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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOBREIRO DE PADERNE E ERVA-LOIRA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 30.03.13

 

 

O SOBREIRO DE PADERNE

 

 

   Um dos maiores sobreiros da região minhota, localizado junto ao Parque Termal do Peso, na freguesia de Paderne, concelho de Melgaço.

   Este sobreiro centenário, de proporções gigantescas, com os seus 23 metros, está classificado desde 1940 e terá sido das primeiras árvores a ser classificadas após a aprovação do Decreto-Lei nº 28468, dois anos antes, em 1938.

 

Retirado de:

 

Sobreiro – Árvore Nacional de Portugal

 

http://networkedblogs.com/gNbOP

 

 

 

 

ERVA-LOIRA DE MELGAÇO

 

 

Nomes vulgares: nenhum em português; em castelhano: barra de oro, lengua de perro, orval

Ecologia: prados húmidos e margens de ribeiros, por vezes sob coberto de árvores caducifólias

Distribuição global: endemismo do noroeste peninsular (se não se reconhecer a subsp. legionensis, como fazem alguns autores, a distribuição é muito mais ampla, abrangendo Marrocos e estendendo-se da Península Ibérica à Itália e à Europa central)

Distribuição em Portugal: planalto de Castro Laboreiro

Época de floração: Junho – Julho

Data e local das fotos: 30 de Junho de 2012, aldeia do Rodeiro, Castro Laboreiro

Informações adicionais: herbácea perene que pode superar 1,6 m de altura, quase glabra, com folhas de margens inteiras e capítulos florais com poucas “pétalas”; a sua presença no extremo norte de Portugal já tinha sido assinalada nas floras de António Xavier Pereira Coutinho (1939) e de Gonçalo Sampaio (1947), mas Amaral Franco, no vol. II da sua Nova Flora de Portugal, “corrigiu” essa referência para Senecio nemorensis subsp. fuchsii, cuja ocorrência no nosso país é incerta; só em 1999, é que a verdade foi reposta

 

Publicado por Paula Araújo em 22. 8. 12

em

 

Dias com árvores

 

http://dias-com-arvores.blogspot.pt

 

RECEITA DA LAMPREIA, sécs. XV – XVI

melgaçodomonteàribeira, 26.03.13

 

 

« Receita da lampreia » no Livro de Cozinha da Infanta

Dª. Maria de Portugal (séculos XV – XVI)

 

 

    O Livro de Cozinha da Infanta Dª. Maria, códice portugués da Biblioteca Nacional de Nápoles, de fins do século XV e principios do XVI, ilumina moito mellor a antiga arte de cociñar en Portugal nunha época histórica de que pouco se coñece sobre matéria gastronómica. Dona Maria de Portugal (1538 – 1577), filla do Infante D. Duarte e neta de D. Manuel I, era una muller de notable formación e sensible á cultura de súa pátria.

    No seu manuscrito lemos esta receita da lamprea: « Tomarão a lampreia lavada com água quente e tirar-lhe-ão a tripa sobre uma tigela nova, porque caia o sangue nela, e enrolá-la-ão dentro daquela tigela e deitar-lhe-ão coentro e salsa e cebola muito miúda, e deitar-lhe-ão ali um pouco de azeite e põ-la-ão coberta com um telhador, e como for muito bem afogada, deitar-lhe-ão muito poucochinha água e vinagre, e deitar-lhe-ão cravo e pimenta e açafrão e um pouco de gengibre ».

    Esta xoia bibliográfica, xunto coa de Rupert de Nola, veñen a ser as máis antigas referencias – fins do século XV e comezos do XVI – que ensinan de maneira clara receitas sobre a lamprea. Estes autênticos « libros de receitas », aparecidos finalizando o período medieval, posiblemente recollan unha tradición culinaria de séculos anteriores, e igualmente demonstran que o petromyzon fluvialis era prato coñecido de grandes señores e de ilustres señoras, tal o caso da infanta dona Maria de Portugal e o rei don Hernando de Nápoles.

 

 

Retirado de:

 

Caderno da XLIII Festa da Lamprea

2003

Arbo – Galicia  

 

SC MELGACENSE: O ABISMO

melgaçodomonteàribeira, 23.03.13

 

 

NOVA COMISSÃO ADMINISTRATIVA DO SPORT CLUBE

MELGACENSE CRITICA « ACTO DE IRRESPONSABILIDADE »

DA ANTERIOR GESTÃO

 

   

     Já na segunda metade da tabela da IIIª Divisão – Série A, que ditará a despromoção –, o Sport Clube Melgacense prepara-se já para o reajuste orçamental e para outra realidade. Com o fim da IIIª Divisão e perante uma série de promessas que não passaram além de intenções, não restará ao clube de Melgaço senão reorganizar-se e repensar a estratégia desportiva.

     Depois da demissão da Comissão Administrativa liderada por Jorge Domingues em Assembleia Geral Extraordinária, no dia 8 de Janeiro, que tinha como ponto único a discussão da situação do clube, os elementos da nova Comissão avançam com um projecto que não se compadece, num futuro próximo, com os desejos competitivos do histórico clube local.

     « A Voz de Melgaço » esteve à conversa com Paulo Azevedo e Abel Pereira, elementos da recém formada Comissão Administrativa, que traçaram um cenário diferente daquele a que os sócios têm assistido desde o inicio da época desportiva 2012/2013, que dá nova luz sobre os factos da vida do Melgacense e que aparentemente justificou esta mudança na equipa de gestão do clube.

     « Percebemos que estávamos a ser enganados: afinal a equipa que era a custo zero não estava a receber; os jogadores das camadas jovens, de que os pais pagaram as inscrições, nenhum deles estava inscrito e estavam a jogar sem seguro; havia processos em Tribunal aos quais os responsáveis do clube não apareceram; havia novos credores de restaurantes… Chegámos ao fundo, a partir de agora não dá para descer mais. »

     « Temos um projecto estrutural para salvar o Melgacense em termos financeiros », avança Paulo Azevedo, considerando que « o grande erro desta época » terá sido apostar de novo num plantel que acabaria por representar um custo mensal de 7800 euros, incluindo a equipa técnica. O prometido suporte financeiro de empresários da zona do Porto, numa campanha de apoios que incluiria a participação do jogador do Real Madrid Fábio Coentrão, acabou por não se materializar e, depois de quatro meses sem receberem o ordenado, o plantel formado por jogadores das Caxinas foi-se desmoronando. «  Para trás », nota Paulo Azevedo, « fica mais uma factura que o clube de Melgaço terá de pagar. » Para o novo membro da Comissão, o apoio empresarial que assumiria os custos com o plantel nunca terá passado de uma boa intenção. « Não conheço a pessoa, e desde a primeira reunião que nunca acreditei muito nisso. »

     Cerca de cinco meses após o início da época desportiva, surge nova polémica. Em Janeiro, a Associação de Futebol de Viana do Castelo (AFVC) suspende os jogos do S.C. Melgacense nos campeonatos distritais de Juniores, Iniciados e Infantis. Acabaria por levantar essa suspensão dias depois, a 11 de Janeiro, três dias após a Assembleia Geral Extraordinária convocada pelo clube. Serviu este comunicado para pôr a descoberto as irregularidades do clube no que respeita às inscrições e pagamento de seguros dos jovens. É o próprio presidente da AFVC, Jorge Sárria, que confessa à Comunicação Social a irregularidade no processo de inscrição dos jogadores das equipas de formação do S.C. Melgacense.

     « O que aconteceu nesta época é um acto de irresponsabilidade», analisa Paulo Azevedo. A dívida total, que a Comissão actual avalia em cerca de 290 mil euros, poderá vir a ter novo tecto. « Agora temos uma equipa de futebol que, neste momento, está a custar 7800 euros por mês, que já não recebe há quatro anos e que vai estar até ao fim da época sem receber, como é que a dívida não vai aumentar ? », questiona, enaltecendo a compreensão que o actual plantel de jogadores tem demonstrado para com a situação do clube.

     « Não haverá IIIª Divisão (na próxima época), mesmo que houvesse um empresário a pagar os salários aos jogadores, para que queríamos uma equipa de futebol sénior destas, se sabemos que esta Divisão vai acabar ? Nós não temos capacidade para ter uma equipa na IIIª, por que é que iríamos subir para a IIª ? », lança Paulo Azevedo.

     Concebendo apenas a existência de uma equipa para as competições distritais, a Comissão Administrativa que tomou posse em Janeiro pensa já num processo de recuperação a médio prazo, com prioridades diferentes das que têm sido notadas desde o início da época em curso. « Nós vamos cumprir, mas não estabelecemos prazos. Esta época vai ser difícil levá-la até ao fim porque temos imensos problemas, mas vamos tentar levar esta época com dignidade. Há um projecto (para a próxima época) que se está nas tintas para os resultados desportivos. »

     O processo de liquidação de dívidas é também uma forma de « credibilizar » novamente o S.C. Melgacense junto da sua comunidade, sugere Paulo Azevedo. « Actualmente, o Melgacense não tem credibilidade em nenhum sítio. Deve a toda a gente, sem se saber quanto. Devemos no restaurante, devemos na loja, devemos a muita gente... É algo fora do normal! Muita paciência os credores têm tido porque, se o Melgacense fosse uma empresa, tudo isto já estaria em tribunal, num processo mais complicado. »

     No plano para o relançamento da vida desportiva do clube, a Comissão promete apostar definitivamente nos talentos locais. « Na próxima época, vamos avançar definitivamente com o apoio à formação. Na equipa de Juniores, vamos dar-lhes um apoio que não tem tido até agora. Tem-se criado a ideia de que as equipas de formação têm sido construídas por causa do subsídio e nós não podemos dar-lhe razão: o nosso projecto prevê ter equipas de formação base, dedicando-nos inteiramente às equipas de formação. »

     O apoio aos jovens é, de resto, o maior trunfo desta Comissão que prevê, num cenário em que privilegia a formação e a criação de uma equipa sénior sem custos, resolver o problema das dívidas num prazo de cinco anos. « Está fora de questão o Melgacense ter equipa Sénior com orçamento enquanto não resolvermos os problemas dos credores. Actualmente, o clube tem de ser encarado como uma empresa que tem um défice e que cada ano está a dar prejuízo. Temos de estancar essa corrente para que ela depois possa começar a ter lucros. Com um trabalho bem feito, entendo que serão precisos quatro ou cinco anos para pagar a todos os credores», refere Paulo Azevedo.

      Será numa campanha assente no apelo à participação activa dos sócios, angariação de fundos em feiras e eventos locais e na verba atribuída pela Câmara Municipal que a actual Comissão pretende levar a bom porto a tarefa de liquidação de uma factura que se aproxima já dos 330 mil euros.

     Decidida a formar uma lista candidata à Direcção do clube, a actual Comissão apela aos melgacenses para uma participação activa em todo o processo de recuperação do clube.

     « Queremos que as pessoas sejam mais activas, porque o S.C. Melgacense é de todos. Não somos nós que decidimos, são os sócios, nas Assembleias. Não é bom aparecer só um ou dois, as pessoas têm de querer saber como está, o que se pode fazer, ajudar a escolher o melhor rumo », nota.

 

João Martinho

em

A Voz de Melgaço

1/2/2013

 

SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA

melgaçodomonteàribeira, 19.03.13

 

 

GOVERNO DE PORTUGAL

 

SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA

 

 

PARECER

 

 

Na reunião de 17 de Dezembro de2012, aSecção do Património Arquitectónico e Arqueológico (SPAA) do Conselho Nacional de Cultura (CNC) apreciou o seguinte assunto:

 

Classificação do sítio megalítico e arte rupestre do Planalto de Castro Laboreiro, Melgaço CS. 830767

 

A proposta de classificação do conjunto megalítico e arte rupestre do Planalto de Castro Laboreiro foi apresentada pelo Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, Departamento de Áreas Classificadas/Norte, Parque Nacional da Peneda-Gerês e pela Câmara de Melgaço em Abril de 2008.

O despacho de abertura do procedimento de classificação foi exarado a 24.4.09 pelo Subdirector do IGESPAR.

Os monumentos em causa estendem-se por uma área aproximada a 50 Kilómetros e correspondem a sessenta e três monumentos megalíticos, duas estruturas líticas e um núcleo de arte rupestre, organizados pelos seguintes grupos, cuja organização se baseou exclusivamente na proximidade geográfica dos elementos:

Alto de Gontim – 10 elementos/monumentos megalíticos;

Alto da Basteira – 1 elemento/monumento megalítico;

Alto da Mansão do Guerreiro – 9 elementos/monumentos megalíticos e uma estrutura lítica;

Alto da Picota – 1 elemento/monumento megalítico;

Alto da Portela do Pau – 8 elementos/monumentos megalíticos;

Alto das Roçadas – 2 elementos/monumentos megalíticos;

Alto do Buscal – 6 elementos/monumentos megalíticos;

Alto dos Piornais – 2 elementos/monumentos megalíticos;

Arrazis – 3 elementos/monumentos megalíticos;

Barreiras Brancas – 4 elementos/monumentos megalíticos;

Corga de Portos – 1 elemento/monumento megalítico;

Feiral – 1 elemento/núcleo de arte rupestre;

Giestoso – 1 elemento/monumento megalítico;

Lama do Brincadoiro – 2 elementos/monumentos megalíticos;

Lama do Rego – 6 elementos/monumentos megalíticos;

Meda – 1 elemento/monumento megalítico;

Meia Martins – 1 elemento/monumento megalítico;

Pedra Mourisca – 4 elementos/monumentos megalíticos e estruturas líticas;

Porcoito – 2 elementos/monumentos megalíticos;

Prados de Saba – 1 elemento/monumentos megalíticos;

Além dos monumentos referidos na área do Planalto de Castro Laboreiro existem algumas pedreiras, vestígio da mineração de volfrâmio da região, vários abrigos de pastor e diversos açudes.

No âmbito da Lei 107/2001 de 8 de Setembro, aos critérios aplicados para a classificação de bens imóveis, e aos estudos já efectuados reconhece-se ao conjunto dos monumentos megalíticos e arte rupestre do Planalto de Castro Laboreiro valor histórico, arqueológico, estético, científico, paisagístico, simbólico excepcional, destacando-se também pelo seu bom estado de conservação, pela sua autenticidade, integridade, pela sua exemplaridade a nível nacional e Ibérico.

Ao nível das restrições previstas no art.º 54º do Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro, só são admissíveis acções que visem a salvaguarda, valorização e investigação dos bens culturais existentes no local. Os estudos e projectos são obrigatoriamente elaborados e subscritos por técnicos de qualificação legalmente reconhecida na área em causa.

Face ao exposto a SPAA do CNC concorda com a classificação do conjunto dos monumentos megalíticos e arte rupestre do Planalto de Castro Laboreiro com a categoria de Sítio de Interesse Público, conforme planta anexa e as restrições anunciadas no presente parecer.

 

A Relatora

(assinatura ilegível)

Paula Silva

 

Aprovado em reunião da SPAA do CNC

17 de Dezembro de 2012

O Presidente da Secção

(assinatura ilegível)

 

JUSTA HOMENAGEM

melgaçodomonteàribeira, 16.03.13

 

 

    O presente relatório, admirável memória de boa administração, irrefutável argumento de superior honestidade, foi a última obra do labor infatigável de Hermenegildo Solheiro.

    Como que adivinhando a morte, não quiz morrer sem dar contas de todos os actos da sua vida pública.

    O seu trabalho colossal ficou assim coroado com êste nobilitante gesto de honradez.

    Através das páginas deste relatório e dos outros que o precederam, vê-se o anseio generoso, o sacrifício fecundo dum homem que lutou e sofreu pela grandeza da sua terra.

    Melgaço, que ainda há cinco anos vegetava num atrazo vergonhoso, absolutamente carecido do que é preciso à vida de uma vila, sem ninguém que ousasse imprimir-lhe o mais leve impulso para o caminho do progresso, encontra-se hoje renovado, transformado por um milagre de amor e trabalho. Esse milagre realizou-o Hermenegildo Solheiro, com a excelente orientação da sua inteligência e a tenacíssima perseverança dum lutador invencível.

    As pátrias glorificam os seus homens notáveis, aquêles que as tornam grandes e imortais com o prestígio do seu nome e a celebridade dos seus feitos. O concelho é uma pequena pátria, a terra querida, onde floriram as nossas primeiras esperanças e por onde avoejaram os nossos primeiros sonhos. A pátria é um grande organismo, que tem o coração na terra onde nascemos. O concelho é a terra mãe, que prende os seus habitantes num abraço de irmãos. Ao traçarmos, pois, nêste relatório o elogio de Hermenegildo Solheiro, traduzimos o sentir de todo o concelho de Melgaço, que, sem distinção de opiniões políticas, quer prestar ao grande regionalista a homenagem da sua admiração e do seu agradecimento. Em todo o Melgaço não pode haver uma voz discordante, que procure diminuir a sua obra gigantesca, porque todos são filhos da terra que êle elevou com o ouro do seu amor e o sangue do seu sacrifício.

    Hermenegildo Solheiro foi o obreiro incansável e audaz que delineou e realizou em cinco anos aquilo que os outros não puderam fazer durante séculos. Não houve necessidade que êle não remediasse, aspirações que ele não tornasse efectivas. Dotado duma vontade forte, não conhecia obstáculos nem se enredava em dificuldades. Caminhava para a frente, porque não via outra coisa diante de si que o engrandecimento da sua terra.

    Fêz muito bem a Melgaço e o mais que há para fazer deixou-o indicado em projectos grandiosos, que não viu executados, porque a morte o derrubou quási no fim da sua jornada de actividade e progresso.

    O egoísmo era para êle uma palavra sem sentido. Exercia as suas funções administrativas com uma heróica abnegação. Esquecia os interêsses pessoais para se consagrar inteiramente aos interêsses do seu concelho. Nunca ninguém foi tão grande nesta terra, porque nunca ninguém trabalhou como êle para engrandecê-la.

    Os melhoramentos com que a dotou – antes dêle sempre reclamados e nunca executados – são motivo bastante para que o seu nome fique para sempre insculpido no coração de todos os melgacenses. Hermenegildo Solheiro morreu, mas a sua obra ficará como um exemplo a estimular energias e incitar empreendimentos em prol desta linda terra de Melgaço.

 

 

    Melgaço, 2 de Setembro de 1931

 

 

 

                                     João de Barros Durães

 

                                     Artur de Ascensão Almeida

 

                                     João Eugénio da Costa Lucena

 

                                     José Caetano Gomes

 

                                     Aurélio de Araújo Azevedo

 

 

 

Retirado de:

 

COMISSÃO ADMINISTRATIVA DA CÂMARA MUNICIPAL DE MELGAÇO

RELATÓRIO E CONTAS

EXERCÍCIO DE 1930 – 1931

 

AUGUSTO CÉSAR ESTEVES IV

melgaçodomonteàribeira, 12.03.13

 

 

Uma obra impressa nas folhas do Notícias de Melgaço, órgão e voz de uma mescla de juristas, de professores, de funcionários públicos e de negociantes bem sucedidos conotados com posições e sobretudo com interesses contrários aos defendidos e representados pelos Padres Vaz e seus amigos na Voz de Melgaço, que ainda hoje se publica.

Num oportuno artigo intitulado Os lugares vistos de dentro: estudos e estudiosos locais do século XIX português, Augusto Santos Silva começa por tentar explicar os factores que motivaram o interesse pelos estudos locais no Portugal oitocentista, apontando de um lado a tradição da memória e do levantamento histórico, corográfico e administrativo do território, cujas raízes podem ser remontadas a Quinhentos, mas se afirma sobretudo no fim do Antigo Regime; do outro, a mudança cultural e doutrinária trazida pela primeira geração romântica no modo de ver, interpretar e identificar a Nação, essa nova realidade em formação, pelo cruzamento da tradição histórica e da sociedade liberal; e, por último a acção específica do Estado constitucional e, em particular, a construção do quadro político, administrativo e social pós-absolutista. É sabido, porém, que estes factores não se impuseram imediata e solidamente. Foi preciso esperar pelo amadurecimento de condições estruturais e conjunturais para que irrompesse o clima intelectual e ideológico no qual se formará uma nova fileira de conhecimentos – os estudos locais e regionais – um novo perfil técnico e intelectual – o erudito ou estudioso local – e uma nova legitimação e racionalização da pesquisa sobre o País – o bairrismo ou “amor da terra” própria. E o autor que estamos a citar oferece-nos de seguida uma visão panorâmica através da qual “arruma” a produção monográfica, anterior às duas últimas décadas do séc. XIX, em três grupos: o primeiro descende directamente das tradicionais pesquisas corográficas, topográficas e estatísticas; o segundo incluiu textos de diversa intencionalidade e natureza, que não assumem a forma de estudos, em sentido estrito, mas consideram e destacam factos e atributos reputados característicos de espaços sociais locais ou regionais; e o terceiro engloba o interesse da erudição e da análise propriamente dita concretizada na história lacunar e parcelar, que se justifica e engrandece, porém, como propósito de fixação e difusão pública, de arquivo, de inscrição na memória de factos, feitos, figuras, e patrimónios, para testemunho dos presentes e benefício da posteridade. Os livros intitulam-se, em consonância, esboços, memoriais, compêndios de notícias, apontamentos, subsídios, etc., perseguem sobretudo fins morais e cívicos (…) Quando procura maior fôlego e efeito, o estudioso pode aproximar-se do registo para-literário.

Filia-se neste terceiro grupo o modelo que haverá de projectar-se sobre quase todo o séc. XX e no qual se enquadra facilmente Augusto César Esteves e a sua obra, apesar de ter optado por “fragmentos” monográficos em vez de ousar a monografia integral num ou em vários volumes como aconteceu em muitos concelhos deste Portugal de norte a sul, de oeste a leste. Convém, por isso, que atentemos, à guisa de síntese final, nos traços principais do referido modelo condensados por Santos Silva de forma precisa e esclarecedora: Desde logo, é um tipo próprio de intelectual e de intelectualidade que se afirma – e marcará a vida institucional e cultural local do nosso século XX. Pároco, literato, homem de leis, funcionário da administração, professor ou líder político, o estudioso é uma figura cada vez mais presente no círculo intelectual que cada cidade ou vila da “Província” portuguesa pode gerar. Escolarizado ou autodidacta, amador ou semi-profissional da erudição, tornar-se-á um interlocutor incontornável das instituições políticas e administrativas e dos poderes municipais e uma espécie de garante e avalizador da apresentação pública de si que uma localidade pode forjar – a projecção e rentabilização pública do seu “carácter” singular. Depois, é toda uma retórica que tem aqui uma das suas bases e expressões principais. O bairrismo – que, em poucos casos, pode chegar a conceber-se como um regionalismo – é a representação-tipo das razões e finalidades do trabalho do estudioso. Amor, e glória da terra, para usar os termos mais frequentes. Eis o que define o empreendimento analítico, o que desculpa as suas falhas, o que gratifica o seu auto, o que singulariza e engrandece o lugar no conjunto dos lugares de que se faz a nossa história e a nossa identidade nacional.

O estudioso Augusto César Esteves pertence indiscutivelmente ao perfil traçado e a sua escrita, imbuída de bairrismo, esteve sempre ao serviço da identidade e da singularidade do local dos seus afectos, das atenções e voluntarismos do benemérito – a criação dos Bombeiros Voluntários foi a mais saliente –, atingindo, a partir daí, do singular, a afirmação da plenitude nacional. Não admira, por isso, que o aparo afiado que alinhava em folhas inteiras ou em linguados de trinta e cinco linhas textos de denúncia, de defesa, de pedagogia cívica, de elogia e de crítica viperina acolhidos no Notícias, alinhava também longas transcrições com abreviaturas e grafismo arcaico arrancados ao empoeirado dos cartórios, dos arquivos e do olvido mais cruel, rabiscando, assim, a História desconhecida de Melgaço que quase ninguém antes dele, ressalvadas as notícias corográficas elaboradas desde o séc. XVIII, ousara desvendar. Dizemos quase ninguém, porque na lista incompleta de estudos monográficos sobre Melgaço que inserimos no levantamento feito em 1990-91 tínhamos referência ao opúsculo de Almeida Silvano intitulado As Águas de Melgaço: notícia histórica e prática (1896) com uma genérica contextualização corográfica e histórica do espaço termal. Mas este exemplo é pálido e insuficiente para sustentarmos a tese de estudos anteriores ao contributo de Augusto Esteves que, por sua vez, será o pioneiro e despoletador da produção monografista em que vão pontificar o P.e Manuel Bernardo Pintor, P.e Júlio Vaz e o Doutor José Marques a par de outros autores mais esporádicos.

Num estilo que articula o para-literário com o jargão jurídico de antanho e alfinetadas várias em tom ora jocoso, ora ofensivo, a concatenação de elementos e de citações colhidas tanto numa boa biblioteca erudita que acumulou ao longo dos anos e acabou, após a sua morte, por ser vendida, como em inúmeras centenas de folhas de documentos encontrados ao pé ou localizados em Arquivos Públicos nacionais e espanhóis, para onde dirigiu pedidos de transcrição e de ajuda paleográfica – essa concatenação, dizíamos, não obedeceu a um plano muito sistemático como ficará patente já neste primeiro volume e nos seguintes, reservados, à excepção do último, para a reedição integral dos livros que publicou em vida. Postumamente, foi já possível editar a obra monumental que preparou com esmero e deixou pronta para impressão pouco antes de falecer. Referimo-nos ao O Meu livro das gerações Melgacenses (2 vols., 1989-1991). O plano destaobra surgiu naturalmente anunciado no seu jornal e, por isso, aparecerá adiante neste volume inaugural de um projecto editorial modesto, mas urgente e imprescindível ao aprofundamento dos estudos melgacenses que não se podem esgotar apenas na História em stictu sensu – a faceta em queo contributo de Augusto César Esteves mais se centra – , podendo e devendo abranger também a Etnografia, a Arqueologia, a Arquitectura Civil e Religiosa, etc.

 

  1. Homenagem e desafio – o projecto editorial que tardava…

 

Pelas razões acima expressas tínhamos de principiar este projecto de (re)edição da Obra completa do Dr. Augusto César Esteves com a colecta de todos os artigos impressos nas paginas do Notícias de Melgaço. Daí o título inevitável que se impôs sem margem para hesitações e alternativas. Mais complexa, ainda que perfeitamente superável, foi a classificação temática que fomos burilando a fim de agruparmos de forma coerente e próxima da lógica originária os múltiplos artigos que ao longo de mais de duas décadas tiveram espaço cativo nas colunas do dito periódico. Apesar da variedade temática e do empenho do autor em assuntos actuais e polémicos, é flagrante a destacada quantidade de artigos sobre história local, artigos esses que acabavam compilados em livro, como foi o caso, incluído neste primeiro volume, do opúsculo de 46 páginas editado em 1960 e intitulado O Ensino da História de Melgaço na Escola Primária.

Foi o que aconteceu com Melgaço e as Invasões Francesas, 1807-1814 (1ª edição, 1950) e que será o próximo volume desta colecção.

Seguir-se-á Melgaço, Sentinela do Alto-Minho, editado em 1957 com uma primeira parte com um só volume, e uma segunda parte dividida em dois volumes. Manteremos a divisão dada pelo autor, o que significa que esta obra será dada à estampa em três volumes.

No mesmo ano de 1957 foram reunidos em livro os artigos dedicados à Santa Casa de Melgaço.

O projecto encerra com um volume final em que incluímos textos de imprensa anteriores à fase do Notícias de Melgaço, artigos desta fase que por lapso já não puderam ser inseridos neste primeiro volume, apontamentos, autógrafos e inéditos do Dr. Esteves e, ainda, críticas e comentários entretanto aparecidos e referentes a este projecto editorial.

Os projectos são para se cumprir e pela nossa parte fica, aqui, lavrada a promessa e o empenho de um cumprimento que agora começa. Esperamos dos leitores o que lhes cabe – tornar este exercício, que para nós foi de prazer e de satisfação ímpar, num bem útil e partilhável pelo maior número possível.

Bem hajam por isso.

 

Braga, Julho 2003-07-31

 

Armando Malheiro da Silva

Joaquim Rocha

 

 

Obras completas: Augusto César Esteves

 

NAS PÁGINAS DO NOTÍCIAS DE MELGAÇO

 

Recolha e Apresentação: Armando Malheiro da Silva

                                             Joaquim Rocha

 

Edição: CÂMARA MUNICIPAL DE MELGAÇO

 

2003

 

DESESPERO

melgaçodomonteàribeira, 09.03.13

 

 

ESTOU DE LUTO

 

 

A minha sogra Palmirinha foi assassinada às 7.30 da manhã quando se dirigia para o cemitério de Benfica, a sua visita diária à campa do companheiro de sempre, Manuel Revez.

 

Seguia pelo passeio, junto à casa, no Campo Pequeno, quando foi atropelada por um inconsciente filho da puta qualquer que se pôs em fuga.

 

Nós que somos atingidos pela desgraça gritamos a este desprezível mentecapto que matou a Palmira: "Um dia, vais cair nas nossas  mãos e, então, faremos justiça". 

 

AUGUSTO CÉSAR ESTEVES III

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

1. A escrita ao serviço da identidade local e nacional

 

Esse testemunho merece toda a nossa atenção e engloba parcelas importantes da tua actividade como melgacense preocupado com a sua terra e o seu país, como cidadão politizado e decidido a uma intervenção pública constante, como jurista e como eterno e incansável aprendiz de historiador e monografista local.

Membro da geração do primeiro decénio de novecentos, interventiva como se infere, por exemplo, da greve académica de 1907, e influenciada, à semelhança de algumas gerações anteriores, pelo romantismo, pelo naturalismo literário, pelo positivismo (Ordem e Progresso), pelo socialismo utópico e pelo republicanismo, Augusto César Esteves não destoou do quadro geral em que podemos inseri-lo. Quer como jurista, quer  como intelectual e cidadão politizado reflectiu as preocupações sócio-políticas do seu tempo e acompanhou as sucessivas tendências e alterações mundiais com espírito simultaneamente crítico e atento. Mas fez isto tudo, saindo o mínimo possível de Melgaço e este traço merece destaque porque em certa medida proporcionou que, a partir sobretudo da década de quarenta, intensificasse a recolha de informação histórica e trabalhasse o caudal crescente de dados a fim de firmar créditos como o único monografista sistemático do seu concelho natal.

A passagem por Braga e sobretudo por Coimbra, num período curto de viragem político-institucional – a instauração da Republica em 1910 - , foi importante para a sua postura ideo-política e para o seu perfil de intelectual progressivamente seduzido e embrenhado nos estudos históricos (desde o período medieval até ao séc. XIX). Militou no Partido Republicano Português/Partido Democrático (1911-1926) liderado por Afonso Costa e após 1919 pelo Eng. António Maria da Silva, embora não tenhamos ainda podido colher na imprensa regional vestígios claros desse seu militantismo partidário, vindo depois a situar-se na barricada dos que opondo-se ao Estado Novo não podiam hostilizá-lo se queriam continuar com o emprego público e a residir onde desejavam. Em contrapartida, é mais fácil compreender e explicar as linhas de força que orientaram o publicista e o historiador amador de Melgaço.

Temos mais de um milhar de páginas escritas em que estas facetas complementares se derramam e evidenciam. Merece, aliás, destaque a dedicatória à sua mulher com que abre o primeiro livro impresso: Esmeralda/ Porque nem tu receias a linda rival, nem eu temo se aniche no teu peito o ciúme provocado por esta amante, para mim tão cara e feiticeira, avalia tu própria os meus novos amores, lendo com atenção estas páginas ligeiras, escritas quase todas a teu lado. /Para isto t’as ofereço e confiadamente, as deponho no teu ragaço, beijando-te a mão. / Teu/ Augusto 1. E logo a seguir, sob o título Conversemos, deixou gravados os propósitos que o levaram a escrever, anos antes, os artigos sobre história local nas páginas do jornal Notícias de Melgaço destinadas aos seus patrícios: Mas como o Autor não aspira à imortalidade apetecida pelo historiador ou pelo purista da língua, pois se contenta com as honras de pequeno cabouqueiro da história local, votado a carrear elementos, para outros, mais tarde, sáfaro e ingrato, inicia-se mesmo assim a publicação de Melgaço e as Invasões Francesas.

Os valores republicanos que perfilhou – um exacerbado nacionalismo e patriotismo de matiz regionalista, um claro apego à liberdade, à democracia e à justiça social e um indelével intransigência moral – emergem claramente da sua prosa de publicista e da pena do publicista saíram a “tinta” e as cores políticas e ideológicas mescladas, sempre, com a defesa intrépida dos interesses locais. Significa isto que o político, o ex-militante republicano e o cidadão zeloso de seus direitos e dos seus conterrâneos perpassa nas páginas históricas tecidas num estilo com concessões frequentes ao subjectivismo literário e ao constante remoque moralista, social e político. Não é, assim, possível separar o publicista do monografista, mas é deste que nos temos de ocupar porque ele se agigantou e deixou obra.

 

 

(continua)

 

ENTRUDO EM MELGAÇO NOS ANOS 30

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

O CARNAVAL EM MELGAÇO

 

 

    Aquele verão estava gostoso e os anos trinta até um pouco mais de sua metade, eram fáceis de viver. Corriam suaves e até com uma certa abastança. Naquelas paragens, quem não encontrasse trabalho no lugar era só dar um pulo a Espanha e fácil arranjaria onde ganhar dinheiro. Por lá havia um surto de progresso, construção civil, estradas e caminhos de ferro. E os melgacenses se baldeavam para a Galiza ou um pouco além e, ao fim de alguns meses, voltavam com dinheiro no bolso que gastavam na terra. Diziam até que eles só vinham à terra para fazer mais um filho. E além de dinheiro traziam novos conhecimentos sobre seus ofícios que, em contacto com artífices de outras paragens, adquiriam. Também traziam novos costumes e hábitos que enriqueciam a cultura local.

    Uma demonstração de abastança fora o carnaval daquele ano. Os bailes tinham sido mais requintados com muita gente se fantasiando e, a novidade, o baile infantil à fantasia. No dia 20 de Janeiro, era o início do Carnaval e quem o anunciava era o Amadeu Rato. Vinha de Corçães, ele e os filhos da Maria Penica, rapazes e raparigas, fantasiados com roupas velhas e caras tapadas com pano de saco, fazendo a maior algazarra. Fingiam uns de contrabandistas com sacos às costas, e os outros, de guardas com espingardas de pau correndo atrás dos primeiros. Era uma cheia de rir. As crianças correndo ao lado deles divertiam-se a valer. A brincadeira terminava na taberna que lhes oferecesse vinho de graça.

    Pois nesse ano, o Entrudo teve baile infantil à fantasia. Parece que a ideia partiu do Jacob, o mais competente e habilidoso trolha da região, um grande artista na sua profissão, que andou muito tempo pela Espanha e viu isso por lá. Todas as famílias que tinham crianças aderiram à ideia e os preparativos aconteceram no maior sigilo. Todos queriam fazer surpresa com suas fantasias. Cochichava-se nos cantos, querendo adivinhar o que os outros estavam fazendo. A terça-feira de Entrudo chegou finalmente.

    Era pleno inverno com o costumado frio, mas aquela tarde parecia primaveril. O sol estava radioso e a brisa corria morninha. Até parecia que o tempo queria participar da folia fantasiado de primavera.

    À uma da tarde começaram a chegar ao terreiro, local da concentração, as famílias com as crianças. Para cada criança fantasiada vinha um montão de adultos, a família toda. A vaidade era dos grandes; os pequenos, alguns, vinham até contrariados, com as roupas espalhafatosas que os incomodavam. Rapazes e raparigas, sozinhos ou formando casais, envergavam as mais variadas fantasias. O espectáculo estava realmente bonito. Chegaram os mais esperados, de quem se comentava maravilhas naqueles cochichos de esquina, o Manelzinho do Augusto do Félix e a sobrinha, a Maria da Conceição, filha do Lucas e da Maria Natércia. Tio e sobrinha só faziam diferença entre si de pouco mais de um ano de idade. A expectativa do povo foi satisfeita. O casalzinho estava primoroso. Ele vestido de Marquês de Pombal e ela de Dama Antiga. As roupas haviam sido confeccionadas pelo Augusto do Félix com a colaboração das mulheres da família. A Mia com um vestido longo, até aos pés, muito rodado e armado com arquinhos por baixo da saia, cheio de folhos e rendas, luvas de renda, sapatos brancos de verniz e volumosa cabeleira loura, cacheada até debaixo dos ombros. O Manel, elegantíssimo, numa roupa preta, calça justa até ao joelho, jaqueta debruada de rendas brancas, também a camisa de renda com folhos na gola e na manga, saindo por baixo da manga da jaqueta, cabeleira loira, cacheada e comprida, meias brancas até aos joelhos e sapatos pretos de verniz com grandes fivelas prateadas e rendinhas à volta.

    As cabeleiras, primor de habilidade e paciência, feitas pelo pai e avô dos personagens e penteadas com grande capricho pelo João do Gabriel, barbeiro com pendores de cabeleireiro e que com cosméticos e ferro quente, conseguiu fazer na estopa aquela maravilha de caracóis caindo em cachos.

    Os promotores da festa logo elegeram aquele casalzinho como o mais bonito, as melhores e mais belas fantasias, com aprovação unânime do povo, e por isso deviam abrir o cortejo. Mas o Jacob pleiteou e conseguiu que os seus filhos, o Manuel e o Zeca, vestidos iguais, fantasiados de gaiteiros galegos com gaitas de foles e tudo, fossem os da frente. O cortejo organizou-se desfilando com os gaiteiros soprando desesperadamente as suas gaitas de que saía um som estridente sem nexo e sem compasso, pois eles não sabiam tocar. Em frente, pela Rua Direita, lá foram mais de cinquenta crianças, emproadas, empertigadas, saracoteando a vaidade dos parentes, umas chochas e macambúzias outras. As pessoas grandes, ladeando o cortejo e fazendo grande algazarra, e uma ou outra mulher, volta e meia, entrando no meio das crianças, para compor algum detalhe que não estava a contento, no seu pirralho, tal como faziam nas procissões. As poucas criaturas que ficaram nas casas aplaudiam à passagem. Gente das aldeias também tinham vindo apreciar a novidade.

    Chegados ao Salão Pelicano subiram à sala de cima onde se ia realizar o baile. Daquela multidão que acompanhara o desfile, nem todos entraram. O recinto não comportava. Os que conseguiram entrar acotovelavam-se uns aos outros. A orquestra do Avelino do Peso já estava no estrado que servia de palanque e atacou uma bonita marchinha muito em voga na época, música essa, cujos acordes ainda agora soam na mente de algumas ex-crianças. O que devia ser uma dança virou uma balbúrdia. A meninada, muito novinha, a maioria, não sabia o que era dançar, agarravam-se umas às outras balançando-se, atropelando-se e caindo, para desespero dos adultos que viam as fantasias amarrotar-se. O Jacob e outros promotores entraram no meio tentando organizar a coisa. Aquela confusão. O baile prolongou-se por uma hora e como não havia maneira de dar jeito, resolveram reorganizar o cortejo e voltar para o terreiro onde as crianças poderiam divertir-se à sua maneira sem ter de obedecer ao compasso da música. E assim foi e a miudagem gostou. O Augusto do Félix e o resto da família estavam aborrecidos com o comportamento do Manelzinho. Ele, que normalmente parecia que tinha o bicho carpinteiro, sempre o mais espevitado, nesse dia estava sorumbático e arredio. Não queria brincar e não dizia o que tinha. Seria que se achava por demais bonito e enfeitado com medo que o desfizessem de algum detalhe da sumptuosa fantasia ? Já no desfile repararam que ele andava mansinho, como quem pisa em ovos, com medo de estragar os sapatos…

    E os grandes da família empurravam o rapazinho para o meio dos outros para pular e brincar. Ele ia e voltava. O tio Emiliano resolveu tirar a limpo o que estava acontecendo.

    — Esse rapaz deve ter alguma coisa nas pernas ou nos pés! Vem cá Manel, senta aqui no banco!

    Verificou as calças, as meias, tirou-lhe os sapatos. Ora vejam! Dentro dos sapatos, nas pontas, uns chumaços de papel, que eram usados enquanto novos para manter firmes as biqueiras e haviam-se esquecido de os tirar. Era aquilo o tormento do rapaz!

    Livre dos empecilhos, ninguém segurou o Manelzinho! Parecia uma sardanisca! Dali a pouco a situação estava invertida: os grandes reclamando do rapazinho. A primeira coisa de que se livrou foi a cabeleira.

    Aquele Entrudo famoso durou até ao anoitecer para as crianças. À noite foi a vez dos adultos.

    Foi mais uma página feliz, um bonito retalho na vida daquelas crianças da Vila de Melgaço.

 

                                                                           

                                                                          Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

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