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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

OLINDA CARVALHO, UMA GRANDE CONTADORA DE HISTÓRIAS II

melgaçodomonteàribeira, 04.03.17

173 - castro.JPG

 

(continuação)

 

Estes são alguns exemplos das peças preparadas ano após ano para serem executadas no espaço do baile, mas havia representações mais elaboradas que saíam desse local e tomavam outra dimensão. Os números de contrabandistas em fuga de guardas que os perseguiam aos tiros, muitas vezes reais, eram muito aplaudidos pelo povo em geral, mas assustavam as crianças que tomavam a ficção pela realidade. Os entrudos a fazer as suas partidas a velhos e novos, muitas vezes sem sensibilidade nenhuma para com o receio, quiçá temor verdadeiro, espelhado no rosto e nas lágrimas das crianças mais temerosas. Eram esperados com impaciência e eram eles que levavam as mulheres mais velhas e menos dadas a divertimentos ao espaço público do baile ou ao desfile quando este tinha lugar.

A troca de género era muito comum e nesta quadra muitos fatos de homem, guardados em armários ou arcas durante todo o ano, tresandando a naftalina, faziam as delícias de mulheres e raparigas que com eles se mascaravam de homem e se faziam acompanhar por matrafonas de grandes seios e não menos avantajados traseiros, papeis encarnados por homens. A identidade dos mascarados escondia-se atrás de rendas ou mascarilhas costuradas a preceito e era um feito conseguir enganar a assistência. Às vezes, discutia-se durante dias quem seria um ou outro mascarado e não se chegava a descobrir ou então isso acontecia quando o interesse pelo assunto já tinha arrefecido. Havia quem levasse tão longe o espírito carnavalesco que pessoas que estavam nos seus afazeres se viam obrigadas a larga-los pela interferência dos entrudos. Tanto podiam tirar a roupa às mulheres que lavavam na fonte, como fugir com um saco de grão que alguém levava para o moinho, ou soltar as vacas que puxavam um arado e levá-las para o pasto, obrigando o dono a deixar o trabalho e ir para o baile. Qualquer atividade que afastasse as pessoas do espaço comum de divertimento podia ser objeto da intrusão dos mascarados e a sua interferência era em geral respeitada, ninguém levava a mal.

Nesse ano, em que tinham contratado um tocador para todas as noites e um vizinho que se ajeitava com a concertina dava o seu contributo à animação geral, a folia prometia não faltar. Desde o jantar da noite de Reis que parte da mocidade se preparava para desafiar o pessoal do lugar mais próximo e ver quem levava a melhor em máscaras e trapalhadas. Era uma tradição antiga mas há anos que não se juntavam os dois lugares para entrarem em despique. Os de Vilarinho iriam no domingo a Andorinho, os daqui iriam a Vilarinho na terça feira. Sempre à tarde, o estômago bem aconchegado pelas carnes que nesses dias eram menos escassas, nas vésperas de uma quaresma que chegava em auxílio da dona de casa que se via mal para fazer chegar o conduto até à matança seguinte. Também era o dia das últimas guloseimas até à Páscoa, em nenhuma mesa faltavam as rabanadas, nalgumas acolitadas por arroz doce ou aletria, dependendo mais da vontade de festejar do que das posses, pois sobremesas mais humildes não há.

Para a posteridade não haveria de ficar o confronto entre os dois lugares, a mocidade a dar o seu melhor para ultrapassar relatos de comemorações passadas e perpetuar a rivalidade que só existia à superfície. Estavam os participantes do desfile de Vilarinho na garagem do tio Canteiro a combinar os últimos preparos e a repetir as deixas do teatro, quando chegou uma missão para o guarda Peres. Devia estar de plantão, mas fizera-se substituir por um colega, já que lhe cabia o papel principal na encenação do desfile. Sentia-se muito ufano da sua imaginação e capacidade de organização e à conta desta esgueirara-se logo depois do jantar, como acontecia há tempos nos domingos à tarde. A mulher andava com a pulga atrás da orelha, eram ensaios a mais para o seu gosto, com aquelas Marias alevantadas todas de volta dele, era bom que estivesse atenta. Mandou um petiz dar-lhe o recado, mas o rapazinho voltou com a informação de que o senhor Peres não estava na garagem. A Benvinda mandou o miúdo para a eira, depois de lhe dar um rebuçado que tirou da algibeira e, a remoer as pragas que lhe ocorriam em surdina, fingindo uma calma que não sentia, bateu com a porta e saiu sem pressa, indagando a si mesma para onde se dirigir. Haveria de dizer que foram as pernas que a conduziram, que chegou a palheiro da tia Brasileira sem dar por isso. A porta estava apenas encostada, o fecho descorrido, sinal de que quem entrara ainda não saíra. Entrou sem ruído, a habituar os olhos à escuridão, perscrutando para lá das frinchas da porta e do janelo que dava para o caminho da Cangosta.

 

(continua)