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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

  

Arroz de lampreia à minhota

 

 

   Chegámos à praça com a barriga sossegada. Havia menos gente e a banda deixara o lugar aos "Cunters", conhecida orquesta galega que já fora a Melgaço. Ali, encontrámos o Daniel Pita, fundador da primeira loja de móveis em Melgaço, em companhia dos irmãos Sentados, de Chaviães. Impecável, como de costume, vestira um fato azul escuro às riscas, o último que mandara confeccionar. O cabelo parecia palha d'aço. Compridinho e bem penteado, ainda que houvesse um vendaval, não mexia de um milímetro, graças à laca que por ele espalhava. Um amigo nosso dizia que, quando o cabelo lhe caisse, caia-lhe todo junto, como um capacete. Já tinham comido uma boa lampreia. O mais tarde às onze e meia, tinham de ir embora pois vieram de carro e a fronteira em São Gregório fechava à meia noite. Era um grande amigo... Lá fomos todos para o café. O Daniel ia pagar a rodada. Contámos-lhes a do café Sical e o corte que fizéramos ao Alfredo. Riram-se de  boa vontade e repetiram-lhe várias vezes para chateá-lo :

   "Bem te lixaram, Alfredo." "Estás a ficar velho, caramba, quem te via e quem te vê !" "Nem parece de ti, pá !"

   Toda a gente se ria, excepto o Pachorrego que se mantinha sério como um guarda republicano e batia ligeiramente com o calcanhar da perna direita no chão, sinal de desagrado. Esperou que nos calássemos e, olhando para nós com um ar velhaco e pérfido, preveniu-nos solenemente:

   — Sabeis, rapazes, o último que me fodeu num nasceu onte, há muitos anos que tem a barba branca !

   Mau vaticínio! Não soube porquê, mas não gostei da segurança, da intonação com que se exprimira, nem do cintilar malicioso dos olhos. Seria dos copos ? Era possível, mas tinha a impressão que tramava qualquer coisa. À medida que o fora conhecendo, aprendera a ter um pé atrás, a não ignorar as suas palavras quando falava deste modo.

   Ficámos mais uns minutos a ouvir os "Cunters". Estavam a fazer uma demonstração que se prolongaria até às dez. Das dez às onze iriam jantar. O sol deitara-se. A  hora de comer a lampreia ia aproximando. Deixámos os nossos amigos e encaminhámo-nos para o bar. Chamava-se "San Jenjo", nome de uma vilita galega à beira mar. Estava quase cheio. As poucas mesas inocupadas de certo que estavam reservadas. Ao balcão, empurravam-se uns aos outros, tanto para beber como para comer umas "tapas". O barulho, que foi uma das duas coisas que mais me marcaram em Espanha, era atordoante. Toda a gente falava alto e ao mesmo tempo. Quem queria ser ouvido, tinha de falar mais alto do que o vizinho e assim sucessivamente. Estavam habituados aos berros, ao barulho e, consequentemente, creio que também estavam imunizados contra a dor de cabeça. A segunda, foi o tutear. Os novos aos velhos, aos conhecidos como aos desconhecidos, todos se tratavam por tu. Para mim, era uma obscenidade. Desde pequeno que me incutiram o respeito pelos mais idosos (era incapaz de tratar o Pacho por tu) e que tratei os meus pais por você. No início, quando nos cafés e nos comércios me perguntavam "Que te pongo?", contrariava-me consideravelmente; depois, fui-me acostumando.

   A travessa estava bem fornecida. A lampreia, sem cortar, para vermos que nem um padacinho lhe faltava. Se não fosse suficiente, havia mais arroz na panela, disseram-nos. Não ficou nada nem foi preciso mais. Comemos como os padres, sem falar. A minha mãe dizia: "Ovelha que berra, bocado que perde." Ficamos empanturrados. A maioria das  pessoas cozinhava as lampreias com bocadinhos de presunto. Ainda assim, e talvez por eu ser do monte, preferia quando estas levavam uma pitadinha de unto fresco. Enfim!  Estava "de p*ta madre" (muito boa), tinham dito os dois casais da mesa do lado. Acabámos com a segunda garrafa de branco e pedimos a conta. Oitocentas e oitenta pesetas com o vinho. O pão era gratuito. Duzentas e vinte pesetas cada um. Perguntámos o câmbio, fizemos a conta em escudos e demos o dinheiro ao Pacho que foi pagar. Comprámos (comprou o Pepe) uma pequena caixa de cigarrilhos para fumarmos enquanto tomávamos café.

   A praça pouco mais de meia estava. Muita gente ainda se encontrava a jantar. Sentámo-nos a meio do café pois à entrada não havia mesas disponíveis. Tomamos café, se tal se lhe podia chamar, e, para ajudar a digestão, uma copa de Soberano que, como a publicidade dizia, "es cosa de hombres". Acendemos os cigarrilhos e aproveitámos aqueles momentos de agradável e efémero usufruto. Fumámos num silêncio eclesiástico, apenas interrompido por um grande arroto do João. Ao Alfredo, com as mãos por cima da pança, como de costume, apenas lhe faltava a sotaina  para parecer um verdadeiro padre. Os altifalantes dos modestos carrosseis e de algumas barracas de tiro, instalados numa pequena rua paralela à praça, propagavam uma música disparate e esganiçada.

 

(continua)

 

FIFI EM PARIS

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Era o quarto ou quinto dia que estava em Paris. Frio, frio mesmo para quem vinha da terra agreste das serras galegas. Fim da tarde, Tonio chega ao quarto cozinha sala de estar e salão de fumo (faltava a casa de banho que ficava nas escadas entre o terceiro e quarto andar, buraco no chão) e atira com sorriso:

   — Hoje jantamos em casa do vizinho da frente.

   — Porreiro Tonio (e cá para mim… hoje não aqueço cassoulet). Mas o vizinho da frente não é um algeriano?

   Vizinhos na Rue Lécuyer junto da Porte de La Villete. Rua de emigrantes, portugueses do lado direito e magrebinos do lado esquerdo, duas comunidades divididas por 5 metros de pavée. A boa relação do Tonio com o (descobri mais tarde) Mohammed, tunisino, devia-se ao fechar duma cortina sempre que estávamos em casa e garantíamos a privacidade de quem morava do outro lado da rua.

Nós não olhávamos e eles também não.

   — Tonio, por quê jantar em casa do algeriano se passas o tempo a dizer p’ra num ir ao outro lado da rua?

   — Porque do outro lado são arabes, ainda pior que os pieds noir.

   Encolhi os ombros.

   Arabes, pied noir, mas que raio me importava isso tudo; não conhecia um muito menos o outro.

   Subir ao apartement do Mohammed foi o mesmo que ir chez Tonio. O mesmo cheiro entre andares e a mesma falta de luz. O sol quando nasce é para todos, a luz eléctrica em Aubervilliers é que não.

   Mohammed, para meu espanto, era igual a qualquer outro que passava por mim na rua. Então quando dei um passo e fiquei fora da casa, disse para mim: “São mesmo iguais, até no buraco em que vivem”.

   Rolhas saltaram, nem me lembrei (ou será que já conhecia?) de Alá. Bebemos ao nascimento do quinto filho da família de Mohammed.

   No meio de uma cacofonia, luso-arabe-francês apanhei excertos da conversa entre Tonio e o tunisino. Falavam de mim, que ninguém conhecia na rua, o Tonio a dizer que eu só lá estava havia quatro dias, mais p´ráqui mais p’racolá e eu puxei dos meus galões e meti-me na conversa. Em francês, é claro.

   Tinha dito uma ou duas frases quando Mohammed se levantou, parecia um raio, olha para o Tonio e grita:

   — Toi, t’es un menteur…

   Num flash vi o meu amigo a recuar em direcção à janela, sempre era um quarto andar e tombo de arrepiar. Botei a mão a Mohammed e gritei-lhe ao ouvido:

   — Ça c’est vrai, je ne suis ici que depuis quatre jours.

   O homem parou, olhos faiscaram e …

   — Comment est-ce possible que tu parles comme ça?

   — C’est possible parce que je suis étudiant au Portugal et comme je ne veux pas faire la guerre en Afrique j’habite avec mon frére Tonio.

   Se a festa já estava no auge foi ao rubro com o meu discurso. Um português que não corria atrás da bucha para matar a fome, dele e da família, um português que condenava a guerra na sua terra. Bela bebedeira a da casa do Mohammed tunisino.

   Acabou Setembro e as ruas de Paris enchiam-se de neve. O frio cortava as orelhas, bem pior que as madrugadas na terra. Trabalho nada, tentei nos apanhadores do lixo, mas nem a esses faziam papéis. Os árabes apanhavam tudo, concorríamos a ver quem apanhava primeiro contrato de trabalho. Português com dezoito anos e sem documentos não tinha a vida fácil.

   E continuava eu a dar umas sortidas por Paris, nota só para o metro, compras no mini mercado, grelos e costeletas de porco, cerveja alguma. Depois das oito da noite por o nariz de fora da janela era suicídio. Uma noite, dia alto na minha terra – pensava eu – acabou o tabaco em casa. Preparei-me para sair e o Tonio deu-me as recomendações:

   — Vais ao quiosque no fim da rua e compras dois gaulloise.

   — Mas Tonio, há um bar em frente da casa porque c*ralho vou ao fim da rua com este frio?

   — Faz o que eu te digo, eu é que sei!

   Saí do prédio a dizer mal da vida e de todos os Tonios desta vida e embiquei directo ao bar em frente. Quando abri a porta percebi o que ele queria dizer. Um passo em frente e mergulhei na escuridão, só via olhos pousados em mim e um silencio opressivo.

  Em frente ou fugir. Frio da rua ou o calor do bar?

   — Ei Fifi?

   Voz de Mohammed salvadora que o meu sorriso agradeceu. Segundos depois de eu ter assentado o cú na cadeira já meia dúzia de rostos me espiavam por todos os lados. Olhei todos de frente à espera do que viria a seguir. Latidos de cão, pensei eu, nunca me passou pela cabeça que existissem homens a linguajar daquela maneira.

   Mohammed convidou-me a tomar uma bebida e não pensei duas vezes:

   — Pelfort noir.

   Não demorou a mesa estar cheia de garrafas daquela bela cerveja.

   — Fifi, esta é a tua casa sempre que quiseres, com ou sem dinheiro cerveja e tabaco não te vai faltar.

   Não falei aos meus amigos que me davam guarida o que se tinha passado, apesar deles se interrogarem como eu chegava tão rápido ao quiosque e voltava com o tabaco.

   Nunca souberam que todos os dias ao fim da tarde entrava no bar e ouvia:

   — Eh Fifi, une Pelfort?

   Eram duas ou três, gaulloise e por vezes um cigarro da terra deles, para preparar o jantar como eles diziam; com canções da terra faziam com que eu recordasse o que também deixara para trás.

  

   Um grande abraço para o tunisino Mohammed e seus companheiros do bar escuro do qual nunca soube o nome.

 

Fifi

 

FIFI QUASE... QUASE

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gare de Austerlitz

 

   Acordado com a voz de madame a dizer:

   — Qui êtes-vous, messieurs? Que faites-vous ici?

   Um flash, voltei a mim, e logo arrisquei:

   — Il n'y a pas de problèmes, nous sommes des espagnols arrivés à l'aube en train et on attend pour faire des courses. Il n'y a pas de problèmes!

   — Attendez, j'appelle la police.

   Quando entrou em casa, desaparecemos.

   — Vamos pirar não vá a velha bufar!

   Rua abaixo, em Handaia, com calma e eu é que falo, as luzes em baixo tinham que ser de comboios. Acertamos, era de comboios e tinha bares abertos aquela hora. Sandes e cerveja, cambio à moda do grummet..

   Estava a devorar a baguette com saussichom quando topo caras conhecidas. Eram do monte, Gave ou Parada, caras de sexta-feira na Vila. Eu, clandestino, não tinha interesse em dar nas vistas. Fui ao guichet perguntar as horas e preço de comboio para Paris. A minha nota não chega, f*da-se, f*da-se mil vezes.

   Foi com cara de anjo com que tirei dois bilhetes para Paris, sacando a nota ao companheiro que nada percebia de francos e ainda fiquei com vinte francos no bolso.

   Quando senti o cú a dar um solavanco e o train a andar, jurei a mim próprio que havia de passear debaixo do Moulin Rouge. Bons rapazes os franceses que em vista e obliteração do bilhete me deixavam desfrutar das imagens corrediças que do comboio apanhava.

   Bonito – pensava – parece as serras da minha terra.

   Muito mais tarde, saí na Gare bem dormido, sorriso nos lábios e cheguei ao cubículo do Tonio de táxi; começou outra aventura.

 

Fifi

 

MAIS DO FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gare de Hendaia

 

 

   Cheguei a S. Sebastian e o frio já se fazia sentir. Gente e mais gente como nunca tinha encontrado nas minhas andanças por Portugal. Uma volta e só policias olhar para o mapa e Irun é que interessava. Uns míseros dez quilómetros e estava no local almejado. França em frente, quase palpável mas com a treta dum rio a separarmo-nos.

   Os Bascos não ajudavam em nada, entrava numa bodega e logo eles mudavam de língua. Depois de dois a atirar umas palavras pseudo espanholas resolvi mudar para português legítimo. Mudança radical no comportamento daqueles velhotes; não mudavam de linguajar.

   Com os cartos curtos só dava para olhar as chicas com olhos de predador, e já chegava a hora de atacar o objectivo. Uma volta junto à passagem do caminho-de-ferro deu logo para perceber que por ali não havia safa, e pior ainda, deu direito a uma chamada em voz militar dum guardia civil:

   — Que haces aqui?

   Los cogones se fueram.

   O parceiro que tinha encontrado na viagem, portista da Sé, ia abrir a boca quando perguntei:

   — Es esta la carretera para Bilbao?

   — Esta es la carretera para tu madre se no te vas.

   Dei meia volta e pirei-me que o homem não tinha boa cara. Uns dias antes os bascos da ETA tinham feito o primeiro-ministro saltar acima dum quarto andar:

   — Viva Franco mas alto que Carrero Blanco – palavra de ordem na altura dos martirizados bascos.

   Realmente começamos a calcorrear a estrada de Irun-Bilbao. Meio quilómetro e um camião pára ao sinal de boleia. Corremos e o filho da p*ta arrancou quando nem meio metro nos separava. A berrar contra o corno quase não demos com um guardia civil que do outro lado da estrada nos acenava. Treta, que o porco camionista se desfaça aos bocados. Cabrão, franquista de merda, tu madre non te pariu, tu madre cagoute.

   Primeiro identificação, depois espiolhar o que trazíamos. Quando descobriu na pasta do meu compincha três garrafas de Porto sorriu. Apalpou-me e encontrou a faca de mata que sempre me acompanhou. Um grito e pistola encostada à minha cabeça. Correu connosco depois de ficar com a faca e uma garrafa de vinho fino como o meu companheiro de viagem designava o Porto que transportava e me informou a seguir serviria para corromper um chef de chantier e arranjar trabalho e papéis.

   Depois de muito andar pelas serras pirenaicas chegamos a Hendaia. Cobertos de picos do mato que as constantes passagens de helicópteros nos obrigavam a abraçar.

   Um comboio até Paris e muitos picos para tirar.

 

 Fifi

 

AS VIAGENS DE FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Estação de S. Sebastián - Donostia

 

   S. Sebastian é uma cidade muito bonita e mais bonita se torna se à traça arquitectónica lhe juntarmos os seus habitantes. Só a mudança de linguajar, do espanhol para o basco sempre que entravamos numa taberna ou pequeno bar, as exclamações durante um jogo de cartas ou dómino fascinava-me. As mulheres que por mim passavam eram todas saídas das revistas que a minha prima  punha à disposição das freguesas no salão da Calçada. Belas e distantes, que o companheiro de viagem não se deixava distrair. Sair de S. Sebastian e apanhar a estrada para Irun era o objectivo e passear na cidade não era agradável com toda aquela tropa. Efeitos do voo de Carrero Blanco - pensei na altura.

   Apanhámos a estrada para Irun, uma via rápida e não há boleia p’ra ninguém. Uma placa de paragem de autocarro, suspirei; o fato de macaco que o companheiro usava e a pasta de trabalhador disfarçava o que nos ía na cabeça. França, passar fronteira e França. Na viagem de meia dúzia de milímetros resolvi por as contas em dia, as dezoito notas do Pantera não iam durar muito e só tinha o companheiro de viagem, – desde Chaves - rapaz do Porto, conhecedor da noite de Orense onde pontificava no bar La Toja uma sua irmã, bem mamalhuda por sinal, mas pouco dado a pensar e fazer contas.

   Em Irun fomos direitos à fronteira dar uma vista de olhos na via férrea. Asneira, apanhamos logo com um soldado, alto… papeles… sei lá! Falei em quatro ou cinco línguas de enfiada, as que sabia e as dos filmes, o soldado correu connosco.

   Uns copos na zona iluminada da cidade, olhos arregalados p’rás chicas e senhoras e madames e sei lá que mais e toca a andar p’rá cama. Fiquei a remoer no rio toda a noite. De manhã, depois de me abastecer de roupa de mulher gorda que havia no quarto da pensão onde passámos a noite, assumi a passagem para o outro lado.

   Seguimos pela estrada que vai dar a Bilbao onde eu tinha a certeza que a fronteira deixava o rio e passava a terra firme. Caminhar e boleia, vamos em frente. Uns quartos de hora passados um camião pára. Uma corrida e quando abri a boca o filho da p*ta arrancou.

   — Foda-se, foda-se, foda-se cabrão de merda.

   Um apito soou, caguei-me para ele!

   Outra apitadela e um braço a acenar do outro lado da estrada.

   Um guardia civil em frente de uma guarita, sobre o rio, que eu não tinha visto. Um mal nunca vem só, que se f*da que eu não vou p’ra trás. Braços no ar, quando apalpou as minhas costas recuou e senti uma pancada na cabeça. Sacou-me a faca de mato que trazia no cinto e ladrou, ladrou, o tripeiro abriu a pasta, garrafas de porto direitinhas, a pistola deixou a minha cabeça em paz e eu suspirei. Contentou-se com a melhor garrafa do lote, a conselho do proprietário, ainda deu uma mirada nas carteiras mas apesar de serem uns miles de pelas apontou a estrada e mandou:

   — Só paras em Bilbao.

   A fronteira passava a raia seca e começamos logo a subir. Tanto mato, giestas gigantes, tojo, era igual a Castro só que maior. A meio da tarde, sem comer, ao ouvir as pás de um helicóptero vai em frente seja tojo ou não, um repouso. Sem água, só uma opção. Em frente, em frente, barulho do pássaro de guerra, esconde, avança, em frente, o sol é mais fraco, a sede um tormento, um pé escorrega e deslizo. Passamos a serra, estamos a descer, um regato e estamos em França. Bebemos como rezes, espojamo-nos na erva por minutos. A noite descia, era hora de andar. Descobri uma estrada estreita, terra batida, pensei em contrabando, mas logo alargou e ao fundo via-se um clarão. Luzes, muitas luzes. Até o frio passou quando ouvimos lá longe um puuuu de comboio.

   Irun ou Handaia?

   Espanha ou França?

   Andar, andar mais, o clarão em frente é a estrela de Belém.

   A placa que estava na minha frente deixou-me um sorriso nos lábios. O primeiro objectivo estava alcançado. Estava em França havia que chegar a Handaia , tratar de comboio, dinheiro, comer e dormir. O sol ainda não tinha nascido e chegamos à terra prometida. Uma porta de prédio aberta, um armário vazio no vão de escada. Apertados tentamos dormir. Bem cedo a portinhola abriu-se e uma cara rugosa espreitou para dentro. Não lhe dei tempo para abrir a boca:

   — Pardon madame, on a arrivé dans le dernier train de Espagne, on va acheté des choses.

   — Un moment, je vais appeler pour la gendarmerie.

   Quando a velha virou costas e entrou em casa, desaparecemos. Sempre a descer encontramos uma cerca de arame. Caminho de ferro. Mais à frente a estação.

   Primeiro saber o preço do bilhete, depois, onde cambiar dinheiro. Com o dinheiro dos dois na mão tratei logo de separar o necessário para a viagem. Comprei passagem para os dois e arranjei maneira de ficar com uma nota extra. De Handaia a Paris a viagem foi um sonho e perto do destino resolvi por os pés no chão.

   — Estamos a chegar a Paris, agora que é que vais fazer?

   — Vou apanhar um carro, o meu destino é oitenta milímetros p’rá frente.

   Sorrindo, apresenta-se um fulano a propor transporte para onde for necessário. Saquei o papel que o compagnon de route tinha na mão e atirei ao moinante transportador.

   — C’est combien pour ….

   — Trois cent

   — Je veux aller pour la Villete

   — Plus vingt cinc

   — D’accord!

   Ele quer trezentos?

   — Percebeste, mais vinte e cinco p’ra me deixar a mim.

   Aconcheguei o corpo dorido no assento do carro. Tanto carro e tanta gente, cheguei, apalpei as notas no bolso e descobri que faltavam cinco francos. Que se f*da. Quando paramos em frente do 36 Rue Lécuyer puxei da nota e atirei:

   — Faltam 5 francos, não tenho mais nota.

   O homem saiu do carro e diz-me:

   — Há sempre alguém conhecido. Como se chama a pessoa que vem encontrar?

   — Tonio, Tonio Barbeiro.

   O homem falou logo com dois ou três, eu saí do carro e entrei no prédio, aparece o Tonio de marmita na mão acabado de chegar do trabalho.

   — Tonio, preciso de cinco francos p’ra pagar ao gajo do carro.

   — Toma lá e vamos fazer o jantar.

 

Pantera, foi com as tuas 18 notas de cem que cheguei a Paris.

 

 

Fifi

 

AS AVENTURAS DO FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

“O Nosso Café” - Braga (encerrado)

 

 

   Sou o Fifi.

   Agora que os meus cento e muitos quilos me forçam a observar e não intervir na vida da terra que o frade achincalhou à duzentos anos, conto mais uns episódios, a juntar a outros que já conheceis, das agruras dum homem honesto a quem as águas do rio nunca lavou.

   Filho de Melgaço, católico sempre que me convém, amante de comezainas e beberetes, jornalista nas minhas muitas horas vagas saudoso de tempos que já lá vão, sentado na minha cadeira confortável à porta da minha oficina-escritório, recordo um passado próximo de trinta anos quando, nós melgacenses, éramos tidos por espanhóis e camelos pelos meninos da cidade.

   Fifi sou de nome desde o tempo em que o Gabriel me arreava na carola por cada corte que fazia na cara do cliente, do monte, nas sextas-feiras em que desciam à vila e ainda não se falava do contrabando de gado e banana que o ‘’ tampa de mala ‘’ tanto apreciava. Vizinho do Manel dos Ovos e do Pereira, só me interessava o café. Adiante, que a vida dá muitas voltas, e cadeira como a que tenho agora nunca antes me passou pelas nádegas.

   Tenho pena é dos amigos que me visitam, Fifi vai um copo? já não temos o Berto e o Miguel morreu e só lhes cravo um cigarro porque tigelas é coisa que acabou na Calçada. Da minha rapaziada há um que aparece sempre com um bicho pitt bull que me põe os cabelos em pé, outro que está sempre de máquina fotográfica apontada à cara, um outro, visita mais frequente, sempre a convidar p’rás gajas na Galiza.

   Eu prefiro recordar e contar a vida dum pobre rapaz da Calçada para quem a vida juvenil foi sempre madrasta.

 Um dos malandros de Braga, com assento fixo no Nosso Café, deu-me o banho em 50 paus. Fiquei f*dido, remoí fígados e corações e jurei-lhe: um dia vou-te caçar.

   Caçar sereno, à espera, vais aparecer e eu estou aqui. Vais estar na cidade onde nasceste mas que eu domino, tu acenas e eu atrás sorrio.

    Sentei-me em frente do malandro de Braga numa mesa do Nosso Café. Fim de Verão.

Mas manhã fria a pedir um chocolate quente.

   — Não tenho nota e quero-me pirar!

   —Eu não tenho nada… espera…

   — Espero o caralho, deves-me a nota, não tens, desenrasca-me, merda!

   O malandro de Braga era o Pantera. John, para os camelos . O Pantera apanhara-me 50 paus mas eu tinha muito mais em discos que lhe pertenciam. Discos valiam dinheiro se tivessem compradores e em terra de tesos não valiam um tusto.

    — Ao fim do dia apareço por cá.

   Sabia muito bem a morada do meco, não tinha onde dormir e não demorava a ter fome.

   ‘’Não apareças e eu entro pela porta dentro’’ dava eu voltas à tola.

   Não havia ninguém, nada de aulas, not people. Quem me deve bate a nota ou o coiro paga.

   Pelas dez da noite apareceu, sorriso de treta no meu ver.

   — Então..?

   — Tenho fome e estou cansado, arranjas poiso?

   Apanhamos o trólei para o alto de Braga.. O Pantera estrelou uns ovos que só vieram a aumentar a fome. Quarto com cama estreita mas que dava para descansar os ossos. Estou com olho meio aberto e assisto ao espectáculo do meco a abanar com um monte de notas de 100. Não dormi. Pela manhã deitei a mão às notas, contei mais tarde 18.

   De saída para o centro, o Pantera foi contar as notas. Nem uma.

   Sacudi as mãos e lá o consegui convencer que devia ter sido o irmão a mexer na carteira. Viagem no trólei e sem voltar ao assunto das notas lá fui dizendo que ia tentar boleia para a Póvoa do Varzim.

   Foi Chaves o meu destino. E com 18 de cem no bolso.

   O Pantera a arder e eu em Paris.

   Encontrei o Pantera mais tarde nos Restauradores em Lisboa a vender bonecos de Natal, fazia parte de uma comunidade dos Meninos de Deus.

   — John, não me conheces? Dei-te o banho em 18 notas!

   — Amigo isso já passou. Encontrei Jesus e o passado desapareceu.

   — Tudo bem John só te queria dizer que os 50 paus que não pagaste se multiplicaram em 1800 paus que te gamei e me serviram para ir até Paris. Quando quiseres digo-te onde deixo a carteira e podes ter a certeza que ainda te vai custar muito mais. Obrigado meu benfeitor e continua nas tuas seitas que eu ainda prefiro a Igreja de Stª Maria da Porta.

   Vai-te foder camelo, que eu antes de me sentar nesta cadeira levei muitos pontapés no cú.

 

Fifi

 

O SANO III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    Por falar no Sano, tenho uma boa para te contar.

    Um domingo de tarde como muitos outros na Vila. O baile, na Barbosa, animado pelo Gaudeamus, despejava melodias que nada tinham de música.

    E quê? O pessoal animava-se com a bebida e com a erva fresquinha vinda de Angola. Se não fossem as colónias (obrigado Salazar) o número de "caretas" em Portugal podia multiplicar-se por...por... e sou modesto.

    O caso é que o Carlos de Valença tinha vindo ao baile e aproveitara para me trazer um envelope com muitas "cabecinhas". Como eu, na segunda de manhã ia para o Porto, p´rá tropa, e o Carlos também para lá ia fazer a feirinha, marcámos encontro na estação de combóios de Valença. Assim ficou a coisa combinada.

    No dia seguinte, às nove e pico da manhã, estava eu em Monção sentado à espera do arranque do comboio quando aparece o Sano. Também ia para o Porto. Corte do c*ralho! “E agora?” – pensei eu.

    Sentou-se à minha frente, contente por ter companhia durante o trajecto. Chegámos a Valença e aparece o Carlos, já bem cacetado. Sentou-se ao lado do Sano, que não conhecia, mas por quem já o era, e entrou numa racista.

    — O que diz um preto quando entra pela primeira vez num helicóptero? Que burros são os brancos! Com um calor destes e põem a ventoinha lá fora!

    Grandes gargalhadas. O Sano começou a olhar de lado.

    — Eram dois pretos – continuou – que há muito trabalhavam para o mesmo patrão (branco, claro) e que há muito ganhavam o mesmo. Achando que não era natural, um deles decidiu ir ver o patrão e perguntar-lhe por que é que não eram aumentados.

    — Sabes por quê, cabeça dura? Porque sois burros – respondeu-lhe o patrão.

    — Burros? E que é isso, patrão?

    — Vou-te mostrar.

    Esticou o braço e abriu a mão que colocou diante duma árvore que ao lado dele se encontrava.

    — Vais recuar e, com toda a tua força, vens bater com a cabeça na minha mão, está?

    O preto concordou e lançou-se. É claro que o patrão tirou a mão e o preto deu uma valente cabeçada na árvore.

    — Vês? É isto seres burro, senão sabias que eu ia tirar a mão. Percebeste?

    — Sim, patrão. Agora sei o que é ser burro.

    Regressou para junto do colega que logo lhe perguntou quais as razões que o patrão dera por não terem sido aumentados.

    — Não nos aumentou, nem aumenta porque somos burros. Tu não sabes o que é. Também eu não sabia, mas o patrão explicou-me.

    Olhou à volta e, vendo que não havia árvores, disse-lhe:

    — Vou pôr a mão aberta diante da cara e tu...

    Já não conseguiu acabar. Grandes gargalhadas. Que cacetada!

    O Sano, sério, tinha o olhar noutro sítio, como que incomodado.

    Mas não era pelo racismo, longe disso. Era pelas bocas que ouvira sobre o contador. Levantou-se e disse que ia mijar. Aproveitei para dizer ao Carlos quem era o Sano. Deu um salto e, deitando a mão a um saco plástico que pusera no porta bagagens em cima, disse-me:

    — E a erva que tenho no saco?

    — Deixa estar o saco que não há problemas, mas acalma-te um pouco.

    O Carlos apanhou um bom corte. O Sano sentou-se e não o ouviu mais rir até ao Porto. Também lhe não tinha pedido tanto, c´um c*ralho!

    Mal chegamos, com o saco plástico na mão, adeus até logo, mal se despediu.

    E o Sano, para me mostrar e para se mostrar, convidou-me para comer um churrasquinho com batatas fritas e salada.

    Na zona das p*tas.

    Mas não pagou. Insistiu, mas o patrão não quis.

    

          

A. El Camborio

 

Camborio Refugiado

 

O SANO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

    De quando em vez encontrava patrício e como as saudades apertavam, isto de estar sempre ao serviço, bebiam uns finos na Brasileira ou no Piolho, aquelas estudantezinhas, faziam o circuito ao burgo com jantar ou ceia conforme a hora – e nisso fazia questão que ninguém pagasse – acabavam num bom bar com elas sentadas no colo e até de mama de fora quando a despesa esticava; nessas alturas, colegas ou amigos tinham que pagar a brincadeira, até porque ele não vivia só de funcionário com crachá.

    Mas nunca esqueceu o cozido ou a lampreia da casa paterna – não fosse o Fifi um pai – com o tinto dos padres de Rouças, que melhor nas redondezas não há.

    E nessas ocasiões era vê-lo, depois de atestar com duas ou três pratadas, a barriga empinada, a beber o bagaço ao domingo na vila; arrotava e atirava: - estás bom, meu…

Nem nos velhos filmes do Pelicano se arranjava bófia igual, com cartão no bolso e pistola à cinta. A conversa se não era sobre o almoço, batia certinha nas aventuras nocturnas da grande cidade.

    Orelha e salpicão e presos a dar c'um pau.

    Um depois de almoço de domingo, o Carlos Republica, olho de lince e velho compincha dos tempos do colégio e dos serões em Cavaleiros – sentado no Central – vê o Sano a estacionar a caranguejola que só servia p’rá vila e bailes até S. Martinho; puxa de mortalha e enrola um cigarro com o tabaco que sacou da onça do tio-avô, conceituado relojoeiro com banca na vila.

    Acender só quando Sano entrou e logo apanhou com uma bufarada em cheio na cara.

Insultado na sua dignidade, até profissional, levanta a mão e quando ia a sair um c*ralho..., vê que é o Carlos Republica, inclina a cabeça numa confidência e sopra-lhe ao ouvido para todo o mundo ouvir:

    — É boa mas é nacional!

    Perspicácia de judite.

    O Carlos República era o único que não fumava erva na vila, pelo menos daqueles que tinham passado pelo pouco antes e pouco depois do vinte e cinco e suas consequências.

    O resto da história é como aqueles Westerns italianos que o Pelicano passava; mesmo com cortes, o final era sempre o mesmo. Gargalhadas.

    Não voltei a ver o Sano, mas trinta e pico anos depois, sou confrontado com um manuscrito, devidamente identificado e não reconhecido em notário, do qual apresento cópia, não sendo eu possuidor do original.

    Era esse documento composto por várias páginas, das quais destaco a numero três, prova provada que Sano nascera para ser judite. Rezava assim a missiva:

 

(continua)

 

O SANO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   O Sano… o Sano é afilhado do Fifi…, rapaz novo é certo, mas com grande ouvido para bons conselhos do padrinho. Bons… é como diz o outro. E se um era bufo da pide…, o outro só podia dar em bófia.

   Bem, afilhado seria – se procurarmos nos registos baptismais –, mas há quem diga que filho, ou do Fifi ou do velho padre Armando, que não os reconheceu todos porque as leiras não chegavam de herança e o Fifi só fazia raparigas; um terceiro não seria de desdenhar. Adiante…

   Certo, é que filho de um e afilhado de outro, desde cedo teve queda p’rá retórica, bom comer e beber e safar-se naquela terra de Deus e do contrabando.

   Com a morte do padre seu protector, sendo homem forte, atarracado e de pouco cabelo, passado nas sortes, ficou ao cuidado do padrinho Fifi, já devidamente compensado para o efeito.

   Tropa no RI8 em Braga, apadrinhado por major e coronel, ao que Fifi não era alheio porque português é bom, mas na Espanha é mais barato.

   Bufo no quartel, via os outros partirem p’rá guerra e ele ficar, consciente que é na retaguarda que tudo se decide, como lhe dizia o padrinho, na hora do copo e confidências. Nas armas não se distinguiu, tirando as faxinas e outros castigos menores e o ódio profundo dos camaradas que não gostavam de graxas e língua comprida; quando regressou da tropa, quase três anos passados e o posto de soldado, o padrinho falou, suplicou e até – Deus nos valha – chantageou para arranjar poiso para o Sano. Chantageou é como quem diz, que os gajos do posto do Peso arrancavam o ultimo segredo a um seixo do rio se preciso fosse, mas deixou no ar um bom aproveitamento do rapaz, de confiança em Deus e no Chefe, na Ordem e Autoridade e …

   Conversa de Fifi, porque nem tudo o que ao Sano falava chegava aos ouvidos da DGS, porque se chegasse, tanto um como o outro estavam entalados, viessem elas de que lado viessem. E entre secretas e militares… valha-nos Santa Rita.

   Foi na noite da cidade, entre p*tas e azeiteiros, bófias, carteiristas e arrombadores que Fifi arrumou a vida do Sano, sem esquecer os dividendos que daí lhe poderiam advir.

   E foi na judite onde o Sano arranjou telha.

   Deixou a Calçada e o padrinho, fixou-se no Porto, três semanas em pensão residencial da Alferes Malheiro e logo de seguida madame pelo braço, que a escola não foi só p’ra levar carolos e pontapés no cu, manducar francesinhas no Mucaba em Gaia e acabar a noite no Lanterna.

   De quando em vez uma rusga às p*tas – primeiro avisava a Lisete – outras aos carteiristas nos eléctricos, umas ceias com os azeiteiros da zona, assim corria a vida de Sano policia, agente da criminal.

 

(continua)

 

DISTRAIDO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Largo da Calçada - Melgaço

 

 

 Tone vira costas p'ra encher das grandes e já está a dizer:

— É tipo França.

— E cando o gelo corta as orelhas... e as mans naquele ferro, nem lubas, qual lubas

— Eu sei qu'é f*dido e logo no teu departeman, quantos estais lá?

— No chantier?

É tipo França – diz circunspecto Tone Biqueira. É tipo França.

E olha p'ra tigela do Fifi que ainda não está vazia

— Parece que estás doente c*ralho!

— Calma, estás a ver este gajo? Já lá vamos...

Fifi puxa Jorge para trás e sussurra-lhe:

— A Bira fode-o, num o deixa beber... chiu...

E com isto acaba a tigela!

— E o chef de chantier, esse é francês, e os algerianos? Num confio em nenhum, eu... é preciso atencion, cuidado ahn!?

Fifi bebe tranquilamente, o Tone diz qu'é tipo França, e Jorge já viu juifs e algerianos, não sei qual o mais esquisito e prepara-se para entrar nas putans quando Fifi acaba a terceira tigela.

— C*ralho, deixei a porta aberta, tenho que ir

E enquanto Jorge olha as costas curvadas que se dirigem para a porta, Tone Biqueira, levanta as tigelas, passa o pano no balcão e diz:

— São dez paus.

— É tipo França.

Fifi atravessa ligeiro o Largo e beatificamente assume o seu posto de trabalho. A cadeira à porta do escritório-oficina.

E mansa decorre a tarde.

Eram 3.30 quando chegou a carreira de S. Ambrósio ao Largo.

Nem um guarda à vista, que esses já fizeram o trabalho de manhã. São sempre os mesmos, o cobrador já acenou o condutor é o ultimo a sair. Duas desconhecidas descem da camioneta e Fifi levanta-se da cadeira.

Olham para um lado e para o outro, e já Fifi está a meio caminho.

Falam galego e não conhecem a Terra.

— Buenas!...

— Ahn... Buenas

— De Galiza...

— Si... Si, claro!

— Passaporte por fabor...

— Passaporte, quien es usted, passamos la aduana, pero que passa?

E pacientemente Fifi mostrou de fugida um dos muitos cartões e aplicou a multa de 100 pesetas, “una barbaridad”, porque as duas senhoras não estavam munidas dos respectivos documentos para poderem pisar solo português.

E recebeu na hora! 

Voltou ao Tone nessa tarde com uns pequenos problemas já resolvidos.

Na pacatez do dia seguinte Fifi levanta-se para cumprimentar o agente Carvalho, do posto da Pide no Peso-Baixo, coisa natural, que lhe pede para ele passar lá pelo posto, coisa também natural, vindo o convite de quem vem é irrecusável e logo um dos camionistas do vizinho lhe dá uma boleia até ao Peso.

Fifi subiu as escadas exteriores, entreabre a porta e:

— Dá-me licença?

— Ah, és tu, entra, entra.

— Então que se passa?

— As 100 pesetas? e logo voou uma mão pelo ar que só parou nas faces de Fifi.

E antes que disse ai, já outro estrondo se ouvia... Trazzz....

Todo encolhido lá meteu a mão ao bolso, espero que não venha mais nenhuma pelo ar, eu a pensar que tinha uns problemazinhos resolvidos...

— Demora muito c*ralho? Dá cá a nota filho da p*ta, borracho, cabrão de m*rda.

Da boca de Fifi nem um ai. Estou f*dido, estou...

— E agora lá p'ra fora, e toca a agarrar na roda do poço. E se paras tenho aqui p'ra te aquecer.

E o chicote cortou o ar com um silvo que estremeceu as gorduras de Fifi e lhe deixou marca nas costas logo na primeira paragem.

Só o cair da noite trouxe fim ao tormento.

— E p'rá próxima livra-te de te chegares às mulheres dos Guarda-Civil!

 Laurindo de Poço, Fifi p'ra todo mundo daqui e d'além fronteira, não fora informado que tinha havido substituição de pessoal na guarnição policial galega.

 

 

Camborio Refugiado