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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

PARADA DO MONTE

melgaçodomonteàribeira, 11.08.20

243 -Parada do Monte.JPG

PARADA DO MONTE

HISTÓRIA E PATRIMÓNIO

 

                                                                         Antero Leite

                                                                         Mª Antónia Cardoso Leite

 

O tempo medieval

 

A ocupação humana do Vale do Mouro no Neolítico está comprovada pela existência de um núcleo dolménico em Couço referido na Carta Geológica de Portugal e na mamoa da Mina da Mota na zona de Travassos.

Da Idade do Ferro poderão subsistir povoados castrejos em algumas cristas dos montes envolventes a Parada ainda não objecto de escavações arqueológicas. Relativamente próximo encontraram-se casas redondas nas elevações que se perfilam no curso inferior do rio Mouro (Monte da Ascensão, Senhora da Graça, Tangil, Trute). A montante e SW de Castro Laboreiro, que está assente num velho Castro proto-histórico, também existe à cota 1033, outro Castro (Ribeiro e Moreira, 1986:41). Parada do Monte poderá ter sido um núcleo da cultura castreja. Só a Arqueologia o revelará.

Dos tempos da Romanização não existem vestígios descobertos mas não será de excluir a hipótese de as legiões romanas terem subido o Vale do Mouro para dominarem os povos do Laboreiro utilizando uma via partindo das margens do Minho e passando por Messegães, Valadares, Riba de Mouro e Gave. Parada seria um entreposto, local de paragem a caminho de outros locais (Domingues, 2008:90). Por esta via também teriam passado os cavaleiros da Reconquista em luta com os Muçulmanos e D. Afonso Henriques quando tomou o castelo de Laboreiro.

A fixação de ordens militares depois da expulsão da mourama está compreendida na política de estabilização e povoamento do território dos nossos primeiros reis. Lamas de Mouro, freguesia próximo de Parada do Monte, esteve ocupada pelos Templários (Domingues 1999). Houve também interesse régio em colocar na raia do Minho, cavaleiros fiéis concedendo-lhes vastos domínios. A Soeiro Alves, D. Afonso Henriques coutou a terra de Valadares que incluía o Vale do Mouro e as povoações de Badim, Cousso, Paderne e Fiães (Mattoso, 1988: 140-141).

Parada do Monte era ainda uma pequena aldeia, de casas cobertas a colmo, rodeada de algumas herdades pertencentes aos monges de Fiães que procuraram ampliar os seus domínios para além do couto que lhes havia sido concedido pelo nosso primeiro rei. Uma das formas que utilizaram foi a de receberem terras por doação testamentária.

Bernardo Pintor ao estudar a documentação existente no Arquivo Distrital de Braga, encontrou uma escritura no ‘Cartulário’ do Mosteiro de Fiães, datada de 1194, referindo Parada do Monte como estando situada ‘subtus mons leporario’, ou seja, sob os Montes Laboreiro (Pintor, 1975-reed. 2005: 341).

Num outro documento também do século XII são definidos os limites de Parada do Monte os quais para aquele investigador corresponderiam aos da freguesia (Pintor, 1975-reed.2005:73).

Uma doação testamentária feita por Afonso Pais e mulher Urraca Dias ao Mosteiro de Fiães, datada de Setembro de 1221, cita uma herdade correspondente à ‘oitava parte da Parada’ com os limites: ‘Pelo Mourilhão até ao Curro de Abril e daí a Feverença e daí ao Parte Águas daí desce pelo rio Menduro e fecha no Mouro… ‘(ADB 1221). Bernardo Pintor em a ‘Voz de Melgaço’ de 1 de Novembro de 1947, explica que Curro de Abril se chama hoje Cruz de Abril e fica entre as brandas de Mourim e de Covelo. Fervença é junto à branda de Bouça talvez um nada afastado dos actuais limites. Rio Menduro é o Medoira.’ (Domingues, 2008: 97).

 

(…)

 

Publicado em:

acer-pt.org/docs/parada_do_monte. pdf

 

 

 

 

 

RESENHA HISTÓRICA DE PARADA DO MONTE

melgaçodomonteàribeira, 13.05.17

22 c2 - Vista parcial de Parada do Monte.JPG

 

PARADA DO MONTE, HISTÓRIA

 

 

A ocupação humana do Vale do Mouro no Neolítico está provada pela existência de um núcleo dolménico em Couço referido na Carta Geológica de Portugal e na mamoa da Mina da Mota na zona de Travassos.

Da idade do Ferro poderão subsistir povoados castrejos em algumas cristas dos montes envolventes a Parada ainda não objecto de escavações arqueológicas. Relativamente próximo encontram-se casas redondas nas elevações que se perfilam no curso inferior do rio Mouro (Monte da Ascensão, Senhora da Graça, Tangil, Trute). A montante e a SW de Castro Laboreiro, que está assente num velho Castro proto-histórico, também existe à cota 1033, outro Castro. Parada do Monte poderá ter sido um núcleo da cultura castreja. Só a arqueologia o revelará.

Dos tempos da Romanização não existem vestígios descobertos mas não será de excluir a hipótese de as legiões romanas terem subido o Vale do mouro para dominarem os povos do Laboreiro utilizando uma via partindo das margens do Minho e passando por Messegães, Valadares, Riba de Mouro e Gave. Parada seria um ‘entreposto, local de paragem a caminho de outros locais.

Por esta via também teriam passado os cavaleiros da Reconquista em luta com os Muçulmanos e D. Afonso Henriques quando tomou o castelo de Laboreiro.

A fixação de ordens militares depois da expulsão da mourama está compreendida na política da estabilização e povoamento do território dos nossos primeiros reis. Lamas de Mouro, freguesia próxima de Parada do Monte, esteve ocupada pelos Templários. Houve também interesse régio em colocar na raia do Minho, cavaleiros fiéis concedendo-lhes vastos domínios. D. Afonso Henriques coutou a terra de Valadares que incluía o Vale do Mouro e as povoações de Badim, Cousso, Paderne e Fiães.

Parada do Monte era ainda uma pequena aldeia, de casas cobertas a colmo, rodeada de algumas herdades pertencentes aos monges de Fiães que procuraram ampliar os seus domínios para além do couto que lhes havia sido concedido pelo nosso primeiro rei. Uma das formas que utilizaram foi a de receberem terras por doação testamentária.

Bernardo Pintor ao estudar a documentação existente no Arquivo Distrital de Braga, encontrou uma escritura no ‘Cartulário’ do Mosteiro de Fiães, datada de 1194, referindo Parada do Monte como estando situada ‘subtus mons leporario’, ou seja, sob os Montes Laboreiro.

Num outro documento também do século XII são definidos os limites de Parada do Monte os quais para aquele investigador corresponderiam aos da freguesia.

Uma doação testamentária feita por Afonso Pais e mulher Urraca Dias ao Mosteiro de Fiães, datada de Setembro de 1221, cita uma herdade correspondente à ‘oitava parte de Parada’ com os limites: ‘Pelo Mourilhão até ao Curro de Abril e daí a Fervença e daí ao Parte Águas daí desce pelo rio Menduro e fecha no Mouro…’ Bernardo Pintor em ‘A voz de Melgaço’, de 1 de Novembro de 1947, explica que Curro de Abril se chama hoje Cruz de Abril e fica entre as brandas de Mourim e de Covelo. Fervença é junto à branda de Bouça talvez um nada afastado dos actuais limites. Rio Menduro é o Medoira…….

As Inquirições de 1258 são omissas a Parada do Monte mas ao referirem-se a S. Pedro de Mouro (hoje Riba de Mouro) ‘disseram que quando houver guerra hão de guardar as travessas (travessias) do Monte de Laboreiro. Os habitantes de Parada do Monte estavam também obrigados a prestar tal serviço pois o seu território integrava-se no de Riba de Mouro. Havia ainda o costume antigo de prestarem ‘rogos’ quando algumas pessoas da Galiza casavam e que eram ‘o mesmo que ‘geiras’ ou prestações de serviços agrícolas e cada geira do campo, sendo completa, constava de cinquenta homens de cava. Este costume causava a ruína dos lavradores conforme se aludia numa petição dirigida pelo conselho de Valadares a D. Afonso V. Em 1462, o Rei decidiu que taes rogas nom aver nem se darem nem irem dar a Gualiza nem virem de la os dar cá, tendo fixado a multa de 1000 reais aos que infringissem esta directiva.

Na ocupação humana do território sob os Montes Laboreiro e em particular do Vale do Mouro exerceu importância significativa a circulação de pessoas e bens por estradas e caminhos.

Existia uma via vindo de Valadares pelo Monte da Cumieira e que se dirigia para Cousso, Pomares, Cubalhão e Lamas de Mouro. Daqui continuava para Alcobaça e Porto de Cavaleiros onde atravessava a fronteira. Uma outra derivação atingia Portelinha ramificando-se para o Soajo, Castro Laboreiro e Entrimo. Era o eixo do comércio do gado pela raia seca referido em documentos. Também permitia a circulação do carvão, mel, cera e caça.

Parada do Monte comunicava com aqueles destinos através do percurso pela branda de Travassos, de difícil progressão dado o relevo do terreno, ou então atravessando o Mouro pela ponte da Minhoteira e subindo a Pomares. Era também nesta direcção que se ia à feira em Melgaço com passagem por Paderne, lugar de Moinhos, Ponte da Folia e Remoães. O percurso estabelecia também ligação com S. Marcos onde existia uma barca de passagem do rio Minho permitindo a entrada na Galiza por Arbo.

Havia ainda o caminho seguindo pela margem esquerda do rio Mouro com passagem por Gave, Riba de Mouro até Valadares sede do concelho. Era por ele que se fazia um importante trânsito de pessoas e mercadorias, particularmente nos dias em que havia feira em Valadares.

 

 

PARADA DO MONTE, História e Património

Antero Leite

Mª Antónia Cardoso Leite

 

http://acer-pt.org

LA NAZCA PORTUGUESA

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

   A una hora de Vigo y muy cerca de la frontera con Portugal, las montañas de la Serra da Peneda, pertenecientes all concello luso de Melgaço, escondían un tesoro arqueológico que hasta ahora había pasado desapercebido para los estudiosos:una veintena de figuras de animales y rostros humanos conformados por alineamentos de monolitos, que algunos casos tienem más 300 metros de largo y que solo pueden ser destinguidos de una posicion elevada. Este tipo de hallazgo arqueológico es totalmente novedoso en Europa y sólo se tienen noticias de restos similares en el continente asiatico y americano.

   La mayoria de estas colosales figuras se encuentran situadas en las laderas de las montañas cercanas al Parque de Lamas de Mouro y el pueblo de Cubalhao. Después de siete años de investigaciones y tras explorar repetidamente la sierra con ayuda de pastores y la guía del Parque, Silvie Amorín, pude determinar que las formaciones de piedras “hincadas” no eran ningún tipo de muros y, tras examinar numerosas ortofotos aéreas y compararlas con las tomadas en tierra, llegué a la conclusión de que dichos restos arqueológicos dibujaban figuras de varias especies: aves, cuadrúpedes y anfibios, así como rostros humanos, cuyo tamaño va desde los 50 a 350 metros de longitud. Muchas de las figuras pueden verse desde lo alto de las montañas viecinas, por lo que no es probable que se hicieran para ser vistas únicamente desde el cielo, lo cual descarta cualquier tipo de especulación en este sentido.

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Pode ler mais em www.akasic.com de onde este texto foi retirado.

 

SOMOS EMIGRANTES, SIM SENHOR

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

Homenagem ao emigrante - Fiães

 

 

  ESTE TEXTO TEM POR BASE DADOS DOS INSTITUTOS DO GOVERNO PORTUGÊS. MELGAÇO É O CONCELHO COM MENOR NÚMERO DE INSCRITOS EM CENTRO DE EMPREGO. É VERDADE, SIM SENHOR; E DESDE CAMÕES FOI POETICAMENTE ESCRITA A NOSSA BOA SORTE.

 

 

"A QUE NOVOS DESASTRES DETERMINAS

DE LEVAR ESTES REINOS E ESTA GENTE

QUE PERIGOS, QUE MORTE LHES DESTINAS

DEBAIXO DALGUM NOME PREMINENTE!

QUE PROMESSAS DE REINOS E DE MINAS

D’OURO, QUE LHE FARÁS TAM FACILMENTE ?

QUE FAMAS LHE PROMETERÁS? QUE HISTÓRIAS ?

QUE TRIUNFOS? QUE PALMAS? QUE VITÓRIAS ?"

 

CAMÕES

 

                                 

"NÃO ME TEMO DE CASTELA

DONDE INDA GUERRA NÃO SOA;

MAS TEMO-ME DE LISBOA,

QUE, AO CHEIRO DESTA CANELA,

O REINO NOS DESPOVOA"

 

SÁ DE MIRANDA

 

 

"VEMOS NO REINO METER

TANTOS ESCRAVOS CRESCER

E IREM-SE OS NATURAIS

QUE, SE ASSIM FOR SERÃO MAIS

ELES QUE NÓS A MEU VER"

 

GARCIA DE RESENDE

 

 

OLHAI, OLHAI, VÃO EM MANADAS

OS EMIGRANTES …

UIVOS DE DÓ PELAS ESTRADAS.

JUNTO DO CAIS, NAS AMURADAS

DAS NAUS DISTANTES …

VELHINHAS, NOIVAS E CRIANÇAS,

SENHOR! SENHOR!

AO VOAR DAS ULTIMAS ESP’RANÇAS

CRISPAM AS MIOS, MORDENDO AS TRANÇAS,

LOUCAS DE DOR!

LÁ VÃO LEVADOS, VÃO LEVADOS

PELO ALTO MAR

…………………………………………….

VOLTARÃO, QUANDO, MAR PROFUNDO ?

JAMAIS! JAMAIS!

 

GUERRA JUNQUEIRO

 

 

"HOMENS QUE TRABALHAIS NA MINHA ALDEIA,

COMO AS ÁRVORES, VÓS SOIS A NATUREZA.

E SE VOS FALTA, UM DIA, O CALDO PARA A CEIA

E TENDES DE EMIGRAR,

TRONCOS DESARREIGADOS PELO VENTO,

LEVAIS TERRA PEGADA AO CORAÇÃO.

E PARTIS A CHORAR.

QUE SOFRIMENTO,

Ó PÁTRIA, VER CRESCER A TUA SOLIDÃO!"

 

T. PASCOAIS

 

 

"…VI MINHA PÁTRIA DERRAMADA

NA GARE DE AUSTERLITZ. ERAM CESTOS

E CESTOS PELO CHÃO.

PEDAÇOS DO MEU PAÍS.

RESTOS.

BRAÇOS.

MINHA PÁTRIA SEM NADA

SEM NADA

DESPEJADA NAS RUAS DE PARIS.

E O TRIGO ?

E O MAR ?"

 

M. ALEGRE

 

 

AI, HÁ QUANTOS ANOS PARTI CHORANDO

DESTE MEU SAUDOSO, CARINHOSO LAR!...

FOI HÁ VINTE ? … HÁ TRINTA ?... NEM EU SEI QUANDO!...

MINHA VELHA AMA, QUE ME ESTÁS FITANDO,

CANTA-ME CANTIGAS PARA EU ME LEMBRAR!...

 

DEI A VOLTA AO MUNDO, DEI A VOLTA À VIDA…

SÓ ACHEI ENGANOS, DECEPÇÕES, PESAR…

OH! A INGÉNUA ALMA TÃO DESILUDIDA!...

MINHA VELHA AMA, COM A VOZ DORIDA,

CANTA-ME CANTIGAS DE ME ADORMENTAR!...

 

GUERRA JUNQUEIRO

 

 

   ESTE TEXTO FOI RETIRADO DE BIBLIOTECA DIGITAL CAMÕES, INSTITUTO DE CULTURA E LINGUA PORTUGUESA. É DA AUTORIA DE JORGE CARVALHO ARROTEIA. DENOMINADO: A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA – SUAS ORIGENS E DISTRIBUIÇÃO.

   UMA HOMENAGEM A TODOS NÓS QUE DEIXAMOS A NOSSA TERRA.

    A TODOS OS MELGACENSES EM FRANÇA, SUIÇA, ANDORRA, GALIZA, ESPANHA, CANADÁ, EUA, BRASIL…

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXIV

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Não tivera coragem para levantar os olhos da lareira e enfrentar o olhar cordial, mas circunspecto da avó que não ficara nada satisfeita com a resposta. Gostaria tanto de ter a coragem necessária para lhe contar a pena funesta que se apoderara dele, o envenenava e o impelia a destruir-se. Era um jovem e, portanto, naquele momento, parecia mais velho do que a avó que tinha cinco vezes a sua idade. É bem verdade que a pior velhice é a do estado de espírito, que corroi, que se alimenta de desgostos e que definha as pessoas brutalmente. Tinha de sair, de respirar. Não queria aviltar o contentamento, a felicidade que a notícia da vinda do pai tinha prodigado à sua avó. Levantou-se delicadamente, baixou-se diante dela e agarrou-lhe nas mãos cadavéricas que acarinhou.

— Abó, nom faça caso de mim qu’eu ando aborrecido, mas isto nom ê nada. Ô que quero ê que bocê esteja contente por ô meu pai enfim bir. Bou ir prô quinteiro rachar lenha, que me bai fazer bem.

Sentiu um desdém aflitivo por si. Que coisa estranha ! Havia muito que se prometera honestidade, confiança e harmonia assíduas entre as palavras, os actos e a sua pessoa, que jurara nunca mascarar os seus pensamentos e eis que, fortuitamente, se pusera a seguir as pegadas da mentira, a glorificar a hipocrisia, a erigir sebes de sorrisos e a forçar os olhos e os lábios a exibirem uma felicidade inexistente. A verdade fazia-o corar e exasperava-o. Tinha vergonha de se ter deixado subjugar pelos sentimentos.

O Fedelho seguiu-o até à porta das cortes e sentou-se ao lado. O Armindo foi trazendo toros de pinheiro e de carvalho até constituir um elevado monte. Depois, cuspiu nas mãos e, com o machado que era minuciosamente amolado pelo Salvador, foi rachando, fazendo com um toro quatro boas achas. A energia colossal que dele exalava atirava com as achas às viravoltas a uma distância considerável. Quando o machado rachava o toro, era na gente do lugar, nos pais da Lídia, no padre, na mãe, no pai, nos amigos, no velho pedinte, no destino... que ele pensava. Por causa deles, não pudera desenvolver aquela vitalidade admirável com a qual o seu coração se abraçara, se aninhara no da rapariga mais linda, mais angelical do lugar. Ele, aleijado, a risada dos apoucados, despertara sentimentos afectuosos, amorosos, numa moça que não tinha a menor dificuldade em encontrar alguém conveniente. E, isso, para ele, era a prova de que os sentimentos não precisam de olhos para se poderem revelar e ancorar. Só os que não têm sentimentos é que se guiam pelo olhar que, forçosamente, é falacioso e lhos desenvolve erroneamente.

Detestava esta gente toda como nunca pensara que fosse possível detestar alguém. Sentia-se roubado. Tinham-no desbulhado, despido da única coisa para a qual o seu infortúnio não era uma atrofia. Percebeu que a pouca dignidade e respeito que ele acreditava que lhe tinham deixado não eram mais do que um véu tão transparente e fino, que a mais derisória corrente de ar não tinha qualquer dificuldade em precipitar. Como no mundo animal, os mais vulneráveis são sempre os primeiros a cair. Já não tinha importância nenhuma para ele.

À medida que ia estilhaçando os toros, crescia nele a sensação de que, finalmente,  começava a saborear este sofrimento abjecto, consubstancial. Quanto mais aumentava o ódio monstruoso e a aversão que sentia por quem lhe tinha feito mal, por quem o tinha vilipendiado, mais o gozo e o sarcasmo o exaltavam, imaginando a cara assombrada que as velhas do lugar, meias beatas, meias pitonisas, afixariam. Já as ouvia bisbilhotar entre elas: “Eu bem bo-lo dezia qu’êl nom era mi correito.” Ou: “Aquêl rapaz nom era obra de Deus, j’ó sabia.”

Transpirava por todos os poros, mas rachou os toros sem fazer uma pausa até acabar. Em seguida, depois de limpar o suor da testa com a manga da camisa, amontoou as achas dentro da corte, por cima de muitas outras. Depois, encheu a caneca de lata do vinho verde fresco e espumoso de que tanto gostava e que esvaziou em poucas goladas. Fez estalar a língua e ficou uns instantes a olhar para o tecto da corte. O Fedelho, deitado sobre as patas dianteiras, seguira tudo o que o seu amigo fizera e, durante o tempo todo, não tinha mexido, como se o instinto lhe permitisse farejar os funestos pensamentos que ferviam no espírito do rapaz. O sol tinha desaparecido e o dia, sem fazer barulho, ia penetrando fortemente no crepúsculo. Era quase noite quando subiu as escaleiras e fez a porta queixar-se mais uma vez.

XXV

Na manhã seguinte, a Palmira pôs-se a pé à hora habitual. Estava um pouco arreliada porque fora acordada de noite pelos uivos inabituais do Fedelho. Preparou as sopas de cevada com leite que comeu com calma e indiferença, a pensar, como sempre, nas tarefas ordinárias que a esperavam. Lavou a sua malga, o prato e a tigela que o Armindo deixara por cima da mesa naquela noite. Estava mesmo cansado, pensou, lembramdo-se dele, pois ficara a dormir. Deu uma olhadela na mãe que ressonava e fez chorar mais uma vez a porta da casa. O ar era fresco e um vento fraco, mas cortante, puxava, no céu, grandes núvens sujas, como que lavadas de tinta. Desceu as escaleiras pausadamente e dirigiu-se para o celeiro onde tinha as cordas e a foucinha. Deitou a mão à chave, mas constatou logo que a porta não tinha sido fechada à chave. Empurrou-a, mas não passou do limiar. Na ponta duma corda, pendia o corpo do Armindo, inerte. A seus pés, deitado, o Fedelho, que a fitava atentamente.

 

Epílogo

 

Deus ouviu as preces reiteradas da Delfina, consentindo-lhe abraçar, mais cedo do que ela pensava, o seu querido Belardo pela última vez e conduzindo-a, ataráxica e fortuitamente, durante uma soneca na sua deificada cadeira, para junto do seu “Bilinho”, algumas semanas mais tarde.

O Belardo, por sua vez, à vista dos nefastos acontecimentos, decidiu pôr ponto final às estadias fora da terra para se ocupar da esposa atrabiliária que, desde que o filho se suprimiu, deixou totalmente de falar, afastando-se ainda mais do homem e de todos.

A Áurea acabou por casar e, vista a indiferença com que era recebida pelos pais asténicos, acabou por  espaçar gradualmente as vindas a Orjás.

Quanto à Lídia, ficou solteira e a sua mãe acabou por expirar. O pai substitui-a na cama pouco tempo depois. Era vista frequentemente no caminho do moinho do “tio” Júlio, sentada no muro, por debaixo do velho carvalho, onde estivera sentada pela última vez com o Armindo. Falava animadamente com um interlocutor invisível, dando esporadicamente extravagantes gargalhadas, seguidas de estranhos e prolongados prantos convulsivos. Incontestavelmente, não se tinha acomodado da morte do rapaz. Diziam que tinha “virado da cabeça”.

 

Dedicado aos meus amigos do Monte.

 

Julho de 2010.

 

António El Cambório.

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXIII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Não fazia mal. Mostrar-lhes-ia o desdém, a irreverência que tinha por estas pessoas maldosas, diabólicas, luciferianas. Lembrou-se do sermão do padre na missa do último domingo. Para quê ameaçar as pessoas com o Inferno, se elas já são infernais ? O próprio Diabo devia ter ciúmes desta gente !

O balido das cabras acabou por pôr fim ao seu devaneio. Tirou as mortalhas e o tabaco do bolso interior do casaco, velho pelo tempo e pelo uso, e enrolou um cigarro calmamente. Antes de o acender, chamou com meiguice pela Rabugenta que acorreu imediatamente. Sentou-a ao seu lado e, ao mesmo tempo que fumava, ia-lhe acariciando o lombo com ternura. Fazia-lhe bem. Pouco a pouco, a companhia do cabrito foi-o trazendo à realide, placidamente.

XXIV

O Fedelho punha-se todos os dias à espera do Armindo e do gado diante do portão de ferro. Como todos os cães, pressentia a presença deles uns minutos antes destes entrarem por ele adentro. Sabia que não tardariam e quanto mais perto os sentia, com mais intensidade abanava o rabo.

Naquela casa, tudo estava ordenado, regulado. Todos sabiam o lugar que ocupavam, quais eram as suas tarefas e quando deviam ser feitas. Os dias repetiam-se há muito e cada vez se pareciam mais.

Depois de o rapaz abrir o portão e os animais terem entrado, o cão, abanando o toco, esfregou-se insistentemente contra ele. Dava a impressão que entrevia o desgosto que submergia o seu amigo, o seu companheiro, e queria confortá-lo. O Armindo fechou as portas das cortes e agarrou no Fedelho que levou no colo até ao cimo das escadas. Entrou e fechou a porta cujos gonzos não deixaram de pedir sebo mais uma vez. A avó estava sentada na sua cadeira, toda risonha, e a mãe, à mesa, virada para ela. Deu-lhe a impressão que tinha interrompido a conversa que, à primeira vista, devia ser cordial. Sem uma palavra, arrumou o pau ao lado da porta, o saco por cima do móvel e dependurou o casaco no pau. Cansado, puxou uma cadeira e sentou-se, a olhar para a avó, silencioso.

O seu espírito estava longe, divagava, confuso, perdido, no meio de um espesso nevoeiro. As fontes latejavam-lhe continuamente. Passou uma mão pela testa exsudada. Ficou-lhe ensopada e enxugou-a dissimuladamente na manga da camisa. A agitação desmedida provocou sempre nele um excesso de transpiração que o indispunha. Por momentos, instintivamente, continuava a pensar na Lídia e o sangue, ardente, ria no seu corpo. Fragmentos absurdos de frases da conversa que tivera com a rapariga não deixavam de lhe molestar o desvairado espírito. À primeira vista, o seu aspecto não revelava nada do ferimento secreto que o devorava, mas não estava suficientemente dissimulado para conseguir iludir o penetrante olhar e o acerado faro da avó.

— Estás cansado, é Mindo ? – perguntou-lhe a avó, não sem uma ponta de ironia.

A velhota percebera que o rapaz estava contrariado, mas, apesar da sua perspicácia, não podia imaginar a que ponto a exasperação o comia. Confuso, sorriu e, sem olhar para a avó, respondeu-lhe que sim. Revoltava-o não lhe poder dizer a verdade pois conhecia a sua extraordinária susceptibilidade e não queria vê-la atormentada.

A Palmira, que desde que o filho entrara não mexera nem dissera uma palavra, levantou-se e, com a calma crónica que a distinguia, dirigiu-se para os quartos.

Ficaram os dois, em silêncio. A avó observou-o calmamente uns segundos e, vendo que o rapaz, triste, não tirava os olhos do chão, disse-lhe no tom afável e adocicado como só ela sabia exteriorizar:

— Sabes, meu Mindinho, a tua mai recebeu hoje uma carta do teu pai qu’eu esperaba hai muito. Ai que saudades tenho del ! Que Deus no-lo traga passar ô Natal connosco a Orjás, meu filho. Passa tanto tempo sim bir à terra !

Voltou a esboçar um sorriso e, embora sem vontade, levantou o olhar do chão e fixou-o confusamente na avó, cujos olhos cintilantes de felicidade davam a impressão de querer saltar das órbitas ressequidas. Não se sentia nada bem. Levantou-se com incongruência e, depois de ver que restava um pouco de vinho na caneca, deitou-o numa tigela que esvaziou imediatamente. Se estivesse só, tinha dado uma boa golada na garrafa de aguardente que se encontrava no armário da sala. Precisava de um estímulo vigoroso.

Apareceu a mãe com a carta na mão e entregou-lha. A Palmira não fora à escola. O rapaz abriu-a meticulosamente com um canivete e leu-a em voz alta. As duas mulheres estavam inquietas, mas não era pelas mesmas razões. Quando leu a passagem em que o Belardo anunciava a sua chegada para o 21 do mês de dezembro a Delfina louvou o Senhor fazendo o sinal da cruz e a sua cara fendeu-se num enorme e aprazível sorriso de contentamento e alívio.

— Deus oubiu-me. Nom me quêr lebar antes de o ber pola última bez – comentou.

A cara da Palmira não manifestava qualquer alívio ou alegria. A novidade, aparentemente, não tinha excitado qualquer contentamento na mulher. Já nada exercia fosse o que fosse sobre ela. A ausência contínua do Belardo acabara por criar nela uma sensação de derrelicção que, por sua vez, a foi tornando indiferente, desmazelada a tudo e a todos com o decorrer dos anos. Ninguém partilhava com ela a mágoa que o aborrecimento lhe proporcionava. A solidão das pessoas dá cabo de tudo, amolece a terra e faz perder a alma aos seres. É a desgraça suprema. Eram tantas as dores e as lágrimas que a tinham afogado, que o amor, há muito neglijado, se extinguira e transformara em cinzas. Para ela, o marido não passava de um estranho que se vinha intrometer, por umas semanas, na sua vida rotineira, na parte mais íntima do seu corpo, mais por necessidade do que por amor e ao qual tinha que se abaixar. A sua presença era um estorvo, um obstáculo. Foram tantos os anos que passou sem ele que se alegrava de nada mais possuir em comum com este homem e de poder odiá-lo libremente. Sentia-se forte, pois já nada mais tinha para perder. Era tempo de cessar de pensar e de se acomodar, da maneira mais superficial, às circunstâncias.

A impertinência da missiva exprimiu-se através do silêncio glacial que se prolongou depois do termo da sua leitura. O Armindo estendeu a carta à mãe, baixou a cabeça, fincou o queixo no punho, sem manifestar nada de patente e ficou a olhar para a lareira, trepidando, como se estivesse avinhado. A Palmira agarrou na carta e dirigiu-se novamente para o quarto onde a tinha ido buscar. Apenas se ouvia o estalido da lenha no lume.

A pobre Delfina não deixou que lhe enlutassem o momento de grande alegria que não tinha há anos e que tanto desejava. A atitude da filha não a espantava absolutamente nada pois os acontecimentos sobrepunham-se num lapso de tempo demasiado curto. Os aborrecimentos ainda estavam fortemente vivos e a fobia que certamente se apoderara dela não ia ser fácil de evaquar tão depressa.

— Tu nom ficastes contente, Mindo. Ôs teus olhos estam tristes. Êl tu nom estás bem ? – perguntou ao neto.

— Fiquei, bó, mas estou cansado.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

A Lídia não pôde suportar mais tempo o silêncio inquietante do rapaz. Endireitou-se e, inconscientemente, levantou os braços como quem quer contorcer a fatalidade com as mãos. Uma pequena aragem fez mexer os ramos do velho carvalho, a cabeça da moça encheu-se de sombra e o seu coração duma claridade infinita e abrasadora. Então, disse-o, tinha que dizê-lo, era, talvez, a última oportunidade que tinha de fazê-lo: “Gosto de ti, Mindo.” A suavidade do timbre e a melodia da voz fizeram-lhe lembrar a avó que, quando ele ainda era criancinha, lábios colados ao seu ouvido, o acalentava  cantando com meiguice. O moço levantou a cabeça bruscamente e um delicioso sorriso de instantânea  felicidade e alegria apareceu-lhe no rosto. Parecia uma flor que, depois do orvalho nocturno, desabrocha ao sentir as carícias do sol matinal. A rapariga, os penedos, as árvores, tudo se confundiu nos seus olhos e, nesse instante, viu a beleza da Lídia como nunca a vira, como gostaria de continuar a vê-la. Os seus lábios tremeram de desejo mas, com um lento esforço, como se lhe pesasse, desviou o olhar dela. A sua beleza, a sua graça, tinham-lhe dado tantas emoções que só ele e os seus desejos secretos conheciam. Para quê dizer-lhe que  gostava, que sempre gostara e que continuaria a gostar dela, como se fosse única na Terra ? Para quê dizer-lhe que nunca conhecera coisa tão boa como a sua presença, que nunca sentira uma euforia tão entorpecedora, tão apaziguante e agradável como com ela ? Para quê dizer-lhe que, com ela, esquecia os males, as contrariedades, as feridas que o ulceravam e que se sentia tão feliz como nunca imaginara que fosse possível ? Já não tinha sentido nenhum. Em escassos minutos, tudo se desmoronara, tudo se desagregara. O sonho deixara lugar à realidade.

Mantiveram-se silenciosos e imóveis largos instantes. A pobre ignorância que os definia ampliou-lhes o medo e a tristeza que tinham de separar-se. Sentiam-se tão pobres e órfãos como se fossem viver para mundos separados e longínquos. Fez uma festa na mão da rapariga e disse-lhe:

— Minh’irmam dicho-me qu’a gente ê mi mala, é tem razom. Nunca lhes cheg’ó que tem. Atê àlegria dos outros lhes pêsa.

A Lídia pôs uma mão sobre o seu ombro e olhou para ele. Não falou. O rapaz percebeu que não eram estas as palavras que ela esperava mas não conseguiu exprimir o que sentia. Os suspiros dos dois perdiam-se no silêncio. Ele, que se tinha prometido resistir, desafiar e mesmo enfrentar os que sempre o quiseram vilipendiar e aviltar, sentia as esperanças, as forças, a solidez que o amor pela rapariga lhe tinha incutido, sujeitar-se ao peso da vantagem, da utilidade, como o pinheiro que se verga sob a energia do vento ou da chuva.

A moça levantava e deixava cair as mãos nos joelhos fazendo pequenos movimentos de impotência. Por momentos, dava-lhe a impressão que tinha ido embora, que se encontrava alhures, longe, e que não podia encontrar o caminho de regresso para se encontrar com ela própria. Por sua vez, amaldiçoou a gente do lugar. As más-línguas têm todas um determinado talento para acentuar as acções e as palavras que o ódio lhes sugere.

— Êl tu, aconteça ô qu’acontecer, nom t’esquêces de mim ? – inquiriu o Armindo, sem olhar para ela, percebendo que o destino lhe roubava o seu amor para sempre.

Os olhos da moça embriagaram-se de um ardor, de uma radiância ofuscante. A floresta parecia que gemia com eles, duma maneira viva, cúmplice. Inclinou o corpo para trás, graciosamente, provocante. No seu movimento, nas suas palavras, notava-se a magnífica selvajaria do monte, do adejo que serve de apelo às parelhas de pássaros na floresta.

— Nunca, Mindo, nunca – repetiu-lhe – Todo los dias me lembrarei de ti é pedirei a Deus que t’abençoi é te deia um bô destino. É tamém ficamos amigos p’ra sempre, nom, Mindo ?

O rapaz pareceu apaziguado. Não contava com mais nada da vida. A moça, que esperava uma resposta, notou um princípio de cólera rebelde sufocá-la, como se tivesse sido insultada mas, ao voltar a ver o seu ar prostrado, entristecido, depressa se controlou. Apavorada, estendeu-lhe a mão, que transpirava, e que ele agarrou imediatamente.  Lembrou-se da noite que sonhara que a Lídia era sua irmã e vivia na sua casa... Talvez fosse o augúrio de que nunca seria sua mulher nem nunca lá entraria. Suspirou e apertou a mão da moça com tanta força que quase a fez soltar un gemido.

— Agôra que t’estab’à conhecer é que bira qu’êras a moça da minha bida, nom quero saber ô que seri’à minha bida sim ti.

Falou brevemente, tinha medo de dizer demais com poucas palavras. A moça não percebeu o fim da frase. Não tinha dúvidas de que a rapariga gostava muito dele, mas não lhe podia ser grato. Intimamente, fazia esforços vãos, mas o seu coração e a sua alma, gelados, só o deixavam pensar nele, na sua vida, no seu fim. Será verdade que a natureza humana repudia, como um sonho de criança, o amor sincero ? Será verdade que o amor se alimenta de angústias e de tormentos e que a seiva generosa e fecunda do seu caule seca com a tortura do destino, da inveja ?

— Boltarás a bir berme ? – perguntou subitamente o rapaz.

O pedido ficou sem resposta. Arrependeu-se imediatamente, sabia que tal coisa não tinha sentido.

A moça retirou a mão da dele e, decidida, saltou do muro.

— Tenho que m’ir embora, Mindo.

Na cabeça do rapaz, aquelas palavras entoaram como a saída da procissão. Nos seus olhos não havia lugar para mais sofrimento. O seu coração batia, dizendo-lhe que não  podia esquecer-se dos momentos da mais sã felicidade, da mais cristalina alegria que o tinham feito palpitar como nunca até ali. Bruscamente, sentiu-se miserável, humilhado, tal uma criatura selvagem dos montes, apanhada numa armadilha. Lentamente, deixou-se caír do muro e olhou para ela uns seguntos. Abatido, confuso, nunca pensara que houvesse coisas que o pudessem fazer sofrer ainda mais do que o que até ali tinha sofrido. Cegamente, inclinou-se, deitou as mãos à cintura da moça e apertou-a contra o seu peito desesperadamente. Queria fazê-la penetrar na sua carne, apoderar-se dela para sempre. A rapariga colou-se a ele e deitou-lhe os braços à volta do pescoço, como uma planta silvestre sedenta. Encravou a testa em fogo contra o peito do rapaz, apertou-o, abafou-o. No seu desejo obscuro, inflamado, procurava deixar de existir, fazer só um com ele, correr no seu corpo, no seu sangue, através das suas veias. Queria transfundir-se nele. A emoção tornava-lhe a respiração ofegante, difícil. Assim ficaram, imóveis, durante uns curtos instantes até que a rapariga, lentamente, o afastou dela e se deitou a correr pelo caminho fora, em direcção do lugar, sem olhar para trás.

O Armindo, braços pendentes, encurvado, de cabeça baixa, olhava para a curva do caminho onde vira, talvez pela última vez, desaparecer a Lídia. Estava desorientado, acabado, desamparado, renegado. Quando pensava ter encontrado uma razão, um estímulo para viver, para ser considerado normal, como os outros, quando pensava ter encontrado um paliativo para os tormentos crónicos que havia tanto o martirizavam, o cansavam, é quando o privam, o destituem da sua dignidade de ser humano ! Estava mais só do que nunca.

Foi então que a sua vontade, inconscientemente, agindo sem ele dar por ela, tomou uma resolução que o encheu de uma calma espantosa. As coisas correriam como deviam correr, pelo caminho que o destino escolhera, nem mais nem menos. E ele não podia, não tinha vontade, não tinha forças para se opor. Já não era dono de si. Deixava-se dirigir, como um rio que se vai adaptando ao declive, à escarpa. Subiu a encosta e foi sentar-se encostado ao eucalípto, de olhos fechados. Não sentia absolutamente nada. Estava completamente vazio, sem vontade, sem pena, sem inveja, sem tudo. Não tinha valor algum, não tinha qualquer utilidade, tinha menos valor do que uma cabra. Estava nu, como quando nascera.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXI

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Às tardes, o Armindo sentava-se no muro e não cessava de olhar para a curva do caminho, esperando, a todo instante, ver despontar a Lídia com um saco às costas. Nessa tarde, o sol iluminava frouxamente o caminho por debaixo do carvalho e o rapaz, encostado ao eucalipto, acabava de fumar o segundo cigarro do dia.

O seu olhar, perdido para lá dos lindos e verdejantes vales que dali podia contemplar, viu súbitamente emergir qualquer coisa no caminho. Era a Lídia. Não trazia saco nenhum às costas. Tinha vindo de propósito para o ver, concluiu, satisfeito. Era a primeira vez. Levantou-se com prontidão e foi ter com ela ao caminho. Ficou desapontado ao distinguir no seu rosto crispado um olhar receoso. A rapariga desviou o olhar e fixou-o no chão. Evitava o do Armindo como se quisesse esconder qualquer coisa de vergonhoso nos seus próprios olhos. Nunca a tinha visto como naquele instante. A sua cara parecia estranhamente magra à sombra do carvalho.

— Êl tu que tês, Lídia ? Nom estás bem ? – inquiriu o rapaz preocupado.

Como resposta, foi sentar-se no muro, abanando a cabeça com tristeza e balançando as pernas, sem uma palavra. Pôs-se a brincar, ingenuamente, com as mãos no regaço. Alguma coisa a oprimia, lhe blocava as palavras no seu interior. O rapaz, cada vez mais inquieto, ficou de pé, imóvel, à espera. Não compreendia a razão do silêncio da moça. A sua hesitação, o seu combate interior, atormentavam-no, como todas as outras coisas que não percebia. Por fim, os seus olhares acabaram por encontrar-se e as nuvens húmidas que se tinham formado nos olhos da rapariga deixaram escapar fios de lágrimas. Chorou, chorou em silêncio. O coração do moço encheu-se da tristeza, do grande sofrimento que sentem as árvores, os animais, as pedras, tudo o que na terra não pode falar. Aproximou-se dela, agarrou-lhe na delicada cabeça com as duas mãos e apertou-a ansiosamente contra o seu robusto peito. Durante aqueles silenciosos segundos de terno enlace, perceberam que estavam tão bem juntos, que precisavam um do outro... Lentamente, separou-se dele e, quase que involuntariamente, começou a falar. Primeiro, balbuciando, depois, nervosamente, num tom acusador.

— Alguém dicho ô meu pai qu’andábamos juntos. Nom nos podêmos ber mais.

E calou-se. O rapaz, como se não tivesse ouvido, parecia olhar para as manchas de sombra que o sol fazia por debaixo da árvorea. Subitamente, disse:

— É quê ? Ê pecado ?

Falara instintivamente. Não falara com os lábios, mas com a alma. Não sabia que os corações, por muito indulgentes que fossem, nada podiam contra uma inveja acérrima. O seu olhar tornou-se, repentinamente, profundo e inapreensível. Dava a impressão que já sabia o que ia ouvir em seguida. Sentou-se ao lado dela.

A moça suspirou profundamente. Dardou uns instantes os olhos no rapaz, lutando desesperadamente para ficar muda. Na solidão da floresta, apenas se ouvia a sua respiração ofegante. Gostaria tanto de lhe dizer coisas que não o magoassem... Não podia perceber o que se tinha passado, a maldade das pessoas e, portanto, mal se admirava. Havia muito que estava habituada ao imprevisto. Tudo era tão incompreensível : as pessoas, a vida...

— Quêrem que me case com alguém que ganhe dinheiro é que nos tire da misêria p’ra qu’eu poida ocupar-me deles. Bem sabes qu’a minha mai está mi mal é ô meu pai p’ra lá bai.

As palavras pareciam vir de longe, como num sonho. Era pior do que a inveja. Era a submissão, o escalão mais baixo da dignidade humana. Inconscientemente, odiou o pai da rapariga. Odiou a gente toda do lugar. Odiou-se a ele. Sentiu uma moleza no corpo como nunca tinha conhecido até ali e, sem se aperceber, as lágrimas cairam-lhe pelos cantos do nariz. Já tinha sofrido muitas baixezas, muitas vexações, mas sentia que aquele momento era uma viragem determinante na sua consternadora vida. Sentia-se de novo sozinho no mundo e ainda mais desprezado. O seu coração batia tanto que parecia querer saltar-lhe para fora do peito. Cego pela dor que as crueis palavras lhe provocavam, apeteceu-lhe fugir através da floresta e gritar o seu desespero, a sua consternação, até vomitar as entranhas.

A rapariga inclinou a cabeça e lançou-lhe um rápido olhar. O sangue gelou-se-lhe nas veias. O Armindo estava pálido, os seus olhos, encharcados. Fechou os dela para afastar a assustadora visão. Sentia-se culpada por ele estar a sofrer tanto. Sem saber porquê, invadiu-a um medo feroz pelo que ele pudesse fazer. Dava-lhe a impressão que estava à beira de um abismo e que as profundezas da escuridão a puxavam para o fundo do precipício. As lágrimas escorreram-lhe novamente pelo rosto. Agarrou-lhe na mão com meiguice e apertou-a carinhosamente entre as suas, ao mesmo tempo que encostava a cara à dele. O rapaz atraiu pela segunda vez a cabeça da moça contra o seu peito para não a ver chorar e pôs-se a acariciá-la como a um pequeno cabrito doente que ele quisesse aliviar, adormecer. Não tinha dúvidas de que a Lídia gostava dele. Choraram em silêncio. Estavam sozinhos no mundo, contra toda a gente, pois todos eram seus inimigos.

— Eu nom posso fazer doutro modo, Mindo – começou, baixinho, encostada ao seu peito – Sabe-lo bem que tenho qu’obedecer ôs meus pais. Eles quêrem ô meu bem é nom sabem ô qu’ê gostar d’alguém. Só em saber que bou ter que me casar c’um home de quem nom gosto nem conheço, nom me sinto bem, bem-me cousas estranhas à cabeça é tenho medo.

Os seus pais eram pessoas que, desgraçadamente, nunca souberam o que era agradar, fazer alguém feliz... nunca o tinham sido. Eram coisas estranhas para eles. O sofrimento era tanto que só se viam a eles, neles próprios. E este sentimento levava-os insensivelmente a escolher as coisas que lhes eram cómodas, primordiais, em detrimento das que podiam ser agradáveis à filha. E, no monte, aos pais, nunca se desobedecia, nem nunca se discutiam os seus desejos.

Falara suavemente como se aquilo fosse a sua sina, o seu destino, uma fatalidade implacável que queria evitar ao moço. Gostava tanto dele que o seu mais pequeno sofrimento era para ela um suplício intolerável. Por isso lhe escondera o que o pai verdadeiramente lhe tinha dito: “Êl tu nom bás casar c’um aleijado, ou biu-t’uma bruxa ?” Aquelas palavras fizeram-na estremecer e penetraram no mais profundo do seu ser. Pareciam raios que precedem um retumbante estrondo e desaparecem depois  nas profundezas da terra nas noites de grande trovoada.

O rapaz continuava a mimar-lhe a testa e os lindos cabelos com doçura. Dava a impressão que estava longe dali, que o que a rapariga dizia não o concernia. E, portanto, pensava nela. Pensava na rapariga que admirava e que amava, que encontrava, havia uns dias, periodicamente, às tardes, com quem sonhava há muito e que jamais poderia extirpar da cabeça, do pensamento. Imperceptivelmente, combatia para que a demência animalesca que o roía, a raiva, a repugnância, a revolta surda que, durante uns curtos dias, tinham estado discretamente calmas, não triunfassem e o voltassem a dominar. Felizes aqueles que dão um valor imponente a uma vida simples, aparentemente fútil, e que, pela sua felicidade, pela sua salvação e pela sua prosperidade, a consideram como uma obra gigantesca. Que grande bem faça a quem assim pode agir, a quem assim pensa. O Armindo sentiu uma coisa gelada percorrer-lhe a espinha. Sabia que nunca teria uma vida assim, simples, alegre, no meio dos montes da terra que o viu nascer, com a mulher de que gostava, na companhia das cabras, suas notórias e sinceras companheiras.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XX

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

XXII

O Armindo entrou no quinteiro com o gado quando já o sol salpicava o horizonte de línguas de fogo alaranjadas. A noite, que no outono parece cair do céu de tal modo cai depressa, não tardaria em instalar-se. Nestes lugares isolados com hábitos regulados e simples, as pessoas reganham as casas a esta hora precoce pois as noites, cada vez mais longas, são feitas para dormir.

Fechou os animais e, satisfeito, subiu para a cozinha. O Fedelho não se mostrou, sinal de que a mãe não estava. Com efeito, a avó estava só, no seu singelo lugar. Conseguia fazer três coisa simultaneamente: rezar, tricotar e viajar nos seus pensamentos de então. Sorriu-lhe, dependurou o velho casaco e foi dar-lhe um beijo na testa, antes de pousar o saco com a garrafa de vinho, à qual não tocara, por cima do móvel. Ficou encantado por sentir no corpo o calor aconchegante da lareira.

Estava esfomeado. Encheu uma malga de caldo, bem grosso, que pôs por cima da mesa, assim como meia peça de pão, a garrafa de vinho e uma tigela.

— Esta manham estubo aqui o Irineu – disse-lhe a avó.

O rapaz sobressaltou levemente.

— Si ? – perguntou, descuidadamente.

— Si, é tua mai deu-lh’uma peça de pam. Por isso hai pouco. Mas tu côme, meu filho, côme que te faz falta ! – disse-lhe a velhota.

Não perguntou mais nada. Comeu com saborosa voracidade. Esvaziou a tigela e deu um arroto. Arrastou a cadeira e colocou-se ao lado da avó, diante da lareira em brasa. A mulherzinha pousou o tricô no regaço e pegou-lhe na mão com a qual brincou entrelaçando os seus dedos nos dele. Faziam-lhe tão bem aqueles carinhos simplistas e inocentes ! Que seríamos nós sem os afagos, sem o amor de alguém ? O bem-estar, a ventura dos outros foi sempre uma necessidade para ela. Para a  filha, ao contrário dela, os outros eram, ao mesmo tempo, uma abulia física e mental, o sentimento obscuro e profundo de que nada tinha importância, de que tudo se transformava num cansaço inútil. Eram tão diferentes !

— Tua mai parêce-me qu’está melhôr, que lhe fijo bem desabafar. Sabes bem qu’ela habituou-s’a nunca falar do qu’a preocupaba cos outros. Q’antas vezes sim fim tentei dizer-lhe que, da maneira qu’encarab à bida, só s’estaba a fazer-se mal! Nom m’oubia, inda me mandaba calar, como se nom soubera o que dezia!

E olhou fixamente para o neto. Leu nos seus olhos o que, certamente, ele devia ler nos dela : a incompreensão.

— Q’ando se começa a mentir, ê fácil imbentar, esconder as coisas é, pouco a pouco, ô mentiroso bai-se desajeitando é, despois, ê mais fácil apanhá-lo porque já ê um hábito é nom sabe ô que dicho no dia antes. Assi lh’aconteceu à tua mai, meu filho. É, q’ando se cheg’á um ponto destes, qu’a mentira, de calbário em calbário, cheg’á um aborrecimento assi, entom começa ô inferno. À noite, na cama, chorava é rezava, mas hai lágrimas que nim as rezas conseguem secar. Sabia qu’as cousas, só despois de rebentar o abcesso, ê que seriam como dantes. Creio que foi ô que passou. Mas, ôlha meu home, nom ê porque alguém qu’ê infeliz é que fijo uma escolha indigna, que nom tem mais direito ô amor dos outros. Ô rancor nom te deixa vivir. Ê ô perdom que te dá a tranq’ilidade, a paz.

O moço ouvia com grande atenção o que a avó lhe dizia sem compreender totalmente o que lhe queria significar. Tinha vontade de lhe dizer que, nesse dia, percebera o que era aquela coisa incoercível, provocante, perniciosa e, ao mesmo tempo, tão fascinante, tão libertadora, tão jubilatória, que era o cio. Ao que o padre, na missa, chamou pecado. Porque será um acto destes, próprio dos seres humanos, considerado um pecado mortal ? E que este acto não passa de uma reciprocidade de aprazíveis e repousantes momentos, indispensáveis ao bom zelo, ao desenvolvimento genuíno de um ser normalmente constituído ? Esses ímpios, dadores de moralidade, de virtuosidade, que se declaram transitários da verdadeira e sincera palavra divina, não são mais do que contrafactores, maquiadores, polícias da alma, cuja finalidade é cultivar um sentimento de apreensão, de receio nas populações para, deste modo, poderem dominá-las. Esta instituição, ao longo dos séculos, foi bem mais nefasta do que benéfica para os homens. O tempo, excelente ponderador, já iniciou o seu trabalho de regulador; a instituição vai perdendo cada vez mais a credibilidade, continuamente maculada por escândalos de várias ordens. O desenvolvimento do nível de instrução e do nível de vida da classe popular também contribui para o seu declínio.

Tinha-se instalado um silêncio embaraçante na cozinha. A Delfina conservava a mão do neto entre as suas, por cima do seu regaço. Pensativa, com os pequenos e afundados olhos, perscrutava o braseiro como se tentasse ver algo nas cores vivas e ardentes. O rapaz parecia entorpecido, ausente.

— Que se queir’ou nom, as cousas hai qu’aceitá-las como som, sabes ? – perguntou sem olhar para ele – É sô elas podem fazer a difrença da alegria ou da desgraça. Nimguém pode cambiar ô rumo do destino, meu home.

A mulher tinha o mérito, cada vez mais raro nos nossos dias, de só deixar saír da boca palavras que o seu pensamento concebia, fecundava. Realizara que era impossível uma pessoa em contradição contínua com a vida, em guerra com ela própria ou com os outros, pudesse viver em paz e não invejasse a pouca felicidade que os outros pudessem ter. Mesmo os que ofendemos involuntariamente fazem pouco caso da nossa inocência, da nossa boa vontade e apenas procuram o meio de vingar-se. Para evitar as hostilidades, a única solução era a reconciliação.

A porta chiou e a Palmira entrou sem uma palavra.

XXIII

Os dias foram passando. Na casa, a Palmira recobrara um pouco de ânimo, de ardor, no dia a dia mas, sobretudo, uma permissividade há muito esquecida para com a mãe. De manhã, perguntava-lhe se tinha passado uma noite boa, se as sopas tinham açúcar suficiente, se lhe apetecia algo de especial para o almoço, falava-lhe do tempo que estava, dos animais, do que ouvira na loja... Ela que nunca pudera suportar as queixas, os sofrimentos da mãe, que virava a cara para que ela não visse no seu rosto a indiferença que isso lhe causava, perguntava-lhe, quando passeavam no quinteiro, se as pernas não lhe doíam, se queria subir.

Para a Delfina, foi uma prenda divina, inesperada. Havia tantos anos que pedia a Deus que assim fosse, que a filha se corrigisse, se humanizasse ! Sentia-se tão contente que preferia morrer antes que a filha voltasse a degenerar.

O Armindo vivia uns tempos de grande agitação, impensáveis uma semana antes. A Rosa ficara fascinada com a sua constância genital que lhe permitira gozar uns desvairados e lascivos momentos de prazer. Ficou de vir fazer-lhe uma visita prazerosa de vez em quando.

O caso é que o rapaz sentia-se outro, alguém que tinha coisas para partilhar. Era a primeira vez que alguém via nele sentimentos salutares, qualidades naturais que, finalmente, fazem o homem ordinário. Não pedia nada, somente que o considerassem como os outros, alguém que, apesar da sua desvantagem evidente, tinha valorosos recursos para fazer prevalecer.

A Lídia, cada vez que ia e vinha do moinho, não deixava de fazer uma alta e de namoriscar com o Armindo. Sentavam-se no muro, por debaixo do velho carvalho. As relações entre os dois iam-se estreitando e tornando cada vez mais naturais. Nunca pensara que a moça mais bonita e mais cobiçada do lugar, que agora encontrava periodicamente, se interessasse por ele. A força e a solenidade das suas aparições faziam-no sucumbir cada vez mais. Havia alturas que se instalavam entre eles curtos silêncios, no meio do grande silêncio da floresta, e, então, sabiam que entre eles havia alguma coisa. A sua beleza genuína dava-lhe emoções que a sua natureza e o seu desejo secreto lhe exigiam cada vez mais. Olhava para ela, de olhos brilhantes, admirativo e só ouvia bater o seu coração. Batia no meio das pedras do muro, na floresta, nas montanhas, com as cabras. À medida  que o seu amor foi crescendo, deixou de pensar com a razão.  Sentia-se confiante, mimado e pedia ao céu que lhe fosse dando dias como os que ia passando.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XIX

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

XXI

Para a Áurea, o domingo não foi longo em chegar. Passara os dois últimos dias a preparar-se mentalmente para este verdadeiro primeiro encontro. A sensação que o Pedro lhe produzira, quando bateu com ele na feira, fora extraordinariamente agradável. O importante era ver se o cenário, embora não voltasse a ser tão intenso, produzia as mesmas sensações.

Como tinham combinado, encontraram-se de tarde na pastelaria da alameda. Estavam a ser duas horas.  Nesse dia, os cafés e a alameda eram a propriedade dos amorosos. Os casais, sobretudo os casados, gostavam de mostrar-se publicamente arvorando, a maioria, sorrisos hipócritas sem sequência e dando espalhafatosas gargalhadas, mais para atrair os olhares alheios do que para manifestar a felicidade que sentiam por andarem  juntos ou que os unia.

Como da vez precedente, puderam sentar-se na mesma mesa. Pediram as mesmas coisas, um café e um carioca de limão. Ergueu-se um grande silêncio entre os dois. Os dois olhares entrechocaram-se e fixaram-se um no outro, uns instantes, como dois desconhecidos que se amavam. E, instintivamente, deitou a cabeça para trás, provocante. Não falavam, comiam-se com o olhar. Os seus lábios abriram-se como para beber. O Pedro não podia desprender os olhos dela. As pestanas pesaram-lhe e os olhos inebriaram-se-lhe. A Áurea viu a sua beleza nos olhos do rapaz. A partir daquele instante, o seu corpo não se esqueceu mais daqueles movimentos de sedução. Este novo e perigoso poder que ressentia na alma, que sempre tivera, mas que só hoje conhecera, fê-la arrepiar-se. Via-se neles que sentiam um prazer salutar e desmedido por estarem juntos.

A  Áurea, confusa, ao ver que o silêncio se prolongava demais, foi a primeira a falar, propondo-lhe a sessão cinematográfica da tarde. Não que lhe interessasse, nem sabia qual era o filme, mas unicamente para romper o silêncio embaraçoso que a perturbava. O Pedro assentiu, mas, manifestamente, sem grande entusiasmo. Certamente que preferia concentrar o intenso e penetrante olhar nos seus lindos olhos pretos em forma de amêndoa, dominados por umas sobrancelhas bem arqueadas.

Levantaram-se e, conversando placidamente, foram percorrendo no mesmo ritmo, num sentido e por um lado, e depois no outro e pelo outro lado, a comprida alameda sem reparar no que se passava à volta deles. Falavam de tudo, mostrando, tanto um como o outro, um bom conhecimento dos sucessos relevantes da vida portuguesa, assim como uma boa cultura geral. Às vezes, quando ela falava, atirado pelos movimentos dos seus lábios vermelhos, pelas suas faces tão frescas, e, como que perdido no meio das suas palavras e na emoção que estas lhe causavam, deixava de ouvi-la, sem saber como. Ele parecia sentir uma espécie de pudor em interrogar um ser cuja felicidade se lhe afigurava bastante frágil. Às vezes, olhava para o céu e pensava na forte alegria que provinha dos seus grandes olhos pretos. O prazer que sentia na companhia desta criatura, tanto o fazia saborear o presente como temer o futuro.

Nela, reinava uma estranha serenidade, parecida ao belo dia outonal que se fizera, e que ela desfrutava com delícia. Com ele, até as brincadeiras satíricas tinham o estígma do talento. Foram-se descobrindo, desvendando mutuamente, pouco a pouco. O tempo foi passando, imperturbável, sem se lembrar deles nem eles do tempo.

Não sabia quantas vezes tinha percorrido a alameda quando, passando diante do café-restaurante-cinema que tinha o mesmo nome, a Áurea reparou na multidão que, a sessão terminada, saía do cinema. Olhou para o relógio embora soubesse por experiência que passava das cinco. Efectivamente, eram cinco e um quarto, a hora do mil-folhas com o copinho de leite com canela. Deram uma última volta antes de se instalarem no café.

Uma hora mais tarde, deixou-se acompanhar à casa e despediram-se. No dia seguinte começava uma nova semana de trabalho. Era a sua prioridade. Tudo o mais só se poderia apegar nele.

Foi para o seu quarto preparar as coisas. Sentou-se uns momentos por cima da cama. Estava habituada a passear na alameda mas, como hoje, nunca lhe tinha sucedido. Tinha as pernas cansadas e doridas. Não afastava a possibilidade de ter cãibras de noite. Tinha o corpo e o espírito atormentados. Fechou os olhos e passou em revista a tarde que acabara de passar. Circunstâncias tão favoráveis como nas que ela se achava e a faziam sentir-se tão radiante, sabia que raramente se encontravam reunidas. Sobretudo, quando se sabe que o coração é o único a fazer o seu tormento ou a sua felicidade. Sentia-se bem na companhia do Pedro, sentia uma vontade, uma força interior, um encanto manifesto que a devorava aprazivelmente. Os seus olhos, tão bonitos e tão ternos, aterrorizavam-na de prazer. Qualquer coisa que descobria e cuja sensação enfrentava pela primeira vez. A segunda impressão que o Pedro lhe causara ia na mesmo sentido que a primeira. Ainda não podiam mentir-se um ao outro, que era o privilégio de um conhecimento mais estreito, de uma maior intimidade. Mas quaisquer que fossem as impressões de ambos, calavam-nas, escondiam-nas. Como se diz em determinados meios com uma elegância positiva e um pouco abstracta, encontrou-o bem. Riu-se. “Para já, estou na fase experimental. O tempo é o melhor censor, o melhor termómetro”, pensou.

Pensou nos pais. Só em pensar que extenuavam as suas forças a satisfazer necessidades, e que essas necessidades não serviam senão para prolongar a miserável existência que tinham, sentia o coração que se lhe fendia. A tranquilidade de que gozavam não era mais do que uma resignação fundada sobre infortúnios, semelhantes aos do prisioneiro que, para tornar a estadia mais agradável, pinta os muros da cela com cores variadas e perspectivas agradáveis.

Olhou pela janela e viu o pôr do sol que deitava sobre o rio os seus tons alaranjados, entrecortados de sombras. Ficou contente por poder gozar do charme da paisagem que dali desfrutava, de poder viver numa região que,  de certo, fora feita para almas como a dela.

A ceia era servida habitualmente às sete e meia. Desceu para a sala que havia ao lado da galeria, e que se encontrava deserta, e, depois de acender a televisão, instalou-se confortavelmente no sofá de três lugares. A alegria e a impaciência acabaram por aturdi-la.

 

(continua)