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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O MANCO

melgaçodomonteàribeira, 04.03.13

 

 

O Ti António era manco, mas manco mesmo de verdade, daqueles que perderam uma perna e agora usam uma de pau. Só se vê o toco, revestido de pneu de bicicleta a sair pela perneira da calça azul escuro suja, que acompanhava sempre o casaco a condizer e o chapéu negro cinzento preto conforme a posição do observador e da luz incidente ser directa ou difusa.

Recebeu de alcunha o nome do lugarejo onde habita e assim dá pela graça de Manco da Carneiriça. Reformado do Estado adoptou a profissão de testemunha. Testemunha dispotadíssima pelas partes em confronto via-se muitas vezes obrigado a receber das duas partes. Era a parte mais chata da profissão, quase igual á que ocorria quando o juiz já farto de o ter pela frente o proibia de entrar no tribunal.

— Estou de férias – retorquia quando era procurado por réu ou acusador.

Na verdade, Ti António, aproveitava essas pausas que não eram muito prolongadas porque os juizes não morriam de amores pela Vila e só estavam de passagem, para praticar os seus passatempos favoritos: beber e muito do tinto da região e jogar ás cartas. Aliás jogar ás cartas era divertido porque lhe permitia com uns passes de batota mostrar como se joga. E os mirones que não faltam nunca, alguns dos quais que por isto ou por aquilo ou porque não gostam de mancos com perna de pau, espreitam a ocasião de o demonstrar.

A mesa de jogo de ferro forjado e tampo de marmore, com nódoas de vinho tinto, coberta por pano verde é o centro do mundo. Ti António o Manco da Carneiriça é o ultimo a sentar, bem de costas para quem passa. Os mirones sempre atentos ao jogo, trufo é copas e urina é mijo, estão como que suspensos das cartas manejadas pelo manco.

— Cortaste ouros e agora tens...

De imediato duas mãos enterram o chapéu na cabeça do manco e quando ele se vai levantar uma palmada obriga-o a ficar sentado. O cigarro eternamente no canto da boca é cuspido, o manco levanta-se dá um passo enquanto roda e espalha-se ao cumprido pelo chão. Esqueceu-se que lhe ataram a perna de pau á perna de ferro da mesa de jogo. Resmunga enquanto se levanta, o vinho a saltar no estômago, quem foi o...

A sala de jogos está vazia, só patrão Tano atende um freguês na outra sala do café.

— Malandros, corja de malandros, Tano dá-me uma tigela. Ó Tano...

— Espere aí que já salta o zarapulho.

Manco da Carneiriça espeta um cigarro no canto da boca e vai resmungando para consigo próprio, um olhar turvo ao patrão Tano, queima os dedos com o fósforo.

— Seu malandro, seu patife, de dedo no ar exclama patrão Tano, o que é que fez á freguesia que fugiu toda a correr... não há vinho p'ra borrachos.

— Ó Tano, só uma tigela...

— Fez batota não foi? Está-lhe bem, há-de pagá-las todas.

— Uma tigela Tano...

— Borracho, só de zarapulho!

Mas o manco não é homem de sermões e senta-se a beber a tigela de tinto, resmungando e chupando o cigarro, resmungando e chupando... Passam-se as horas e aumenta o numero de tigelas emborcadas e caminha rapidamente para o ponto perigoso da noite. Insulta um, insulta outro, berra o manco da Carneiriça. Encosta-se á ombreira da porta entre as salas, a luz apaga-se, o clarão do cigarro, o som do zarapulho a embater.

— Esteve-lhe bem – rosna o manco.

A luz acende-se e Ti António o Manco da Carneiriça, está a pingar a mistura de borras de café e vinho azedo que encharca o zarapulho. Sempre a resmungar atravessa a sala do café cambaleando muito mais que o normal, mas não excessivamente para dia de borracheira. Pela frente tinha agora uns km's a percorrer, triplicados por mor da bebedeira e mais a perna de pau, pela estrada principal e mais umas centenas de metros pelo caminho que atravessa os campos de milho e leva á casa de pedra mal amanhada e telhado roto. Mais que a distancia a percorrer o problema eram os tombos para dentro das valetas. E sair? Se não fosse a perna de pau ... assim lá tinha que comer um pouco de erva com terra á mistura. Nessa noite as quedas foram três que não deixaram marcas a não ser no fato azul escuro sujo. A terceira foi como costume no degrau de pedra que dá acesso à porta da casa e tem a particularidade de o fazer cair de costas.

Resmungos e mais resmungos até encontrar uma beata que enfiou no canto da boca. Fósforos não tinha. Abriu a porta com estardalhaço. Á sua frente um corredor com dois metros de comprimento, devidido ao meio por uma corda com lençóis estendidos. A casa está dividida ao meio. No quarto da cama ouve-se forte ressonar. De boca aberta Maria, a mulher, dorme.

— Sua p*ta, a dormir na minha cama!

Maria não acorda e Ti António bota a mão á roupa da cama e espalha-se ao comprido no quarto. Maria dorme. Ao procurar apoio a mão encontra o penico em baixo da cama e num ai é despejado em cima de Maria que acorda sobressaltada e mijada.

— Sua p*ta, sai já da minha cama.

— Esta cama é minha.

Agarra-se á Maria a cambalear e puxa-a para fora da cama. A mulher sai do quarto, rosto fechado de anos de sofrimento e dirige-se para a sua parte da cozinha.

Ti António o Manco da Carneiriça tira a perna de pau e cai sobre a cama. Em segundos está a roncar, dorme perfundamente.

Na cozinha, Maria bebe um pouco de aguardente p'ra matar o bicho que o dia já se levanta.  Bebe outro copo enquanto aquece o café. no fim do terceiro copo dirige-se segura de si para o quarto de onde foi expulsa. Os socos cardados ressoam pela casa mas nada acorda o manco. Maria sorri enquanto afaga a perna de pau e a baixa sobre o corpo adormecido.

— Toma malandro, borracho filho da p*ta...

— Ai que me matas minha p*ta...

A tareia demorou minutos e se deixou marcas a mulher não perdeu tempo a olhá-las, mais uns minutos e o marido ronca, daí a dois dias não se lembrará de nada e há milho a sachar enquanto o sol não aquece.