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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

UM PASSEIO POR MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 16.03.24

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AQUI AVISTA-SE O PONTO Nº 1 DE PORTUGAL. ATÉ LÁ, VAI SER SEMPRE A SUBIR E DEPOIS SEMPRE A DESCER, MAS O QUE IMPORTA MESMO É O CAMINHO

Mariana Falcão Santos - texto

10 ago 2020

É na capital do rafting que um passeio de UMM pela montanha nos ajuda a perceber melhor o que é que torna a terra mais a norte de Portugal tão especial. Entre caminhos vertiginosos e as paisagens pintadas de verde banhadas pelo Minho, as surpresas que Melgaço tem guardadas não são só para os que têm sangue na guelra.

O convite inicial prometia um passeio de moto4, pelas montanhas da vila de Melgaço. Um contratempo logístico mudou o meio de transporte para um modelo de todo-o-terreno que ficou conhecido nos anos 80, um UMM. À priori, já sabíamos que nos esperava uma viagem por terreno atribulado.

“Não via um destes há anos” foi uma das primeiras frases dita pela nossa equipa. Quem nos ia conduzir montanha acima era Paulo Faria responsável pela Melgaço Whitewater, uma das empresas que se dedica à dinamização de atividades outdoor na zona. Professor na Escola Superior de Desporto e Lazer e formado em Desportos da Natureza, há três anos que se dedica a apresentar as potencialidades da vila a quem tem curiosidade de conhecer.

Esperava-nos um percurso de média montanha e campo, com início no centro histórico de Melgaço. A vila tem uma área envolvente superior a 230 quilómetros quadrados e conta com cerca de 9 mil habitantes. Em anos normais, por esta altura, muitos portugueses, muitos espanhóis – que Espanha é já ali – mas também de outras paragens. Visitantes que ali chegam atraídos por um binómio que casa na perfeição: uma imensa natureza a explorar e um vinho que dá nome à rota da região. Como dirá o nosso guia, Paulo Faria, “vir a Melgaço e não beber Alvarinho é como ir a Roma mas não ver o Papa” – mas isso são outras histórias.

A viagem começou com a promessa de que, passando o cliché, o que veríamos ao chegar ao destino valeria a pena – mesmo que o percurso fosse atribulado. Mas, até chegar ao destino, a história de Melgaço começou a ser contada ainda em estradas de alcatrão. Lá fora, à medida que íamos saindo em direção à periferia da vila, as casas, alinhadas numa disposição pouco orientada, eram maioritariamente constituídas por pedra, e, como em qualquer ambiente rural, havia uma história daquelas que passa de boca em boca que o ajudava a explicar.

Em tempos, ali, em Melgaço, houve um mosteiro, o Mosteiro de Santa Maria de Fiães, onde residiam monges. Os mais antigos da terra contam que o monumento foi destruído por populares que posteriormente utilizaram as pedras do mosteiro para fazer as suas próprias casas. Mas até chegarmos ao local que serviu de casa a muitos devotos, esperava-nos um caminho de terra pela zona montanhosa. Já lá vamos.

Dos dois lados da estrada, vegetação de tons inimagináveis de verde tapa-nos qualquer tipo de visão. Não são precisos muitos minutos para percebermos que neste trilho de média montanha em UMM uma das premissas é acreditar. Acreditar que apesar de uma mata densa que pouco ou nada faz adivinhar haver caminho, ele existe – e se vale a pena!

Ajuda muito ter alguém que conhece as montanhas de Melgaço como a palma da mão. Não é por acaso que Paulo Faria faz o que faz e tem a empresa que tem, mesmo que também haja quem opte por explorar caminhos íngremes e apertados de forma autodidata – o que nem sempre corre bem.

O percurso pode ser feito de três formas: Moto4, Buggy ou UMM, consoante o nível de adrenalina, conforto e autonomia procurado, mas a última opção é a mais confortável na hora de passar entre lençóis de mato que se atravessam pelos caminhos e que apenas são abertos com a perícia de um condutor experiente ao volante de um “bicho” que é dotado para estas missões.

Os trilhos que hoje em dia servem para passeios turísticos foram noutros tempos os sítios mais procurados de passagem de contrabando entre Espanha e Portugal. Ladeados pelo rio Minho, eram os atalhos que atravessavam a montanha. “Há várias povoações, especialmente na zona perto do rio que se formaram devido às trocas entre países e contrabando. Somos uma zona de contrabandistas e não temos problema nenhum em dizê-lo”.

O contrabando é uma marca desta terra, não uma cicatriz. As gentes e os locais fizeram a sua história – e as suas famílias em muitos casos – nessas vidas em que a troca de produtos, então ilegal, de um lado e do outro da fronteira, era parte do dia-a-dia. De Espanha traziam bananas e chocolate, de Portugal havia quem levasse sabão e café. Do cimo de um dos muitos miradouros encontrados pelo caminho conseguimos ver que há alguns percursos alternativos que a vegetação farta não consegue esconder – o que indica que por ali passaram e continuam a passar pessoas entre um lado e outro.

sapo.pt

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MELGAÇO, CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 17.02.24

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castro laboreiro  mareco

 

MEMÓRIA DO CONTRABANDO E EMIGRAÇÃO CLANDESTINA EM MELGAÇO: PATRIMONIALIZAÇÃO E MUSEALIZAÇÃO

EXPLORAÇÃO DE VOLFRÂMIO

Lídia Aguiar

CIIIC-ISCET

Em Melgaço, como em tantos outros concelhos do norte e centro do país, a exploração de volfrâmio veio proporcionar um novo alento para as economias locais. Para as populações, a exploração deste minério constituiu uma segunda fonte de rendimento (a primeira era o contrabando), abrindo, mesmo que momentaneamente, expectativas de melhores condições de vida.

Em Castro Laboreiro a exploração do volfrâmio teve uma maior dimensão, do que em outros lugares. Terá começado já durante o período da I Guerra Mundial, tendo tido um grande pico durante a II Guerra. Neste caso foi levada a cabo predominantemente por populares, que acorriam ao Planalto de Castro Laboreiro, no lugar de Ceara, onde foram abrindo várias galerias.

Os populares vendiam-no no contrabando, maioritariamente já em Espanha. Verificou-se, no entanto, que durante o período da II Guerra, foram os Alemães os grandes compradores. Eles aguardavam os homens no sopé do planalto com os seus camiões prontos para carregar o minério. Cada homem alcançava um rendimento médio de 8 contos por dia. Este montante subiria bastante mais se ele tivesse a sorte de encontrar um bom filão.

Segundo o informante Filipe Esteves, morador em Castro Laboreiro, as mulheres tiveram nesta época um papel primordial. Dirigiam-se em grupos para as zonas mineiras, onde apanhavam as pedras que caiam das grandes cargas, ou algumas que elas próprias conseguiam apanhar, por se encontrarem mais à superfície. Dirigiam-se, então, para uma levada, onde lavavam e peneiravam o volfrâmio. Este mineral, preparado pelas mulheres, era vendido exclusivamente a um dos mais conhecidos contrabandistas da zona: o Mareco, ligado a um dos grandes consórcios.

No ano de 1955, estas minas acabam por ser registadas pela Companhia Mineira de Castro Laboreiro, com sede no Porto. O manifesto mineiro foi de João Cândido Calheiros, morador na freguesia de Prado, encontrando-se, este registo, no Arquivo Municipal de Melgaço, no Livro de Registos (Volfrâmio).

“Lembro-me bem do tempo do minério. Vieram para cá muitos homens, de muitos lados, apanhar aquelas pedras. Eram assim umas pedras muito negras, tão lindas que elas eram. Eles ficavam cá a dormir. Ganharam muito dinheiro naquele tempo.

E as mulheres daqui também para lá iam, coitadinhas. Era contudo, um trabalho muito pesado, pois apanhavam as mais pequenitas e iam lavá-las ao regato. Deram-lhes um dinheirinho, ai isso eu sei bem que deu”. Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 29-10-2013.

Com a Companhia Mineira de Castro Laboreiro a dominar a larga maioria das minas, a população, em geral, perdeu os lucros avultados que até então conseguira.

Este fenómeno pode-se constatar em muitas outras zonas mineiras, ligadas ao volfrâmio, do norte e centro do país. Findo o negócio do volfrâmio, a população habituada a ter uma vida melhor, não mais a encontra no contrabando. Continuava a ser uma atividade plena de riscos e da qual não era possível obter um rendimento certo. Ao trabalho duro, o melgacense não tinha medo. Com a fronteira mesmo ao lado, com horizontes mais alargados, o convite à emigração era forte. Encontrou-se, deste modo, a grande alavanca para a mobilidade social (Castro&Marques, 2003).

 

REVISTA CIENTÍFICA DO ISCET

PERCURSOS&IDEIAS – Nº 7 – 2ª SÉRIE

2016

 

OFFICE OF STRATEGIC SERVICES

WASHINGTON D. C.

6 july 1945

DOCUMENTOS DESCLASSIFICADOS EM 1987

 

Manoel José Domingues – Mareco

Manoel José Domingues de Castro Laboreiro enviou ilegalmente volfrâmio, ouro e moeda por Espanha para os Alemães e ainda transacciona actualmente barras de ouro. Os seus sócios eram o Barros da Costa, o tenente Walter Thcebe, Artur Teixeira, Manoel Lourenço de Melgaço, António Esteves, Francisco Esteves, Manoel Pereira Lima e Adolfo Vieira de Monção. Antes da guerra as suas propriedades em Castro Laboreiro ascendiam a 200,000 escudos. Neste momento é detentor de propriedades avaliadas em aproximadamente 4,000,000 escudos no concelho de Melgaço e tem contas bancárias em Melgaço e Valença. No início deste ano o Domingues foi apreendido na posse de 17 barras de ouro no valor de 550,000 escudos. Não lhe aconteceu nada por causa da sua prisão. Os membros do Governo Português actual protegeram-no bem, e ele tem muita influência.

 

AeC

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MUSEU DO CONTRABANDO EM MELGAÇO

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A MEMÓRIA COMO PATRIMÓNIO: DA NARRATIVA À IMAGEM

Luís Cunha

O núcleo museológico «Espaço Memória e Fronteira» legitima-se a partir de uma reivindicação de especificidade geográfica, a que se associam práticas sociais que o museu procura retratar:

O concelho de Melgaço é caracterizado por uma fronteira extensa e diversificada, que vai desde o rio Minho, passando pelos rios de montanha como o Trancoso e o Laboreiro e uma raia seca que se estende ao longo do planalto de Castro Laboreiro. Esta situação geográfica criou condições para que, ao longo do conturbado século XX, se enraizassem em Melgaço duas realidades, que se cruzam para além do traço comum da fronteira: a emigração e o contrabando. É da memória dessas duas realidades, que surge o «espaço memória e fronteira» (Folheto de apresentação do «Espaço memória e Fronteira»).

Ao mesmo tempo que apontam a “criação de um produto turístico e cultural” (Esteves & Sousa, 2007: 42), os responsáveis pelo museu vincam um conjunto de escolhas estéticas que visam provocar um efeito visível pelo visitante:

A proximidade do ribeiro e o dramatismo induzido pelas margens escarpadas do mesmo, emergiram desde o início do projecto como uma interessante alegoria à temática, pela analogia que permitiria estabelecer com a noção de fronteira, designadamente no que se refere ao troço em que este coincide com o rio Minho (Esteves & Sousa, 2007:43).

A construção de uma ponte pedonal junto ao museu, ao mesmo tempo que permite a ligação do núcleo antigo da vila às novas áreas de expansão, visa uma leitura simbólica, no caso a da passagem do rio/fronteira, inevitavelmente associada à emigração e ao contrabando.

Paralelamente à recolha de objectos associados ao contrabando e à emigração, o projecto compreende também a recolha de testemunhos e de histórias de vida. Assumindo-se como produto turístico proposto aos visitantes da vila, a verdade é que o «Espaço Memória e Fronteira» elabora também um discurso referencial para dentro da comunidade. As ideias de coragem e sacrifício ocupam um lugar central na narrativa que o museu propõe. No que diz respeito especificamente ao contrabando, a sua evocação assenta num conjunto bem definido de sinais atribuídos a essa actividade, dos quais se destaca a imagem do contrabandista como um empreendedor, alguém dinâmico e sagaz, capaz de enfrentar com bravura os obstáculos naturais e com inteligência a oposição dos guardas-fiscais. No que diz respeito à história do contrabando, esta é feita mais a partir dos produtos contrabandeados do que da modificação organizacional das práticas. Assim, entre os objectos expostos, encontramos amostras de vários produtos transportados pelos contrabandistas, mas também a farda de um guarda-fiscal, um barco usado no contrabando fluvial, autos de apreensão de mercadorias, etc. Já a imagem do contrabandista é relativamente plana, como se existisse uma espécie de suspensão do tempo.

O município de Melgaço, em alternativa à criação de um único espaço museológico, tem optado pela criação de uma rede de pequenos museus. O núcleo museológico da Torre de Menagem e as Ruínas Arqueológicas da Praça da República têm, também eles, uma evidente conotação histórica, mas o «Espaço Memória e Fronteira» é o único que procura fazer uma ponte com o presente, isto é, que procura dar sentido e conteúdo à memória colectiva através da construção de uma narrativa em que a comunidade pode e deve rever-se. A junção do contrabando e da emigração no mesmo espaço físico e em semelhantes balizas expressivas faz por isso todo o sentido. Não só pela permeabilidade entre as duas actividades – em lugares de fronteira a emigração incrementa-se não tanto pela diminuição do contrabando mas pelas transformações internas da actividade – mas também porque congregam tópicos discursivos convergentes. As ideias de travessia, de clandestinidade, de enfrentamento dos perigos e da luta pela sobrevivência e melhoria das condições de vida para a família, contam-se entre esses tópicos.

 

UNIVERSIDADE DO MINHO

CRIA

 

FRONTEIRA - DEPOIMENTOS

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A FRONTEIRA – CONTRABANDO E REFÚGIO EM

CASTRO LABOREIRO

 

Hoje, a rede de elementos e histórias do contrabando, encontram-se musealizados no ESPAÇO DE MEMÓRIA E FRONTEIRA, em Melgaço.

 

Depoimentos – sobre o contrabando

 

11/09/2014, Vila

“Ao passar a Ameijoeira, a 1ª estrada que se encontra depois de passar uma corga, chamava-se Pereira. Era aí que também se fazia o contrabando! Havia uma senhora em Varziela, chamada de “tia Maria da Floresta”, casada com um Guarda da Floresta, que ia à Ameijoeira de “burra” buscar os artigos que contrabandeava – pão, chocolate, azeite, bacalhau – para depois vender porta a porta em Castro Laboreiro, isto pelos anos 70.”

 

12/09/2014, Vila

“Vinha a pé de Gojinde” (Entrimo), (local de abastecimento de produtos), “pelos montes da Ameijoeira, passando pela Sr.ª de Numão até ao minério da Seara, onde ainda havia neve!” Vinha acompanhada com outra senhora. Traziam dois garrafões de 10lts cada uma.  Faziam este corta-mato para fugir aos carabineiros que lhes “tiravam as coisas” e queriam fazer outras. “Quando chegámos já eram 10 da noite, e as pessoas já se tinham posto à nossa procura".

 

12/09/2014, Vila

No dia da Festa do S. Brás “cismou” de não ir à Festa e resolveu ir antes a Gojinde, fazer contrabando. “Fui com a tia Morgada, falecida, e o tio Zé Fernandes, falecido.” Traziam uma caixa inteira de azeite, chocolate e um bacalhau pequeno e sachos para trabalhar. Traziam também uma “peça” de pão para comer quando chegassem à Ameijoeira. À saída de Gojinde, próximo de umas macieiras, numa curva, “apareceu o carro dos carabineiros!” “Tiraram-nos tudo. Era uma miséria. Nem a “peça” de pão nos deixaram ficar e vínhamos cheios de fome. A tia Morgada começou a chorar e a dizer que tinha o marido doente e um dos carabineiros disse-lhe: - Mira, vai buscar outro litrinho!” em tom de ironia e sarcasmo.

 

12/09/2014, Rodeiro

O gado também era controlado, os pastores eram obrigados a levar uma guia para o monte com eles, e “se nascesse um bezerro havia que ir ao posto da guarda dar subida, e se morresse dar a descida, porque eles controlavam tudo, por causa do contrabando.

 

BREVE ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O NÚCLEO FAMILIAR TRADICIONAL DE CASTRO LABOREIRO

Diana de Carvalho

ABELTERIVM

Vol. III

2017

CONTRABANDO, GUERRA E DITADURA

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 ribeiro de cima, castro laboreiro

O CONTRABANDO NO TEMPO DA GUERRA E DA DITADURA

 

(…) a atividade do contrabando atinge o clímax num período marcado por dois acontecimentos históricos que influenciaram – direta e indiretamente – a vida económica e social das populações raianas, nomeadamente a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a IIª Grande Guerra (1939-1945). O primeiro confronto é contemporâneo da afirmação da ditadura Franquista em Espanha e da consolidação do Estado Novo em Portugal, regimes que, com as suas políticas segregadoras e opressivas, marcaram indelevelmente a vida nas zonas de fronteira.

A Guerra Civil Espanhola acabou, antes de mais, por gerar uma extrema carência de bens e dificuldades de subsistência dos dois lados da raia, provocadas por medidas de contenção impostas, vigiadas e fiscalizadas pelas organizações corporativas estatais. Mas, além disto, a consolidação dos regimes ditatoriais ibéricos, também provocou um reforço das medidas de controlo fronteiriço, contra as quais as populações raianas tiveram que lutar, recorrendo a métodos de resistência ilícitos, como é o caso do contrabando (Táboas, et al., 2009).

O conflito que assolou Espanha acabou por ser encarnado pelas populações raianas como uma oportunidade comercial e isso também se verificou no caso da sociedade melgacense. As guerras, segundo Luís Cunha (2006: 180), tornaram “a fronteira num espaço mais preenchido e, nesse sentido, mais dinâmico”, levaram a um movimento permanente de pessoas e mercadorias, constituindo também um recurso fundamental para a sobrevivência condigna das populações, pois os tempos da guerra foram, sobretudo, tempos de miséria e indigência. Relativamente a esta última consideração, é importante salientar que, neste período, a fronteira também foi encarada como um refúgio para refugiados espanhóis, os quais, pelas vicissitudes políticas, procuravam evadir-se à repressão do regime franquista, procurando abrigo também em Melgaço, mormente na zona montanhosa de Castro Laboreiro.

O impacto da guerra civil está bem presente na memória dos melgacenses. Para uns, este foi um tempo de oportunidades, sobretudo de exportação de bens que faltavam no país vizinho, transformando-se a conjuntura de carências numa ocasião de obtenção de maior capital económico; para outros, foi um tempo assombrado pela miséria e pela rarefação de bens, e também pela conivência das forças de poder protagonizadas pelos seus líderes locais e autoridades policiais. Os dois relatos a seguir transcritos são exemplo claro deste duplo entendimento:

 

… havia o rescaldo da guerra espanhola, da Guerra Civil de Espanha com o Franco e, ficou o rescaldo da guerra. Depois, havia muitas coisas que falhavam na Espanha e muitas coisas que falhavam a Portugal. Às vezes, falhava o azeite, pronto, havia o contrabando do azeite. Levávamos o azeite nuns odres ainda, chamam-lhe odres, que era peles de animais nuns odres. Sabão, sabão de potassa, café Sical, café sem torrar, café cru.   (José, Paços)

 

…as pessoas tinham pouco dinheiro, tinha acabado a Guerra Civil Espanhola, nós aqui ficámos muito mal, porque tudo o que havia foi para Espanha, porque o Salazar era amigo do Franco e ajudou-o, porque ele teve a Guerra Civil, que começou em trinta e seis, acabou em trinta e nove e a Espanha ficou destruída. Em trinta e nove começou a Segunda Guerra Mundial e, depois, tudo o que havia aqui passou para a Espanha, o contrabando. Pagavam o milho muito caro, o milho vendia-se para a Espanha e aqui passavam muita fome.   (Matilde,Paderne)

 

Como é possível depreender, o contrabando foi, no tempo muito preciso da guerra e da ditadura, uma alternativa viável ao isolamento e à pobreza da população melgacense, uma forma de resistência à marginalidade política, social e económica a que estava votada pelo poder. Além disso, o contrabando era, sobretudo, uma atividade legitimada pela necessidade e é dessa forma que os informantes ainda hoje entendem a sua prática, como uma atividade não danosa, mas necessária.

 

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017

CONTRABANDO NO CONCELHO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 18.11.23

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TIPO E PRODUTOS CONTRABANDEADOS EM MELGAÇO

 

DEPOIMENTOS

“De um modo geral, aquele contrabando, que a gente chama contrabando mais visível, eram os homens que o faziam, era contrabando, por exemplo, de prata, do ouro, do cobre, de tripa, de sabão, isso implicava carga, risco, noite e ligação com os guardas e tudo. Esse, normalmente, eram os homens que o faziam. Se tu quiseres, o contrabando vinha de baixo, às vezes vinha de longe, às vezes vinha de Lisboa e havia as cargas, haviam poucos camiões, portanto, eram sempre dois ou três que andavam nisso, não havia mais e, as pessoas, punham-se em determinado sítio à espera que chegasse um camião, para fazer a descarga, fazer a descarga era pegar nas coisas e levá-las à Espanha, não é? Esse, eram sempre homens, sobretudo homens. As mulheres faziam outro tipo de contrabando, que era um contrabando mais de galinhas, de ovos e essas coisas todas assim, que acabava por ser um contrabando mais arriscado do que o outro, sabes porquê? Porque o outro contrabando, normalmente, estava almofadado, isto é, os guardas… eram coniventes. Recebiam um tanto por atravessar, recebiam outro tanto ao mês. De uma maneira ou de outra. Portanto, era mais almofadado. Quando os guardas apanhavam alguém lá com os ovos, com as galinhas, ou com nada, aí é que exerciam a autoridade toda e tu podias ter circunstâncias em que, uma mulher, por estar a passar ovos, ir para a cadeia, por exemplo.” (A. Gonçalves)

 

“Eu mesmo, quando vinha cá à terra, ia buscar as coisas à Espanha. Eu não estive envolvido no contrabando, mas estava bem ocorrente de como funcionava o contrabando, porque isso era o florão da nossa terra. Era um passar em contrabando de coisas importantes para Espanha e da Espanha para Portugal. De Portugal para a Espanha, era sobretudo o café, adepois, o cobre, o ouro, o volfrâmio, que nós tivemos aqui, uma coisa importante em Castro Laboreiro foi o volfrâmio. Eu sei que o meu pai e uma tia minha trabalharam lá, foi mesmo difícil, você imagine que iam daqui para Castro Laboreiro para trabalhar e ficavam lá, sabe Deus a dormir como, na estação do volfrâmio.” (António, Paderne)

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO 2017

CONTRABANDO E GUARDA FISCAL

melgaçodomonteàribeira, 14.10.23

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DO DEVER DA FRADA À CUMPLICIDADE OCULTA –

A POSIÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS PERANTE O CONTRABANDO

 

O Estado impunha medidas para conter as redes de comércio clandestino, cercando as populações da fronteira com mecanismos e recursos humanos e materiais de vigilância, que permitiam fiscalizar o vaivém de mercadorias e pessoas. Apesar de este controlo já ser feito anteriormente, tornara-se mais intenso após as crises económicas e as guerras, exigindo nestes períodos cuidados adicionais, como controlar a passagem de refugiados espanhóis para o território português e evitar a passagem de armamento e, também, o intercâmbio ilegal de mercadorias (Táboas et al., 2009: 66). O Estado apostou, então, na criação e no reforço de infraestruturas de controlo fronteiriço, entre elas postos de vigilância da Guarda Fiscal. Aqui, convém realçar que Melgaço, pela variedade e valor da prática do contrabando tinha, em 1961, o maior contingente de Guarda Fiscal do Vale do Minho, com “2 sargentos, 16 cabos, e 74 soldados distribuídos por 17 postos” (Gonçalves, 2008: 245).

Os postos distribuíam-se por “quase” todas as freguesias: Via, Prado, Paços, Remoães (Mourentão), Paderne (S. Marcos), Alvaredo (S. Martinho), Chaviães (Louridal e Porto Vivo), Castro Laboreiro (Ameijoeira, Portelinha, Castro Laboreiro, Ribeiros de Cima e de Baixo), Cristóval (S. Gregório e Cevide), Lamas de Mouro (Alcobaça) e Fiães.

As forças do poder procederam, também, à reestruturação dos organismos de vigilância e de controlo da autoridade, que incluíam a Guarda Fiscal, a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), posterior Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), sendo esta última responsável pela gestão, prevenção e contenção de crimes políticos e, em consequência, pelo agravamento de sanções penais referentes à prática de contrabando e ao auxílio à emigração clandestina.

Relativamente à prática do contrabando, a figura que mais se destaca nas narrativas dos informantes é, sem dúvida, a do Guarda Fiscal, com a qual tiveram uma experiência ou relação mais próxima. Nos seus discursos, como já referi anteriormente, a figura do Guarda Fiscal assume uma posição dual: por um lado, reprimia a prática do contrabando, zelando pelo seu dever profissional; por outro lado, devido ao seu passado antes da inserção nas forças policiais, que muitas vezes passava pelo contrabando e pela sua ligação às comunidades em que prestava serviço, onde muitos dos contrabandistas eram seus vizinhos ou parentes, acabava por conscientemente aceitar e tolerar esta prática clandestina (Amante, 2007; Fonseca &Freire, 2009).

O excerto que a seguir reproduzo foi transmitido por um antigo Guarda Fiscal que, no passado, também havia tido experiência enquanto contrabandista. Nele se reflete de forma muito clara a postura de conivência advinda das forças do poder, justificada pelo informante pela experiência do passado:

Haviam aqueles jovens, os matrimónios, que tinham casado de novo, que levavam dez quilos de Sical, iam nos barquinhos, traziam dez kilos de Sical para cá. Sempre se ganhava cinquenta escudos, cinco escudos cada, aquilo era muito dinheiro, mas claro, tinham uma família assim. Não é que eu entro das oito à meia-noite e não vou apanhar dois rapazes com vinte kilos de Sical? Porque dei-lhe o Auto! E não pararam, claro, era normal, fugiram. Atiraram com o café dentro do barquinho, mas um tinha a corrente e o barco atado num amieiro, era de noite, não abriram a tempo e eu puxei-lhe a corrente e prendi-os.

Chegámos ao Posto: ó senhor Guarda, deixe-nos ir embora, deixe-nos ir embora! (um até já chorava). Eu: pousem aí! Vão-se lá embora, pronto!

Já iam embora e deixavam o café, eles queriam era ir embora, porque o cabo, além de perderem o café, ainda os fazia pagar a multa, que era um a dez vezes o valor da mercadoria!

- Levem o café! – eles até ficaram assim admirados; e eles: ó senhor Guarda levámos para casa ou para onde imos?

- Para onde quiserdes!

Eu a primeira noite não os conhecia, tive pena deles.

Um, tinha dois filhos e tinha a mulher grávida (…) e o outro… tinham a vida deles, coitados! Então, quando vinham e eu estava de serviço, deixava-os passar. (José, Paços)

Outros casos houve em que a conivência partia de uma oportunidade de grupo, ou seja, o Guarda Fiscal, cooperando muitas das vezes com grandes redes profissionais de contrabando, impunha determinadas condições para a sua benevolência, entre elas, parte dos lucros da mercadoria transacionada, enriquecendo “à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou sentido de classe” (Domingues&Rodrigues, 2009: 231). Como reforçou o Guarda Fiscal que anteriormente referi, “os contrabandos, ao fim, já acabavam por não ser contrabando, porque o tenente, o comando da secção sabia tudo, deixavam e levavam!” (José, Paços). Além do referido, o posto da Guarda Fiscal e alfândega também eram, muitas das vezes, o último “refúgio” dos bens apreendidos, que depois acabavam ou por ser leiloados, ou repartidos pelos próprios soldados ou até destruídos, como um trabalhador da alfândega me acabou por confidenciar:

Jesus, nem queira saber! Eu atropelava nas apreensões da alfândega, que a Guarda Fiscal prendia, quando prendia; sabe que os maiores corruptos eram aqueles gajos que empregavam a farda, não é? Quantas vezes nós nos atiramos aí! Aqui o contrabando era uma razia. Eu queimei muita carninha vinda de Espanha. Aqui, um dia fui queimar carne a Monção, no jipe da Guarda Fiscal; não era Guarda Fiscal, era da alfândega, mas (…) no meio daqueles penedos, em Monção, só se via carne a arder. Deu-me tanta pena! Vinham aquelas pessoas com criancinhas cheias de fome! “Oh, deixe-me, dê-me (…) kilos de carne!”; “Oh, minha senhora, deixe-me ir embora e depois vocês arranjam-se!”, mas queimei muita carninha, pá! (Fernando, Cristóval)

Por fim, não se podem ignorar os episódios de repressão e abuso da autoridade por parte das forças policiais. Normalmente as ideias de dureza e repressão são mais associadas pelos informantes à figura do “carabineiro”, mas também se contam episódios de transações que acabaram em situações de extrema violência protagonizadas pelas autoridades portuguesas, como me contou um dos informantes:

… tive problemas na vida, tive problemas graves. Tive um rapaz amigo que morreu como daqui ao tribunal, levou um tiro, entrou-lhe aqui num braço e saiu debaixo do outro braço, nem ai Jesus disse! (…) nessa vez já fui preso. Levava um saco de noventa quilos às costas de café cru (…). (Mateus, Vila)

O contrabando era, de facto, uma prática clandestina de elevado risco para os seus praticantes, podendo culminar em situações mais desfavoráveis como apreensões dos bens em transação, multas, prisões ou, em situações de extrema violência, como a que acabamos de referir, culminando na morte dos contrabandistas (Godinho, 2009).

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017

CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 30.09.23

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CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

OS TIPOS DE CONTRABANDO E OS CONTRABANDISTAS

 

Américo Rodrigues

 

O contrabando, numa terra que sempre teve dificuldade em dar pão aos seus filhos, num tempo de guerra (36-45) e fascismo (Franco e Salazar), foi deveras importante, desenvolveu localmente o comércio e estatutos sociais.

Aqui praticou-se sobretudo o contrabando “às costas” e o contrabando feito com muares – machos e mulas. Cada homem levava em média 25-30 quilos e as viagens duravam, às vezes, horas, ou mesmo dias e noites. Os animais transportavam uma centena de quilos e normalmente não passavam a raia delimitadora dos dois países.

O contrabando de camião surgiu quando da abertura das estradas em terra, uma na serra do Laboreiro, que ligou Portelinha aos Portos, e a outra, a actual estrada de fronteira, da Vila à Ameixoeira. Tal tipo de contrabando é por isso recente, e contava com a cumplicidade da Guarda-fiscal, que engordava à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou princípio de classe.

Apesar da dificuldade em formatar esta actividade, considero que existem três tipos de contrabando distintos.

Um contrabando familiar, de subsistência, exercido principalmente pelas mulheres e filhos, que esporadicamente deslocavam-se ao outro lado da fronteira, às lojas, para se abastecer de bens de primeira necessidade para a casa: azeite, bacalhau, uns sapatos, pimento, sabão, etc. Podia acontecer até irem trocar batatas por feijões ou milho.

Outro contrabando, já mais profissional, é encabeçado, na maioria das vezes por comerciantes da zona. Compram e vendem de um lado e do outro da raia, com “amigos” do ofício. Para isso, contratam grupos de cinco, dez ou mais pessoas (familiares ou vizinhos) para irem “ao outro lado” ou à raia, a pé, por vezes com animais de carga, buscar e levar os produtos. Para os locais é um contrabando de subsistência que ajudava a enganar os tempos de miséria e privações. Homens, mulheres e rapazes, depois dos trabalhos do dia a dia, no campo e no monte, levam as cargas pela calada da noite aos locais combinados.

O mais famoso e o mais bem sucedido dos contrabandistas foi “O Mareco” de Várzea Travessa. “O Frade” das Coriscadas talvez seja o segundo da hierarquia, no entanto são conhecidos de todos: “O Carqueijo” de Padresouro, com loja em Padresouro e depois na Vila, “O Mochena” das Eiras, com loja nas Cainheiras e depois na Vila, “O Chimpa” de Várzea Travessa, “O Albano” “Pereira” com loja nos Antões e depois na Vila, “O Varanda” de Portelinha, ou o “Nicho” da Vila.

Estes homens não fizeram vida de emigrante (alguns partiram à aventura mas regressaram novos) como era moda na sua geração. O contrabando é a sua profissão desde muito cedo. Alguns já contrabandeiam em plena guerra civil espanhola. Melhoram bastante a sua condição de vida, poupam e compram quintas por todo o alto Minho. Chegam a investir na banca portuguesa. A maioria dos Castrejos formados (os primeiros), por universidades portuguesas, estudantes no final dos anos 50, é descendentes deles. Estes homens gozam de um estatuto social superior e pela primeira vez os seus filhos passam a pertencer à classe média portuguesa. O Mareco é mesmo um dos homens mais ricos entre o rio Lima e Minho (norte de Portugal).

Ao longo do século vinte, nos lugares mais próximos da fronteira são referenciadas muitas lojas de contrabando. Recordo aqui a loja do “Chastre” em Dorna, a do “Bernardo” na Assureira, a do Manuel “Maceira” no Rodeiro, natural de Várzea Travessa, a loja dos Antões de António “Carrapiço”, a loja do Outeiro de Domingos “Bernardo”, natural das Falagueiras, mais tarde comerciante na Vila, ou a loja das “Cordas” (que foi para o Brasil) no Outeiro, sita no prédio com o nome de Casino. O negócio era com galegos, e era vê-los curvados de sacos de café às costas em direcção à raia.

O contrabando dos anos setenta e oitenta é em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos. Da velha guarda restam “O Frade” e “O Albano”, que ainda contrabandeiam, quase por gosto e obrigação, mas com eles, estão reformados da França ou ex-emigrantes jovens, que disto fazem modo de vida. Há mesmo contrabandistas de outras paragens, como o Salvador da Gave. Na estrada asfaltada fazem uso de camiões e as vacas entram aos milhares pela fronteira, com destino a todos os matadouros do norte e centro do país. As bananas abastecem todo o mercado nacional.

Confessa um contrabandista: “em 1984, numa noite normal podia ter de lucro 2000 euros”. As famílias mais pobres e até alguns estudantes jovens ganham dinheiro todas as noites “a passar vacas” ou a carregar caixas de bananas. Os Guardas-fiscais reclamam parte dos lucros. O dinheiro circula a rodos.

Na maior parte das vezes os produtos eram enviados, recebidos e geridos por redes situadas em muitas vilas e cidades da Espanha e de Portugal. Estas redes faziam acordos com estes homens, conhecedores do terreno, das pessoas e das forças militares.

Tudo acabou nos inícios dos anos 90. Os últimos foram “Os do Ribeiro”, família Pires, do Ribeiro de Baixo.

Deixo aqui uma nota de nostalgia para a contrabandista a retalho, “Tia Resaura”, de nome Rosana, galega, que viveu sozinha até ao final da vida, no lugar da Assureira (inverneira de Castro Laboreiro), que de manhã ia comprar “peças” de trigo, chocolate, azeite, galhetas, e mais, à loja da amiga Luiza no lugar galego de Pereira, para venda aos Castrejos, e à tarde deixava algum guarda fiscal em turno, quentar-se em dia frio, ao lume da sua lareira, oferecendo-lhe copa ou café acompanhado dos deliciosos e açucarados doces galegos.

 

NEPML – NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISA DOS MONTES LABOREIRO

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço, 2009

CONTRABANDO DE GADO NA HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 15.07.23

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A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DE LABOREIRO

 

A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando pacificamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como sempre fezeram atee ora”.

Esta conjuntura documental remete para uma particularidade interessante, a relação entre a pastorícia e o contrabando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.

Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de fronteira, formando uma raia seca de muitos quilómetros. Lagos Trindade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pastoris” e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento de uma ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, conquanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”.

Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a muda das brandas para as inverneiras e vice-versa. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.

Existe, no entanto, um documento que pode testemunhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos montados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção. A deslocação dos gados de Castro Laboreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgada por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:

Os montados da terra sam comuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comcertam. a saber. aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”.

Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando, de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Melgaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.

Em relação aos rebanhos que vêm da Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documentais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem de seus rebanhos transumantes?

A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou outros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a passagem lícita do gado transumante, mas também para o contrabando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.

Ao longo da raia seca, o ponto nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recuada Idade Média que, vindo directamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, praticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se uma via para Melgaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de Lamas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez.

Desde o tempo do rei D. Pedro I se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, interditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alternativo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximidades do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”. Mas este autor não fez a ligação com o Porto dos Asnos. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melgaço, em 1538.

O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahi tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Milmanda que come disso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”.

O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser contrado de ambos os lados.

 

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO EM CASTRO LABOREIRO

José Domingues

Boletim Cultural nº 6

Melgaço, 2007

 

CONTRABANDO DO CARO, DO ALTO

melgaçodomonteàribeira, 11.03.23

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UMA CARGA DE COBRE

Tanto o estanho como o cobre vinham em barras com a forma de um jugo das vacas, pesando cada uma vinte e cinco quilogramas. Conforme nos informou o nosso interlocutor de Caballeiros (San Martiño) ia adquiri-las à Vila, em Castro Laboreiro, ou, à fronteira, ou então, a um sítio combinado com os homens de Castro, onde eram escondidas, para em Caballeiros, ou, no Valoiro serem colocadas, durante a noite, num camião, que as transportava para Ourense e outras cidades.

Desconhecia os verdadeiros mentores deste esquema de contrabando, que intitulou como um contrabando caro, do alto, quer em Portugal, quer na Espanha, mas, o responsável pelo “negócio” em Castro “acertava” com a guarda fiscal uma determinada quantia por cada carga efectuada, eliminando, deste modo, os perigos da “transferência”.

Contudo, houve percalços, como o caso da noite em que os Carabineiros surpreenderam na Cabeça Vella, próximo da Terracha (Entrimo), uma carga de barras de cobre, transportada por vinte e duas mulas, que nos foi mencionada, de forma espontânea, pelos residentes, quer no vale do Grou, quer no de Pacín, preocupando-se, contudo, os nossos interlocutores da Illa em esclarecer que a apreensão se tinha verificado devido a uma denúncia, por represália.

Mas, voltando, propriamente ao caso das barras, eram transportadas em mulas (cada mula carregava 100 Kgs), ou então, pelos rapazes novos e fortes (um rapaz conseguia carregar 50 Kgs).

O nosso interlocutor de Caballeiros, por exemplo, conduzia catorze mulas vazias para a Vila, em Castro, sendo duas mulas “controladas” por um homem, que recebia 400 pesetas por dia, ou melhor, noite.

O estanho e o cobre eram matérias-primas utilizadas nas fundições. Contudo, se o “escoamento” do cobre em barra predominou na década de cinquenta, com a implementação e alargamento da rede eléctrica, a procura “voltou-se”, na década de sessenta, para o fio de cobre.

 

LIMA INTERNACIONAL: PAISAGENS E ESPAÇOS DE FRONTEIRA

Volume I

Elza Maria Gonçalves Rodrigues de Carvalho

Tese de doutoramento em Geografia

Ramo de Geografia Humana

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

Julho de 2006