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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NUMA FRAGA, O COTINHO III

melgaçodomonteàribeira, 08.07.23

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(continuação)

 

O tempo foi mais amigo no regresso, algumas nuvens juntaram-se para acompanhar a descida, ameaçando borrasca para o fim do dia. Os mais velhos discutiam se choveria ou não, a jovem atreveu-se a aventar a hipótese de a chuva fazer nascer a água no coto e viu o olhar fulminante do guardião do grupo a mandá-la estar caladinha, não disse mas poderia ter-se ouvido que com coisas sérias não se brinca, ela não era nenhuma criancinha já mas também não tinha ainda idade para ter voz.

Parece que a desilusão de quem estava à espera de garrafas e garrafão de água santa foi maior do que a dos corajosos que tinham feito a subida ao monte para a ver com os próprios olhos e colhê-la com as próprias mãos. A notícia da falta de água correu pelo lugar inteiro e não faltou quem lembrasse a história de uma moça do Ribeiro, ou da Peneda, vá-se lá saber agora de onde seria. Estava a dita sentada no coto, à beira do pocinho e resolveu pentear-se. Naqueles tempos em que o tempo dedicado à higiene e embelezamento do corpo era escasso, pois a vida era só trabalho de sol a sol, da segunda a sábado, e o domingo era para ir à missa e lavar a roupa, mais trabalho portanto, as raparigas que sabiam que a aparência contava, aproveitavam muitas vezes parte do tempo em que vigiavam os animais no monte para se pentearem. Reza a lenda que a tal moçoila tirou os pentes da algibeira, desfez as tranças (naquele tempo toda a mulher honesta usava o cabelo entrançado e preso numa rosca na nuca) e começou a pentear-se. Todos sabem que para pentear uma cabeleira que raras vezes é lavada, são necessários dois pentes e água. Primeiro usa-se um pente com os dentes grossos e espaçados, um pente normal, por assim dizer. Depois, quando o cabelo já está todo desenleado, com o pente a deslizar sem resistência, utiliza-se o segundo, de dentes finos e muito próximos, havendo quem lhe chame um pente de chispar, talvez porque afugenta os piolhos, estes caem que nem chispas. Com este, para um pentear mais perfeito, convém usar água, que se espalha com a concha da mão sobre a cabeça ou se molha o pente dentro de um recipiente. Ora está-se mesmo a ver que a pastora que penteava os seus longos, muito provavelmente negros cabelos, à beira do pocinho da água santa, para não se molhar, mergulhou o pente na cova natural, deixando cair alguns cabelos. Vendo-os sobre a água e consciente de que estava a conspurcar um lugar e líquidos sagrados, depois de atar o cabelo, a rapariga afadigou-se a retirar toda a água da cova para a limpar. Para sua enorme surpresa, aquilo que ela esperava e que tantas vezes ouvira contar desde a sua meninice, não aconteceu. Em vez de o pocinho se encher de novo com a água pura e transparente que lá estava desde tempos imemoriais, começaram a saltar sapos e saramelas e ela fugiu, apavorada. Não sabiam contar como é que a água voltara depois ao local. Sabia-se, nisso ninguém de boa-fé duvidava, que por mais água que se retirasse, voltava a nascer mais e o poço estava sempre cheio e nunca secava. A convicção dos poderes daquela água fazia com que muita gente fizesse o difícil e demorado percurso para a ter em casa e dela se servir para usos mais ou menos confessáveis. Os desiludidos desta história é que não se converteram à lenda.

 

                                                                            Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Setembro 2014

 

NUMA FRAGA O COTINHO II

melgaçodomonteàribeira, 01.07.23

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(continuação)

O caminho para as águas santas coincide durante um bom bocado com uma calçada romana, pelo menos é o que o povo diz, custando a crer, porém, que os milicianos de César se dessem a tanto trabalho para abrir e manter vias por encostas tão árduas e que aparentemente não conduziam a lado algum. Sempre a subir, curvando ora à direita ora à esquerda, são vários quilómetros que fizeram suar as estopinhas a muito pastor, a muito roçador de tojos, a muito animal de carga obrigado a transportar sustento e material para lhe fazerem a cama que, depois de transformada em estrume, voltaria a carregar talvez de novo encosta acima.

A vista é quase sempre deslumbrante, ampla, alguns lugarejos distantes a lembrarem que afinal há gente por aquelas bandas, para usufruir de ares tão puros, do azul de um céu tão luminoso que, à hora de mais calor, até fere a vista, obrigando a olhar para o chão e sempre a voltar as costas ao astro rei. As peregrinas mais velhas paravam, de vez em quando, para um curto repouso mas também para relembrar peripécias juvenis que associavam ao evento. A tia Palmira pediu uma pausa maior, o seu coração não gostava de subidas, e sentaram-se. Entretanto, Justino, que se limitava a subir, um pé atrás do outro, passo a passo, sem entrar no tagarelar das mulheres, continuou com as crianças, não sem antes explicar que era só seguir a calçada e quando a mesma acabasse estaria ele à espera num altinho, não havia nada que enganar.

Durante todo o percurso não se encontra água, nem de nascente nem de corga ou poça nalgum campo de feno mais afastado das casas. O calor não apoquentava por demasia mas a dureza da caminhada convidava a beber e, golinho agora, golinho logo, a água ia descendo nas garrafas. A mãe da pequenada alertava para não beberem tudo antes de chegar, era preciso deixar alguma para o piquenique, no final da subida ia saber melhor água do que Coca-Cola, esperassem para ver.

Juntou-se o grupo todo num planalto inesperado. Quem diria que após tanto subir se iria dar a um espaço tão amplo? Havia vacas a pastar e muitos cavalos, os afamados garranos que os proprietários das aldeias vizinhas largam no monte e vivem à solta, sem lei nem dono a domá-los. Dizem que são selvagens mas pouco, não fogem quando veem humanos, limitam-se a olhar altivamente e a manter alguma distância. Às vezes, um macho, com fêmeas ou crias por perto, pode oferecer algum perigo, mas aí cumpre ao homem respeitar o animal e não invadir o seu espaço. Não há notícias significativas de ter havido ataques por parte destes animais livres e belos no seu espaço natural, embora haja sempre medos ancestrais que afastam naturalmente os menos audazes. Naquele contexto, respeitando os conselhos do homem do grupo e também das mulheres mais experientes, as crianças mantiveram-se afastadas e sossegadas, olhando de longe, admirando sobretudo as mães e os potros, que havia de vários tamanhos e cores, um bem negro, dois ou três quase brancos, vários em tom de castanho. E a caminhada prosseguiu, com algum cansaço a dar sinal, dando-se por terminada três boas horas depois de iniciada.

Subiram ao coto. Água, nem sinal dela. Se calhar não era ali, alvitravam todos os que nunca lá tinham estado. As crianças corriam, procurando a fonte encantada. Justino e Maria garantiam que o local era aquele, não havia água, tinham-se dado ao trabalho de fazer pouco dos poderes de quem podia mais do que a gente, tinham o resultado à vista: a santa secara a fonte. E mais não disse. Sentou-se e preparou-se para comer a merenda. O mesmo fizeram os outros todos. Como se de uma festa se tratasse, partilharam-se petiscos, apesar da abundância não ter nada a ver com a de uma merenda festiva. Tostadas ninguém levara mas as velhotas rememoraram tempos idos e farnéis fartos, com uma enumeração detalhada de tudo a que tinham direito numa festa como a de São Bento ou a da Senhora da Boa Vista, no tempo em que se ia comer à sombra dos carvalhos e se convidavam os passantes para partilhar um naco de carne ou um prato de aletria ou arroz doce e beber uma pinga.

A deceção foi grande mas durou pouco tempo, se calhar porque a expetativa era pequena. Surgiu do nada, logo de foi, com as lembranças de antigamente, a algazarra da pequenada e a pose diante da máquina fotográfica, que alguém levara para assinalar o momento. Algumas das fotografias do grupo que todos os participantes receberam teriam direito a moldura e a figurar em sala de visitas. Foi um dia de convívio entre pessoas reunidas com um objetivo inalcançável à partida para alguns, que a falta de fé dos mesmos fez gorar para outros. Vá-se lá saber se alguém tinha razão e quem! Mais tarde viria a constar que o guia da expedição ficou agastado, sentira-se de certo modo humilhado, daí não ter dado um pio desde que foram confrontados com a ausência de água.

 

(continua)

 

NUMA FRAGA, O COTINHO I

melgaçodomonteàribeira, 24.06.23

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UM PASSEIO À INFÂNCIA

O COTINHO DAS ÁGUAS SANTAS

(À TIA PALMIRA)

 

Desde sempre que se comentava que fulana e sicrana usavam a água do cotinho das águas santas para os seus “trabalhos”, sobretudo depois de uma ida à bruxa. Ninguém sabia ao certo o que faziam, quando o faziam e o fito com que se davam ao trabalho de deixar certas marcas pelas encruzilhadas do lugar, em certas noites de lua cheia. Mas que apareciam, apareciam e ninguém ficava muito à vontade quando encontrava sangue, borralha, penas de galo, pelos de gato e sabe-se lá que mais que o comum dos mortais desconhece, sobretudo quando há uma grande dose de ceticismo à mistura.

A certeza, dita e redita pelos próximos da tia Maria Santiago, de que nascia água no alto de uma fraga e que, depois de retirar todo o líquido do pocinho que se formara no cimo do penhasco, a cova volta a encher-se, passou para o imaginário de todas as crianças que o foram nos anos cinquenta e sessenta do século XX. A fraga onde tal mistério, vulgo milagre, se podia comprovar ficava ali ao lado, acessível a qualquer mortal com pernas para uma boa caminhada, quase sempre a subir, duas horas bem andadas, três no máximo, havendo crianças ou cansados, quiçá doentes do coração, a retardar o passo.

Sabendo que havia interessados em fazer uma excursão até ao cotinho, o Justino, do alto do seu saber de experiência feito, pois já lá tinha ido mais do que uma vez, prontificou-se a mostrar o caminho. Algo surpreendente esta disponibilidade vinda de alguém tido por pouco amante de conviver, cioso da sua distância, com um espaço vital bem mais amplo do que o da maioria dos vizinhos. Era de aproveitar, pois se Justino se prestava a tal prova era porque o assunto era sério. Combinou-se dia e hora, acertaram-se pormenores, como o piquenique a fazer no local, a distribuição dos participantes pelos carros que os levariam até ao ponto de partida, a fora de saída, que seria bem cedinho para evitar subir pelo calor que ainda se fazia sentir bem forte naquele início de setembro.

O grupo era seleto, escolhido entre próximos, a bem dizer íntimos, tudo família, à exceção do guia e de uma amiga. Três mulheres mais velhas, uma de meia idade mais os seus rebentos e uma primita, jovem na casa dos vinte e tais, todos levados pelo sentido de orientação do Justino e da Maria. Numa terra onde a água pelos montes só se faz sentir com as chuvas de setembro, acautelaram-se vários caminhantes de que não faltasse o precioso líquido nos farnéis. Que não seria preciso, ia-se ao encontro da água, para quê levá-la? Levasse-se antes vinho ou coca-cola para a merenda, que água não haveria de faltar no cimo da fraga. Pelo sim, pelo não, várias garrafas de vários tamanhos foram cheias na fonte, com crianças no grupo, mais valia prevenir. O Justino não pareceu gostar muito da falta de fé de quem assim ousava contrariar o seu bom senso mas nada disse, decidido a gozar o proveito de homem de poucas falas como era tido. Guardava-se para a chegada à fraga e fazer ver que os tolos é que desconfiam, mulheres inteligentes deviam ser menos dadas a essas fantasias de ver para crer, se um homem diz que é verdade é porque é, ele sabia do que falava. Certezas destas eram difíceis de rebater, mas pelo sim pelo não as garrafinhas de água seguiram em várias mochilas de grandes e pequenos.

A partida foi acompanhada por alguns curiosos, melhor dizendo, curiosas, que não se atreviam a participar na aventura, uma subida tão custosa não era para joelhos que rangiam e já habilitados a infiltrações para combate às dores nem para noventa ou cem quilos em cima de um metro e cinquenta e umas perninhas de macieira, que é o mesmo que dizer uns canivetes ou uns paus de virar tripas, dependendo da região onde se faz jus à comparação. Como não podiam ir mas ambicionavam a aguinha santa, só lhes restava pedir que lhes trouxessem uma garrafinha, ou um garrafão de dois litros, como queria a Alzira, que essa nunca foi avara a pedir. Dizem que hoje também não é pobre a dar e até se comenta, com alguma surpresa, que dá mais do que alguma vez se esperou dela, fazendo jus ao dito o liberal busca a ocasião para dar. Mudam-se os tempos, mudam-se as condições, mudam-se os hábitos.

 

(continua)

A CEMA E O BALTAZAR

melgaçodomonteàribeira, 21.01.23

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XVIII

FINAL

O Manel do Cerinha pelou oito meses de cadeia. Não conseguiu esquivar-se da acusação de defloramento da namorada que abandonou. Os rapazes comentavam estes casos como advertência uma vez que todos já namoravam.

- Quando chega certa hora a gente perde as estribeiras e esquece as consequências que virão, dizia o Zeca Chatice.

- Já dizia o Tito Betrano, o moleiro, que tinha uma rebanhada de filhos:

- O Timóteo contava, na alfaiataria do Mundo da Feira Nova, que, na hora da chegada, fez uma marcha-a-trás tão violenta que caiu escada abaixo.

E como o tema agradava àquele grupo de rapazes, o Manel Félix lembrou o caixeiro-viajante que volta e meia aparecia em Melgaço vendendo os produtos de que era representante. Hospedava-se na Pensão Braga. Numa das hospedagens ajeitou-se com a Cema, bonita rapariga com 16 anos, que trabalhava como arrumadeira, filha da cozinheira. O pai da rapariga deu parte no tribunal. O Baltazar foi chamado a dar explicações; como era casado, para evitar repercussão que lhe causaria transtornos familiares e comerciais, não tendo como negar o sucedido, optou pela conciliação proposta pelo delegado. Pagou a astronómica importância (para o tempo) de vinte contos (20.000$00).

O caso serviu de tema para a paródia que o Vasco incluiu no teatro que estava ensaiando:

e fazem os homens tontos.

Cuidado seu Baltazar

não se queira arruinar

que o preço são vinte contos.

 

Nesta mesma revista teatral parodiava, também, o retratista Dom Francisco da Feira Nova que descobriu o Scheelita no monte da Gavieira, e a piscina que o Emiliano queria fazer no regato do Rio do Porto.

* * *

Estes “nada” que aconteciam em Melgaço, no ponto de vista dos jovens, sucediam-se merencoriamente em relação ao cinema que em uma hora exibia muitas vidas e muitos acontecimentos entrelaçados.

 

“Que raio de terra onde nada acontecia, comentavam!”

 

                                                                  MANUEL FÉLIX IGREJAS

 

Publicado no jornal “A voz de Melgaço”

1 de Abril de 2015

CONVERSA DE RAPAZES

melgaçodomonteàribeira, 03.09.22

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XVI

Outra testemunha prestou depoimento sobre a conduta do Lili. Contou ao Juiz que o rapaz havia comprado um Cocciolo, bicicleta motorizada, mas usava-a pedalando.

Na saída da sala do tribunal, aquele grupo de rapazes ia discutindo as iluminação pública, no cruzamento da igreja, da avenida e da rua Direita, bem no meio da rua, como sempre acontecia quando o tempo permitia, aí ficaram longo tempo.

O Zé Nabeiro, o Zeca Chatice, o João Castro, o Norberto, o Zeca, o João Pires, o Manel Félix e o Neca Pires.

- Mas que raio, afinal, julgamento é isso? Dizer o que todo o mundo sabe do Lili? O Juiz só não sabe se não quiser! Quem assim falava era o Zeca Chatice que se mostrava confuso.

- O Lili nunca fez mal a ninguém. É meio esquisito, sim, mas que crime ele cometeu?

E dizendo isto, o Zé Nabeiro demonstrava uma certa simpatia que no fundo todos nutriam pelo Teodorico.

O barulho acontecido no final do desafio de futebol no domingo passado tomou conta da conversa dos rapazes.

- O Gorines ameaçou vingar-se de cada um. Ele é vingativo!

- Coitado do Miro, vai amanhã para Coimbra! Só lá vão conseguir concertar-lhe a cara. A pedrada abriu-lhe todo o lado do rosto.

- Foi o Ranilha no desespero do abafamento. Rolaram no chão, o Miro apertava-lhe o pescoço, ia-o esganar, estendeu o braço achando aquele pedregulho…

- Estavam todos bebendo na barraca da Isolina quando surgiu o assunto do contrabando.

- São todos frotistas, às vezes negoceiam juntos.

- Por isso mesmo é que o Zé Corujo deu o murro na cara do Gorines acusando-o de roubo.

- Sem mais nem menos todos se agrediram. Foi soco e pontapé para todo o lado.

- A gritaria das mulheres parecia o fim do mundo.

- Eram uma dez as que cuidavam das três barracas.

- O Ná não apanhou porque a mulher, a Violeta, mais a Peta, o seguraram, arrastando-o para longe do barulho.

- Nós não vimos tudo. Depois do jogo do Rápido contra o Monçanense ficamos no campo treinando e só depois demos pela coisa com os gritos das mulheres.

- Eu vi bem quando o Ranilha apanhou a pedra já estava sufocado.

- Todos bateram e apanharam.

- Homens maduros, chefes de família, colegas e amigos de todos os dias, como se meteram numa confusão daquelas?

- Devem ter bebido demais…

- Bebem bastante todos os dias e nunca aconteceu daquilo.

- Tu é que não sabes! Nunca chegaram àquilo mas em todas as festas tem zaragata. Na festa de Santa Rita andaram aos empurrões.

- Vós soubestes que o Manel da Mena viu na Central a Biti beijando o Vasco?

- Aquele namoro está adiantado.

- Outro dia a Toupeira disse-lhe que não ia conseguir desflorar a Biti, virgem com mais de trinta anos…

- Engraçado foi o Tostas: disse que o Vasco ia ter de escachar uma acha.

- É mesmo! A Biti é tão magra que parece uma acha de lenha.

- O Fernando do Ferreirinho emprenhou a Maria do Manel da Chica. Soube-se esta semana. A rapariga não teve mais como esconder a barriga.

- Eram namorados há mais dum ano, isso ia acontecer.

- Só têm que casar!

- Pois sim! Dizem que desde que ela lhe falou na prenhez ele afastou-se. Não os viram mais namorando.

- Ele tinha outra namorada em S. Martinho, filha de uns lavradores ricos e agora só se vê com essa.

- O Manel da Chica e a mulher são humildes jornaleiros… o Fernando é empregado do primo e não ganha para manter uma casa.

- No domingo vai passar um filme de cow-bois sensacional, vou ver se consigo os cinco escudos para o bilhete.

- Eu também! Este aqui é que vê tudo o que é fita, de graça.

- Que grande favor… também pinto de graça os cartazes para o senhor Hilário. O do filme “Deus lhe Pague” levou-me o dia inteiro.

A conversa daquele grupo de rapazes, colegas da mesma idade, abordava todos os assuntos. Quando estes escasseavam os diálogos iam arrefecendo e sempre um deles arrematava com a “filosófica” sentença reclamatória:

- Que raio de terra onde nunca acontece nada!

O Manel Carrapito, metido a sabido, aproveitava para encaixar uma frase que julgava erudita e tinha lido em algum lado:

- Aqui não se vive, vegeta-se!

Coitada daquela rapaziada que se deixava influenciar pelo cinema americano que lhe impingia nos filmes de aventura, nas comédias musicais e até nos romances melodramáticos, um estilo de vida requintado, cheio de felicidades, com acontecimentos de prazer, alegres, coloridos, recheados de abastança. Aquilo sim, é que era estilo de vida!...

O cinema, um dos poucos passatempos da terra e fonte de cultura alienígena, acontecia uma vez por semana, aos domingos.

Nesta altura a energia eléctrica, que continuava a vir de Espanha, era mais constante; não se verificavam tantas interrupções como no tempo de cinema do Pires. O senhor Hilário reformara o salão Pelicano, dotara-o de moderna aparelhagem e assumira a exibição dos filmes. Estes, os filmes, eram noventa por cento americanos. Em Portugal já se faziam filmes de total agrado da população, porém, as empresas distribuidoras só alugavam filmes nacionais para cada dez filmes estrangeiros. As pessoas mais simples não discorriam que o que o cinema mostrava era fictício, mentira.

O que causava reboliço entre a rapaziada eram os filmes históricos e de guerra; pelo jornal da tela ficavam sabendo o que acontecia nos países mais “evoluídos”, coisas fabulosas ou importantes que comparadas com o bucolismo da terra achavam que ali não acontecia nada.

 

                                                                                      Manuel Igrejas 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

FÁBRICA DE PIROLITOS

melgaçodomonteàribeira, 12.02.22

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

 

VIII

 

O julgamento do Lili ainda estava por marcar. Talvez o Delegado do Procurador da República e o próprio Juiz, achassem de somenos importância aquele caso e o protelassem sine-die.

Enquanto isso outro momentoso caso ia a julgamento. Um conhecido industrial, rapaz lisboeta casado com uma moça da terra, convenceu o sogro, industrial de panificação, a montar uma fábrica de gasosas, refrigerante a que davam o nome de pirolito devido ao formato da garrafa e processo de tampa, esfera de vidro que, com a pressão do gás da bebida, era impelida contra uma arruela de borracha no gargalo, interiormente. O cidadão, embora casado, era namorador e foi acusado de desflorar uma rapariga menor de idade. Depois dos trâmites legais, foi indiciado e levado a julgamento. Na noite em que o caso ia ser debatido em plenário o auditório do tribunal esteve repleto. Um caso daqueles era assunto que daria debates entre os advogados e, logicamente, detalhes escabrosos viriam à baila. A rapaziada estava interessada nos detalhes que lhes dariam certa excitação. Verificando que a assistência era formada, na maior parte, por jovens, quase crianças, o juiz mandou que os oficiais de diligências fizessem uma vistoria e retirassem os menores de 21 anos. Formou-se tremendo burburinho, raparigas escondendo-se entre os bancos para passarem despercebidas. O João Antí, um dos oficiais fazia vista grossa e deixou a Rosinda amochada. Foi uma sessão ao gosto de povo que para tal fora ali. O advogado de acusação explorou ao máximo os lances de sexualidade que o acusado teria feito contra vontade da estrupada. Por sua vez, o advogado de defesa atenuava as circunstâncias e incriminava a desflorada como provocadora da situação. Por ser hora tardia, o julgamento foi adiado.

 

                                                                     Manuel Igrejas

Publicado em A Voz de Melgaço

O ÚLTIMO FRADE

melgaçodomonteàribeira, 16.10.21

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 igreja de rouças

 

O ÚLTIMO FRADE EGRESSO DE MELGAÇO

(ÓBITO EM 9 DE JULHO DE 1898)

 

Depois de me ter jubilado, venho dedicando parte do tempo a ler jornais da minha região – o Alto Minho -, nomeadamente os que marcam a passagem do século XIX para o século XX, por serem aqueles onde chega a minha memória, poe força do convívio que fui tendo com familiares ao longo dos 66 anos que já levo de vida.

Foi nessas leituras que na edição nº 634, de 17 de Julho de 1898, do jornal de Monção O Independente, cujo director era o Padre Simão d’Abreu e Mello, descobri uma notícia relacionada com Melgaço, cujo conhecimento me parece interessante para os leitores deste jornal.

Vem noticiado o seguinte:

“Dizem de Melgaço

Depois de prolongado sofrimento, faleceu no dia 9 do corrente (leia-se: mês de Julho de 1898), pelas 7 horas da manhã, na sua casa de Crasto, freguesia de Rouças, deste concelho, o Reverendo António Joaquim de Neiva, último frade que existia por estes sítios.

Nasceu em 14 de Julho de 1813, contando por isso a bonita idade de oitenta e cinco anos.

Principiou os seus estudos no Convento de Santo António, desta vila, passando como noviço da Ordem para o Convento de Caminha, onde mais tarde professou.

Em 1834, sendo expulsos os frades, dirigiu-se este e outros a Lisboa, tomando, perante o Patriarca ordens de subdiácono e diácono com missa em 1838.

Pela vocação que tinha para o canto-chão e como pedinte, foi admitido na Ordem de Santo António e depois que regressou à casa paterna deu-se à execução de música de capela, instruindo com as suas lições muitos indivíduos do seu tempo.

Teve sempre exemplar comportamento, quer como padre quer como frade, sendo além disso protector exímio de seus irmãos, sobrinhos e demais parentes, a quem deu também conselhos paternais.

E há vinte e tantos anos que padecia, quase como mártir, duma chaga que se lhe abriu numa perna, a qual, fechando-se há meses, originou pouco depois um insulto qualquer que lhe pôs termo à vida no dia já indicado”. Em apenas sete parágrafos vêm relatados factos que marcaram uma época de contornos até então inimagináveis para a Igreja e para a cultura do nosso país.

Temos, pois, uma notícia do dealbar do século XIX, que recorda tempos difíceis, que foram os que se seguiram às Invasões Francesas e às ideias liberais que então proliferaram pela Europa, com muito de positivo e alguns resquícios negativos.

Deparámos, então, com os estudos dum noviço de Roussas no Convento de Santo António. O seu posterior professar numa ordem religiosa, que o levou ao concelho de Caminha, junto à foz do Rio Minho. A expulsão dos frades e o seu regresso como egresso à casa paterna. A sua readaptação ao quotidiano familiar e, no caso, a subsequente martirização até ao finar dos seus dias, numa vida que durou 85 anos.

Tenho dúvidas quanto à localização do referido Convento de Santo António. Será em Melgaço ou em Monção? A notícia, proveniente de Melgaço, mas publicada num jornal de Monção diz expressamente “Convento de Santo António, desta Vila”. Em Melgaço desconheço a existência de um Convento de Santo António. Em Monção o Convento dos Capuchos chama-se de S. Francisco, mas também é referido como de Santo António.

Nunca me tinha interessado particularmente pela vida dos egressos, até que, algum tempo atrás, fiquei a saber que dois meus antepassados – os franciscanos Frei Manuel e Frei José -, tinham sido acolhidos na Casa e Quinta do Mosteiro de S. João de Longos Vales, concelho de Monção, propriedade dos meus trisavôs maternos, advogado e juiz substituto Dr. José António Pereira d’Antas Guerreiro e sua mulher D. Maria Rita Monteiro, na sequência de uma convenção antenupcial por eles lavrada, no ano de 1852.

Procurei informação sobre o fim das ordens religiosas, da qual tinha vago conhecimento e pude apurar o que passo a cantar, com todas as insuficiências de que um leigo se pode fazer acompanhar.

A extinção das ordens religiosas em Portugal começou a ser praticada no reinado de José I de Portugal e governação do Marquês de Pombal.

Na sequência de um atentado de que foi alvo, o Rei, por Alvará de 3 de Setembro de 1759 decretou a expulsão dos Jesuítas do País e mandou confiscar os seus bens, que passaram a incorporar a Fazenda Nacional.

Decorridos alguns anos, essa decisão, de expulsão da Companhia de Jesus, foi confirmada pelo Príncipe-Regente D. João, por Alvará de 1 de Abril de 1815.

No contexto da Guerra Civil Portuguesa – 1828-1834 - , liberais e absolutistas assumiram atitudes diferentes quanto a essa questão religiosa, em função da instabilidade reinante e do permanente conflito de forças.

Em Portugal Continental, D. Miguel I autorizou no ano de 1829 o retorno dos religiosos da Companhia de Jesus, que foram instalar-se no Colégio das Artes, em Coimbra em 1832.

Nos Açores, D. Pedro, 16º duque de Bragança, aboliu as ordens religiosas no arquipélago por Decreto de 17 de Maio de 1832.

Com o fim do conflito e a vitória dos Liberais, a partir de 1834, foi confirmada a expulsão dos Jesuítas e das demais ordens religiosas.

No contexto que se seguiu à assinatura da Convenção de Évora Monte, o então Ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, redigiu o texto do Decreto de extinção das ordens religiosas que, assinado por Pedro IV de Portugal, embora apresente a data de 28 de Maio, só veio a ser publicado em 30 de Maio de 1834.

Por esse diploma, foram declarados extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares (artº 1º), sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional (artº 2º), à excepção dos vasos sagrados e paramentos que seriam entregues aos ordinários das dioceses (artº 3º). O diploma afirma ainda que seria concedida uma pensão anual aos religiosos que não obtivessem benefício ou emprego público (artº 3º), o que entretanto permaneceu letra morta. Esta lei valeu a Joaquim António de Aguiar a alcunha de “Mata Frades”.

Porém, este processo levou apenas à extinção imediata das ordens religiosas masculinas. As ordens religiosas femininas mantiveram-se, não podendo contudo admitir noviças.

A extinção final das ordens religiosas femininas só foi regulada em 1862, ficando então assente que o convento ou mosteiro seria extinto por óbito da última religiosa, sendo os bens da instituição incorporados na Fazenda Nacional.

Foi assim que a maior parte dos frades e freiras das ordens extintas regressaram às suas terras e casas de família, ficando conhecidos por egressos.

A título de exemplo e a propósito da extinção das ordens religiosas femininas, junto a capa da revista bracarense Ilustração Catholica, nº 194, de 17 de Março de 1917, que nos mostra “D. Roza de Jesus, última noviça das religiosas carmelitas do extincto convento das Therezinhas, em cujo edifício ainda vive, o qual hoje é propriedade do Azylo de S. José”.

Portanto, esta freira, que já devia ter uma avançada idade em 1917, foi a última noviça que viveu no extincto Convento das Teresinhas de Braga, que ainda hoje continua a existir com o nome de Asilo de S. José, funcionando como lar de terceira idade.

 

José António Barreto Nunes

Braga, 13 de Abril de 2015

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Maio de 2015

 

UM BENEMÉRITO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 19.06.21

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casa amadeu abílio lopes

PELO HOSPITAL

(A Voz de Melgaço, 15. 11.1963)

NO DIA DE REIS… TODO O CONCELHO PELO HOSPITAL!

No passado número do nosso jornal, lançámos a ideia dum novo cortejo para o nosso hospital. Faz-se por necessidade. Com a compra dos terrenos, para a construção do novo hospital, ficamos sem reservas, sem nada, para se acudir aos nossos doentes. E temos de contar com a construção do novo hospital, que esperamos se comece no próximo ano.

É uma batalha, em que todos os melgacenses temos de entrar. São precisos uns 1 000 contos. E para todos nós é tarefa que não custa.

Já não nos falta exemplos dignos de imitar-se, o do Sr. Amadeu Abílio Lopes e de Sua Ex.ma Esposa, de Chaviães, com a sua valiosíssima oferta de 350 000$00.

Nem nos faltam já dedicações, dignas de nota, graças a Deus. Mas é esta uma batalha em que todos, mas todos, temos de intervir.

Ninguém será contra. Quem o havia de ser, entre os melgacenses? – Quem? Se esta obra se faz para todos nós?! – Sobretudo, para aqueles que não possuem os meios de que nós podemos dispor, os pobrezinhos.

Está posto, mais uma vez, à prova o nosso bom desejo de servir a nossa terra. Aos Melgacenses, a todos, se pede nos ajudem. Se algum houvesse, não sabemos que o haja, mais desanimado, por favor, não desanime ninguém.

Vamos pois começar com os trabalhos.

Deus o quer! – É pela nossa terra.

Carlos

PS: No passado número do jornal, veio uma gralha, que nos prejudicou bastante. E assim, de Lisboa só nos deram para a compra dos terrenos, 50 000$00. E, nas vésperas da construção do novo hospital, dão-nos menos 18 000$00, para sustentar os nossos pobres doentes. Mas se todos os melgacenses nos ajudarem, tudo se fará.

Carlos

 

Padre Carlos Vaz: Uma vida de Serviço

Edição: Carlos Nuno Salgado Vaz

Coordenadores: Carlos Nuno Salgado Vaz

                           Júlio Nepomuceno Vaz

Braga

Julho de 2010

pp. 532,533

O CARRO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.09.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XI

O carro dos bombeiros, em seus passeios dominicais, não estava no seu posto, quando foi preciso. Aquilo revoltou o povo e a partir dali não mais aconteceram aquelas viagens recreativas.

Fundada em 1927 a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Melgaço teve destacada actuação em 1930, quando ficou conhecida e laureada em Portugal e Espanha.

Do outro lado do rio Minho, em frente a Melgaço, na Espanha, o comboio expresso Madrid-Vigo, descarrilou. O acidente foi presenciado pelos curiosos que gostavam de ver passar aquele bonito comboio. Foi dado o alarme e logo o sino da matriz tocou a rebate, convocando bombeiros e povo. De barco e a nado, atravessaram o rio, socorrendo os acidentados e resgatando seus pertences que boiavam rio abaixo. Foi um momento épico.

Os jornais espanhóis e portugueses deram grande destaque ao acontecimento. Elogiando os bombeiros de Melgaço. A organização nacional dos bombeiros, de Lisboa, mandou um instrutor, algum material e o povo custeou a compra de uma bomba para a recente fundada organização, carente de recursos técnicos, mas recheada de altruísmo.

A bomba era o que de melhor existia na época, de tracção braçal, montada em uma espécie de carroça, para ser puxada por muares, mas que sempre foi impulsionada pelas pessoas, puxando ou empurrando.

Na mesma época, o Simão Araújo, filho da terra, que emigrara para o Brasil e aí fizera fortuna, já tinha construído o seu luxuoso palacete e tinha na garagem um automóvel Buick, seis cilindros, modelo 1928. Como a maior parte do ano esse carro ficava inactivo, o Simão Araújo, empolgado com a bravura dos bombeiros da sua terra, deu-lhes esse automóvel.

Além de abnegados soldados da paz, revelaram-se, esses rapazes melgacenses, primorosos artífices.

Transformaram o luxuoso carro de passeio em sensacional carro de bombeiros. Retirada a carroçaria, adaptaram ao chassi seis poltronas com estrutura em ferro, um grande cilindro central, elevado, destinado a conter os artigos de primeiros socorros. Machados e picaretas embutidos no chassi e duas grandes roldanas com as mangueiras. Na frente, o banco do motorista era corrido onde cabiam mais três pessoas, nos estribos laterais, em pé, ia o resto da guarnição. No cimo do capo uma sineta avisava a sua aproximação, o que seria desnecessário uma vez que para maior desenvolvimento retiraram o escapamento e os seis cilindros do poderoso motor fazia um barulho ensurdecedor. Haviam reforçado os feixes de molas para suportar o grande peso. Pintado todo em vermelho-sangue com os dizeres em branco nas laterais do cilindro: VIDA POR VIDA. Era uma jóia de artesanato sem utilidade. Deveria ter-lhe sido adaptada uma bomba a gasolina, o que nunca aconteceu.

O belo carro dos bombeiros era só utilizado em desfiles cívicos de quando em quando e já nos anos quarenta foi a Lisboa buscar o cadáver do Sr. Lascasas para sepultar em Melgaço.

Para não prejudicar o seu funcionamento era necessário interromper seu longo repouso, com algumas saídas. Era esse o argumento apresentado por um grupinho que, aos domingos, solicitava autorização para um passeio. O Professor Abílio Domingues, que por imposição era o Presidente da Câmara, também era o comandante dos bombeiros, pessoa cordata que exercia cargos que não pedira e para os quais não tinha a mínima aptidão, acedia.

Um domingo, na estrada da Orada, na curva da fonte da Assadura, um automóvel colheu um rapaz, que, inconsequentemente, rodava em bicicleta, em grande velocidade, pelo meio da estrada. Accionaram os bombeiros para atender ao sinistro e transportar o acidentado para o hospital. Os bombeiros estavam merendando em S. Gregório, onde tinham ido desenferrujar o bonito carro vermelho. O rapaz faleceu.

 

                                                                                  Manuel Igrejas

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

 

 

OS AMORES DO VASCO

melgaçodomonteàribeira, 07.07.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XIII

Nos ensaios do teatro a rapaziada cochichava sobre o namorico do Vasco. Viúvo já há uns anos, com poucas sequelas do tempo da prisão, voltara a ser um homem interessante. Empregado na Central, serviço de camionagem em combinação com o caminho de ferro, que só chegava a Monção, tinha uma situação desafogada, tanto mais que, prevalecendo-se do seu cargo, facilitava os negócios aos contrabandistas.

Riam à socapa achando algo ridículo. A Biti, solteirona, loura, elegante, pela sua figura esbelta, pertencente à burguesia que se arvorava em fidalguia, portanto, tida como socialmente superior, não daria confiança a alguém de passado obscuro. Seria mais uma cena teatral na imaginação do Vasco, diziam.

O espectáculo foi encenado com o sucesso esperado, duas representações apenas. Como das outras vezes, a vaidade pessoal sobrepunha-se ao grupo, por dá cá aquela palha alguns elementos se afastavam desorganizando todo o elenco.

O namoro do teatrólogo foi confirmado. A Beatriz Ribeiro Lima, em horas calmas de expediente visitava a Central e, segundo os bisbilhoteiros, ficavam aos beijinhos. A Ana Toupeira, contemporânea do Vasco, para o arreliar, dizia-lhe: “estás velho não dás mais nada”.

 

Publicado em A Voz de Melgaço

 

                                               Manuel Igrejas