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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRONTEIRA - DEPOIMENTOS

melgaçodomonteàribeira, 09.12.23

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 entrimo

 

A FRONTEIRA – CONTRABANDO E REFÚGIO EM

CASTRO LABOREIRO

 

Hoje, a rede de elementos e histórias do contrabando, encontram-se musealizados no ESPAÇO DE MEMÓRIA E FRONTEIRA, em Melgaço.

 

Depoimentos – sobre o contrabando

 

11/09/2014, Vila

“Ao passar a Ameijoeira, a 1ª estrada que se encontra depois de passar uma corga, chamava-se Pereira. Era aí que também se fazia o contrabando! Havia uma senhora em Varziela, chamada de “tia Maria da Floresta”, casada com um Guarda da Floresta, que ia à Ameijoeira de “burra” buscar os artigos que contrabandeava – pão, chocolate, azeite, bacalhau – para depois vender porta a porta em Castro Laboreiro, isto pelos anos 70.”

 

12/09/2014, Vila

“Vinha a pé de Gojinde” (Entrimo), (local de abastecimento de produtos), “pelos montes da Ameijoeira, passando pela Sr.ª de Numão até ao minério da Seara, onde ainda havia neve!” Vinha acompanhada com outra senhora. Traziam dois garrafões de 10lts cada uma.  Faziam este corta-mato para fugir aos carabineiros que lhes “tiravam as coisas” e queriam fazer outras. “Quando chegámos já eram 10 da noite, e as pessoas já se tinham posto à nossa procura".

 

12/09/2014, Vila

No dia da Festa do S. Brás “cismou” de não ir à Festa e resolveu ir antes a Gojinde, fazer contrabando. “Fui com a tia Morgada, falecida, e o tio Zé Fernandes, falecido.” Traziam uma caixa inteira de azeite, chocolate e um bacalhau pequeno e sachos para trabalhar. Traziam também uma “peça” de pão para comer quando chegassem à Ameijoeira. À saída de Gojinde, próximo de umas macieiras, numa curva, “apareceu o carro dos carabineiros!” “Tiraram-nos tudo. Era uma miséria. Nem a “peça” de pão nos deixaram ficar e vínhamos cheios de fome. A tia Morgada começou a chorar e a dizer que tinha o marido doente e um dos carabineiros disse-lhe: - Mira, vai buscar outro litrinho!” em tom de ironia e sarcasmo.

 

12/09/2014, Rodeiro

O gado também era controlado, os pastores eram obrigados a levar uma guia para o monte com eles, e “se nascesse um bezerro havia que ir ao posto da guarda dar subida, e se morresse dar a descida, porque eles controlavam tudo, por causa do contrabando.

 

BREVE ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O NÚCLEO FAMILIAR TRADICIONAL DE CASTRO LABOREIRO

Diana de Carvalho

ABELTERIVM

Vol. III

2017

NOVAS DA GALIZA ENTREVISTA AMÉRICO RODRIGUES

melgaçodomonteàribeira, 04.11.23

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ALÉM MINHO

 

AMÉRICO RODRIGUES, ACTIVISTA CULTURAL DE CASTRO LABOREIRO,

A ALDEIA MAIS GALEGA DE PORTUGAL

E. MARAGOTO

 

Castro Laboreiro é a freguesia mais galega de Portugal. E nom só: esta extensa paróquia do Laboreiro, raiana com as terras de Cela Nova, deixou viver até a actualidade elementos culturais que a maioria de nós achávamos desaparecidos há muitas décadas. Entre eles, umha economia rural (nom só pecuária) baseada na migraçom sazonal de aldeias inteiras: quase duas dezenas de brandas ficam vazias nos meses do Inverno porque os seus moradores descem para as inverneiras. Mas a aragem dos novos tempos está a chegar a Crasto (assim lhe chamam), que no entanto tem a sorte de contar entre a vizinhança com incansáveis activistas que tenhem feito de todo por manter ou divulgar a idiossincrasia desta interessante regiom raiana: o legado megalítico, umha raça de cam, tradiçons fronteiriças e comunitárias, e um longo etcetera. Américo Rodrigues é um deles.

 

O cam é a marca mais internacional de Castro, nom é?

O cam é um ícone destas terras de montanha, porque é umha raça autóctone de Castro Laboreiro reconhecida internacionalmente desde 1935. Em 1914 fijo-se o primeiro Concurso Internacional do Cão, evento que é organizado todos os anos no dia 15 de Agosto. Nesta data (1914) a maior parte das raças que mais se vendem hoje em dia no mundo, ainda nom existiam ou estavam a criar-se. Os castrejos venderam ou ofereceram milhares de cans, no século XIX e XX, para todo o Portugal, Galiza e outros países. Infelizmente, a raça encontra-se à beira da extinçom. Mendez Ferrín, tal como figera Camilo Castelo Branco no século XIX, eternizou o cam de Castro Laboreiro no livro Arraianos.

 

No entanto, as brandas e as inverneiras som a marca mais específica desta freguesia, absolutamente excepcional.

Castro Laboreiro tem um basto património cultural onde podemos salientar: a paisagem, as carvalheiras seculares, os pequenos rios de montanha, a fauna, o cam, os trajes, o Castelo roqueiro, que os galegos chamam de S. Rosendo, que já existia em 1141, ou seja, é anterior à nacionalidade portuguesa, umha das maiores necrópoles megalíticas da Europa ocidental, com mais de umha centena de dólmenes, as pontes, o património religioso, etc., mas quando falamos do modus Vivendi da populaçom nom haja dúvida que as brandas e inverneiras som uhma marca específica. Os castrejos tenhem duas casas: uhma para o Inverno outra para o Verão. Nom estou a falar de transumância. Estou a falar de 1500 pessoas a deslocarem-se com todos os seus haveres duas vezes ao ano entre as duas casas: era um movimento de contornos extraordinários. Para compararmos com outro povo na Península teríamos de falar dos vaqueiros da Alçada nas Astúrias, no século XIX e princípios do XX. Hoje em dia ainda há quem faga essa muda sazonal, claro que sem os contornos do antigamente.

 

Este vosso português com musicalidade e formas tam galegas, porquê?

Nestas terras o galego-português antigo sempre permaneceu muito vivo. O ADN do povo é o mesmo. O poder de Castela e Lisboa é que foram fazendo a diferença, mas o isolamento de Castro e a falta de alfabetizaçom fijo com que, até hoje, os velhos e a minha geraçom ainda usem o falar antigo. Nom nos esqueçamos que a fronteira começa aqui: temos do marco 1 até o 53 da fronteira luso-espanhola. Salvo em períodos conturbados da história, como o pós-1640, as relaçons sempre foram de entreajuda, própria de irmaos. Castro Laboreiro foi uhma das terras mais solidárias com os refugiados galegos na guerra civil. Estivérom aqui dezenas.

 

O vosso activismo pretende também a valorizaçom da história local e do megalitismo.

Em 2000 eu e o meu amigo José Domingues, depois de alguns anos de pouco contacto, num reencontro por ocasiom do lançamento do seu livro sobre a vizinha freguesia de Lamas de Mouro, achamos que sobre as nossas terras muito havia por descobrir e preservar, atendendo ao círculo cultural que acabava abruptamente, a desertificaçom reinante, e a posiçom ignorante e contemplativa das instituiçons com responsabilidades. Por isso avançamos com a criaçom do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Montes Laboreiro (NEPML), instituiçom amadora que preenche muito do nosso tempo livre, realizando todo o tipo de actividades para incentivar a valorizaçom e preservaçom do património cultural.

 

Colaboras na revista Arraianos e a Galiza está sempre presente nas vossas actividades…

Seria de todo impossível nom contarmos com galegos nas nossas actividades: as gentes som as mesmas, a história cruza-se e o espaço cultural é o mesmo.

 

NOVAS DA GALIZA

15 de setembro a 12 de outubro

2010

CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 30.09.23

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CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

OS TIPOS DE CONTRABANDO E OS CONTRABANDISTAS

 

Américo Rodrigues

 

O contrabando, numa terra que sempre teve dificuldade em dar pão aos seus filhos, num tempo de guerra (36-45) e fascismo (Franco e Salazar), foi deveras importante, desenvolveu localmente o comércio e estatutos sociais.

Aqui praticou-se sobretudo o contrabando “às costas” e o contrabando feito com muares – machos e mulas. Cada homem levava em média 25-30 quilos e as viagens duravam, às vezes, horas, ou mesmo dias e noites. Os animais transportavam uma centena de quilos e normalmente não passavam a raia delimitadora dos dois países.

O contrabando de camião surgiu quando da abertura das estradas em terra, uma na serra do Laboreiro, que ligou Portelinha aos Portos, e a outra, a actual estrada de fronteira, da Vila à Ameixoeira. Tal tipo de contrabando é por isso recente, e contava com a cumplicidade da Guarda-fiscal, que engordava à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou princípio de classe.

Apesar da dificuldade em formatar esta actividade, considero que existem três tipos de contrabando distintos.

Um contrabando familiar, de subsistência, exercido principalmente pelas mulheres e filhos, que esporadicamente deslocavam-se ao outro lado da fronteira, às lojas, para se abastecer de bens de primeira necessidade para a casa: azeite, bacalhau, uns sapatos, pimento, sabão, etc. Podia acontecer até irem trocar batatas por feijões ou milho.

Outro contrabando, já mais profissional, é encabeçado, na maioria das vezes por comerciantes da zona. Compram e vendem de um lado e do outro da raia, com “amigos” do ofício. Para isso, contratam grupos de cinco, dez ou mais pessoas (familiares ou vizinhos) para irem “ao outro lado” ou à raia, a pé, por vezes com animais de carga, buscar e levar os produtos. Para os locais é um contrabando de subsistência que ajudava a enganar os tempos de miséria e privações. Homens, mulheres e rapazes, depois dos trabalhos do dia a dia, no campo e no monte, levam as cargas pela calada da noite aos locais combinados.

O mais famoso e o mais bem sucedido dos contrabandistas foi “O Mareco” de Várzea Travessa. “O Frade” das Coriscadas talvez seja o segundo da hierarquia, no entanto são conhecidos de todos: “O Carqueijo” de Padresouro, com loja em Padresouro e depois na Vila, “O Mochena” das Eiras, com loja nas Cainheiras e depois na Vila, “O Chimpa” de Várzea Travessa, “O Albano” “Pereira” com loja nos Antões e depois na Vila, “O Varanda” de Portelinha, ou o “Nicho” da Vila.

Estes homens não fizeram vida de emigrante (alguns partiram à aventura mas regressaram novos) como era moda na sua geração. O contrabando é a sua profissão desde muito cedo. Alguns já contrabandeiam em plena guerra civil espanhola. Melhoram bastante a sua condição de vida, poupam e compram quintas por todo o alto Minho. Chegam a investir na banca portuguesa. A maioria dos Castrejos formados (os primeiros), por universidades portuguesas, estudantes no final dos anos 50, é descendentes deles. Estes homens gozam de um estatuto social superior e pela primeira vez os seus filhos passam a pertencer à classe média portuguesa. O Mareco é mesmo um dos homens mais ricos entre o rio Lima e Minho (norte de Portugal).

Ao longo do século vinte, nos lugares mais próximos da fronteira são referenciadas muitas lojas de contrabando. Recordo aqui a loja do “Chastre” em Dorna, a do “Bernardo” na Assureira, a do Manuel “Maceira” no Rodeiro, natural de Várzea Travessa, a loja dos Antões de António “Carrapiço”, a loja do Outeiro de Domingos “Bernardo”, natural das Falagueiras, mais tarde comerciante na Vila, ou a loja das “Cordas” (que foi para o Brasil) no Outeiro, sita no prédio com o nome de Casino. O negócio era com galegos, e era vê-los curvados de sacos de café às costas em direcção à raia.

O contrabando dos anos setenta e oitenta é em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos. Da velha guarda restam “O Frade” e “O Albano”, que ainda contrabandeiam, quase por gosto e obrigação, mas com eles, estão reformados da França ou ex-emigrantes jovens, que disto fazem modo de vida. Há mesmo contrabandistas de outras paragens, como o Salvador da Gave. Na estrada asfaltada fazem uso de camiões e as vacas entram aos milhares pela fronteira, com destino a todos os matadouros do norte e centro do país. As bananas abastecem todo o mercado nacional.

Confessa um contrabandista: “em 1984, numa noite normal podia ter de lucro 2000 euros”. As famílias mais pobres e até alguns estudantes jovens ganham dinheiro todas as noites “a passar vacas” ou a carregar caixas de bananas. Os Guardas-fiscais reclamam parte dos lucros. O dinheiro circula a rodos.

Na maior parte das vezes os produtos eram enviados, recebidos e geridos por redes situadas em muitas vilas e cidades da Espanha e de Portugal. Estas redes faziam acordos com estes homens, conhecedores do terreno, das pessoas e das forças militares.

Tudo acabou nos inícios dos anos 90. Os últimos foram “Os do Ribeiro”, família Pires, do Ribeiro de Baixo.

Deixo aqui uma nota de nostalgia para a contrabandista a retalho, “Tia Resaura”, de nome Rosana, galega, que viveu sozinha até ao final da vida, no lugar da Assureira (inverneira de Castro Laboreiro), que de manhã ia comprar “peças” de trigo, chocolate, azeite, galhetas, e mais, à loja da amiga Luiza no lugar galego de Pereira, para venda aos Castrejos, e à tarde deixava algum guarda fiscal em turno, quentar-se em dia frio, ao lume da sua lareira, oferecendo-lhe copa ou café acompanhado dos deliciosos e açucarados doces galegos.

 

NEPML – NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISA DOS MONTES LABOREIRO

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço, 2009

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 3

melgaçodomonteàribeira, 16.09.23

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 delfina e o filho de eudosia, paul féron

Sem possibilidade de apresentar números exatos, todos dizem que por Castro passaram centenas de refugiados. “Algo que foi possível porque a raia seca é muito fácil de ultrapassar”, prossegue Américo Rodrigues. “Nos primeiros tempos da guerra, os polícias portugueses nem sabiam bem o que fazer. É que os que fugiam eram inocentes. Vinham para não ter de morrer a combater.”

Nesse espírito de solidariedade, revela o investigador, muitos castrejos foram presos por acolher refugiados. “Se o conflito fosse do lado de lá, nós também seríamos ajudados por eles”, defende, argumentando que as redes de amizades dos negócios clandestinos foram uma alavanca para os que fugiam. “O contrabando aqui era uma forma de se ganhar a vida e de sobrevivência.” Contrabandeava-se azeite, café e bens de primeira necessidade, “não era droga”, remata Américo.

NOVE ANOS SEM VER O PAI

Matavam-nos a tiro. Mataram tantos, que ela bem ouviu. Ela e muitos dos antigos de Castro Laboreiro. Por vezes, à noite, as balas que furavam os corpos ecoavam no silêncio. Ainda hoje o fazem, mas só na memória dos poucos que sobram daquele tempo. “Matavam-nos pelos montes fora.” Aos “rojos”, os que não alinhavam no regime fascista de Franco. “Ainda lhes posso mostrar por onde fugiam”, diz, apontando para as montanhas que a rodeiam.

Lucinda Alves tem o sobrenome da mãe portuguesa, mas tem sangue espanhol a correr-lhe nas veias e nas palavras. “Já a minha avó me dizia que esta aldeia foi montada por refugiados”. Vestida de negro, abre os braços ao vento, ali no alto, ao lado do cemitério, depois de ter mostrado a campa dos pais, um refugiado da Guerra Civil e uma lavradora castreja.

“Sou filha da guerra. Não fosse ela, eu não estaria aqui.” Sendo que esse “aqui” é um lugar chamado Além, algures no Ribeiro de Cima, em Castro Laboreiro. Uma das terras que durante o conflito da vizinha Espanha mais terá acolhido refugiados.

A guerra, garante, está marcada no coração das pessoas. “Deus nos livre dela. Eu nem gosto de falar sobre isso. Mas deixem-me contar esta que, para mim, é a história mais importante.” Bate com a mão no peito e pede novamente. Na verdade, não pede – suplica, já com o choro a embargar-lhe a voz. Tinha ela uns sete anos quando ouviu a avó gritar o nome dos dois filhos. “Ai meu Jaime, ai meu Manel!” Um chamamento desesperado que ainda parece ouvir aos 78 anos. “Deixem-me contar, que eu era canalha, mas ainda tenho isto aqui ‘atrancado’ no peito. Choro porque me lembro. Eu que sou mãe de três só posso imaginar o que ela sofreu. Já as tenho tido boas, mas nenhuma foi como aquela por que passou a minha avó, que não sabia dos filhos fugidos.”

Quando a guerra estalou em Espanha, Manuel Vasquez, pai de Lucinda, escapou para o Além, que fica depois de Rio de Ossos e antes de Terços. Manuel era de Entrimo, um município raiano da província de Ourense. E era contra Franco. “Se o apanhavam matavam-no.” Então fugiu para Portugal e o irmão Jaime para França. Manuel escondia-se onde podia, nas casas dos amigos portugueses. E corria para os montes quando recebia avisos de que as autoridades portuguesas andavam à caça de fugitivos espanhóis.

Entretanto, ele arranjou namoro com a minha mãe, uma mulher divorciada. Não sei como aconteceu porque não havia grandes explicações”, aponta Lucinda. O certo é que Ermezinda, que Lucinda descreve como “um pedaço de uma mulher”, andava “às escondidas” porque o “Manuel não podia estar em sítio fixo, não fossem os fiscais andarem por aí à procura de refugiados.” Mesmo que a maioria do povo os encobrisse, “porque a gente era humana”, todo o cuidado era pouco. Até porque entre eles havia bufos. Poucos, mas existiam.

Ermezinda e Manuel tiveram duas meninas. O irmão de Lucinda, a mais nova, morreu há pouco mais de um ano. De todo o modo, é ela que se lembra de “mais cousas”. Quando o pai emigrou para França ela tinha sete anos; a necessidade levou a que entrasse clandestino em França, onde a grande procura de mão-de-obra na construção civil proporcionava um salário fixo. Eram 850 escudos por mês, enviado pelo correio.

Lucinda foi quem “deu fôlego” à mãe até o pai regressar, tinha ela 16 anos e estava prestes a casar. No regresso, Manuel foi apanhado e ainda passou uns meses na cadeia de Ourense, até que a madrinha, com contactos, o conseguiu tirar de lá. “O meu pai tinha de tudo. A minha mãe gostava dele, embora ele por vezes bebesse uma pinguinha a mais. Se calhar pelos passados que teve, porque não foi fácil.”

Manuel morreu em 2002, a mãe em 2005. “Tenho aí um bocadinho de terreno. Uma horta que ando a trabalhar. Eu nem sou muito de falar. Mas não hay dia nem noite que esqueça o meu passado. Está todo aqui”, aponta para a cabeça. E, devagarinho, pousa a mão sobre o peito.

 

JN – NOTÍCIAS MAGAZINE

 

Texto de Filomena Abreu

Fotos de Artur Machado/Global Imagens

19/9/2018

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 2

melgaçodomonteàribeira, 09.09.23

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 casa do rodeiro, castro laboreiro

Delfina soube que os amigos estavam a salvo, mas passaram mais de 50 anos até voltar a ter notícias de Eudosia. “Um dia ela escreveu ao nosso padre Aníbal. Foi uma alegria.” Disse-lhe o clérigo. “Tive uma carta da professora que esteve com os seus pais.” Apressou-se a pedir o endereço e “no dia seguinte, no monte com o gado”, agarrou “num papel de 25 linhas e, em cima de uma das vacas”, escreveu-lhe “a dizer que era viva”.

Ainda se encontraram três vezes depois disso. Eudosia morreu em 2004, mas a história da professorinha é conhecida em cada canto de Castro. “O polícia que a prendeu, e que arranjou tudo para os meter no comboio e no barco, chegou a dizer por aqui: “Aquela gentinha, se eu tenho dado com eles antes, não tinha sofrido tanto”. E verdade se diga, os que vinham não tinham crime, fugiam das armas. Fugiram porque os tiravam de casa durante a noite para os matar. A guerra de Espanha foi a coisa mais escandalosa do mundo inteiro”, lamenta Delfina.

O conflito foi sangrento. Começou em 1936, quando os militares espanhóis se revoltaram contra o governo republicano, dando o primeiro tiro de uma guerra civil que se estendeu até 1939. Apoiantes de esquerda e de direita digladiaram-se durante vários meses nas ruas. De um lado posicionaram-se as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas ao Exército, e à Igreja. Do outro estava a Frente Popular, que formava o Governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e aos partidários da democracia.

A Guerra Civil Espanhola terminou com a vitória dos nacionalistas ou do Movimento Nacional. A República instaurada em 1931 foi esmagada e Francisco Franco passou a governar. Iniciou o franquismo, que caiu anos depois da morte do seu mentor.

Foram 39 anos de ditadura. De repressão. De gente a fugir à fome, à guerra. A saltar as fronteiras, de Norte a Sul de Portugal. E a serem acolhidos do lado de cá. À revelia de Salazar que usou as forças que tinha para apanhar e expulsar os fugidos para Espanha. Para a morte.

A população de Castro Laboreiro teve um papel fundamental na sobrevivência de grande parte dos refugiados. Os castrejos esconderam os galegos em nome de uma solidariedade fraterna sem fim. Nos relatórios da Guarda Nacional Republicana e da PVDE foi com frequência referido que havia “na Serra de Castro Laboreiro e na província da Peneda grande número de refugiados espanhóis”, sobre os quais eram aguardadas informações do paradeiro certo “para proceder às respetivas capturas”.

No entanto, as próprias autoridades reconheciam a dificuldade da missão. Devido às características do terreno mas também à proteção que muitos castrejos davam aos fugidos. Um relatório da PVDE de 27 de setembro de 1937 refere que “nas regiões montanhosas de Castro Laboreiro encontram-se escondidos nas furnas, em plena montanha, desde princípio da guerra em Espanha, bastantes espanhóis. Esta polícia tem feito algumas sortidas que, dada a configuração do terreno e uma frente de 50 quilómetros, têm sido pouco profícuas.

E em 1940, um comandante da GNR destacado para a região de Castro para acabar com a presença mais do que evidente dos refugiados, queixava-se aos seus superiores da empreitada que lhe tinha sido confiada. “Uma batida completa à serra, dada a imensidade desta, exigiria milhares de homens e, em virtude da carência de estradas e caminhos capazes e da falta de recursos, julgo-a impraticável. Enquanto aquela região, pela ausência quase completa de vias de comunicação, estiver, como está, isolada do resto do País, será sempre um possível refúgio (…). A população vive a vida mais miserável que é possível imaginar-se.”

O TIO GALEGO

Maria de Fátima Afonso nasceu depois destes relatórios mas ainda testemunhou a humildade e a pobreza do lugar. A professora Fátima, como é conhecida, mora há 63 anos na Várzea Travessa, em Castro Laboreiro. Apesar da tenra idade, recorda a existência de um tio com sotaque diferente que, só mais tarde soube, se refugiou em Portugal fugido da Guerra Civil espanhola. Era o tio Galego. Casado com a tia Rosa Pintora.

Por muito que puxe pela cabeça só se lembra do sobrenome, Ojea Blanco. “Sentava-me à beira dele enquanto ele fazia os cestos de vime, e a minha tia penteava-me com água e açúcar, para me segurar o cabelo. Viveram ali bastantes anos sem serem incomodados. Trabalhavam na agricultura, nos muitos terrenos que possuíam. “Tiveram dois filhos, com nomes espanhóis. A rapariga era Gomercinda, o rapaz Juanito.” Quando em Espanha “a coisa amainou, eles mudaram-se para Ginco do Lima, o local de onde ele era natural”. Como se conheceram ninguém sabe. Mas era natural. Viviam próximo da raia. Eram vizinhos.

A castreja não tem memória de algum dia a polícia ter andado na Várzea. “Aqui nunca veio ninguém à procura dele. Não que eu saiba.” Se tal acontecesse, o fim da história é conhecido. “Claro que a polícia andava no encalço deles, mas se passassem aqui e perguntassem se tínhamos visto alguém, a gente dizia que não e pronto”.

O tio Galego gozava de boa reputação. “Era muito boa pessoa, amigo do lugar e as pessoas gostavam dele”. O instinto protetor parecia gravado na alma de Castro. “Aqui costumava dizer-se: um por todos e todos por um. Se houvesse algum problema, a vizinhança acudia toda. Era um meio comunitário, era a civilização castreja”. Um meio habituado aos galegos e pronto a fazer frente a Franco. “Aqui houve muitos casos de espanhóis que se juntaram com portuguesas. Depois foram para Espanha. E a minha tia também foi, mas já os filhos eram crescidos. Aqui o povo protegia sem medo. Eles atravessavam e refugiavam-se aqui, por ser um sítio muito pacato. Não havia gente má, também não se saía tanto. Vivia-se naquele pedacinho”.

Além do mais, e fazendo referência ao relatório da PVDE citado há pouco, era do conhecimento comum que por ali “havia polícias bons e maus”. Todavia, os “que se deixavam comprar eram a maioria”, confirma a professora Fátima. “Eles sabiam bem que as pessoas aqui iam buscar farinha, azeite e tudo (à Galiza), porque em Castro não tinha nada.” E as autoridades também fechavam os olhos aos galegos. “Os espanhóis têm esse sentimento de gratidão por causa do acolhimento. Ficamos sempre com esta amizade.” Mais: “Até se diz que somos irmãos.”

“Onde há mulheres e homens acontecem histórias de amor e há descendência, ainda para mais entre povos que conviviam diariamente e que tanto tinham em comum”, explica Américo Rodrigues, do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro. “Por isso, para nós, a raia é um espaço de liberdade. A guerra só aproximou mais castrejos e galegos”.

(continua)

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 1

melgaçodomonteàribeira, 02.09.23

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 eudosia

 

AMORES EM TEMPO DE GUERRA

 

Texto: FILOMENA ABREU

Fotos: ARTUR MACHADO/GLOBAL IMAGENS

19/9/2018

 

Dizem que o Rodeiro, em Castro Laboreiro, é o fim do mundo. Quando acaba, acaba mesmo. Não há mais estrada. Dalí vê-se o planalto. A raia seca. É Portugal do lado de cá e Espanha do lado de lá, mas é terreno com terreno. Caminhos esbatidos para os que há séculos ali convivem. Foi por esses marcos, que não falam, que passaram contrabandistas e refugiados.

Depois da fronteira encontraram o amor, essa casa onde muitos se aninharam nos tempos da Guerra Civil espanhola. Mergulharam a cabeça da mais nova nas frias águas do rio. “Onde estão escondidos os galegos?” Nada. As agressões continuaram em casa. Pontapearam e bateram em António Rodrigues Rendeiro, o pai da pequena. “Onde esconderam os galegos?” Nada. A tortura já durava a algum tempo e continuaria, mas Eudosia Lorenzo Diz não suportava mais. Saiu do fosso cavado na pedra, sob a lareira da cozinha, onde ela e os pais se tinham refugiado, ali no Rodeiro. “Não batam mais no homem, que ele não tem culpa.”

Os métodos violentos dos agentes da PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – não constam do relatório de 17 de maio de 1938, o dia em que fugitivos espanhóis foram encontrados. Tampouco mostram o deslumbramento de João Guilherme da Cunha, o chefe do posto de Melgaço que, naquela data, tinha ido com mais seis guardas à casa dos Rendeiros com o intuito de capturar pai, mãe e filha. No caminho que fizeram a pé, pelo monte, do Rodeiro até à prisão em Melgaço, Eudosia contou ao seu carrasco a história que os tinha levado ali. Tudo tinha começado dois anos antes.

Agustin Lorenzo Puga era capador na zona de Grou e na serra portuguesa. Vivia em Fradalvite, Ourense, e era conhecido como o Masidario. Basilisa Diz Gonzales, a mulher, era lavradora. Tinham três filhos: dois rapazes e a jovem professora Eudosia.

Numa noite de junho de 1936, um mês antes do golpe de Estado falhado contra o governo da Segunda República espanhola que conduziu à Guerra Civil, o Masidario regressava a casa no seu cavalo quando foi vítima de uma tentativa de extorsão.

Armado livrou-se dos agressores disparando para o ar.

Na sequência desse acontecimento, Agustin é obrigado a entregar a pistola às autoridades municipais. Dias depois recebe em casa uma carta dos falangistas. Queriam que pagasse 50 000 pesetas, um imposto revolucionário, caso contrário ele e a família iriam sofrer. A decisão foi tomada na hora: cada um preparou uma mochila com a roupa indispensável e saíram separadamente de casa para não levantar suspeitas. O destino era a franja portuguesa de Castro Laboreiro, onde o capador tinha amigos, acumulados ao longo dos muitos anos de ofício.

Entraram clandestinamente, fugidos dos inimigos franquistas. E uma vez cá passam a ser procurados também pelas autoridades portuguesas. Os irmãos de Eudosia acabam por regressar a Espanha algum tempo depois. A professora fica com os pais. Durante dois anos vivem escondidos, com a ajuda de algumas famílias castrejas, entre as brandas e inverneiras da Serra da Peneda, os núcleos habitacionais temporários utilizados pela povoação para que o gado tivesse sempre pasto fresco, verão e inverno. Sobreviveram misturando-se. Elas disfarçadas de castrejas, com capas negras como as moças da terra, ninguém as reconhecia, nem mesmo a guarda.

Aproveitando a calmaria, Eudosia começou a ensinar clandestinamente as gentes a ler, a escrever, a fazer contas. Delfina Fernandes foi uma das alunas.

“Tinha 15 anos quando ela veio para a nossa inverneira, no lugar da Alagoa. Dormimos juntas. Ela, eu e a minha irmã. Na mesma cama, para não levantar suspeitas”.

Aos 97 anos há coisas que se esquecem, mas não o essencial. “Ensinou-me a numeração, a ler as parcelas até um milhão e a tabuada. A mim e a outros. Ela era amável. E linda. Foi por caridade que os meus pais os acolheram.” Delfina faz eco do que todos dizem por ali.

Naquela época havia muitos refugiados. Escondiam-nos como se fossem pessoas de cá. Toda a gente lhes deu abrigo. Mesmo sendo pobres dava sempre para alimentar mais um.” Porém, apesar do aparente sossego, a pressão das autoridades franquistas para que os encontrassem nunca desapareceu. Divulgaram o nome dos três como sendo gente “perigosa para a causa nacional”.

Quando a estação mudou, a família foi acolhida pelos Rendeiros, na branda do Rodeiro, e ali foram apanhados após denúncia. Delfina lembra-se bem: “Houve um gajo aqui de Castro que teve problemas com a polícia e quando foi apertado revelou a zona onde eles estavam.” Nessa altura, a PVDE aproximou-se da casa de António Domingues. Torturou a família para que confessassem o esconderijo dos galegos. “Bem que podiam matá-los que eles nunca falariam”, assegura Delfina.

O PVDE QUE SE APAIXONOU

Chegados à prisão de Melgaço, e depois de ouvir a história pela boca da Eudosia, João Guilherme da Cunha, o chefe da PVDE que os havia prendido, “já ia encantado por ela”. A bem dizer, “foi amor à primeira vista”, conta Delfina, com um sorriso maroto, explicando que a “professorinha” (como é recordada em Castro), além de “pimpolha”, sabia “falar bem”. Rendido à jovem, o guarda decide ajudar os galegos. “Se ele não fosse casado teria ficado com ela”.

Aos franquistas é comunicada a prisão dos três, mas salienta-se que “devem estar inocentes da acusação que lhes é imputada pelas autoridades espanholas”. Aos olhos do chefe do posto de Melgaço, as acusações eram fruto de “vingança pessoal”, uma vez que Eudosia declarava ter “terminado o namoro com um seu colega, professor e falangista, optando por um advogado que, segundo consta, era esquerdista” e havia entretanto morrido na frente de guerra. Por esse motivo, a família começara a ser perseguida. O relatório termina justificando que, depois de “ameaçados de morte” os galegos fugiram para Portugal.

Ainda que inocentados das acusações franquistas, Eudosia e os pais deviam permanecer em regime de prisão. Contudo, após três dias de cativeiro, mãe e filha foram transferidas para o hospital da Misericórdia de Melgaço, onde passaram a ajudar as freiras a cuidar dos doentes. Já o capador continuou preso.

Durante três meses, tudo foi feito para que obtivessem documentação para saírem do país. Os passaportes e salvo-condutos terão sido facilitados pelo cônsul francês em Lisboa. Mas antes de os meter no comboio que saiu de Melgaço rumo à capital, João Guilherme da Cunha ofereceu a Eudosia um crucifixo. Objeto que ela emoldurou no quarto, quando anos depois pôde regressar a Fradalvite. Uma vez em Lisboa, os três esperaram dez dias pelo vapor Jamique, que os levou para Casablanca, em Marrocos. O medo da morte só passou quando chegaram ao continente africano, às 19 horas do dia 11 de agosto de 1938.

 

(continua)

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CASTRO LABOREIRO DE RELANCE

melgaçodomonteàribeira, 05.08.23

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Retiro estas notas de um acervo de papéis que me restaram de uma breve estadia de três semanas em Castro Laboreiro, no ano de 1977, entre Maio e Junho, a expensas da Secretaria de Estado do Ambiente e com a colaboração da Direcção do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Devem ser entendidas como impressões onde o esforço de objectividade uma e outra vez pôde ter sido ofuscado pela emoção do seu autor. Em todo o caso, há um propósito de contribuir para o melhor conhecimento de certos aspectos da realidade camponesa do Noroeste serrano de Portugal. A traços largos, são aqui bosquejados os perfis da família e da comunidade; alguns dos factores morais e materiais que estimulam a emigração do homem; a condição da mulher que, na ausência do homem, assume sozinha as tarefas da casa e do campo; algumas transformações locais do casario e os factores que esboçam atitudes e posições hierarquizantes.

 

CASTRO LABOREIRO DE RELANCE

Luis Polanah

Minia

2ª Série, Ano II, nº 3

1979

 

CONTRABANDO DE GADO NA HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 15.07.23

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A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DE LABOREIRO

 

A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando pacificamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como sempre fezeram atee ora”.

Esta conjuntura documental remete para uma particularidade interessante, a relação entre a pastorícia e o contrabando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.

Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de fronteira, formando uma raia seca de muitos quilómetros. Lagos Trindade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pastoris” e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento de uma ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, conquanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”.

Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a muda das brandas para as inverneiras e vice-versa. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.

Existe, no entanto, um documento que pode testemunhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos montados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção. A deslocação dos gados de Castro Laboreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgada por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:

Os montados da terra sam comuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comcertam. a saber. aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”.

Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando, de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Melgaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.

Em relação aos rebanhos que vêm da Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documentais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem de seus rebanhos transumantes?

A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou outros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a passagem lícita do gado transumante, mas também para o contrabando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.

Ao longo da raia seca, o ponto nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recuada Idade Média que, vindo directamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, praticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se uma via para Melgaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de Lamas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez.

Desde o tempo do rei D. Pedro I se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, interditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alternativo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximidades do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”. Mas este autor não fez a ligação com o Porto dos Asnos. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melgaço, em 1538.

O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahi tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Milmanda que come disso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”.

O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser contrado de ambos os lados.

 

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO EM CASTRO LABOREIRO

José Domingues

Boletim Cultural nº 6

Melgaço, 2007

 

NUMA FRAGA, O COTINHO III

melgaçodomonteàribeira, 08.07.23

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(continuação)

 

O tempo foi mais amigo no regresso, algumas nuvens juntaram-se para acompanhar a descida, ameaçando borrasca para o fim do dia. Os mais velhos discutiam se choveria ou não, a jovem atreveu-se a aventar a hipótese de a chuva fazer nascer a água no coto e viu o olhar fulminante do guardião do grupo a mandá-la estar caladinha, não disse mas poderia ter-se ouvido que com coisas sérias não se brinca, ela não era nenhuma criancinha já mas também não tinha ainda idade para ter voz.

Parece que a desilusão de quem estava à espera de garrafas e garrafão de água santa foi maior do que a dos corajosos que tinham feito a subida ao monte para a ver com os próprios olhos e colhê-la com as próprias mãos. A notícia da falta de água correu pelo lugar inteiro e não faltou quem lembrasse a história de uma moça do Ribeiro, ou da Peneda, vá-se lá saber agora de onde seria. Estava a dita sentada no coto, à beira do pocinho e resolveu pentear-se. Naqueles tempos em que o tempo dedicado à higiene e embelezamento do corpo era escasso, pois a vida era só trabalho de sol a sol, da segunda a sábado, e o domingo era para ir à missa e lavar a roupa, mais trabalho portanto, as raparigas que sabiam que a aparência contava, aproveitavam muitas vezes parte do tempo em que vigiavam os animais no monte para se pentearem. Reza a lenda que a tal moçoila tirou os pentes da algibeira, desfez as tranças (naquele tempo toda a mulher honesta usava o cabelo entrançado e preso numa rosca na nuca) e começou a pentear-se. Todos sabem que para pentear uma cabeleira que raras vezes é lavada, são necessários dois pentes e água. Primeiro usa-se um pente com os dentes grossos e espaçados, um pente normal, por assim dizer. Depois, quando o cabelo já está todo desenleado, com o pente a deslizar sem resistência, utiliza-se o segundo, de dentes finos e muito próximos, havendo quem lhe chame um pente de chispar, talvez porque afugenta os piolhos, estes caem que nem chispas. Com este, para um pentear mais perfeito, convém usar água, que se espalha com a concha da mão sobre a cabeça ou se molha o pente dentro de um recipiente. Ora está-se mesmo a ver que a pastora que penteava os seus longos, muito provavelmente negros cabelos, à beira do pocinho da água santa, para não se molhar, mergulhou o pente na cova natural, deixando cair alguns cabelos. Vendo-os sobre a água e consciente de que estava a conspurcar um lugar e líquidos sagrados, depois de atar o cabelo, a rapariga afadigou-se a retirar toda a água da cova para a limpar. Para sua enorme surpresa, aquilo que ela esperava e que tantas vezes ouvira contar desde a sua meninice, não aconteceu. Em vez de o pocinho se encher de novo com a água pura e transparente que lá estava desde tempos imemoriais, começaram a saltar sapos e saramelas e ela fugiu, apavorada. Não sabiam contar como é que a água voltara depois ao local. Sabia-se, nisso ninguém de boa-fé duvidava, que por mais água que se retirasse, voltava a nascer mais e o poço estava sempre cheio e nunca secava. A convicção dos poderes daquela água fazia com que muita gente fizesse o difícil e demorado percurso para a ter em casa e dela se servir para usos mais ou menos confessáveis. Os desiludidos desta história é que não se converteram à lenda.

 

                                                                            Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Setembro 2014

 

NUMA FRAGA O COTINHO II

melgaçodomonteàribeira, 01.07.23

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(continuação)

O caminho para as águas santas coincide durante um bom bocado com uma calçada romana, pelo menos é o que o povo diz, custando a crer, porém, que os milicianos de César se dessem a tanto trabalho para abrir e manter vias por encostas tão árduas e que aparentemente não conduziam a lado algum. Sempre a subir, curvando ora à direita ora à esquerda, são vários quilómetros que fizeram suar as estopinhas a muito pastor, a muito roçador de tojos, a muito animal de carga obrigado a transportar sustento e material para lhe fazerem a cama que, depois de transformada em estrume, voltaria a carregar talvez de novo encosta acima.

A vista é quase sempre deslumbrante, ampla, alguns lugarejos distantes a lembrarem que afinal há gente por aquelas bandas, para usufruir de ares tão puros, do azul de um céu tão luminoso que, à hora de mais calor, até fere a vista, obrigando a olhar para o chão e sempre a voltar as costas ao astro rei. As peregrinas mais velhas paravam, de vez em quando, para um curto repouso mas também para relembrar peripécias juvenis que associavam ao evento. A tia Palmira pediu uma pausa maior, o seu coração não gostava de subidas, e sentaram-se. Entretanto, Justino, que se limitava a subir, um pé atrás do outro, passo a passo, sem entrar no tagarelar das mulheres, continuou com as crianças, não sem antes explicar que era só seguir a calçada e quando a mesma acabasse estaria ele à espera num altinho, não havia nada que enganar.

Durante todo o percurso não se encontra água, nem de nascente nem de corga ou poça nalgum campo de feno mais afastado das casas. O calor não apoquentava por demasia mas a dureza da caminhada convidava a beber e, golinho agora, golinho logo, a água ia descendo nas garrafas. A mãe da pequenada alertava para não beberem tudo antes de chegar, era preciso deixar alguma para o piquenique, no final da subida ia saber melhor água do que Coca-Cola, esperassem para ver.

Juntou-se o grupo todo num planalto inesperado. Quem diria que após tanto subir se iria dar a um espaço tão amplo? Havia vacas a pastar e muitos cavalos, os afamados garranos que os proprietários das aldeias vizinhas largam no monte e vivem à solta, sem lei nem dono a domá-los. Dizem que são selvagens mas pouco, não fogem quando veem humanos, limitam-se a olhar altivamente e a manter alguma distância. Às vezes, um macho, com fêmeas ou crias por perto, pode oferecer algum perigo, mas aí cumpre ao homem respeitar o animal e não invadir o seu espaço. Não há notícias significativas de ter havido ataques por parte destes animais livres e belos no seu espaço natural, embora haja sempre medos ancestrais que afastam naturalmente os menos audazes. Naquele contexto, respeitando os conselhos do homem do grupo e também das mulheres mais experientes, as crianças mantiveram-se afastadas e sossegadas, olhando de longe, admirando sobretudo as mães e os potros, que havia de vários tamanhos e cores, um bem negro, dois ou três quase brancos, vários em tom de castanho. E a caminhada prosseguiu, com algum cansaço a dar sinal, dando-se por terminada três boas horas depois de iniciada.

Subiram ao coto. Água, nem sinal dela. Se calhar não era ali, alvitravam todos os que nunca lá tinham estado. As crianças corriam, procurando a fonte encantada. Justino e Maria garantiam que o local era aquele, não havia água, tinham-se dado ao trabalho de fazer pouco dos poderes de quem podia mais do que a gente, tinham o resultado à vista: a santa secara a fonte. E mais não disse. Sentou-se e preparou-se para comer a merenda. O mesmo fizeram os outros todos. Como se de uma festa se tratasse, partilharam-se petiscos, apesar da abundância não ter nada a ver com a de uma merenda festiva. Tostadas ninguém levara mas as velhotas rememoraram tempos idos e farnéis fartos, com uma enumeração detalhada de tudo a que tinham direito numa festa como a de São Bento ou a da Senhora da Boa Vista, no tempo em que se ia comer à sombra dos carvalhos e se convidavam os passantes para partilhar um naco de carne ou um prato de aletria ou arroz doce e beber uma pinga.

A deceção foi grande mas durou pouco tempo, se calhar porque a expetativa era pequena. Surgiu do nada, logo de foi, com as lembranças de antigamente, a algazarra da pequenada e a pose diante da máquina fotográfica, que alguém levara para assinalar o momento. Algumas das fotografias do grupo que todos os participantes receberam teriam direito a moldura e a figurar em sala de visitas. Foi um dia de convívio entre pessoas reunidas com um objetivo inalcançável à partida para alguns, que a falta de fé dos mesmos fez gorar para outros. Vá-se lá saber se alguém tinha razão e quem! Mais tarde viria a constar que o guia da expedição ficou agastado, sentira-se de certo modo humilhado, daí não ter dado um pio desde que foram confrontados com a ausência de água.

 

(continua)