Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

3° ANIVERSÁRIO DESTA AVENTURA

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

Foi em 9/11/2007 que a aventura na teia principiou. Festejamos, pois, o 3° aniversário.

 

RETALHOS DE MELGAÇO NOS ANOS XXX

 

    O frenesi na Vila de Melgaço devia-se à visita do Presidente da República, prestes a acontecer. Como por certo acontecera em outras localidades, o povo mantinha-se em nervosa ansiedade. As crianças da escola davam os últimos retoques nos exercícios de postura e nas roupas. Todos vestiam o melhor que tinham. No quintal da Escola Conde de Ferreira faziam os exercícios finais. Era verão, o calor insuportável, àquela hora, uma da tarde, o sol abrasador em cima da cabeça das crianças! O cabo da Guarda-Fiscal que estava instruindo a criançada, como ainda havia tempo, mandou que fossem a casa buscar algum tipo de chapéu para cobrir a cabeça. Todos moravam perto. O Manuelzinho que estava naquele meio por andar na escola oficial, também foi. O seu irmão Gú improvisou-lhe um gorro com a pala de um sobretudo que estava sendo feito. Na cabeça do garoto parecia um bivaque cinza como o dos militares. Todos acharam interessante aquele chapéu improvisado.

   O cabo instrutor recomendou que quando fossem para o terreiro todos tinham de se desfazer dos chapéus. Tinham desde chapéus de palha a chapéus de papel de jornal. O Manel podia conservar o dele na cabeça por ser inusitado.

   As autoridades da terra, vestidas a rigor ou, de gala quem era militar, estavam em Penso, freguesia limite entre os concelhos de Monção e Melgaço, aguardando a caravana. O Dr. Durães e o Dr. Sá, com suas fardas verdes de oficiais da Legião, o tenente Lopes, e o tenente do Posto da Guarda Fiscal, cheio de cordões brancos, talabarte e dragonas nos ombros. O sargento da Marinha, elegantíssimo, na farda branca. Todos de luvas. Os automóveis da terra também estavam lá. O carro do Pires e do Emiliano estavam com Cruzes de Aviz, emblema da Legião Portuguesa, recortadas, coladas no pára-brisas e nas portas. Os outros carros também enfeitados com bandeiras nacionais.

   Cerca das três horas da tarde chegou a Penso o cortejo. Foi saudado com foguetes, palmas e vivas e seguiu adiante engrossando com os carros da terra. Desde a Loja Nova até ao Terreiro, pela Calçada, o povo ovacionou e acompanhou os automóveis. Na Praça da República estavam formados os Legionários com as espingardas, mas à paisana, os marinheiros do Posto, o efectivo da Guarda-Fiscal, os Bombeiros com os seus fulgurantes capacetes, e as crianças da escola, todas formadas impecavelmente. As autoridades da terra, após apresentarem seus cumprimentos a Sua Excelência, ao descer do automóvel, também foram formar no centro do Terreiro para a revista da praxe. A maioria dos habitantes do concelho estava à volta da praça. Ao descer do carro, o Presidente foi ovacionado delirantemente. Das varandas e janelas caíram cascatas de pétalas de flores. Tudo pronto para a revista de honra. O João Cataluna pôs toda a sua alma de português no potente sopro de seus pulmões, que no clarim tirou os mais vibrantes sons no toque de sentido. Todos se postaram firmes inclusive o povo em volta. O silêncio caiu absoluto sobre tudo e sobre todos no mais profundo respeito e emoção. Só se escutava o cair da água no tanque por detrás do chafariz no cimo do terreiro. Sua Excelência movimentou-se e o João Cataluna soprou o toque de continência. Os oficiais militares levaram a mão à testa. Os militares e legionários, armados, apresentaram as suas armas, os Bombeiros apresentaram os seus machados e machadinhas, os oficiais legionários e as crianças estenderam o braço direito na saudação romana da legião Portuguesa e Mocidade. Vagarosamente, acompanhado do seu Estado-Maior, o Presidente da República começou a passar em revista as ‘’tropas’’ formadas em sua honra.

   Vestidos à paisana, com um fato cinzento que lhe caía impecavelmente, a estatura mediana e porte elegante, rosto oval e com o cabelo bem penteado e já quase todo branco e o inconfundível e imponente bigode, irradiando simpatia e ternura, Sua Excelência, o Presidente da República Portuguesa, General António Óscar de Fragoso Carmona, com expressão séria, com muita atenção ia olhando todos. O povo de Melgaço tinha respeito e admiração por aquele homem, como de resto toda a população simples do País. O povo continuava no mais profundo silêncio. Chegando às crianças da escola, Sua Excelência reparou no Manuelzinho com seu inusitado barrete e, sorrindo, tocou duas vezes com a mão no rosto do garoto, dizendo: - Muito bem, muito bem!

   O rapazinho estava firme como uma rocha, braço estendido, encarnando naquele momento todos os heróis da Pátria de que já ouvira falar. Quando sentiu as mãos e as palavras do Presidente continuou na mesma firmeza mas as lágrimas da emoção escorreram rosto abaixo e um tremendo soluço sufocou-o.

   Após a revista no Terreiro, o Presidente e a comitiva foram ao edifício dos Paços do Concelho. Pouco demoraram e dali foram a São Gregório, à ponte internacional que liga Portugal à Espanha. Uma hora mais tarde passavam novamente pela Vila directos a outras paragens. No dia seguinte o António da Loja Nova foi chamado ao Porto para dar explicações à Policia Internacional e Defesa do Estado. Na ânsia de participar nas homenagens, ele, que era vice-cônsul honorário da Espanha. Hasteara em sua casa comercial a bandeira daquele País. Reconhecida a sua ignorância em protocolo, foi mandado de volta apenas com advertência.

Melgaço, durante bastante tempo, viveu da emoção daquele acontecimento, retalho feliz na existência daquela gente.

 

 

MANUEL FELIX IGREJAS

 

 

 

 

Sofrimentos insensatos

 

I

 

A Palmira empurrou o portão de ferro e puxou-se para o lado. O Fedelho, que a seguia, indiferente, entrou no vasto quinteiro e dirigiu-se para a porta das cortes com passo lento, próprio dum cão de idade avançada – apesar de, aparentemente, ainda conservar um focinho de cachorro – que sabia o que fazia. Era totalmente branco, albino, diziam. Sentou-se, língua de fora, e esperou que a dona, depois de fechar o portão vagarosamente, viesse atirar para o chão o feixe de erva que trazia às costas. Estava longe o tempo em que ia com ela à erva, buscar faúlha ou tojo ao monte, e explorava incessantemente as proximidades do caminho de focinho no chão, à procura de um rasto odorífero de coelho ! Era rafeiro mas fora treinado para a caça, pois tinha um faro anormal. Hoje, custava-lhe fazer o trajecto de ida e volta da casa à leira, distante de algumas centenas de metros.

A Palmira vivera sempre em Orjás. O lugar situava-se na chapada duma pequena encosta. As poucas casas, dispostas de cada um dos lados do caminho, que por uma grande abertura no arvoredo saía da floresta, a um quilómetro dali, vindo de Cubalhão, e que continuava depois até Cavaleiro Alvo e Lubiô, eram majoritariamente antigas e de construção rudimentar. No meio, a velha igreja, toucada com um campanário bicudo em forma de gorro de lã ; por detrás, o cemitério com os muros meios derrubados, algumas cruzes degradadas e tombas enverdecidas. Em frente, ficava a minúscula escola. Mais adiante, uns bons metros, um largo com um vulgar cruzeiro de granito de onde o caminho bifurcava, indo um para Lubiô, passando por Cavaleiro Alvo, e o outro para o moinho do “tio” Júlio. A Palmira vivia numa ampla casa, a cem metros do cruzeiro, no caminho de Lubiô.

Deixou escorrer lentamente o verde feixe de erva para o chão, diante duma grande porta, e sacudiu as costas com uma mão para tirar as ervas que se agarravam à roupa.

Desde que casara e que o homem, o Belardo, fora para a França andava vestida de preto da cabeça aos pés. Só durante as poucas semanas de descanso que, de tempos a outros, ele vinha gozar à terra, é que ela se vestia de cor. Era a tradição. Na região, quando os homens se ausentavam para trabalhar no estrangeiro, as mulheres vestiam-se de preto. Era uma forma de manifestar a mágoa, a tristeza.

Um suspiro silencioso, inconsciente, escapou-lhe impulsivamente. Era uma reacção habitual, rotineira. Embora ainda não fosse velha, tinha feito sessenta anos em maio, a ausência do homem e a vida ríspida do monte começavam a pesar-lhe cada vez mais. Dirigiu-se para as traseiras da casa. Ali, na metade dum grande campo cercada de rede, tinha os galinheiros e, no resto, uns belos tacos com os principais legumes de que gostava. O cão não mexeu, sabia o que ela ia fazer e já não lhe apetecia acompanhá-la. Quando voltou, trazia nos braços umas folhas de boa couve verde. Sentia-se cansada. Seguida pelo Fedelho, subiu as escadas de pedra grosseira, desgastadas pelo atrito, e abriu a porta da casa que rangeu.

— Ês tu, Palmira ? – ouviu, enquanto sacudia a terra dos socos na soleira.

Era a voz, já trémula, da mãe que dormia no quarto ao lado da cozinha. Acordava sempre depois dela. A filha deixava-lhe a porta do quarto entreaberta continuamente. 

O Fedelho deitou-se no chão, no pequeno patamar, como era hábito seu. A Palmira entrou, pousou as couves por cima da mesa da cozinha e respondeu desleixadamente:

— Sou eu, mai, sou.

A cozinha ficava na maior peça da casa que desempenhava duas funções : cozinha e sala de jantar. A parte desta era do lado direito da porta de entrada. A mobília compunha-se de uma grande e maciça mesa central que podia acolher confortavelmente uma dúzia de pessoas, ainda que só tivesse seis cadeiras. Contra a parede interior, quase a meio, estava encostado um enorme armário de ébano, como a mesa e as cadeiras, cuja metade superior vidrada se encontrava entulhada de louça, testemunha de uma época remota. À primeira vista, via-se que havia muito que não era tirada do imponente armário. De um dos lados deste, um quadro do Sagrado Coração de Jesus, do outro, um de Santa Rita. Os dois muros exteriores eram cortados cada um por uma enorme janela. O amarelo das paredes, que o tempo tinha envelhecido, descorado como os mármores expostos ao ar, dava à sala um aspecto demasiado estático, desleixado. Apenas se serviam da sala de jantar quando o padre, na Páscoa, trazia a Cruz para beijarem ou quando o Belardo estava presente.

Do lado esquerdo, encontrava-se a cozinha. De elevadas dimensões, era a vida da casa. A grande laje da lareira ficava encostada ao muro lateral. Junto do lume, a cadeira de balanço da Delfina, há muitos anos no mesmo lugar, imutável, como se estivesse cravada no solo. Contra a parede de divisão, havia um lava-louça, a cozinha de ferro e um móvel comprido, no qual se guardava de tudo e que ocupava quase a metade da parede. Por cima deste, havia uma mixórdia medonha de produtos cerealíferos, de condimentos, de adubos, de oleaginosos, etc. Encostada ao muro exterior restante, que tinha igualmente uma janela como as da sala, havia uma pequena mesa com quatro cadeiras onde comiam o filho, ela e a mãe, ou, quando a Áurea, a filha, estava, os quatro. Era na cozinha que o quotidiano se passava.

Entre a cozinha e a sala de jantar, encontrava-se a porta que dava acesso aos quartos e à retrete, uma simples dependência com um buraco no chão que  despejava directamente os dejectos na corte das vacas.

O sol já não aquecia o suficiente todos os dias. Enquanto não acendia a lareira, a Palmira não tirava a mãe da cama. Como acordava bastante mais tarde do que ela, aproveitava para fazer alguns dos labores habituais da casa. Pôs a cevada com leite a aquecer no pequeno fogareiro a petróleo. Esfarrapou em seguida pão até encher uma grande malga branca com flores avermelhadas pintadas à volta. Era uma malga que a mãe conservara desde o seu casamento e pela qual tinha um apego exagerado. Deitou-lhe depois a cevada que não deixara ferver e acrescentou-lhe duas grandes colheres de açúcar moreno, antes de mexer bem as sopas. Gostava delas bem docinhas. Pôs-lhe um prato por debaixo e foi ao quarto ao lado, onde ela dormia, levar-lhas. Era um antigo quarto de arrumos que, por estar ao lado da cozinha e da lareira, fora arranjado para ela lá poder dormir. A lareira era o único aquecimento que a casa possuia. Pousou as sopas na mesinha de cabeceira e ajudou a mãe a sentar-se na cama. Deitou-lhe um velho xaile de lã pelas costas e pôs-lhe as sopas no regaço.

— Ô mulhêr, isto ê muito p’ra mim !

Não a ouviu. Havia muito que deixara de ouvi-la. Dizia sempre a mesma coisa e sempre a mesma coisa fazia: a malga ficava limpa. Sentou-se aos pés da cama de ferro, que chiou com o seu peso, e, como que hipnotizada, ficou a olhar para a mãe. Não a via. O seu olhar traspassava-a. Esta, sem lhe prestar qualquer atenção, como se estivesse sózinha, comia a um ritmo cadenciado mas contínuo. A pele curtida pelas intempéries, que contrastava com o branco da camisa de dormir, dava-lhe um ar de sagacidade e de consideração.

A Delfina tinha oitenta e cinco anos e, graças a Deus, não se podia queixar. Comia bem, a horas certas, e a saúdinha ia-se entendendo com ela. A única contrariedade eram as pernas que, às vezes, emperravam um pouco e não lhe permitiam  ir dar as voltas que ela desejaria à igreja ou ao cruzeiro. Tinha-se afastado de um mundo escabroso que todavia continuava a ver, embora cada vez menos. Deixava raramente o aconchego caseiro, as pantufas cinzentas de seda e o roupão preto que lhe tinha trazido o Belardo da França.  Contudo, aos domingos, ia  com a filha, com o neto e, quando presente, com a neta assistir ao ofício religioso. Fora naquela capela que a tinham baptizado e que, havia sessenta e seis anos, se tinha casado. Ao fim da missa, gostava de sentar-se num dos bancos de pedra que havia no adro e trocar umas palavras com as pessoas presentes que não deixavam de ir saudá-la e de lhe apertar a mão afectuosamente. Era o único contacto que tinha com o exterior e o seu momento privilegiado.

 

(continua)

 

A.E.C.

 

 

FRONTEIRAS PORTUGUESAS E LEONESAS

 

NOS FINS DO SEC. XII

 

   O que dizemos no texto, relativamente aos limites de Portugal, estriba-se nos fundamentos que vamos apontar.

   Linha da foz do Minho a Melgaço. No Arch. Nacion., M. 12 de For. Ant., nº 3, f. 22 v. acha-se o foral de Melgaço dado em 1181, e na carta de repovoação de Lapella de 1208 renovam-se a este logar os fóros com que tinha sido povoado in diebus regis D. Alfonsi (Liv.2 de Alem-douro, f. 269). Os povoadores de Melgaço pediram para si os foros de Ribadavia, concelho limitrophe na Galliza. Lê-se no preambulo deste diploma que a nova povoação era fundada na terra ou districto de Valadares, districto que, como hoje vemos da situação desta ultima villa, se dilatava ao longo do Minho para o lado de Monção. Affonso I incluiu nos termos do novo municipio metade de Chaviães, logar exactamente situado no ângulo que a linha de Melgaço a Lindoso fórma com o rio Minho, caíndo quasi perpendicularmente sobre elle. Na restauração de Contrasta (Valença) por Affonso II (Liv. de Affonso III, f. 64 v.) affirma el-rei que seu pae já tinha dado um foral áquelle logar, o qual, portanto, remonta á epocha de Sancho I e, talvez, á de Affonso I, porque nem sempre a carta municipal coincide com a origem das povoações, podendo ellas existir anteriormente e, até, terem tido outro foral, hoje perdido. Isto se vê do fraguemento da demanda de Affonso II e suas irmans (lançado no Liv. 3º de Aff. III, f.26), donde consta existir já o castello de Contrasta por morte de Sancho I, porque logo começaram as discordias de Affonso II com as infantas, durante as quaes foi Contrasta tomada pelos leoneses. Que por este lado o districto  mais meridional da Galliza (Toronho) vinha intestar com o Minho é o que se deduz da restituição feita por Fernando II em 1170 á igreja de Tuy de algumas propriedades sitas no seu reino, de que estava desapossada desde o reino antecedente. Entre ellas figura o lugar de Tominho, a menos de uma legua da margem direita do Minho e a pouca maior distancia das bordas do mar (Docum. Da Esp. Sagr., T. 22, Append. XV). Finalmente, o testemunho de R. de Hoveden nos mostra ser então geralmente sabido, que, ao longo da costa, a foz do Minho formava a divisão entre os dous reinos de Leão e Portugal (Hoved. Ann. apud Savile, p. 672).

 

Linha de Melgaço e Lindoso. De dous documentos do cartulario de Feães (Sandoval, Ygles. de Tuy, f. 132 e 137), provavelmente destruído no incendio que devorou aquelle mosteiro no seculo passado, se conhece que pelos annos de 1166 a 1174 este mosteiro era um territorio português; porque, posto aquelles documentos sejam de particulares, nelles se diz que reinava em Portugal Affonso I, não mencionando o rei de Leão. Que as cercanias do logar onde depois se fundou Lindoso pertenciam a Portugal pelos annos de 1160 resulta evidentemente do relatorio da transladação das reliquias de Sancta Eufemia, as quaes por essa epocha foram levadas a Orense. A ermida de Sancta Marinha, onde ellas se achavam estava já então sobre a fronteira e perto de Manin, ultima povoação sobre o rio Lima do lado de Galliza, como Lindoso é do lado de Portugal.

 

RETIRADO DA NET; INFELIZMENTE NÃO SEI INDICAR O NOME DO AUTOR DO TEXTO NEM A ENTIDADE QUE O PUBLICOU. AS MINHAS DESCULPAS. 

 

ILIDIO SOUSA 

 

OS PINTARROXOS IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   A mulher, a tia Ana, descobriu que ele tinha uma amante no lugar das Adegas. Disseram até que a filha que ela tinha era dele.

   A vida privada deles tornou-se difícil, quase insuportável.

   Em seguida, a Dona Maria José, de Sante, uma rica senhora que utilizava amiúde os serviços do automóvel de aluguer em grandes viagens: Braga, Porto, Fátima, etc. faleceu. Com isso cessou uma considerável fonte de renda.

   O negócio dos ovos fracassou causando enorme prejuízo.

   Para culminar, as autoridades camarárias, estranhando a prosperidade do Emiliano exigiram dele uma verba antecipada de quarenta contos e cassaram-lhe a concessão de cobrador do imposto.

   Era só o que faltava para a derrocada total.

   Quarenta contos naquele tempo eram uma fortuna. Pouca gente tinha um património daquele valor. Exigido assim, em curto prazo, arruinava qualquer um. Para conseguir o dinheiro reclamado pela municipalidade, o Emiliano teve que desfazer-se de seus bens. Vendeu o casarão do Rio do Porto à Dona Micas da Loja Nova, de quem o havia comprado pelos mesmos vinte contos que lhe custara, perdendo o valor das benfeitorias. Vendeu a camionete.

   Vendeu o ventilador e o calorífico, o máximo de requinte em aparelhos electrodomésticos na época.

   Vendeu o rádio, um dos poucos existentes na vila e vendeu as jóias que possuía.

   Tudo isso não chegou e para completar a quantia necessária pediu emprestados doze contos ao Manuel da Garagem que iniciava a sua ascensão económica.

   Os muitos amigos que frequentavam a sua casa para jogar cartas ou quino, comer e beber lautamente, participar de feiras e festas no seu carro e banquetearem-se à custa dele, afastaram-se a ponto de o desconhecerem quando cruzavam com ele na rua. Aquela ruína inesperada deixou o tio Emiliano desnorteado durante algum tempo.

   Por vários dias ficou com as faculdades abaladas não dizendo coisa com coisa.

   A partir dali, a muito custo conseguiu estabilizar a situação financeira quitando a hipoteca da casa mas nunca mais voltou àquela situação de fastígio.

   A tia Ana que anteriormente dispunha de ajudantes para diversos serviços, viu-se, de repente, obrigada a arcar sozinha com os afazeres domésticos, lastimando-se das enxaquecas e achaques, lamuriando a toda a hora: “bem que eu não queria que prendessem os passarinhos…”

 

 

Manuel Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

Camborio Refugiado  

 

OS PINTARROXOS III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   No dia seguinte foi a tia a primeira a subir ao andar superior e observar as avezinhas. Ela não fora a favor de prender os pássaros e, sem saber porquê, sentia um aperto no peito. Alguma coisa lhe dizia que algo não iria acabar bem.

   Botou a cabeça fora da janela para olhar os passarinhos que, estranhamente, estavam quietos e calados. O choque foi violento. Uma sensação esquisita lhe arrepiou a espinha e por momentos ficou paralisada.

   Os três filhotinhos jaziam no chão da gaiola, mortos. Refez-se do impacto e chamou o marido. O espanto deste não foi menor.

   O facto não era novidade, mas, sem saberem explicar, o caso lhes provocava mal-estar. Mandaram chamar os sobrinhos para presenciarem o sucedido e para que lhes servisse de exemplo no decorrer de suas vidas. Afinal, privar alguém de sua liberdade a troco de nada, ainda que um passarinho, não tem significado.

   E não foram só os três passarinhos; o caso foi bem mais trágico.

   Os rapazes acharam os corpos dos pais pintarroxos lá em baixo, no chão, no meio das ervas. Incrível, fora um suicídio colectivo! Na gaiola, ao lado dos filhotes mortos, um resto de ervas venenosas confirmavam a tragédia. Os pais, desesperados ao ver os filhos encarcerados sem possibilidade de libertá-los, optaram pela atitude extrema: mataram-nos e suicidaram-se.

   Numa terra onde poucas coisas aconteciam, aquele incidente banal tomou foros de sensacionalismo. Não era a primeira vez que acontecia semelhante coisa entre animais, o povo sabia disso e era até tema de seu folclore, de suas histórias.

   Mas aquele caso correu de boca em boca e as pessoas mais velhas, aquelas sempre propensas a profetizar desgraças, diziam da tragédia ornitológica: “É mau agouro, alguma coisa ruim vai acontecer!”

   Dito e feito!

   A vida do tio Emiliano começou a desandar.

 

(continua)

 

OS PINTARROXOS II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   O verão estava chegando e os pássaros viviam na plenitude da procriação. Quase todas as árvores tinham vários ninhos que os rapazes controlavam, subindo e contando os ovinhos. Pardais, pegas, carriças e estorninhos ali haviam-se instalado.

   Na cerejeira, quasi na corucha, um ninho chamava a atenção; era de pintarroxo e tinha três ovos. Os pintarroxos são grandes cantadores que as pessoas costumavam prender em gaiolas. Ficavam de olho naquele ninho.

   Um belo dia, os filhotinhos, já livres de casca, estropiados ainda, testemunhavam a perenidade da vida. Mais alguns dias e os passarinhos começaram a revestir-se de penugem. Outros dias mais e os passarocos de bicos escancarados, vorazes, não davam tréguas aos pais.

   Os sobrinhos, com a anuência do tio, resolveram pegar no ninho e colocá-lo numa gaiola. Naturalmente os pais continuariam a alimentá-los até ficarem auto-suficientes e, então, pegariam também a eles. Que grande colecção de pintarroxos iriam ter. E assim fizeram.

   Num dos voos para procurar comida os pintarroxos deixaram os filhotes sozinhos e os rapazes aproveitaram para escalar a cerejeira, pegar o ninho e pô-lo na gaiola. Levaram-na para casa e penduraram-na na parede, no andar de cima, do lado de fora, perto da janela, onde os pássaros pudessem ver os filhos.

   Quando os pais regressaram e não viram o ninho nem os rebentos, entraram em pânico. Chilreando, desesperados, voavam desordenados. Era constrangedor ver aquelas duas avezinhas, tontas procurando os filhos nos outros ninhos e no chão.

Depois de muito esvoaçar pousavam num galho e ficavam quietos, colados um ao outro, silenciosos. Deviam estar chorando. Voltavam a voar velozmente, às cegas, de encontro a tudo sem saberem o que fazer.

   Os rapazes observavam esperando que os pintarroxos descobrissem os filhos, sem imaginarem o sofrimento, a tremenda agonia por que passavam aquelas criaturas. Os filhotes, de papos vazios, reclamavam a assistência dos pais e passaram a piar desesperados. Foram ouvidos. Os pais passaram a sobrevoar a gaiola. De vez em quando, no auge do desespero, arremessavam-se contra aquela prisão como querendo arrombá-la.

   Tudo estava dando certo, diziam os rapazes. Logo passariam a alimentar os filhos através dos arames.

   A noite estava chegando e resolveram deixar as aves onde estavam, protegidas pelo beiral do telhado. Foram embora para suas casas.

 

(continua)

 

OS PINTARROXOS I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    O tio Emiliano estava na fase bem sucedida de sua vida. Os negócios corriam-lhe de jeito. Por causa da guerra civil na vizinha Espanha, a circulação de mercadorias era intensa e o imposto indirecto que incidia sobre as mesmas, bastante vultoso. Como cobrador, por ter arrematado o direito de receber tal tributo, o Emiliano tinha uma margem de lucro significativa.

   A sua opulência crescia a olhos vistos.

   A casa Velha nos fojos que comprara ao Zé Zinona, transformou-a numa luxuosa vivenda; comprou mais um carro para aluguer, comprou também a camioneta antiga do Hotel Rocha para passeios turísticos e comprou também o casarão antigo com grande quintal do outro lado do caminho, no Rio do Porto. Mandou reformar o prédio e o quinteiro deixando aquela propriedade digna de gente fina.

   No terreiro onde outrora fora o quartel dos Bombeiros, instalou um depósito de ovos que vendia por atacado e a varejo aos pequenos contrabandistas que os levavam para a Galiza. Na inauguração das melhorias daquele casarão ofereceu aos amigos e familiares uma arrozada de galinha de cabidela regada a bom vinho, tudo à descrição.

   Todas as tardes, ele e a Ana, sua mulher, iam para a casa do Rio do Porto. Não tinham filhos mas viviam cercados de sobrinhos a quem muito queriam e por quem eram muito queridos, principalmente os mais novos e solteiros. Assim, o Gú, o Toninho, o Mi, o Carriço e o Manelzinho, não perdiam oportunidade de acompanhar os tios sempre que iam para a nova casa.

   O quintal era o que mais lhes chamava a atenção. Não era muito grande mas tinha os seus atractivos. Era uma faixa de terreno espremido entre a estrada e o regato (o Rio do Porto), com fruteiras, horta, uma mina (nascente de água por baixo da estrada) e um grande tanque. Das árvores destacavam-se uma cerejeira e uma nespereira, ambas de grande porte.

   Das brincadeiras no quintal participava o Jolí, um cão vadio a quem a tia Ana dava comida que acabou por afeiçoar-se e participar da família.

 

(continua)

 

A GRANDE GINCANA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Os parceiros deram o empurrão inicial no alto da ladeira. Lá veio o Carriço, tenso, teso, corda-guia retesada nas mãos controlando a direcção, pés fincados no sarrafo estribo, curva e contra curva, sobe um ressalto e desce mais desenfreado, parecendo um bólide. Com a mão direita acciona o travão que obedece, o carro pára derrapando um pouco; cumpre a primeira tarefa.

    De novo no carro disparado até a segunda tarefa. Cumpre-a. Mais curvas, uma bem inclinada. Sobe e desce uma rampa de madeira em balanço. Vai saindo-se muito bem, com rapidez nas tarefas e velocidade no carro.

    A cada missão cumprida o público aplaude freneticamente. Nas paragens um fiscal observa a correcção do cumprimento do regulamento.

    Não lembro bem as obrigações que os participantes tinham de cumprir.

    Algumas eram: enfiar um pau numa argola suspensa, em pé em cima do carro; quebrar uma bilha de barro de olhos vendados; sair do carro, ir a um ponto desviado, numa mesa baralhar e distribuir cartas para sueca; enfiar agulhas; pular corda; subir em pau de sebo; etc.

    Terminada a corrida, os jurados computaram as notas e proclamaram o vencedor. Por grande maioria de pontos, o campeão da Primeira Gincana de Carros de Pau de Melgaço, foi o Carriço.

    Aclamação e jubilo geral. Foi-lhe entregue uma faixa e a cobiçada garrafa de vinho fino.

    Os rapazes da equipe vencedora deliraram de alegria.

    Houve abraços e vivas.

    Pelo meio do publico, que vagarosamente subia de volta à vila, o carro vencedor, com o exímio piloto empurrado pelo restante da equipe, parecia um foguete, em velocidade e espoucar das rodas no empedrado irregular.

    No café do Sr. Hilário foi consumida a garrafa de vinho do Porto do prémio e dada expansão a tanta alegria.

    O carrinho foi usado e abusado.

    Nos anos imediatos, parte daqueles rapazes, inclusive o Carriço, foram para a tropa.

    O veículo fulgurante, já em petição de miséria pelo uso e pela chuva, veio ter às minhas mãos, herdeiro legítimo como irmão e primo mais novo.

    Grande dia aquele da Gincana Melgacense. Abençoada juventude aquela.

 

    Talvez o acontecimento que acabei de narrar não tivesse a importância que lhe dei, ou talvez tivesse. Pelo menos nos meus nove anos incompletos foi assim que o vi e senti. Ainda hoje, quase sessenta anos depois, me vejo encarrapitado no muro da Pastoriza, gritando feito um desesperado, incentivando o Carriço.

 

Rio, Março 1995

 

M. Igrejas

 

A GRANDE GINCANA IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Desde o lançamento da ideia até ao grande dia decorreram algumas semanas. O suficiente para a notícia se propalar até às aldeias. Tinha pessoas que nem sabiam o significado de Gincana e por isso despertava grande interesse. Passou a ser tema de conversa e os que estavam ao par da actividade dos grupos, arriscavam palpites sobre os prováveis vencedores.

    Na semana final, munidos de enxadas, pás e picaretas, os elementos de todas as equipes achandaram onde era preciso, removeram calhaus, cortaram arbustos e tiraram torrões. A ladeira transformou-se em óptima pista com curvas e contra curvas que muito iriam exigir da perícia dos pilotos.

    Chegou finalmente o bonito Domingo de Verão, tal e qual fora encomendado. Na manhã foram dados os últimos retoques na pista, embelezada com mastros e bandeirinhas. Depois do meio-dia o caminho das Carvalhiças transformou-se em passarela de desfile de modas.

    Como era Domingo, todos vestiam sua melhor roupa, homens de gravata e mulheres com os vestidos de festa. Afinal aquilo era uma festividade e nesses dias caprichava-se na indumentária. O mulherio que não costumava prestigiar eventos da moçada, nesse Domingo resolveu ir ver do que se tratava, ademais, num dia tão bonito, o passeio à Pastoriza justificava a saída de casa.

    A escadaria da capela de Nª Srª da Pastoriza transformou-se em galeria e o muro do adro em camarotes. Quase toda a vila estava ali, mais quem veio de Prado, Roussas, S. Gregório e outros lugares.

    As senhoras da sociedade deram o ar de sua graça e o Dr. João Durães, administrador do concelho, foi a presença mais importante.

    A brincadeira dos rapazes transformara-se em acontecimento social de destaque.

    Uma comissão de três membros chefiada pelo mestre da marinha, Sr. Silva, eram os juízes que iriam julgar o desempenho e atribuir as notas que indicariam o vencedor. Os elementos das equipes cessavam sua participação ao colocarem o carro no alto da ladeira, daí em diante só o carro contava.

    Feito o sorteio de largada, começou a grande Gincana.

    Não lembro a ordem, só sei que o Carriço foi dos últimos.

    Toda a assistência aguardava ansiosamente o desempenho do Carriço. O seu carro ultrapassara a expectativa dos boatos, era um deslumbramento em técnica e visual. Só por isso angariara a simpatia da maioria. Os outros participantes também foram muito aplaudidos.

    Afinal todos tinham as famílias ali.

 

 

(continua)

 

A GRANDE GINCANA III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

     Organizaram-se as equipas conforme as amizades entre eles. Cada uma das equipes era composta de quatro ou mais rapazes (naquele tempo havia muita rapaziada na terra). Os adultos acabaram aderindo, ajudando os grupos de sua simpatia ou de parentesco. Fizeram carros novos ou aprimoraram os que havia, muito toscos por sinal. Inovações foram introduzidas muito em segredo para os demais concorrentes não copiarem.

Eu era muito novo, oito anos e meio, por isso não recordo os nomes da rapaziada de todas as equipes, só recordo a turma do Carriço que era o meu grupo e dos meus irmãos, Gú e Toninho do Félix, do Carlota, do Quim e João de Celestino e o Mí.

    O Lucas fez um casqueiro novo na sua oficina, bem recortado e aparelhado e lixado. O Papá Pires deu orientação de como fazer um travão, grande novidade técnica que ia ser preciso para as várias paradas do percurso.

    O eixo dianteiro, da direcção, outra grande inovação, era curvo centro para manter o casqueiro nivelado uma vez que as rodas da frente eram menores que as traseiras, técnica evoluidíssima para a época.

    O assento do piloto era almofadado e o impulso era transmitido através dum sarrafo apropriado encaixado na traseira do casqueiro, ao invés de empurrar nas costas. Tecnicamente o carro era perfeito.

    A turma do Carriço contribuiu, através daquele protótipo, para a evolução da indústria automobilística.

    Por espiões soube-se que as outras turmas estavam pintando seus veículos com as cores dos clubs de sua predilecção. Vermelho em homenagem ao Benfica, verde ao Sporting, preto e branco ao Sport Club Melgacense, etc.

    Ah! então era assim?

    A equipe do Carriço deliberou pintar o seu carro em homenagem ao Futebol Club do Porto que, por sinal, era o club de coração de todos daquele grupo.

    O Futebol Club do Porto era o grande campeão daqueles anos. Fugidos do caldeirão europeu que estava para entrar em ebulição, cinco jogadores da selecção da Hungria tinham-se incorporado ao Porto.

    Mas a pintura do carrinho não se limitava a azul, não senhores; às listas azuis e brancas, feitas a régua, a tinta de esmalte e no cabeçalho, também a tinta de esmalte, a todo o tamanho, o emblema do Porto que o meu irmão António demorou uns dias a pintar; rodas e eixos também pintados, com tampões de lata; um primor.

    Nem a carruagem da Cinderela era tão bonita quanto o carro do Carriço, sim, porque ele seria o piloto.

    Nas mãos dele, que iria manejar a corda-guia, o travão e executar as tarefas da Gincana, repousavam as esperanças daquela equipe que dera tudo de si e seu génio inventivo fora capaz de conceber

 

(continua)

 

A GRANDE GINCANA II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Em todas as gerações sempre houve alguém mais dinâmico e empreendedor que não se conformava com o estado de coisas e procurava inovar. Dos rapazes da época, os matulões, havia um grupo que se destacava nas empreitadas da garotada.

    O Quim e o João Celestino, o Carlota, o Toninho do Félix, o Amadeu Garabelos e outros, comandados pelo Carriço, espécie de líder.

    Fazia parte da distracção da “canalha”, duns poucos que conseguiam um casqueiro (tábua de pinho de menos valor por ser do lado da casca da árvore) que, com alguma habilidade e quatro rodas, também de madeira, construíam o que eles chamavam carrinho de pau. Carro este que dependia duma equipa no mínimo de dois elementos. Um que andava no carrinho e outro que empurrava nas costas daquele. Depois trocavam de posição. Geralmente o grupo era de quatro rapazes, co-proprietários da viatura.

    E era vê-los, chispando onde o terreno fosse chão. A pista preferida era o passeio entre a loja do Hilário e a loja do Águia D’ouro, o único cimentado naquela época.

    De que se lembrou o Carriço?! Promover uma gincana de carros de pau.

    Divulgou a ideia que de pronto foi encapada pelo resto da rapaziada. A empolgação tomou conta deles quando o Águia D’ouro resolveu patrocinar o evento.

    Este Águia D’ouro, nome do estabelecimento e pelo qual era conhecido o proprietário cujo nome verdadeiro não me lembro, ou melhor, nunca soube, era um sujeito oriundo de Monção que viera montar loja em Melgaço, no térreo do casarão do Santos Lima, pai da Biti, esquina do terreiro com aquela área que ligava à Rua Velha e chamavam de avenida, em frente à casa dos Durães. Mais tarde funcionou ali a loja do Coelho e depois do António do Chinto.

    Pois o tal Águia D’ouro era uma criatura chegada a incentivar as promoções da rapaziada e até lhes fornecia ideias.

    Foi dele a ideia de realizar a Festa da Cóca, no molde do que se fazia em Monção e que o Carriço, o Jacob e outros realizaram magistralmente, mas esta é outra história. O assunto hoje é a gincana.

    O Águia D’ouro transmitiu aos rapazes como se realizavam gincanas noutras terras e ofereceu o prémio para a equipa vencedora: uma garrafa de vinho fino.

    Elaboraram o regulamento e acertaram que a pista seria a ladeira da Pastoriza, a pedreira, como anteriormente fora conhecida a encosta do outeiro, do lado das Carvalhiças.

 

(continua)

 

A GRANDE GINCANA I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Corria o ano de 1937. Na vila de Melgaço a vida passava mansa, com certo desafogo. A guerra civil espanhola prosseguia cruenta ali do outro lado do Rio Minho que, a bem da verdade, a não ser as notícias de perseguições e vinganças que redundavam em chacinas, proporcionava aos habitantes de toda a zona fronteiriça do lado português, bons lucros com o contrabando.

   Vinham de lá, de Espanha, toneladas de pacotes de moedas de prata, os duros que apenas valiam cinco pesetas como dinheiro desvalorizado, mas muito mais como metal. Vinham arrobas de ouro e outros metais valiosos em troca de tudo que fosse mantimento. Os camiões carregados de galinhas e ovos chegavam a fazer comboio em direcção a São Gregório. Mais tarde o sabão também entrou na troca.

   Mas esta não é a história que desejo contar.

   Isto apenas serve para justificar a abastança com que se vivia na época na nossa região, infelizmente à custa da desgraça de “nuestros hermanos”.

   Na vila de Melgaço vivia-se uma aborrecida monotonia. Pouco ou nada existia que representasse lazer..

   O passatempo principal era mesmo deixar o tempo passar.

   As romarias tradicionais nos dias próprios, um ou outro baile e os desafios de futebol que o Sport Club Melgacense disputava com as povoações vizinhas.

   Os adultos, para encher o tempo e gastar as coroas que lhes sobravam, organizavam excursões em camioneta que percorriam um roteiro de visitas às cidades nortenhas e romarias de fama.

   Ficaram no anedótico popular algumas dessas excursões.

   O espanto que o mar causava a quem o via pela primeira vez, a grandiosidade de edifícios nas cidades maiores, uma porção de outras coisas estranhas à vida melgacense e, os testículos do cavalo da estátua de D. Pedro IV, no Porto.

   A garotada, entretanto, crianças e jovens viviam uma fase de estagnação.

   Limitavam-se aos brinquedos seculares: jogo de pião, chinquilho, monta-burro, de esconder e, naturalmente, o mais recente, o jogo de bola de pano na avenida recém construída ou no jardim do Cardoso.

 

 

(continua)