apresente manco ou gordo, atleta, careca ou coscuvilheiro. É verdade que vivo no espaço etéreo vedado a vós mortais, infelizes, não malandros, votantes e ignorantes esquecidos do hip-hop e amantes dos cantares da Peneda. É verdade que vos controlo de cá de cima; eu e o meu amiguinho utópico não jogamos à bisca porque ele prefere jogos de mind, mas apostamos sempre, após as noitadas, onde ficará a Fonte de S. João nos próximos anos. É que no local onde está ele não coca tudo e pior ainda, devido ao ângulo de visão, por vezes distorce as máscaras que não as caras, essas ele nunca vê.

 

Camborio Refugiado, o “fantasma” a que se refere Fifi, é de carne e osso e foi comprado, em testamento, para publicar os papéis que vamos conhecer. Assim seja a vontade da vossa parte.

 

VIVA GALIZA LIBRE II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Estação da Frieira (Galiza) vista de Cevide (Portugal).

 

 

Sorrateiramente subimos a rua e aproximamo-nos do bar.

O Lúcio bufava.

O Lúcio soprava.

O Lúcio torcia as mãos.

O Lúcio era o grande o actor no palco do quotidiano Melgacense.

O Lúcio não sabia que acabava de passar por " um ritual de iniciação".

Ir ao Ângelo é sacramental, não é desonra, ninguém faz por mal, está-nos no sangue.

Fizeram-se grandes amizades a Melgaço com as brincadeiras do Ângelo e "toda" uma vila a jogar o mesmo jogo.

— Está muito bem, sim senhor, andar 500 km para levar a aguardente e levo com um c*ralho das Caldas na cara. Vão foder outro! – gritava o Lúcio para o Comandante que ria às gargalhadas a contar a história para as pessoas do bar.

A notícia espalhava-se sozinha e era preciso preparar o Lúcio para a noite.

A cena iria passar em todos os lugares onde entrássemos; comer uma lampreia, ao Ló no Peso, foi a solução. Arroz de lampreia é um dos pratos grandes da gastronomia Melgacense. O verde tinto escorria por gargantas sequiosas e produzia resultados. De baixo teor alcoólico e um pouco ácido, não dá grande bebedeira e dispõe bem.

Entre gargalhadas e promessas comprometi-me que a primeira coisa que faríamos no dia seguinte era ir a Espanha comprar a aguardente. O Comandante que nos tinha acompanhado torcia o nariz, mas eu não podia ficar mal. Os meus amigos tinham vindo a Melgaço para curtir e queriam ir a Espanha, portanto a minha obrigação era levá-los a Espanha, ou então mudar de local de trabalho e adeus reputação.

Ou eu, ou o vinho, tranquilizamos o Lúcio e não sei que sonhos teve, ou se não teve, mas no outro dia de manhã foi sacudir-me da cama, porque tínhamos muito que fazer - dizia para o meu pai.

Com um pequeno-almoço de presunto e vinho branco, seguimos pela velha estrada que de Melgaço vai para S. Gregório, e daí segue para Espanha.

Chegados à fronteira e uma vez que não tínhamos passaportes tratei de procurar solução para o problema.

O Zé do Raul, soldado da Guarda-fiscal estava de serviço e encontrava-se à mão de semear.

— Bom dia Zé, como vai?

— Olá rapaz, estás bom?

Cheguei-me junto do Zé do Raul e disse-lhe que queríamos ir a Espanha, colegas meus do emprego em Lisboa, ir e vir, só comprar 2 garrafas de Marie Brizard e ver a barragem no rio Minho, está bem vamos lá ver isso, documentos do carro? E o Zé olha para o Lúcio e pergunta-lhe se é ele o proprietário do carro, registo do carro e carta de condução não condiz, o carro não estava em nome do Lúcio, Ó Zé, é só um saltinho de meia-hora, os vossos Bilhetes de Identidade? O João Canelas não tinha e o do Zé Cadete estava caducado, o Zé do Raul vira-se para mim:

— Mas que m*rda é esta?

— Ó Zé desculpa lá, é só um salto e o Zé do Raul volta-me as costas e entra na alfândega e volta a sair de seguida com um papel na mão:

— F*da-se, desapareçam e não me chateies mais.

Minutos depois estávamos em Espanha e o Lúcio comprou as garrafas de aguardente. Na volta parámos na alfândega para agradecer ao Zé do Raul (velho amigo de meu pai).

Depois de almoço levei-os a conhecer a serra de Castro Laboreiro, o velho castelo, a ponte românica de Lamas de Mouro, e as sinfonias com que nos deliciava a passarada.

Nessa noite o Lúcio assumiu perante Melgaço, a sua ida ao Ângelo e desejou um até breve a todo o pessoal.

Chegados a Lisboa fui transformado em quase herói pelos meus amigos, que não paravam de contar a sua aventura em terras de Melgaço.

O João Canelas apareceu-me com um livro - Sobre as Feiticeiras de Jules Michelet e com a seguinte dedicatória: " Aos dias e pássaros, passarinhos e passarolas daquela serra da Peneda sita em Castro Laboreiro. Quem será Michelet para o Camborio Refugiado?"

E nunca disse a ninguém, que se não passássemos legalmente pela fronteira, eles iriam passar a salto, pelos trilhos do contrabando que eu calcorreava desde os 12 ou 13 anos de idade.

 

Camborio Refugiado

 

VIVA GALIZA LIBRE I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Ângelo com uma das suas relíquias.

 

 

Corria o ano de 1975. Do Terreiro do Paço em Lisboa, parte um wolkswagen azul, rumo a Melgaço. 4 ocupantes. O Lúcio condutor e proprietário da viatura, o Zé Cadete e eu trabalhamos nos Correios. O 4º, madeirense do Norte da ilha, do Seixal, estudante de História na Universidade de Lisboa, João Ribeiro, o João Canelas.

O clima político de Portugal é explosivo.

As forças de extrema-direita organizam-se em torno da Igreja Católica, mais concretamente, em torno do cónego Melo, "dono" do Arcebispado de Braga, o 1º de Portugal e que data da ocupação romana da Península Ibérica. As sedes do partido comunista no Norte do País são arrasadas.

O exército espanhol colabora e fornece armas.

Melgaço é a porta de entrada e saída entre Portugal e Espanha.

O Canelas queria conhecer Melgaço porque era no Norte.

O Zé porque conhecia as histórias que eu contava e queria autenticar a sua veracidade.

O Lúcio, esse tinha por objectivo ir a Espanha comprar aguardente, Marie Brizard.

Eu só queria saber novidades e beber um copo com os amigos.

Entre 8 a 10 horas para fazer 500 km. Um martírio para chegar ao Paraíso.

Recebidos entusiasticamente e logo acomodados começou a visita guiada. Só o Lúcio não estava contente porque ainda tínhamos tempo para ir a Espanha e depois sim conhecer Melgaço.

Tanto chateou que logo ali me comprometi a arranjar-lhe a aguardente no momento, sem precisar de ir a Espanha. Metemos pelas ruelas da vila, igreja aqui, igreja ali, e o Lúcio já não sabia onde estava. Entramos no bar do meu amigo Comandante, expus-lhe o assunto e o Comandante pôs o Lúcio ao corrente da situação.

Passar para Espanha estava difícil, tinham sido apreendidos explosivos numa garagem, pertença dum nazi convicto, e havia tropa dos dois lados da fronteira.

E ele não tinha de momento nenhuma garrafa que pudesse dispensar.

— Porquê não vais ao Ângelo, carai, ele arranja-te o que precisares.

Mais umas voltas pelas mesmas ruelas e igrejas e o Lúcio já a dizer que Melgaço é uma cidade.

— Ó amiguinho, por aqui? Dá cá um abraço rapaz.

— Ó Ti Ângelo, como vai essa vida? Dê cá um abraço.

(O Ti Ângelo, alfaiate, na altura com os seus 60 anos era conhecido mais pela malandragem do que pela obra. Durante o regime de Salazar em que era proibido mostrar 1 cm de pele feminina, todo a gente de Melgaço espalhada pelo mundo se lembrava de levar para o Ângelo tudo o que pudesse relacionado com sexo. Imagine a colecção.)

Apresentei o problema ao Ti Ângelo e a resposta foi a esperada.

— Quantas queres? Mas isso não é p'ra ti... tu bebes do nosso!...

— Não Ti Ângelo, é para o meu amigo Lúcio, mas no preço é para mim.

— Duas, se faz favor, diz o Lúcio.

Enquanto o Ti Ângelo se retirava para o reservado da alfaiataria eu entretia a rapaziada.

O Ti Ângelo regressou sorrateiro, o Lúcio de costas.

— Ó amigo, chega-lhe este?

O Lúcio corou, ficou pálido e deu meia volta.

O Ti Ângelo segurava um das Caldas.

Rebentaram as gargalhadas ao mesmo tempo que o Lúcio desaparecia.

 

(continua)

 

CULTO DE SAINTE SIGOLÈNE EM PORTUGAL

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Igreja de Santa Madalena - Chaviães

 

 

O nome de Santa Sigolene (citamos o padre Desprats, arquivista diocesano em Albi, sul de França) não aparece em nenhum calendário de martirologia ou livro litúrgico, a não ser como titulo da santa padroeira da paróquia de Chaviães, no território de Melgaço.

A introdução e o desenvolvimento do culto de Santa Silogene em Chaviães são atribuídos à presença de um mosteiro situado a 5 km da aldeia. Este mosteiro foi primeiro beneditino e depois cisterciense a partir de 1194.

É em 1177 que aparece pela primeira vez, nos documentos conhecidos, o nome de Santa Sigolene. Trata-se de um testamento no qual Pedro Pires lega ao convento de Fiães o seu corpo e a metade da sua propriedade situada no lado de baixo da igreja Santa Sigolene em Chaviães. Nesta época, a ordem cisterciense enxerta-se, progressivamente, nos elementos de reagrupamentos monásticos ou os assimila numa espécie de filiação. A sua implantação na região de Albi é importante.

 

Uma simples comparação dos mapas posicionando as abadias cistercienses na Europa, e singularmente em Portugal na altura da morte de São Bernardo, e a presença dos cistercienses no território Albiguês pode dar, entre outras, uma explicação ao esplendor do culto se Santa Silogene naquela época.

 

Retirado de Troclar,site archéologique

 

Tradução de David de Carvalho, Historiador, Especialista da Pré – História, Defensor da Raça Garrana, Catedrático na Universidade da Rua Velha.

 

LAMBER OS DEDOS NO NATAL

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Bolinhos de geremú

Preparação

Coze-se o geremú cortado aos pedaços. Mete-se numa saca de pano bem apertada e deixa-se escorrer de um dia para o outro.

Nessa polpa cozida, deita-se farinha de trigo para ligar, três gemas de ovos e sumo de laranja. Mexe-se tudo muito bem. Põe-se a frigideira ao lume com óleo e fritam-se ás colheradas, em grande fritura, até que fiquem os bolinhos loiros.

Retiram-se da frigideira e passam-se por açúcar e canela, préviamente misturados.

Colocam-se em prato grande adornados com casquinhas de laranja ás tirinhas.

 Receita de D. Julia Ranhada

 Rabanadas de Leite e Ovos - Tostas

Ingredientes

- 1 peça de pão do dia anterior

- 1/2 l de leite

- 3 ou mais ovos

- 1 pacote de canela

- açúcar q. b.

Preparação

Ferve-se o leite com açúcar e canela, num tacho, e deixa-se arrefecer. Num recipiente fundo batem-se os ovos; corta-se o pão em fatias finas, passam-se por leite morno e depois pelos ovos.

Põe-se ao lume uma frigideira com óleo, até estar bem quente, e colocam-se as fatias a dourar. Depois de bem dourado, retiram-se da frigideira e colocam-se numa travessa onde se espalhou préviamente um pouco de açúcar e canela, repetindo a operação por cima das rabanadas que se forem colocando na travessa.

 

Receita de D. Laura Domingues

Manjares da Nossa Terra

C M Melgaço - Serviços Culturais

2ª Edição 1996