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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

S. ROSENDO, D. AFONSO HENRIQUES E O CASTELO DOS MONTES LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 03.06.17

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CASTELO

DOS MONTES LABOREIRO

José Domingues

 

O castelo dos Montes Laboreiro ou do Laboreiro (fr. Castro Laboreiro, c. Melgaço) é a segunda fortaleza mais setentrional de Portugal – a primeira é o vizinho castelo de Melgaço (fr. Vila, c. Melgaço). Situa-se em frente do lugar da Vila de Castro Laboreiro, no alto dum cabeço rochoso da cordilheira montanhosa de Entre-Lima e Minho – na época medieval identificada com os Montes Laboreiro, topónimo que ainda perdura do lado galego – servindo de sentinela avançada de toda a raia seca entre estes dois rios.

Trata-se de um castelo medieval de tipologia roqueira, que, não fugindo à regra dos seus homólogos, nos aparece de improviso no fio cronológico do tempo, mudo como uma esfinge, ocultando o segredo das suas origens. Sem embargo, é tanta a sua antiguidade que se não guardou memória autêntica da sua fundação. Não surpreende, por isso, que desde o dealbar do século XVII, pelo menos, os documentos manuscritos e impressos, com alguma assiduidade, tributem a fundação da esculca do Laboreiro a S. Rosendo da Celanova ou à sua família – e não será de todo despiciendo que, do outro lado da raia, ainda hoje continuem a chamar-lhe o castelo de S. Rosendo.

Reza a lenda que D. Afonso III de Leão – o Magno – terá doado, a título hereditário, o monte Laboreiro – “leporarium momtem” – ao conde Hermenegildo Mendo, avô de S. Rosendo, a título de recompensa por lhe ter submetido um grande opositor. Por morte de seu avô passou para seu pai, o conde Guterres Mendo, e, sucessivamente, para S. Rosendo.

Mas todo o período lendário tem o seu aspecto histórico: (I) esta doação e consecutiva transmissão já aparecem registadas em manuscrito do século XII, que relata a vida do cenóbio de Celanova; (II) se efectivamente se pode identificar a arcaica terminologia “monte”, que aparece nos documentos do século X, com as estruturas defensivas muito rudimentares levantadas para as populações se abrigarem dos ataques muçulmanos, normandos e eventuais violências internas, desde esse recuado século que está documentada a existência do castelo do Laboreiro em expressões como “subtus mons leporario” e similares; (III) finalmente, não há dúvida de que o castelo do Laboreiro fazia parte do património do mosteiro galego de Celanova, conforme consta do contrato de permuta outorgado em Zamora, no ano de 1241, entre D. Sancho II de Portugal e o dito mosteiro de Celanova, cedendo este último o castelo do Laboreiro ao monarca luso, que por sua vez lhe liberou a igreja de Monte Córdova (c. Santo Tirso).

Contra o que tem seguido a corrente historiográfica tradicional, mais lendária parece ser a tomada deste castelo pela força das armas, no tempo de D. Afonso Henriques. Tudo por conta e crédito da carta de couto que, no dia 16 de Abril de 1141, o mesmo monarca outorgou ao mosteiro de Paderne, em compensação do tributo de dez éguas com suas crias, trinta moios de vinho, um cavalo avaliado em quinhentos soldos e cem moedas de ouro, que a abadessa Elvira Sarracine lhe tinha prestado durante a tomada do castelo do Laboreiro – “istum pretium et servitium fuit datum quando tomavit dominus rex castellum do Laborario”. Este diploma afonsino vem confirmar a existência do castelo na primeira metade do século XII.

A cronologia documental conhecida impõe que, para se aceitar o sucesso bélico do nosso primeiro monarca, se acredite na conquista da fortaleza roqueira do Laboreiro duas vezes consecutivas, no Inverno de 1140 – uma por Leão e outra por Portugal. Esta ideia torna-se assaz improcedente tendo em conta: (I) a situação geográfica do castelo e a defesa natural proporcionada pela escabrosidade dos colossais penhascos que a natureza cinzelou; (II) os invernos rigorosos no âmago destas montanhas; (III) a morosidade, os riscos e as práticas de sitiar castelos em pleno século XII.

Assim sendo, o mais plausível é que, primeiro, o castelo do Laboreiro tenha tomado voz por Afonso VII, quando este por aqui passou a caminho de Valdevez, e depois, após o Bafordo de Valdevez e consecutivo armistício entre os dois reinos, tenha ficado do lado de Portugal, aproveitando o monarca luso a proximidade geográfica para o visitar e tomar posse. O convento de Paderne, por sua vez e tal como outros congéneres, ter-se-á limitado a comprar ao soberano a carta de couto para o seu mosteiro, pagando o respectivo preço.

Regressando ao hodierno, o “viajante” do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago, ficou surpreendido com o nome da porta deste castelo voltada para o casario actual da vila – porta do Sapo – referindo que “alguma coisa daria o viajante para saber a origem deste nome”. Numa tentativa de satisfazer essa curiosidade, é bem plausível que a explicação esteja na formação granítica, em forma de tartaruga, que fica mesmo em frente a essa porta. A verdade é que por estas bandas, plausível legado do Galaico-Português, a tartaruga ainda é o sapo concho ou sapo com concha.

 

José Domingues – Historiador e jurista. Professor e investigador do CEJEA na Universidade Lusíada. Fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro. Autor de As Ordenações Afonsinas e de muitos outros trabalhos da história da região do concelho de Melgaço.

 

 

LUGARES INESQUECÍVEIS DE PORTUGAL

Viagens com Alma

Edição Paulo Alexandre Loução

Julho 2011

pp. 417-419

 

UMA MULHER DE BARBA RIJA

melgaçodomonteàribeira, 18.02.17

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ANA HOME

 

O seu nome verdadeiro era Ana Fernandes. Nasceu em 1876 e faleceu na Vila de Melgaço a 5/4/1947, com 71 anos. Ficou com a fama de hermafrodita, por ser virago, mulher de pulso rijo. Em certa ocasião, num monte da Galiza, desarmou um carabineiro que dias antes lhe tirara o contrabando, uns míseros gramas de tabaco e duas barras de sabão, e com a própria carabina deu-lhe uma tremenda sova, deixando-o ali estendido como um morto. Depois remeteu a espingarda para o posto onde o ferrabrás estava afecto. O caso deu brado! E não foi só aquele que experimentou a “lenha” com que ela se aquecia, mas muitos outros homens pseudo valentes. Era tesa! Fazia todos os trabalhos normalmente atribuídos ao sexo masculino: podar, sulfatar, lavrar, etc. Fumava, vício que em Portugal só os homens tinham. No “Notícias de Melgaço” nº 1 de 6/3/1924, na secção DIZ-SE, alguém escreveu «que a Ana Home no domingo último, numa entrudada que neste dia se fez em Cristóval, vestiu-se com traje masculino, caracterizando-se com pêra e bigode; que a certa altura do divertimento montou num cavalo como qualquer homem, fazendo algumas evoluções para afastar o povo, o qual a elogiou.» Foi mãe solteira de dois filhos: o António Maria, conhecido por “Olharapo”, jornaleiro, o qual morreu na Vila (SMP), tuberculoso, a 27/3/1951; e o José, que depois da tropa ingressou na GNR, atingindo o posto de cabo. Carlos Afonso escreveu: «…embora não tendo “barba rija” tinha força e coragem para enfrentar quem a quisesse importunar. Poderia até equiparar-se à lendária Inês Negra, isto se os tempos fossem semelhantes e as oportunidades fossem as mesmas. (…) Eu conheci a “Ana Home”;… um irmão dela foi meu tio por afinidade. Mulher forte, de meia estatura e de voz grave. Trajava roupa de tecido grosso, como antigamente se usava em Castro Laboreiro, e dizia-se que por lá viveu algum tempo. Creio ter sido, talvez, da 2ª geração de uma família galega, de Desteriz, ali junto a S. Gregório, que aí por volta de 1850 veio para Melgaço, trabalhar para a Quinta chamada de Santo Preto. Em Melgaço, os descendentes dessa família, tinham por alcunha “os noivos”… Andava sempre armada com um varapau da sua altura e, dizia-se, não sei se com alguma ou total verdade, que usava “faca na liga”. Creio que a alcunha… lhe foi dada por ter a voz grossa, ou mais pelo facto de ela fumar, tal como os homens. Uma mulher a fumar, há mais de 70 anos atrás, era mesmo coisa de outro mundo…» (VM 1116, de 15/5/1999).

 

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO II

Joaquim A. Rocha

Edição do Autor

2010

p. 18

 

Joaquim A. Rocha edita o blog MELGAÇO, MINHA TERRA

 

 

CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO EM PADERNE

melgaçodomonteàribeira, 02.07.16

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OS CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO NO NORTE DE PORTUGAL EM FINAIS DA IDADE MÉDIA: DOS ALVORES DE TREZENTOS À CONGREGAÇÃO DE SANTA CRUZ

 

        AIRES GOMES FERNANDES

 S. SALVADOR DE PADERNE

 

Mosteiro inicialmente beneditino passou para a Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho pelo menos no primeiro quartel do séc. XIII. A 6 de Agosto de 1264 o bispo de Tui, D. Gil, sagrou a nova igreja do mosteiro sendo seu prior D. João Peres. Nesta segunda metade do século XIII são reportados abusos praticados por alguns nobres sobre o mosteiro levando D. Afonso III a intervir, dirigindo carta, a 22 de Março de 1273, ao seu meirinho-mor, ou a quem por ele andasse na Terra de Valadares, no sentido de proibir os abusos e constrangimentos que os nobres provocavam aos moradores do couto do mosteiro a quem exigiam, indevidamente, serviços e foros. O monarca proibia também os fidalgos de darem os seus filhos para serem criados no couto e herdades de mosteiro. A 3 de Maio de 1289 é D. Dinis que confirma estas mesmas prerrogativas ao mosteiro de Paderne, ordenando a Gonçalo Fernandes, seu meirinho-mor que zelasse e fizesse cumprir tais disposições.

O mosteiro de Paderne apresenta no início do século XIV algum desafogo económico, tendo sido taxado, em 1320, em quinhentas libras.

A 4 de Março de 1334 Afonso IV autoriza o prior de Paderne a manter as herdades que o mosteiro tinha nos concelhos de Monção e Melgaço, isentando-os assim, da aplicabilidade da legislação que proibia os clérigos e as ordens religiosas de comprar ou receber herdades reguengas e foreiras.

  1. Afonso IV também isentou os moradores do mosteiro, do couto e limites dele, de prestarem serventia aos concelhos, mormente de roldar, velar e guardar as portas, privilégio concedido em data anterior a 27 de Dezembro de 1343.

A 10 de Novembro de 1357 o rei D. Pedro outorgou e confirmou todos os privilégios, foros e liberdades que tinham sido concedidos pelos monarcas anteriores ao prior e convento do mosteiro de Paderne.

A 23 de Julho de 1365, e após queixa do prior e mosteiro de Paderne, o rei ordena que restituam ao mosteiro todas as herdades e posses que tinham na vila de Melgaço e que tinham sido embargadas por Domingos Anes, procurador dos feitos na comarca de Entre Douro e Minho. Entre esses bens estavam umas casas que o mosteiro possuía na vila de Melgaço, que tinham pertencido a Rodrigo Anes, e serviam para aí armazenar pão e vinho, possessões que o mosteiro não podia deter segundo as leis do reino, mas que o rei autorizou que mantivessem. Nesse mesmo dia o monarca acedeu também ao pedido do mosteiro de Paderne no sentido de se manterem como foreiros régios, o que, mais uma vez, ia contra a legislação em vigor que proibia que os clérigos, ordens e fidalgos comprassem, ganhassem herdades nem possessões nos reguengos nem que fossem foreiros régios. O monarca autorizou que o mosteiro mantivesse as herdades e bens que o rei lhes tinha aforado em Monção e Melgaço. Esta atenção dos nossos monarcas em relação ao mosteiro de Paderne não será certamente alheia ao seu importante papel na zona fronteiriça. De resto e segundo documento visto e transcrito, em parte, por Sousa Viterbo, no século XV o mosteiro de Fiães devia ao mosteiro de Paderne 205 libras afonsinas de guerra.

Também D. Fernando, a 27 de Março de 1370, confirmou e outorgou todos os privilégios, liberdades, foros e bons costumes ao concelho, homens bons, e mosteiro de São Salvador de Paderne.

Para a primeira metade do século XV praticamente não encontramos referências acerca do mosteiro. Sabemos apenas que o prior de S. Salvador de Paderne foi comissionado por D. Afonso, chantre da diocese de Tui, no sentido de lançar e publicar a excomunhão sobre os cobradores régios castelhanos que taxavam e cobravam indevidamente retidos sobre os bens da Igreja, usurpando assim os seus direitos, situação que tinha sido levada perante o Papa tendo sido nomeado Juiz da Causa o referido chantre da Diocese de Tui, dando o prior de Paderne cumprimento a essa ordem a 16 de Julho de 1440. Já para a segunda metade aparecem-nos algumas indicações que nos ajudam a perceber melhor o percurso desta instituição, informações que resultam de diversos documentos referentes à intervenção régia, com especial realce para a acção de D. Afonso V.

Assim, em 1469, no início do mês de Março, encontrando-se o monarca em Avis, e após requerimento de D. Vasco Rodrigues, prior de Paderne, passa duas cartas de confirmação de privilégios ao mosteiro melgacense. A primeira, datada do primeiro dia desse mês, é referente à confirmação da isenção dos moradores deste mosteiro de prestarem quaisquer encargos e serviços concelhios, conforme privilégio concedido por D. Afonso IV e D. Pedro. A segunda, feita a 10 de Março, é respeitante à confirmação dos privilégios dados por D. Afonso III e D. Dinis, pelos quais se garantia a protecção dos homens do couto do mosteiro em relação às exigências e arbitrariedades de alguns fidalgos, de forma a evitar que esses moradores fossem coagidos a prestar serviços, impedindo também que fossem criados filhos de nobres no couto do mosteiro.

A 26 de Abril de 1475 D. Afonso V confirma os privilégios já concedidos pelos seus antecessores e ratificados por ele próprio a, a 8 de Setembro de Março de 1969, passando nova carta por terem perdido a original, isentando assim os moradores do mosteiro e do seu termo de servirem nos encargos dos concelhos, e especificamente das obrigações e de roldar, velar e guardar as portas.

Também D. Manuel a 8 de Setembro se 1497, confirmou e outorgou a esta canónica regrante todos os privilégios até aí concedidos pelos seus antecessores. Ainda durante do reinado do “Venturoso” surgiram dúvidas sobre as jurisdições do couto, levando o prior D. Estêvão Rodrigues a solicitar a intervenção régia, terminando o processo com o esclarecimento e confirmação dos privilégios da instituição, por carta datada de 11 se Agosto de 1517, passada pelo Doutor Francisco Cardoso, juiz dos feitos de D. Manuel.

Em 1546 os benefícios do mosteiro de Paderne, juntamente com os da sua anexa de São Tiago de Penso, foram avaliados em duzentos e setenta mil reais, valor já livre das despesas com os encargos e sustento dos cinco religiosos que compunham a comunidade nessa altura (quatro cónegos e o prior claustral). A 17 de Dezembro de 1561, e por ordem régia, apresenta-se em Paderne, Manuel de Almeida, com o intuito de tomar o mosteiro. Apesar do emissário régio e os seus acompanhantes terem sido aí recebidos num clima de grande tensão, com diversos homens armados a aguardá-los, a situação acabou por se resolver pacificamente e no dia seguinte o comendatário, Pedro de Sousa, entregou o mosteiro ao emissário que, por sua vez, o deixou à guarda de Jerónimo de Moniz e de quatro homens que o acompanhavam, e que ficaram “no moesteiro com os conegos delle muito paciffico”.

No final do século XVI integrou a Congregação de Santa Cruz de Coimbra, dando-lhe o papa Clemente VIII (1592-1605) as letras de união e reformação a 23 de Maio de 1594, tomando posse do mosteiro, D. Cristóvão de Cristo, a 29 de Janeiro de 1595, elegendo-se logo no dia seguinte o primeiro prior trienal do mosteiro: D. Nicolau dos Santos.

 

IGREJAS DO PADROADO DO MOSTEIRO DE PADERNE

 

Santa Maria de Paços – (c. Melgaço) – Igreja anexa ao mosteiro de Paderne. Em 1320 esta igreja foi taxada em 25 libras. No Censual do arcebispo D. Frei Baltasar Limpo, da segunda metade do século XVI, continua a ser referenciada como integrante do padroado do mosteiro de Paderne, embora já não conste como anexa. Em Maio de 1565 era vigário da igreja de Santa Maria de Paços, João Lopes.

 

São Tiago de Penso – (c. Melgaço) – Igreja do padroado do mosteiro de Paderne. Em 1320 foi taxada em 62 libras. Em 1546 os rendimentos desta igreja foram avaliados em 40 mil reais. A 14 de Maio de 1565 o arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, confirmou Estêvão Mouro, clérigo de missa, como vigário da “egreja de Santyaguo de Penso annexa in perpetuum ao moesteryo de Sam Salvador de Paderne da Comarqua de Valença”.

 

Dissertação de Doutoramento em Letras, área de História, especialidade de História da Idade Média.

 

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

                                 2011

 

 

VIDAS MELGACENSES: O TI PIRES

melgaçodomonteàribeira, 18.06.16

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O TI PIRES

 

 O cinema exibido na casa do Emiliano, filmes mudos, era produto do génio inventivo do Manuel Pires. Este Papá Pires como passou a ser conhecido mais tarde devido a esse tratamento que os filhos lhe dispensavam, era oriundo do vizinho concelho de Monção, da freguesia de Tangil. Tivera longo tirocínio na freguesia da Valinha como funcionário da famosa loja do Barbeitos.

Estudioso, autodidacta, era o Pires o arauto do progresso. Enfronhara-se nas coisas do cinematógrafo, novidade que estava chegando à região. Por sua inventiva construiu o Pires a máquina de projecção com componentes adquiridos no Porto. Como o Emiliano tinha o espaço fizeram uma sociedade. Ambos novos, recém-casados, com idênticos propósitos de progresso entenderam-se bem durante algum tempo. Além do cinema fizeram sociedade num automóvel Ford, modelo T, 1926. Este carro dirigido por um ou por outro foi o primeiro carro de praça da vila de Melgaço.

O Manuel Pires após prestar o serviço militar foi instalar-se na vila de Melgaço. Aí montou de sociedade com o irmão José uma loja de ferragens e prestação de serviços mecânicos denominada Pires&Irmão, Lda. Os dois Pires logo ficaram famosos, dinâmicos e inventores tinham solução para tudo. Diversificaram suas actividades com serralharia, mecânica, electricidade, fotografia, bicicletas e automóveis, gramofones e cinema. De tal modo eram procurados que montaram nova loja na mesma rua, aliás a principal da terra, rua Nova de Melo. As duas lojas passaram a ser conhecidas como a loja de cima e a loja de baixo. Uma especializada em ferragens e a outra em drogaria. Ambas bem montadas com letreiros nas fachadas e nos vidros, nestes com filetes de ouro, arte que o Pires dominava bem chegando a ser durante bastante tempo o único e competente pintor de letras da região. As casas comerciais e Hotéis do Peso exibiam nas fachadas suas denominações em grandes e artísticas letras pintadas pelo Manuel Pires directamente nas paredes. Nas suas andanças pelas redondezas atendendo a chamadas de trabalho, sempre de bicicleta, conheceu no Peso uma rapariga que lhe agradou. Também a ela lhe interessou aquele famoso mancebo. Era a Carlinda, filha única de Lucas Ferreira Passos, probo e abastado proprietário, descendente de tradicional família. Entre os dois estabeleceu-se um namoro fora dos padrões convencionais da época. Não eram vistos juntos nas festas e romarias e dificilmente aos domingos. O namoro de Pires e Carlinda era quase exclusivamente do conhecimento dela e dos pais dela. Quando dispunha de tempo ou a saudade apertava, não importava dia ou hora, montava o Pires numa das suas bicicletas de aluguer e pedalava até sua amada, quatro quilómetros distante.

O casamento dos dois também se deu fora dos padrões usuais. Consta que, acertadas as coisas e documentação, no dia aprazado a Carlinda e parentes aguardavam na porta da igreja do convento de Paderne. Na hora marcada apareceu o Pires no seu transporte exclusivo, vestido com seu traje habitual, calça e casaco de cotim cinzento e alpargatas nos pés. Após a cerimónia religiosa cada um foi para o seu lado. A Carlinda e familiares para sua casa e o Pires em sua bicicleta para a sua loja. Só à noite se juntavam na casa dela. Esta situação durou até ele alugar o sótão da casa da Umbelina da Baralha, em cujo térreo já tinha uma das lojas: sótão este que só abandonou anos depois, já tinham os seis filhos, por ameaçar ruir. Por falecimento dos sogros herdou as duas casas nas propriedades do Peso mas nunca se transferiu para lá. Aquele inusitado casamento que à maioria passou despercebido, até aos vizinhos, motivou um curioso incidente. O Ponciano, vizinho com propriedades contíguas, nas esporádicas conversas passou a dar indirectas: - Lucas, a tua filha não canta! No seu jeito calmo respondeu: - Se não canta, há-de cantar. Diariamente o Lucas era abordado com a mesma observação venenosa do vizinho. Fazia-se desentendido e dava sempre a mesma resposta: - Se não canta, há-de cantar! Certo dia vendo que as indirectas não surtiam o efeito desejado, maldosamente foi directo: - Lucas, a tua filha está prenha, de quem é? Com a sua proverbial calma, com o falar arrastado, respondeu ao insolente vizinho: - Pois está! É do nosso Pires, o homem dela!

Não levou muito tempo uma filha do Ponciano apareceu grávida. Num dos encontros o Lucas observou ao seu vizinho: - Ponciano, a tua filha não canta!... Furioso, o outro destratou-o: - Vai para o diabo, desgraças acontecem a todo mundo…

 

                                                             MANUEL IGREJAS