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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O ENTERRO DO ESTUDANTE X

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

A irmã da D. Maria era a D. Rosa … E quem é que não conhecia a D. Rosa na cidade? A Rosa dos fretes, a maior p*ta da cidade.

A irmã da D. Maria, mão na anca, como boa mulher que se preze da sua profissão, bate com o pé no chão e desata a guinchar:

— Ah se fosse comigo! Isto não ficava assim, não.

D. Maria, apanhando o ritmo, gritou:

— A Minha filha já foi chamar a polícia.

O Fininho, “expert” em fugas, já ia a meio caminho pelas escadas quando aparece o cívico, olhar duro e voz fanhosa:

— Já sei o que se passa. Paguem. Paguem a garrafa.

O Fininho e o amigo, obrigados a subirem a escada; as megeras a gritar e o Louro a sair do quarto, berrando:

— Acabem com essa m*rda. Quero dormir e, além do mais, não tenho nada a ver com isso.

E, olhando para o Fininho, logo grunhiu:

— E tu, ainda aqui estás?

O Fininho volta-se para o cívico e atira:

— Sr. guarda não tenho nada a ver com isto. Vou para a minha terra e quem quiser que se entenda, percebeu?

Com o cívico a não saber para que lado se havia de virar, Fininho e amigo logo descem as escadas em direcção à estrada que os há-de levar ao almoço, 100 km depois.

Entretanto a guerra, dentro de casa, continua.

Aninhas, a filha, resolve botar faladura. E de que maneira:

— O Pequeno não tem nada a ver com isso. O malandro é o Padeiro.

O cívico, a D. Maria, a filha, a D. Rosa …

O Padeiro:

— Não me chateiem, deixem-me dormir …

— Que m*rda é esta, não posso dormir? – grita o Louro.

Do Pequeno nem ai nem ui …

O cívico tirou o boné, limpou a testa, e declarou:

— Entendam-se, por favor.

Não voltou a haver notícias da D. Maria, filha e irmã.

O Fininho fez desaparecer, uns dias mais tarde, um copo e uma garrafa vazia de Porto e essa foi a última vez que se intitulou estudante. Nem ele nem os outros, daqui não saiu nenhum doutor.

Algures, por essa Europa, andam estes quatro e, de certeza que no dia em que se encontrarem, quatro frangos não chegam.

Um grande abraço Fininho, Louro, Pequeno e Padeiro. A vossa irreverência, a vossa força, o vosso dizer não, também ajudaram aquele 25 que ninguém poderá esquecer.

 

Camborio Refugiado

 

O ENTERRO DO ESTUDANTE IX

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O Louro bem resmungou, mas lá teve que voltar a entrar pelo janelo da casa de banho e colocar o “pirata” dentro da caixa.

A garrafa mais o copo foram parar à mala do Fininho que já estava pronta para arrancar.

Carnaval à vista, férias para gozar, estudante “morto” …

O Fininho tinha encontro marcado com um amigo para se fazerem à estrada na manhã seguinte. E a manhã começou com murros na porta …

O Fininho, de cara molhada, na casa de banho, quase pronto para fazer 100 km à boleia e ainda ir comer as papinhas da mamã, fica espantado com a barulheira que vai pela casa.

— Ladrões, ladrões, é o que eles são …

D. Maria, aquele toucinho todo a abanar, bata azul e branca aos quadradinhos e com a caixa dourada na mão:

— Ladrões, são uns ladrões … Filha, telefona já à tua tia que estes ladrões não saem daqui.

Já a filha gritava:

 — É o Padeiro mãe, é o Padeiro, que eu bem vi a lata da laca no quarto dele.

Arremeteram as duas para o quarto do Padeiro que estava com a porta fechada e quando se preparavam para o barulho, abre-se a porta e eis que aparece, tronco nu e olho azul a faiscar, o nosso amigo. Com dois berros acaba com a confusão:

— Fora, fora do meu quarto.

O Louro, sonolento como sempre, ergue-se da cama, vira-se para o Fininho, esfrega os olhos e pergunta:

— Quando é que te piras? Já não se pode dormir em paz?

Entretanto chega a irmã da D. Maria …

O silêncio era de chumbo …

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE VIII

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Ficou deliberado e pronto a ser executado que o Louro atacava o janelo existente entre a casa de banho e a sala interdita, pousando a sua pata no armário, qual cristaleira, que iria servir de base ao assalto e amortecer o barulho da entrada no santuário da megera.

O Louro, indisciplinado de nascença, olhou com ar de gozo as fechaduras dos armários interditos:

— Foi por causa desta m*rda que eu tive que passar pela janela?!

— Cabrão, abre isso. Queremos beber.

— Salta tu por aqui, se tens tomates.

— Chiu, chiu … Filho da p*ta, se a gorda aparece …

O Louro reaparece com uma caixa de Porto na mão e um mar de desculpas na ponta da língua:

— Só Porto. Não havia outra …

O Padeiro mirou, remirou e logo cagou sentença:

— Caixa desta não destoaria em garrafeira minha.

— Meia dúzia de camarões, garrafa de Porto em caixa dourada … Será que isto chega para pagar a fome que passámos aqui?

O mote estava dado. E depois do marisco comido com Porto à mistura só faltava uma “boca”, qual rastilho incendiário, para o gozo ser total.

— A caixa tem que voltar para o lugar.

Quando o Padeiro levantava a voz era certo e sabido que havia treta na costa. Entrou no quarto, peito saliente, qual pide a tempo inteiro, e aparece logo de seguida com uma embalagem de laca, rótulo fora, folha de caderno na mão, a gritar:

— Cola isso aí …

Era só o desenho de uma caveira muito cabeluda, pala no olho direito, que iria ocupar o lugar da garrafa de Porto.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE VII

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Logo o Louro teve que pagar as favas, porque se não fosse o mijo dele estar tão carregado de tinto e cerveja a nossa situação não estaria tão mal.

E a filha a quem nunca pusemos o olho em cima? Bem, o problema da filha estava ultrapassado, também era só o olho.

Agora o problema do estômago, já era outra conversa. Amigos, amigos, mas fazer da casa um campo de concentração, ainda por cima pago, essa é que não.

E como quatro cabeças pensam melhor que uma, falava-se, falava-se e aguardava-se o dia em que …

Férias! Férias de Carnaval!

Contas feitas à vida, o insucesso escolar mais do que esquecido, só havia o problema dos velhos pagarem ou não, mas quem é que vai pagar para um menino teso ser grande entre os grandes? Férias na cidade? Não há nada para ninguém.

Mas o último dia tinha que ser comemorado … todos sabiam que depois das férias tudo seria diferente.

Recolhida a nota, dava para comprar cem gramas de gambas. Feita a compra, o Pequeno saltitava, irritante como sempre. “E beber? Bebemos o quê?”

O Padeiro fez-se sério, não fosse aquela cidade que deu origem à ditadura e, num abrir de braços, declarou:

— Vamos para casa; é lá que bebemos.

Ao subir a rua ninguém esquivou um olhar de lado para o Quartel da Polícia, quase lado a lado com a casa.

Polícia de Segurança Pública, PIDE, DGS … se outros nomes não arranjaram foi porque não tiveram tempo para tal.

Fosse o que fosse, na cabeça do Padeiro o grito de guerra era um por todos, todos por um e prejudicados daquela treta toda ou era a D. Maria, ou o magarefe, ou a dita filha, porque os verdadeiros culpados, isto é, os hóspedes pagantes, não podiam ter nada a ver com o assunto.

Reunião ….

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE V

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Crise atrás de crise e a cozinha da nossa querida anfitriã voltou a ser o alvo a atacar.

Porta da cozinha fechada, só restava, na sala do nosso descontentamento, uma garrafa, meia, de Porto.

— É nossa, gritou-se.

Quatro e meia garrafa de Porto … dez minutos depois … com cabeça quente, com cabeça fria… alguém lembrou que a garrafa tinha que ir novamente para o lugar dela, mas não podia ir vazia!

— Mija-se dentro.

O Louro, de garrafa na mão, desaparece na casa-de-banho, e quando volta, solenemente coloca a dita no seu devido lugar e todos os outros concordam, sem margem para dúvidas, que o liquido estava no mesmo nível…

Há sempre um artista onde menos se espera …

Hora de jantar foi coisa que nunca existiu naquela casa, a não ser que o Louro ou o Fininho, guitarra eléctrica e viola nas mãos, e se bateria houvesse não ficava esquecida, para lembrar a existência daquelas pobres criaturas de Deus, sempre esfomeadas, à espera de uma côdea há muito paga, sabe-se lá com que sacrifícios paternos.

Diariamente o ritual era cumprido e, com mais ou menos música, cinco minutos depois do início do concerto, dois murros na porta do quarto. Quais trombetas a saudar César! Faziam com que a sala vazia se enchesse de olhos vorazes e estômagos ávidos de todos os ossos e ossinhos, peles e carninha com que teriam de se contentar até ao dia seguinte. A menos que…

É verdade que o jogo está a dar, mas até quando?

Têm aparecido uns clientes para a perna de frango, mas até quando?

 Poderá haver um descuido da D. Maria, no frigorifico, mas até quando?

Chegou o dia em que o despertar musical da cozinheira resultou em silêncio em vez dos ansiados murros na porta.

— Apanhas com os Doors - rosnava o Louro.

— Canto Joplin que ninguém aguenta - atirava o Fininho.

O Padeiro e o Pequeno, que sempre esperaram pelos murros na porta dos outros dois, impelidos pela fomeca de sempre, atiraram-se pelo quarto adentro:

— Mas que m*rda é esta? Não pagámos já o mês? Será que o chulo teve direito a almoço e jantar à custa do que pagámos adiantado?

O barulho era infernal dentro daquele quarto. A música saída do gira-discos, do amplificador da viola, dos estômagos esfomeados, das gargantas feridas pela falta de respeito no cumprimento do horário.

— Pago, quero comer. Vou ver o que se passa - palavras do Fininho.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE IV

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Logo começou a lição:

— O dinheiro está no bolso dos outros. Os outros querem o nosso dinheiro. Nós temos que ganhar para ficar com o dinheiro dos outros.

O professor sabia do assunto, os alunos eram aplicados e não demorou nada que, num conceituado restaurante da cidade, à uma hora da manhã, cinco senhores, rapazes da aldeia, encomendassem o seu bife, bebessem a sua caneca de cerveja, gorjeta ao empregado e toca a ir dormir porque a cidade não dá para mais e a nota está a chegar ao fim.

Depressa o Bicho passou de professor a mais um dentro do grupo e, também os resultados do jogo diminuíram. Menos restaurante, mais tasca; troca-se a ceia, pela coxa de frango e tigela de tinto no Bar Januário da Rua de S. Marcos, como complemento da dieta imposta pela D. Maria.

A fartura, tal como diz o nosso povo, geralmente dá em fome. E, para quem pagava para comer, qual janela, qual porta fechada, para chegar ao objectivo, ou seja, ao frigorifico da D. Maria, toda a arma servia.

Grupo reunido, depois de três ou quatro noites em que a jogatina mal dava para cigarros, comprados avulso, e às tigelas nem tínhamos acesso, decidimos que quem paga come e esperar pelo dia seguinte era mais uma noite de barriga vazia.

Democraticamente foi decidido que no dia X,o mais cedo possivel, depois de encontrada a hora do ataque, era irreversível o assalto final à casa forte da megera que nos chupava até ao tutano. 

Chegar a casa, depois das voltas na cidade, entrar e devorar tudo o que estivesse à mão de semear e logo se veria, porque o outro dia até é outro dia, com mais problemas para resolver, com mais cigarros para fumar, tigelas e cervejas para beber.

Nessa noite todos pensámos no estômago cheio de nada e nos petiscos da D. Maria para o magarefe. Qual ataque de D. Nuno! Acabar com o mouro na primeira investida era a táctica a seguir.

Abre-se a porta, saco de fruta no fim e no frigorífico … nada!

Até amanhã que hoje não temos nada.

Foi como limpar o cu a meninos, não fosse o Padeiro lembrar-se que a carne que estava congelada dava uns óptimos bifes. Realmente, acalmar um físico daqueles era trabalho, não para quatro, antes para um regimento.

Claro está que a operação não passou despercebida e D. Maria pensou “casa roubada, trancas à porta”.

O jogo foi dando umas notas. Os pregos no prato às duas da manhã, umas moelas no snack-bar e, por vezes, umas coxas de frango e tigelas a acompanhar, equilibravam o edifício em ruínas que era a relação entre as refeições em casa e aquelas quatro barrigas na flor da idade ávidas de mantença, mas nem sempre o “amigo” estava disposto a colaborar.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE III

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Com nota fresca no bolso, cinquenta paus mais uns trocos, porque era o primeiro dia, farejaram-se os locais já velhos conhecidos de tradição na terrinha e descobriu-se, ao fim de grandes voltas, o que passou a ser o nosso El Dourado: Coxa de frango, um pão e duas tigelas de tinto, dez paus. O tinto puxava um tanto ou quanto para o maduro mas não dava direito a reclamações.

O Louro deu o mote logo no dia da apresentação:

— Desculpe, minha senhora, mas eu não como cabelos.

A interpelada, dona e cozinheira da casa, não morreu de apoplexia, mas vermelha como um bom tomate maduro, bufou uma, bufou duas e… a sala estremeceu:

— Agora que comeu é que diz isso?

O Louro, muito calmamente, retirou o cabelo da coxa de frango e retorquiu:

— Desculpe, sou louro. Este cabelo é preto e comprido e todos os meus colegas usam cabelo curto.

Chegou-se a um consenso, veio mais uma coxa de frango para o Louro e tigelas extras para o resto da comitiva e, a partir desse dia, além de amigos, haveria sempre uma tigela amiga, quando cara nova, com dinheiro, nos acompanhasse.

Curtindo uma música e fazendo o primeiro balanço à vida estudantil, na velha cidade, sem os remoques de séculos em cima das costas, logo constatámos que, estudos à parte, tínhamos encontrado uma mina.

Uma mina! Logo no primeiro dia! Só faltava era dinheiro para a explorar. Dinheiro, dinheiro! Sempre a palavra mágica. E onde estava o dinheiro? No bolso dos outros, é claro! O problema era lá chegar. Chegar como chegam os outros, cara levantada e sem receio de mostrar o que temos, porque filhos de gente honrada somos nós.

No fim da semana, com lutas civis pelo meio, tesos e dependentes da morte lenta ou holocausto que eram as refeições da D. Maria, esfomeados até à última, apareceu, enfim, o anjo negro da sorte. Filho da cidade, mas agarrado à terrinha quanto baste, porque nove meses sempre deram lugar a mais um, o Bicho aparece em cena com o melhor dos cenários:    - Meus amigos, eu sou o melhor encenador p´ra peça que querem pôr em cena.

Com muitas horas roubadas aos estudos, dias e dias a fio, ficámos a saber como se joga à “lerpa”, se esfolam cabritos na cidade e os novos-ricos, cheios de pesetas do seu trabalho diário, no contrabando na terrinha. Uns patinhos mamados por putos!

O primeiro problema do Bicho prendia-se com o lugar para dormir. Lógico, será dizer, que entre o Louro e o Fininho desabou grande tempestade, como se não se soubesse de antemão que uma das camas seria para o Bicho! Era o único quarto independente da casa e o Bicho casado de fresco!

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE II

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Como eles se encontraram não sei. A intuição de que tanto se fala agora era por mim desconhecida na altura, mas reza a história que a páginas tantas estavam juntos, quais três mosqueteiros, num 1º.andar que não faz parte da memória da cidade, porque poucos conheceram a verdade nua, dura e cega dos dramas vividos nesse recanto citadino, administrado pela Sr.ª. Maria.

A casa estava situada na parte nobre da cidade, empedrado à nossa moda, com bons passeios para garantir chegada certa a casa em noite mais agitada, etílicamente falando, obelisco no meio que, de tão importante, não deixou recordação e o quartel da polícia mesmo ao lado.

Ah, que saudades da D. Maria!

Glória a vós que morreis de fome para a D. Maria encher um poucochinho mais!

Eram 120 kg devidamente distribuídos por pescoço, mamas, braços e pernas. O resto, se existia, desaparecia naquela confusão de banhas. Mãos e pés foram coisa que nunca se viu. A eterna bata azul e branca aos quadradinhos, o amante, magarefe de profissão, que só aparecia em público às quartas-feiras para comer o almoço. Se não assustavam criancinhas pelo menos impunham muito respeito. E no meio de tudo isto havia a filha!

A filha, a filha …! Mocetona de dezassete ou dezoito anos que só foi vista três ou quatro vezes. Porquê? Quem poderá saber? Eu não, que não sou adivinho.

A verdade é que nunca vi quatro tigres tão sossegados em frente de uma fêmea, sem rosnar entre eles ou olhares de lado.

Ela de tímida deveria ter pouco, se pensarmos nos olhares furtivos que por todos dividia; mas o peso materno, conjugado com a carranca do magarefe não devia ser alheios ao seu comportamento.

Para o Fininho e o Louro ficarem no mesmo quarto bastou um olhar. As reguadas na Escola Primária, uvas tão apetecidas no campo do vizinho, maçãs de comer e chorar por mais, até as cenouras do prior vieram à baila nesse instante. Era toda a amizade duma vida, o que aquele olhar encerrava. Novos velhos no meio da turba estudantil.

A D. Maria tinha reservado dois divãs e um guarda-fatos, mais uma arca, da qual desconhecíamos o conteúdo por estar sempre fechada, para os nossos aposentos. Colocar em sítio estratégico o amplificador e a guitarra eléctrica, o gira-discos à mão de semear, fazer contas à hora do jantar… Para primeiro dia era bom de mais! Porque o quarto era independente do resto da casa!

Fazer contas de cabeça não era difícil, como se lia na cara de cada um, quanto aos projectos futuros em relação à filha da D. Maria.

O Pequeno teve direito a um quarto adequado à sua estatura e o Padeiro teve a mesma sorte, mas para albergar 1,80 m e 90 kg de peso … Só a cama enchia o quarto.

Logo no primeiro jantar os olhares eram chispas, todos a culpar todos pela escolha efectuada. A fome era demais para ser verdade e para acabar com a maldita a única solução era comer fora, porque em cidade de estudante tasca, melhor ou pior, é coisa que não falta.

 

(continua)


O ENTERRO DO ESTUDANTE I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Arco da Porta Nova - Braga

 

 

De repente a cidade começou a encher. Não da mesma forma que as moças da minha terra, uns meses depois da apanha do milho, mas tal qual um furacão que leva à frente o que nos é mais querido e nos enche dos destroços que o seu gozo deixou.

Cinco, dez, quinze mil? Quem sabe … Desde veteranos a caloiros, havia de tudo e se uns pensavam nas praxes de iniciação na escola, outros havia para quem a descoberta de bons tascos, petisquinho a preceito, preço de estudante e cara bonita a servir era fundamental. Estes eram os novos estudantes “velhos” que desde pequenos saborearam a histórica cidade estudantil sem nunca lá terem posto os pés.

Houve, é claro, uma visita colectiva da província, para os papás baterem palmas ao “botinhas” e continuarem a fazer as suas vidas sossegadas; porque o homenzinho não brincava, e os putos a ficarem meio-surdos com as máquinas infernais que desde o tempo dos afonsinos eram prenúncio de desgraça, apesar dos terroristas serem pretos drogados e bêbados e nada mais. Outras houveram que o bom prior levou a cabo e mais não serviram do que aguçar o apetite para quem queria ver tudo menos tanques da primeira guerra e igrejas que não faltavam lá na terrinha.

E a cegada do Primeiro de Dezembro? Quem é que não tinha ouvido as estórias do dia da Independência, em que os próprios cívicos ficavam em casa para a malta poder comemorar?

A cidade era o mundo, para quem tinha saído, não debaixo das saias da mãe mas, do cinto do pai.

E na cidade caíram aqueles quatro, não do Céu, mas da terrinha!

Trocar as voltas aos velhos, GNR, GF ou Guarda Civil, era treta. Estudos eram a profissão, a cidade não poderia sequer ser um desafio. Estava conquistada à partida.

Afinal, os resultados escolares, as célebres notas, só apareciam de três em três meses. Mas, como notas com notas se pagam, havia também as que o pai largava para comida, dormida e roupa lavada. E as outras? Se não saíssem da terra também não cairiam das árvores e bolso roto não dava. E se necessário é alimentar o corpo, descurar o espírito é altamente criminoso. Tem que se encontrar o ponto de equilíbrio, ponto de mira como dizem os caçadores. Mas adiante, vamos aos quatro:

— O Fininho que, como o nome indica, além de pele sobre o osso, só tinha orelhas.

— O Pequeno, porque a mãe natureza o dotou de 1,5 m e viv’ó velho.

— O Louro que, apesar de filho da serra e mãe contrabandista, assim nasceu.

— O Padeiro, que outra profissão a seu pai não foi conhecida.

 

(continua)